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Você ficou contente <strong>com</strong> a vitória do Salgueiro no<br />
último Carnaval?<br />
Esta é <strong>um</strong>a longa história. Estou afastado do Salgueiro<br />
desde 1989. Quando saí da escola, devido a <strong>um</strong>a<br />
in<strong>com</strong>patibilidade <strong>com</strong> a direção, fui para a Vila Isabel.<br />
Sempre morei naquela região, da Grande Tijuca.<br />
Eu era <strong>um</strong> simples <strong>com</strong>ponente do Salgueiro e na Vila<br />
Isabel virei dirigente.<br />
Você era da ala dos <strong>com</strong>positores do Salgueiro?<br />
Fui da ala dos <strong>com</strong>positores, mas quando saí estava<br />
na velha-guarda. Eu me desentendi <strong>com</strong> eles porque<br />
concorri <strong>com</strong> <strong>um</strong> samba-enredo para o Carnaval de<br />
1989 e houve alg<strong>um</strong>as confusões, que são típicas de<br />
escolas de samba. Mas meu coração é salgueirense.<br />
Fiquei muito feliz <strong>com</strong> a vitória da escola nesse Carnaval.<br />
Eu vi o desfile pela televisão, mas não se tem a<br />
noção exata do que seja, pois, apesar de toda a tecnologia,<br />
ela não aprendeu ainda a transmitir desfiles de<br />
escolas de samba. É algo tão rico... Um cortejo no qual<br />
se encena <strong>um</strong> espetáculo, <strong>com</strong>o se fosse <strong>um</strong>a ópera.<br />
Neste ano, eu me emocionei profundamente porque<br />
o desfile estava muito bom, muito bem acabado do<br />
início ao fim. A Vila Isabel eu não vi, lá tenho grandes<br />
amigos, mas ela não mexe <strong>com</strong> minha sensibilidade<br />
<strong>com</strong>o o Salgueiro, para o qual entrei no final da adolescência.<br />
Foi <strong>um</strong> convívio muito intenso.<br />
O Salgueiro foi <strong>um</strong>a das primeiras escolas a trabalhar<br />
<strong>com</strong> temas ligados a questões dos negros...<br />
Sim, isso foi o que me chamou a atenção na adolescência.<br />
A primeira vez que vi o Salgueiro foi em 1958.<br />
A escola tem <strong>um</strong>a história social <strong>com</strong>pleta, muito coerente<br />
em toda a <strong>sua</strong> existência. Foi a primeira agremiação<br />
na qual se exercitou a possibilidade de o meio<br />
conduzir a mensagem. Normalmente, o que se via nas<br />
escolas de samba era a <strong>com</strong>unidade majoritariamente<br />
negra transmitir os conteúdos da história convencional,<br />
oficial, eurocêntrica. Colocar <strong>um</strong> negro vestido<br />
de escravo foi <strong>um</strong>a mudança difícil. Negro queria era<br />
sair fantasiado de senhor. É até ilógica minha participação<br />
no Salgueiro pelo fato de eu ter nascido e sido<br />
criado no Irajá, subúrbio carioca, <strong>com</strong>pletamente distante<br />
do núcleo salgueirense. O Irajá tem forte tradição<br />
de samba, pois está cercado pelo Império Serrano,<br />
pela Portela. O lógico seria eu ir para <strong>um</strong>a dessas.<br />
Inclusive, quando menino, tinha <strong>um</strong>a tia que foi <strong>um</strong>a<br />
grande figura da Portela, foi <strong>com</strong>positora, cozinheira.<br />
Recentemente tive acesso a <strong>um</strong>a carteirinha dela e ali<br />
estão seu nome e número da matrícula. Imagina <strong>um</strong><br />
<strong>com</strong>ponente da Portela <strong>com</strong> a carteirinha de número<br />
5, então é da fundação mesmo. Alguns membros da<br />
“O samba fixou muita coisa, principalmente na contribuição<br />
vocabular, que andava solta pelos morros.”<br />
velha-guarda, <strong>com</strong>o Monarco e Casquinha, a conheceram<br />
