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Uma visita à Torre de Babel<br />
Para entender <strong>um</strong>a sociedade, entenda primeiro <strong>sua</strong> <strong>língua</strong>.<br />
Por Rita Loiola | Fotos João Wainer<br />
reportagem<br />
O homem tem a sorte, entre outras, de conhecer <strong>sua</strong> história desde o princípio. E o <strong>com</strong>eço diz que havia<br />
apenas <strong>um</strong> homem, que falava <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> concedida por <strong>um</strong> ser divino. Mas, <strong>um</strong> dia, os descendentes<br />
desse homem resolveram construir <strong>um</strong>a torre muito alta e chegar aos céus, onde morava seu deus. Só que<br />
o proprietário das nuvens não gostou nada dessa invasão e evitou a construção dos últimos andares <strong>com</strong><br />
<strong>um</strong>a ideia muito engenhosa: confundiu a <strong>língua</strong> dos operários. Sem se entenderem, eles migraram para<br />
outras regiões, amargando o fracasso do projeto.<br />
Torre de Babel, Grande Pirâmide de Cholula e Zacuali são alguns dos nomes que a construção leva em<br />
diferentes tradições. O mito é <strong>um</strong>a das tentativas mais bem-sucedidas de resolver a questão milenar da<br />
diversidade das <strong>língua</strong>s no mundo. Afinal, <strong>com</strong>o explicar <strong>um</strong> assunto que se confunde <strong>com</strong> a origem do<br />
homem? Como abordar essa “coisa” que chamamos <strong>língua</strong> e que já foi definida <strong>com</strong>o <strong>um</strong>a energia, <strong>um</strong> organismo<br />
ou <strong>um</strong> sistema social?<br />
No século XVIII, conhecido <strong>com</strong>o século das luzes, o filósofo francês Rousseau escreveu, em <strong>um</strong> de<br />
seus ensaios menos conhecidos, longamente sobre o assunto. Para ele, o homem <strong>com</strong>eçou<br />
a falar para emocionar os outros. “Pode-se crer que a necessidade ditou<br />
os primeiros gestos e as paixões arrancaram as primeiras vozes”,<br />
diz ele em seu Ensaio sobre a Origem das Línguas, de<br />
1761 (Unicamp, 2008). Rousseau acreditava<br />
que, se o homem tivesse apenas necessidades<br />
físicas, da mesma maneira que<br />
outros animais, ele provavelmente<br />
nunca falaria. Mas, <strong>com</strong>o se desconfia,<br />
o Homo sapiens precisa<br />
de alg<strong>um</strong>as coisas a mais.<br />
Tem desejos e sentimentos<br />
e, depois que <strong>com</strong>eçou a<br />
duvidar da narrativa bíblica<br />
sobre a origem<br />
h<strong>um</strong>ana, conheceu novas vontades. Quis entender<br />
qual era a linguagem que caminhou <strong>com</strong> o primeiro<br />
homem e <strong>com</strong>eçou, no fim do século XIX, a especular<br />
sobre a “<strong>língua</strong> perfeita”, “original” ou “adâmica”.<br />
Foi nesse rastro, por exemplo, que nasceu o esperanto,<br />
na Polônia, ou o volapük, na Alemanha, <strong>língua</strong>s<br />
francas internacionais [faladas por gente de diferentes<br />
idiomas <strong>com</strong> o objetivo de <strong>com</strong>unicaremse<br />
entre si] <strong>com</strong> a missão de acabar <strong>com</strong> a maldição<br />
de Babel. “Afinal de contas, o plurilinguismo é visto<br />
<strong>com</strong>o <strong>um</strong> castigo de Deus em todo o Ocidente, e<br />
só é redimido <strong>com</strong> a descida do Espírito Santo sobre<br />
os apóstolos”, explica o linguista José Luiz Fiorin,<br />
da Universidade de São Paulo. “Nesse episódio, todos<br />
falaram e se entenderam, mas não se sabe se<br />
os apóstolos ouviram a mensagem na <strong>sua</strong> própria<br />
<strong>língua</strong> ou se ganharam todos os idiomas, n<strong>um</strong>a espécie<br />
de ‘esperanto místico’ ”, explica.<br />
As partes da colcha de retalhos<br />
A solução do Espírito Santo ganhou contornos práticos<br />
nas <strong>língua</strong>s universais ou em ideias mais bemh<strong>um</strong>oradas,<br />
<strong>com</strong>o a de Jonathan Swift: “Visto que as<br />
palavras são apenas nomes de coisas, seria bastante<br />
mais cômodo que cada <strong>um</strong> carregasse consigo as<br />
coisas que lhe servem para exprimir os assuntos que<br />
tenciona falar [...] desse modo, os embaixadores poderiam<br />
negociar <strong>com</strong> príncipes ou ministros estrangeiros<br />
sem terem que conhecer as <strong>sua</strong>s <strong>língua</strong>s”, diz<br />
o autor irlandês nas <strong>sua</strong>s Viagens de Gulliver, de 1726<br />
(L&PM, 2005). Nessa época apareceram também especulações<br />
sobre a origem e o motivo que levavam<br />
os homens a se <strong>com</strong>unicar, <strong>com</strong>o <strong>um</strong>a história de<br />
que eles <strong>com</strong>eçaram a falar a partir dos grunhidos<br />
associados ao esforço para levantar objetos pesados.<br />
Cansados dessas ideias estapafúrdias, em 1866 os estudiosos<br />
da Sociedade Linguística de Paris proibiram<br />
todo e qualquer estudo de tema relativo à “origem da<br />
linguagem”. Para eles, o assunto estava longe de ser<br />
científico. No entanto, <strong>um</strong> inglês chamado Willian Jones<br />
viajou para a Índia e acabou convencido de que<br />
alguns falares da Europa, da Índia e do Oriente Médio<br />
tinham parentesco. A publicação de seus estudos é<br />
o marco inicial da linguística <strong>com</strong>parada, a responsável<br />
pelo estabelecimento do que hoje conhecemos<br />
<strong>com</strong>o famílias linguísticas, o mais próximo que se<br />
pôde chegar dos primórdios das <strong>língua</strong>s.<br />
12 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 13