Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
REVISTA<br />
O <strong>com</strong>positor Nei Lopes<br />
fala da influência do samba<br />
no português.<br />
ITAÚ CULTURAL 20<br />
<strong>Cada</strong> <strong>um</strong> <strong>com</strong> a<br />
<strong>sua</strong> <strong>língua</strong><br />
Veja também<br />
Por que falamos diferente? Descubra a<br />
origem dos sotaques.<br />
Fotorreportagem: objetos, animais e lugares<br />
inusitados ganham forma de letras.<br />
Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 1<br />
itaucultural.org.br/continu<strong>um</strong> | participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias
“A <strong>língua</strong> é pra <strong>com</strong>er e pra falar”<br />
Pense rápido: quando você viaja para <strong>um</strong> país ao qual nunca foi antes, qual a primeira medida que toma?<br />
Acertou se decidiu <strong>com</strong>prar <strong>um</strong> guia local. Mas, se o idioma falado não é de seu domínio, outra regra deve<br />
ser seguida <strong>com</strong> atenção: abrir <strong>um</strong> espaço na mala para <strong>um</strong> providencial dicionário de bolso. É ele que<br />
vai livrar você daqueles apuros tão frequentes quando não se sabe o que está sendo falado. A <strong>língua</strong> é,<br />
portanto, o principal fator de entendimento e desentendimento entre as pessoas. Isso acontece porque ela<br />
está na raiz da <strong>com</strong>unicação. E <strong>sua</strong> força é tão grande que acaba por determinar nossos hábitos culturais e<br />
sociais, nossa forma de pensar e de agir.<br />
Neste bimestre a Continu<strong>um</strong> fala, em português renovado,<br />
sobre os vários aspectos que envolvem a <strong>língua</strong>. A reportagem<br />
que abre a edição mostra que ela é viva e evolui<br />
<strong>com</strong> o passar do tempo, a ponto de hoje a internet configurar-se<br />
<strong>com</strong>o <strong>um</strong> idioma à parte. Em entrevista, o escritor<br />
e <strong>com</strong>positor Nei Lopes fala de seu trabalho de pesquisa<br />
sobre as influências que as <strong>língua</strong>s africanas exerceram na<br />
formação do português. É de <strong>um</strong>a das canções de Lopes,<br />
Samba de Eleguá, o verso que dá nome a este texto.<br />
Na fotorreportagem, imagens de animais e objetos sugerem letras do alfabeto. Conto inédito do escritor<br />
paulistano Ronaldo Bressane traz para a Ficção a linguagem bem-h<strong>um</strong>orada e nada politicamente<br />
correta do portunhol selbagem, movimento literário inspirado na fala dos habitantes das fronteiras<br />
do Brasil <strong>com</strong> os outros países sul-americanos. Em reportagem especial, a revista vai a Vale<br />
Vêneto, no Rio Grande do Sul, para conhecer seus velhos habitantes, que ainda falam, e<br />
ajudam a preservar, o dialeto vêneto, derivado do italiano.<br />
Contribua também para ampliar a abordagem do tema. Saiba <strong>com</strong>o na<br />
seção Convocação. E a<strong>com</strong>panhe a cada semana os novos<br />
conteúdos publicados na Continu<strong>um</strong> On-Line.<br />
Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Projeto gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda, Thiago<br />
Rosenberg Colaboraram nesta edição Alexandre Hypolito, Allan Sieber, Antonio Carlos Viana, Carlos Costa, Cia de Foto, Cristiano Santana,<br />
Davi Calil, Diogo Sponchiato, Fabio Prikladnicki, Fernanda Preto, Formiga, Guilherme Kramer, Gustavo Pellizzon, Hare Lanz, Hilton Lacerda,<br />
Joana Lira, João Pereira Coutinho, João Wainer, Jorge Filó, Josely Vianna Baptista, Luana Fischer, Luciana Veras, Mariana Sgarioni, Micheliny<br />
Verunschk, Mirian Fichtner, Pedro David, Projeto Dulcinéia Catadora, Rebeca Rasel, Regina Stocklen, Rita Loiola, Roberto DaMatta, Rodrigo<br />
Lara Serrano, Rodrigo Silveira, Ronaldo Bressane On-Line Alcir Pécora, Augusto Paim, Cacá Machado, Mayra Rodrigues Gomes, Ricardo<br />
Aleixo, Welington Andrade Agradecimentos Benjamin Taubkin, Fundação Biblioteca Nacional, Ruy Quaresma (Fina Flor Produções)<br />
