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Palavras são sensações<br />
Quando aprendidas na infância, certas palavras adquirem significados que<br />
nos a<strong>com</strong>panham vida afora.<br />
Por Antonio Carlos Viana | Ilustração Joana Lira<br />
artigo<br />
No tempo em que se cantava o Hino Nacional antes das aulas, eu ficava intrigado <strong>com</strong> o verso que dizia:<br />
“Dos filhos deste solesmãe gentil, pátria amada Brasil”. O que significava aquele “solesmãe”? Para mim, era <strong>um</strong><br />
mistério. Tê-lo <strong>um</strong> dia desfeito, ainda mais pela análise sintática, acabou <strong>com</strong> a beleza do verso. Mesmo hoje,<br />
ao ouvir o hino, o “solesmãe” me transporta para <strong>um</strong> tempo em que as palavras tinham <strong>um</strong> sabor ainda não<br />
contaminado pela gramática e pelos dicionários.<br />
Todos nós temos <strong>um</strong> dicionário pessoal. Ele se constrói naturalmente, à revelia dos dicionários oficiais. Quando<br />
tomamos consciência de que estes existem, o nosso já está formado e é difícil contrariá-lo. A criança vive<br />
n<strong>um</strong>a eterna metalinguagem. Ela mesma cria seus códigos de decifração e, assim, vai formando seu dicionário<br />
particular, até o dia em que vêm os dicionários de verdade e acabam <strong>com</strong> a fantasia.<br />
Voltando aos meus encontros mais remotos <strong>com</strong> as palavras, lembro-me de <strong>um</strong>a expressão cujo sentido<br />
que lhe dei é o que me vem logo à cabeça ao me deparar <strong>com</strong> ela. Quando tinha meus 7, 8 anos, passava<br />
diante dos cinemas e via cartazes anunciando alguns filmes para “em breve”. Nunca perguntei a ninguém o<br />
que aquilo significava. Como o filme anunciado demorava muito a passar, a expressão entrou para o meu<br />
dicionário <strong>com</strong>o sinônimo de “dali a <strong>um</strong> bom tempo”.<br />
É na infância que construímos <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> própria, que nos faz entender o mundo diferentemente de <strong>com</strong>o<br />
os adultos o entendem. Ela é <strong>um</strong>a janela particular por onde observamos coisas e pessoas. Mesmo quando<br />
aprendemos a folhear os dicionários, raramente perdemos o sentido original que demos a alg<strong>um</strong>as palavras.<br />
São elas que forram o nosso chão primordial. Não há dicionários que as traduzam da forma <strong>com</strong>o as sentimos<br />
pela primeira vez. Elas são antes sensações que significados. Geralmente nos decepcionamos quando<br />
descobrimos que o dicionário oficial nos contraria.<br />
Jamais me esqueci de<br />
<strong>um</strong>a palavra que, para mim, pertencia<br />
ao gênero masculino. Quando<br />
descobri que era feminina, não a reconheci.<br />
Achei que os dicionários estavam errados. Pesquisei<br />
em vários deles para ver se alg<strong>um</strong> me salvava<br />
e a dava <strong>com</strong>o masculina. Não dava. Para mim,<br />
“a <strong>com</strong>ichão” não era o mesmo que “o <strong>com</strong>ichão”. Eu<br />
achava que só lhe cabia os artigos “o” ou “<strong>um</strong>”. Desde<br />
então, ela não passa de <strong>um</strong> termo morto no meu<br />
acervo linguístico.<br />
Janelas para o mundo<br />
Minhas primeiras relações <strong>com</strong> as palavras, <strong>com</strong>o<br />
as de toda criança, foram sempre lúdicas. Quando<br />
descobri o gosto por elas, lia os textos do livro de<br />
português antes que o professor os lesse em sala<br />
de aula. Eu protelava a consulta ao vocabulário que<br />