bem e, de vez em quando, me questionam por eu<br />
não pegar os sambas dela, que só tinham a primeira<br />
parte – u<strong>sua</strong>l naquele tempo –, e não os <strong>com</strong>pletar.<br />
Conheço uns dois, que estão na memória, só. Ela foi<br />
<strong>um</strong>a pessoa que me influenciou muito. Seria coerente,<br />
então, que eu fosse da Portela ou do Império Serrano,<br />
onde tenho amigos, mas nunca estive lá. A razão, no<br />
entanto, é muito simples: tenho <strong>um</strong> amigo de infância<br />
que atualmente mora no Recife e sai todo ano na<br />
velha-guarda do Salgueiro. Ele pertencia à <strong>com</strong>unidade<br />
dessa escola, era <strong>um</strong> salgueirense convicto. A gente<br />
se criou junto. Quando atingimos a maioridade, ele<br />
me convidou para sair no Salgueiro, eu disse que não<br />
dava, não tinha dinheiro, não estava trabalhando, e ele<br />
me falou que a escola iria dar a roupa a pessoas que<br />
tivessem facilidade <strong>com</strong> dança, para integrar <strong>um</strong> quadro<br />
que não era exatamente de samba, era <strong>um</strong> balé.<br />
Isso foi em 1963, o primeiro ano em que a escola foi<br />
campeã, <strong>com</strong> o enredo sobre Xica da Silva. No ano<br />
seguinte, eu me tornei <strong>com</strong>ponente. Depois, meu<br />
filho, aos 10 anos, deu continuidade a essa tradição,<br />
saiu na bateria, ficou ligado à escola por muito<br />
tempo. É algo natural. Um dia perguntaram<br />
aos meus netos, que são gêmeos, <strong>com</strong> 9<br />
para 10 anos, de que escola eram, responderam<br />
“do Salgueiro”.<br />
O senhor é<br />
<strong>um</strong> dos criadores e mestres<br />
do samba de partido alto. Esse<br />
gênero é marcado por narrações de casos<br />
do cotidiano. Quais artifícios ou ferramentas<br />
a <strong>língua</strong> oferece para criá-los?<br />
É <strong>um</strong> estilo de samba que me encanta muito pela<br />
proximidade <strong>com</strong> a tradição africana. É a forma menos<br />
desafricanizada do samba. Eu me tornei <strong>um</strong> praticante<br />
dele. Hoje já não tenho tanta agilidade <strong>com</strong>o<br />
antigamente, é algo que vai se perdendo <strong>com</strong> a falta<br />
de exercício. Partido alto é <strong>um</strong>a cantoria na base<br />
do improviso. Então, quando se escreve, quando se<br />
grava esse samba, ele já deixou de ser partido alto.<br />
Daí se tem <strong>um</strong> samba em estilo partido alto, mas em<br />
essência não é. Ao gravar, já se escreveu, se memorizou,<br />
então não há improviso. O improviso sempre<br />
acontece no ambiente da informalidade. Quando é<br />
apresentado n<strong>um</strong> teatro, perde a espontaneidade.<br />
Todas as cantorias ocorrem ao sabor do momento.<br />
Tem de haver <strong>um</strong>a base, <strong>um</strong>a poesia previamente<br />
preparada, mas o que vai surgir dali não se sabe. Há<br />
determinados motivos, dentro de refrões, e tem de<br />
se versar <strong>com</strong> esses temas. A cantoria nordestina, por<br />
exemplo, tem vários estilos, cada <strong>um</strong> <strong>com</strong> muita rigidez<br />
formal. O partido alto tem alg<strong>um</strong>as regras, mas<br />
não essa rigidez, essa formalidade em que não se<br />
pode sair do estabelecido. O partido alto tem mais o<br />
caráter de brincadeira, de algo mais lúdico do que a<br />
<strong>com</strong>petição de saber quem é o melhor, <strong>com</strong>o os trovadores<br />
na cantoria nordestina. Nele, quanto mais se<br />
rimar dentro de <strong>um</strong>a métrica, melhor. Por exemplo,<br />
quando se faz <strong>um</strong>a quadrinha: “Lá em cima daquele<br />