capa A <strong>língua</strong> une e segrega pessoas | imagem: André Seiti<br />
ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007)<br />
Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento<br />
continu<strong>um</strong>@itaucultural.org.br. Jornalista responsável Ana de Fátima Oliveira de Sousa MTb 13.554<br />
2 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Esta publicação segue as normas de Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro Participe de <strong>com</strong> 2009 <strong>sua</strong>s ideias 3<br />
ilustração: Guilherme Kramer
Entrevista<br />
16. O beija-flor de Nei Lopes<br />
O <strong>com</strong>positor e escritor <strong>com</strong>enta as contribuições dos idiomas africanos para<br />
o português falado no Brasil. Muitas delas vindas do samba.<br />
Reportagem<br />
6. Fala aí, meu camarada!<br />
Como nascem os sotaques, as gírias, as variações das<br />
falas – e os preconceitos que surgem <strong>com</strong> elas –, que<br />
fazem do Brasil <strong>um</strong> caldeirão linguístico.<br />
12. Uma visita à Torre de Babel<br />
Descobrir a origem das <strong>língua</strong>s pode ser tarefa<br />
impossível. Mas descobrir os usos que se fazem<br />
delas não só é possível <strong>com</strong>o revela muito sobre <strong>um</strong><br />
indivíduo ou <strong>um</strong>a sociedade.<br />
46. Entre dois tempos<br />
Em <strong>um</strong> vilarejo gaúcho, a última geração de moradores<br />
que ainda fala <strong>um</strong> dialeto em extinção.<br />
56. Roçando a <strong>língua</strong> de Luís de Camões<br />
Unidos pelos falares, separados pela cultura: por que<br />
há tantos obstáculos para se criar <strong>um</strong>a <strong>com</strong>unidade<br />
lusófona em nível mundial?<br />
60. Uma operação nada matemática<br />
Não basta verter palavras para outro idioma. O<br />
trabalho do tradutor consiste também em interpretar<br />
o tom, o h<strong>um</strong>or e as demais sutilezas do texto – e de<br />
seus autores.<br />
64. A, b, c, dó, ré, mi<br />
No início era o som: o método que ensina crianças a<br />
“ler” música <strong>com</strong>o se leem palavras.<br />
2009|20<br />
4 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 5<br />
6<br />
Artigo<br />
10. Palavras são sensações<br />
O escritor Antonio Carlos Viana fala da importância do<br />
aspecto lúdico no aprendizado de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong>.<br />
On-Line<br />
22. Na rede em maio e junho<br />
Veja as atualizações exclusivas <strong>com</strong> matérias e<br />
trabalhos artísticos dos leitores.<br />
Arena<br />
28. Acordo ou desacordo?<br />
Convenção da discórdia: o antropólogo Roberto Da-<br />
Matta e o jornalista João Pereira Coutinho debatem se<br />
o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa tem<br />
o poder de unir os países que falam o idioma.<br />
Balaio<br />
30. Comunicar é preciso<br />
Dicas para entender a <strong>língua</strong> por meio de filmes, livros<br />
e músicas.<br />
Fotorreportagem<br />
32. Letras que não são<br />
Fotógrafos de todas as partes do país encontram, nas<br />
coisas e nos lugares mais inesperados, formatos de letras.<br />
46<br />
Ficção<br />
38. Los cibermonos de Lo<strong>com</strong>bia<br />
Ronaldo Bressane apresenta o insólito relatório, escrito<br />
em genuíno portunhol selbagem, do desaparecimento<br />
do Agente Zed Stein.<br />
Resenha<br />
42. Amolando a <strong>língua</strong> no veludo<br />
Dicionário que nada! Conheça a história da Aurélia,<br />
a “dicionária” que reuniu palavras e expressões do<br />
universo gay.<br />
Mirada<br />
64<br />
52. Uma cidade tomada por livros<br />
Uma relação fervorosa: os portenhos e a afeição pelas<br />
históricas livrarias de Buenos Aires.<br />
Espaço do Leitor<br />
23. Convocação<br />
Conheça o tema da próxima edição e envie sugestões,<br />
críticas e, é claro, elogios.<br />
24. Área Livre<br />
Contos e fotos de leitores ampliam a <strong>com</strong>preensão<br />
da <strong>língua</strong>.
