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quisadas,<br />
inclusive os falares dos<br />
quilombos remanescentes, <strong>com</strong>o<br />
o Cafundó, no interior de São Paulo. São<br />
palavras que têm uso restrito nessas <strong>com</strong>unidades,<br />
que não chegaram ao domínio geral,<br />
mas têm <strong>um</strong>a filiação africana muito clara. Muitas<br />
delas, já observei, são permanentes. Elas “hibernam”<br />
durante <strong>um</strong> tempo e, por alg<strong>um</strong>a razão, voltam.<br />
Quer saber outro termo? Por causa da televisão,<br />
todos sabem o que é <strong>um</strong>a “quenga”. É <strong>um</strong>a palavra<br />
africana muito usada no interior e que ficou restrita<br />
a essas localidades por <strong>um</strong> bom tempo. Hoje, tem<br />
circulação nacional. Há outras ainda: “tamanco”, “camundongo”,<br />
“marimbondo”, palavras extremamente<br />
sonoras, do grupo banto.<br />
O senhor é ligado a alg<strong>um</strong> grupo acadêmico de<br />
estudo da <strong>língua</strong>?<br />
Não. Minha formação é in<strong>com</strong>pleta, sou bacharel em<br />
direito e ciências sociais. O tempo da faculdade foi de<br />
muita turbulência política e o ensino não me agradava<br />
muito. Apesar disso, eu me formei e advoguei durante<br />
<strong>um</strong> período, mas o que ficou foi só <strong>um</strong>a base.<br />
Acho que tinha vocação de antropólogo mesmo.<br />
Na época era o tipo de conhecimento que não era<br />
vulgarizado. Sou autodidata. Tenho <strong>um</strong>a base formal,<br />
mas não sou ligado a nenh<strong>um</strong> grupo acadêmico.<br />
Mesmo porque tenho críticas à academia. O trabalho<br />
acadêmico é muito em torno do próprio <strong>um</strong>bigo. As<br />
pessoas, em geral, não têm <strong>um</strong>a preocupação mais<br />
adiante, mais social, de transformação. Querem é defender<br />
<strong>sua</strong> tese, ganhar <strong>sua</strong> promoção, fazer grana. E<br />
a vaidade é muito grande.<br />
Seus estudos linguísticos <strong>com</strong>eçaram a despontar<br />
quando a carreira musical já estava consolidada.<br />
Hoje, <strong>com</strong>o <strong>um</strong> assunto visita o outro: o<br />
estudo abastece a <strong>com</strong>posição e a <strong>com</strong>posição<br />
exemplifica o estudo?<br />
Em 2006, por exemplo, publiquei <strong>um</strong> livro de ficção,<br />
Vinte Contos e uns Trocados, pela editora Record. Ou-<br />
tro dia, <strong>com</strong>ecei a relê-lo e me surpreendi. Eu escrevi<br />
esses contos no intervalo de outro trabalho, que não<br />
foi publicado ainda, o Dicionário da Antiguidade Africana.<br />
Ele vai sair pela Civilização Brasileira, que é do<br />
grupo Record também. É <strong>um</strong> estudo que está sendo<br />
muito bem elaborado, porque é pioneiro, ninguém<br />
tinha analisado a África antes da chegada dos portugueses.<br />
Pois bem, eu percebi, ao reler as histórias de<br />
Vinte Contos que nelas, em vários momentos, aparecem<br />
referências à música. Todos os contos se passam<br />
no ambiente das escolas de samba. A todo momento<br />
esse ritmo está nas histórias; e, em várias passagens,<br />
a antiguidade africana também. Então tudo<br />
vai se ligando, não há dúvida. Reparei também que,<br />
atualmente, quando faço <strong>um</strong> samba, muita coisa da<br />
minha formação jurídica tem entrado nas <strong>com</strong>posições.<br />
Quero reunir as músicas em que essa influência<br />
é recorrente. Esse recurso é usado mais <strong>com</strong>o <strong>um</strong>a<br />
brincadeira, <strong>com</strong>o <strong>um</strong> deboche, mas é interessante,<br />
de qualquer forma. As coisas se entrecruzam sem<br />
preconceito nenh<strong>um</strong>.<br />
Na introdução do Novo Dicionário Banto do Brasil<br />
(Pallas, 2003), o senhor faz <strong>um</strong>a observação sobre a<br />
influência das <strong>língua</strong>s africanas no português ao<br />
dizer que <strong>um</strong>a das formas de racismo mais arraigadas<br />
na alma brasileira é reduzir essas <strong>língua</strong>s à<br />
condição de “dialetos”. Outro aspecto pontuado<br />
nesse texto é a definição do português brasileiro<br />
<strong>com</strong>o <strong>um</strong> dialeto do idioma falado em Portugal...<br />
Teoricamente seria, porque <strong>um</strong> dialeto é <strong>um</strong>a forma<br />
linguística resultante da transmutação, da transposição<br />
de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> para outro ambiente. O que aconteceu<br />
<strong>com</strong> o português de Portugal e do Brasil? A <strong>língua</strong><br />
de Portugal, ao vir para o Brasil e ter contato <strong>com</strong><br />
outras realidades linguísticas, transformou-se bastante.<br />
Minha crítica nesse texto é ao preconceito<br />