morro tem <strong>um</strong> pé de manacá”. Pode-se brincar assim:<br />
“Lá em cima daquele morro eu peço socorro”, entende?<br />
Inclui-se outra qualidade de rima, transforma-se<br />
a quadra n<strong>um</strong>a sextilha, fica algo mais encorpado,<br />
balançado, gostoso. Aí é que se vê a habilidade do<br />
partideiro. Há grandes partideiros atualmente, <strong>com</strong>o<br />
o Tantinho da Mangueira. Dos que estão em atuação<br />
no momento, ele é o melhor. O Arlindo Cruz também<br />
é excelente.<br />
O samba é <strong>com</strong><strong>um</strong>ente associado à preservação<br />
da cultura nacional. Nisso se inclui a <strong>língua</strong> portuguesa.<br />
Qual a contribuição efetiva que o samba<br />
deu à nossa <strong>língua</strong>?<br />
O samba fixou muita coisa, principalmente na contribuição<br />
vocabular. Ele consagrou muita criação lexical<br />
que andava solta pelos morros. Na construção de <strong>um</strong><br />
dicionário, por exemplo, se determinada palavra tem<br />
importância histórica, para registrá-la é preciso fazer<br />
<strong>um</strong>a abonação. Onde está essa palavra, em que local<br />
foi usada. Muitas vezes, essa abonação só vai ser<br />
encontrada em letra de samba. São palavras de uso<br />
muito localizado, <strong>com</strong>o qualquer gíria. A gíria é <strong>um</strong>a<br />
forma verbal sempre restrita a determinado ambiente,<br />
contexto e grupo. O samba é fonte de referência, apesar<br />
do esvaziamento cultural, para o qual a indústria<br />
cultural contribuiu decisivamente.<br />
É o fenômeno do samba axé...<br />
Exato, e também o chamado neopagode, que é sexualização<br />
pura e de <strong>um</strong>a ingenuidade... O samba não é<br />
isso, em <strong>sua</strong> essência é crítico, é cronista da vida. Ultimamente,<br />
está nas mãos de muito poucos <strong>com</strong>positores.<br />
Vemos isso no repertório do Zeca Pagodinho. Sua<br />
grande importância é essa, ele é o guardião, vamos dizer<br />
assim, o bastião da resistência do modo de vida, da<br />
cultura, da expressão oral do mundo do samba. Outros<br />
<strong>com</strong>positores, <strong>com</strong>o Luís Grande, Zé Roberto e Barbeirinho<br />
do Jacarezinho, também são muito bons.<br />
Foi do samba que surgiu seu interesse por estudar as<br />
<strong>língua</strong>s africanas e <strong>sua</strong> influência no português?<br />
Tudo <strong>com</strong>eçou <strong>com</strong> a necessidade que eu sentia desde<br />
muito cedo de denunciar essa forma de as pessoas<br />
encararem tudo que é africano <strong>com</strong>o negativo, desinteressante,<br />
desimportante. Quando descobri que o<br />
português que se fala no Brasil tem forte influência<br />
africana, não só na <strong>sua</strong> estrutura, mas no modo de<br />
falar, no vocabulário, não parei mais. Há palavras que<br />
a gente nem supõe que sejam de origem africana.<br />
Nesta semana, por exemplo, me ocorreu que “maluco”<br />
poderia ser africana. E é. “Maluco” vem do Congo. Outro<br />
exemplo, <strong>um</strong>a palavra que é do campo semântico<br />
da tecnologia, “carimbo”. Ela é de origem africana. Mais<br />
<strong>um</strong>a: “sunga”, do campo da vestimenta, dá a impressão<br />
de ser extremamente moderna. Mas não é. Vem das<br />
origens africanas, quando se usava o termo “assungar”,<br />
que significa diminuir, encurtar. Então, <strong>um</strong>a roupa assungada<br />
é <strong>um</strong>a roupa encurtada, daí vem “sunga”.<br />
Há <strong>um</strong>a infinidade de palavras africanas sendo pes-<br />
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