Fala aí, meu camarada!<br />
O Brasil é <strong>um</strong> verdadeiro caldeirão de sotaques, gírias e variações de falas.<br />
Conhecer cada <strong>um</strong> deles é saber <strong>um</strong> pouco mais sobre a nossa identidade.<br />
Por Mariana Sgarioni | Poemas Jorge Filó | Fotos Cia de Foto<br />
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico <strong>com</strong>o saudosa lembrança estas memórias<br />
póst<strong>um</strong>as.” Essa frase foi escrita por Machado de Assis, em 1881, ao abrir seu primeiro romance realista,<br />
Memórias Póst<strong>um</strong>as de Brás Cubas. Trata-se de <strong>um</strong> português perfeito, impecável, porém <strong>um</strong> pouco distante<br />
do que falamos nos dias de hoje.<br />
Por isso, vamos propor <strong>um</strong> exercício de imaginação e pensar <strong>com</strong>o Machado, <strong>com</strong> seu h<strong>um</strong>or impagável,<br />
escreveria essa mesma dedicatória <strong>com</strong> gírias populares, se estivesse vivinho da silva no ano de 2009. Acho<br />
que ficaria mais ou menos assim:<br />
“Para os bichos que <strong>com</strong>eram este meu presunto gelado, dedico estas memórias que escrevi depois de<br />
bater as botas.”<br />
E se pensássemos ainda que Machado fosse <strong>um</strong> blogueiro de mão cheia, e ficasse ligado o dia inteiro <strong>com</strong><br />
seu laptop, conectado <strong>com</strong> a rede wireless? Talvez escreveria algo parecido <strong>com</strong> isto:<br />
“Pros vermes q roeram meu kdaver, aki vão minhas lbrças. Abs.”<br />
Podemos viajar no tempo e escrever esse mesmo trecho nos anos 1950, 1970, 1990. Mesmo existindo formas<br />
atuais de dizer a mesma coisa, evidentemente, o original de 1881 continua sendo <strong>um</strong>a obra re<strong>com</strong>endadíssima<br />
– sobretudo para quem quer conhecer bem a <strong>língua</strong> portuguesa e dominar a escrita. Por outro<br />
lado, esse exercício simplório – e divertido – que propusemos aqui mostra quanto nosso idioma é vivo e está<br />
em constante movimento. A <strong>língua</strong> se transforma, ela é dinâmica. Só desaparece quando as pessoas que a<br />
falam são forçadas a adotar outra – coisa que passou a acontecer aqui no Brasil, quando, em 1757, o Marquês<br />
de Pombal instituiu o português <strong>com</strong>o <strong>língua</strong> oficial e proibiu o uso das <strong>língua</strong>s nativas.<br />
No Sudeste é “uai”<br />
Uma forma de expressão<br />
Se a pergunta é – “<strong>com</strong>o vai?”<br />
Se tá bom se diz “tá bão”.<br />
6 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 7<br />
Línguas brasileiras: para muitos nosso português já se transformou n<strong>um</strong> novo idioma<br />
reportagem
Foi <strong>um</strong> esforço tremendo<br />
para impor a <strong>língua</strong> portuguesa<br />
em todo o território nacional. Quando os<br />
portugueses chegaram ao Brasil havia cerca<br />
de 1,2 mil <strong>língua</strong>s indígenas na região. Hoje, são<br />
180. O português ganhou enfim <strong>sua</strong> unificação –<br />
por outro lado, a diversidade linguística permanece.<br />
As razões são diversas: primeiro, houve resistência dos<br />
povos dominados, claro, que mantiveram muitas de <strong>sua</strong>s<br />