ficava no final do livro ou ao pé da página. Preferia<br />
deduzir pelo contexto o que elas significavam. Às<br />
vezes dava certo, outras vezes não. Imagino <strong>com</strong>o<br />
seriam bem mais interessantes as aulas de <strong>língua</strong> se,<br />
em vez de mandarmos os alunos direto ao dicionário,<br />
os incentivássemos a imaginar <strong>um</strong> sentido para<br />
as palavras desconhecidas.<br />
Quando <strong>com</strong>ecei a estudar francês, meu primeiro<br />
professor gostava de brincar <strong>com</strong> as palavras<br />
e foi isso que me levou a me apaixonar, cada vez<br />
mais, por essa <strong>língua</strong>. Já o professor de inglês<br />
era seco, técnico, nos mandava logo ao dicionário,<br />
sem nenh<strong>um</strong>a poesia. Suas aulas eram de<br />
<strong>um</strong> tédio sem fim. O de francês fazia <strong>com</strong> que<br />
a gente atentasse para a <strong>com</strong>binação dos sons,<br />
para a sequência das sílabas, e o sentido apareceria<br />
depois. Era <strong>um</strong> exercício que deixava toda a<br />
turma em contínua atenção. O verbo “bouleverser”<br />
foi <strong>um</strong> dos exemplos mais vivos que ele deu.<br />
Quando vou<br />
traduzi-lo, fico sempre<br />
insatisfeito, acho que está faltando<br />
alg<strong>um</strong>a coisa. Não sinto em<br />
“transtornar” o mesmo movimento interior<br />
do original. Não é que haja <strong>um</strong>a <strong>língua</strong><br />
mais expressiva que outra, cada <strong>um</strong>a o é à <strong>sua</strong><br />
maneira, mas há palavras que nunca deveriam<br />
ser traduzidas. “Bouleverser” seria <strong>um</strong>a delas.<br />
Seja em que <strong>língua</strong> for, o primeiro contato <strong>com</strong> as<br />
palavras é decisivo para a construção de nosso estar<br />
no mundo. Por mais que, <strong>um</strong> dia, você lide <strong>com</strong> elas,<br />
o que vale mesmo é a forma <strong>com</strong>o as sentiu pela primeira<br />
vez. Há <strong>um</strong> dicionário vivo que nos a<strong>com</strong>panha<br />
desde o momento em que passamos a nomear o<br />
que nos cerca. Um menino que nasce no sertão nordestino<br />
não vê a palavra “terra” <strong>com</strong> o mesmo olhar<br />
de outro que nasce no Sul. <strong>Cada</strong> <strong>um</strong> cria <strong>um</strong> universo<br />
de sentidos particulares que carregará vida afora. Há<br />
<strong>um</strong> dicionário que antecede todos os dicionários, e é<br />
esse o que mais conta na hora da criação.<br />
As palavras abrem janelas para o mundo, mas para<br />
abri-las de verdade precisam ter <strong>um</strong> sopro original.<br />
Quando escrevemos <strong>um</strong> poema, <strong>um</strong> conto, é bem<br />
isto o que procuramos: buscar sentidos ainda não<br />
contaminados pela baba do mundo. Para encerrar,<br />
recorro a Roland Barthes, quando diz que o escritor<br />
“não possui mais em si paixões, h<strong>um</strong>ores, sentimentos,<br />
impressões, mas esse imenso dicionário de onde<br />
retira <strong>um</strong>a escritura [...] a vida nunca faz outra coisa<br />
senão imitar o livro, e esse mesmo livro não é mais<br />
que <strong>um</strong> tecido de signos, imitação perdida, infinitamente<br />
recuada”.<br />
Antonio Carlos Viana, mestre em teoria literária e<br />
doutor em literatura <strong>com</strong>parada, é autor de O Meio do<br />
Mundo e Outros Contos (1999) e Aberto Está o Inferno<br />
(2004), publicados pela Cia. das Letras.<br />
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