de que toda <strong>língua</strong> africana é <strong>um</strong> dialeto. A existência<br />
de <strong>um</strong> dialeto pressupõe a existência de<br />
<strong>um</strong>a <strong>língua</strong>. É evidente que na África há dialetos,<br />
mas há <strong>língua</strong>s também. O quicongo<br />
é <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> falada por milhões<br />
de pessoas, o hauçá, o<br />
m a n -<br />
dinga são <strong>língua</strong>s<br />
que têm subdivisões dialetais,<br />
de acordo <strong>com</strong> as regiões. Chamar<br />
toda <strong>língua</strong> africana de dialeto é racista,<br />
inferiorizante. Em outro livro meu, Dicionário<br />
Literário Afro-Brasileiro (Pallas, 2007), discuto a<br />
questão do racismo na literatura. Por exemplo, há<br />
<strong>um</strong> grupo de literatos negros em São Paulo, chamado<br />
Quilombhoje, que se reúne em torno dos Cadernos<br />
Negros, publicação editada há cerca de 30 anos.<br />
Eles publicam às próprias custas antologias de ficção<br />
e de poesia. É <strong>um</strong> grupo reconhecido internacionalmente,<br />
mas o Brasil não o reconhece. Em nosso país<br />
só alcançam reconhecimento as pessoas que estão<br />
ligadas aos círculos literários influentes, que vendem<br />
muitos livros, estão em grandes editoras.<br />
O senhor postou recentemente em seu blog<br />
[www.neilopes.blogger.<strong>com</strong>.br] <strong>um</strong> texto sobre<br />
<strong>um</strong>a recente pesquisa da situação social do negro<br />
brasileiro no último ano. Nele, faz <strong>um</strong>a crítica<br />
ao debate atual sobre a existência ou não de raças.<br />
Por que surgem essas proposições, e por que<br />
elas ganham força?<br />
Meu pai e minha mãe são do século XIX; meu pai<br />
nasceu em 1888, poucos meses antes da Abolição.<br />
Para mim, o grande acontecimento de 2008 foi a descoberta<br />
de minha ancestralidade <strong>um</strong> pouco além de<br />
meu pai. O historiador Flávio Santos Gomes está trabalhando<br />
<strong>com</strong> registros de batismos de pessoas nascidas<br />
nos séculos XVIII, XIX, pertencentes a igrejas. Ele<br />
me auxiliou. Meu pai dizia que tinha sido batizado na<br />
Igreja da Lampadosa, no centro do Rio, que concentrou<br />
grande irmandade de pardos. Então, pressupõese<br />
que minha ancestralidade mais próxima não seja<br />
totalmente africana, tenha <strong>um</strong> grau de mestiçagem.<br />
Em casa, desde cedo fui o primeiro a pensar nas questões<br />
que envolvem os negros, por ter sido o primeiro<br />
a ter acesso a esse tipo de informação – meu pai<br />
e minha mãe não gostavam de tocar nesse assunto.<br />
Diziam: “Deixa para lá que a gente tem que melhorar”.<br />
Era aquele conceito de melhorar no sentido do<br />
embranquecimento mesmo, de deixar a condição de<br />
negro para trás. Minha mãe não queria que eu me envolvesse<br />
<strong>com</strong> gente do samba, e eu me envolvi, contrariando<br />
todas as expectativas. Além do samba, havia<br />
a questão da religião, quanto menos africanizada<br />
“Há <strong>um</strong>a infinidade de palavras africanas sendo pesquisadas,<br />
inclusive os falares dos quilombos remanescentes.<br />
São de uso restrito nessas <strong>com</strong>unidades, que não chegaram<br />
ao domínio geral.”<br />
fosse, melhor, apesar de minha mãe ser médi<strong>um</strong>. Ela<br />
recebia preta-velha, e meus tios recebiam caboclos.<br />
Mas, quanto menos africano a gente fosse, melhor. É<br />
lógico, <strong>um</strong> pai que nasceu em 1888 e <strong>um</strong>a mãe que<br />
nasceu em 1900 não vão querer nunca que a formação<br />
do filho remeta àquele passado aviltante do qual,<br />
embora distantes, sentiram as consequências. Não era<br />
bom ser negro, não era confortável. O que eles queriam?<br />
Que o filho estudasse, subisse na vida. Comecei,<br />
então, a ver que enquanto o negro permanecesse no<br />
lugar reservado a ele, ocuparia, sem demérito, funções<br />
<strong>com</strong>o mecânico ou operário qualificado, <strong>com</strong>o se dizia<br />
antigamente. Se, no entanto, o negro pensasse em<br />
ser doutor, <strong>um</strong> ser pensante, <strong>com</strong>eçaria a entrar n<strong>um</strong>a<br />
área de conflito <strong>com</strong> o branco. E é exatamente isso o<br />
que está acontecendo. Mas também é <strong>um</strong> momento<br />
muito saudável, pois se trata de <strong>um</strong> assunto que<br />
nunca se discutiu e agora está na pauta do Congresso,<br />
<strong>com</strong> o Estatuto da Igualdade Racial. Se raça não existe,<br />
existe o racismo! Essa é a grande questão. Se não tenho<br />
a possibilidade de avançar, tenho no mínimo de<br />
me preocupar.<br />
Assista na Continu<strong>um</strong> On-Line a trecho do DVD Toca<br />
Brasil – Nei Lopes.<br />
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