expressões e palavras. Segundo, o português trazido pelo<br />
colonizador não era <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> homogênea, havia variações<br />
dependendo da região de Portugal de onde ele vinha.<br />
Sem contar os diversos momentos de chegada dos<br />
portugueses, que foram se encontrando <strong>com</strong> muitas outras<br />
nacionalidades no Brasil, o que ia produzindo diversidades<br />
linguísticas que caracterizam falares diferentes.<br />
Em São Paulo, por exemplo, houve primeiro o encontro<br />
linguístico de portugueses <strong>com</strong> índios. Depois,<br />
vieram os negros da África, os italianos, os japoneses,<br />
os alemães, os árabes, todos <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s <strong>língua</strong>s. O resultado<br />
é que na mesma cidade é possível encontrar<br />
modos de falar <strong>com</strong>pletamente distintos. “O português<br />
falado, hoje, no Brasil, resulta de <strong>um</strong>a série de<br />
mudanças determinadas por fatores de natureza linguística<br />
e histórico-cultural que se vão apresentando<br />
ao longo do tempo”, afirma Silvia Brandão, professora<br />
da Faculdade de Letras da Universidade Federal do<br />
Rio de Janeiro.<br />
Alguns exemplos: o “s” chiado (quase <strong>um</strong> “x”) dos cariocas<br />
nasceu <strong>com</strong> a transferência da família real portuguesa<br />
para a cidade em 1808, que produziu no Rio<br />
<strong>um</strong>a versão peculiar da pronúncia lisboeta. Em Santa<br />
Catarina, o sotaque cantado é influência direta da<br />
forte imigração de portugueses da ilha de Açores. Já<br />
Pernambuco ganhou a forte pronúncia do “r” <strong>com</strong>o<br />
herança da longa presença holandesa no Recife.<br />
Vôte, pru mode e oxente<br />
É a fala do Nordeste<br />
Se o sujeito é valente<br />
Também é cabra da peste.<br />
Segundo Antonio Houaiss, professor, diplomata, filólogo<br />
e lexicógrafo, a variedade de sotaques do Brasil<br />
não só enriquece a <strong>língua</strong> <strong>com</strong>o é sinônimo do seu<br />
domínio territorial. Houaiss cost<strong>um</strong>ava dizer que a<br />
nossa <strong>língua</strong>, depois de tantas influências, se tornou<br />
nova, algo que poderia se chamar de “brasileiro” e não<br />
mais “português”.<br />
O curioso é que, há muitos anos, antes da lei do Marquês<br />
de Pombal, existiu, sim, <strong>um</strong>a “<strong>língua</strong> brasileira”<br />
por aqui. Era o nheengatu, ainda falado em alguns<br />
pontos do Brasil, <strong>com</strong>o na fronteira <strong>com</strong> o Paraguai e<br />
no Amazonas. A <strong>língua</strong> foi criada no século XVI pelos<br />
jesuítas, especialmente pelo Padre Anchieta, que era<br />
linguista. Para se entender <strong>com</strong> os índios, classificou<br />
o tupi e criou <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> que não era nem de português,<br />
nem de índio. Eram ambas. Só falava português<br />
mesmo quem fosse estrangeiro, ou seja, os portugueses.<br />
Herdamos muitas palavras dessa <strong>língua</strong>, tais <strong>com</strong>o<br />
abacaxi, jururu, cipó. E o ex-presidente Fernando Henrique<br />
Cardoso, quando usou a expressão “chega de<br />
nhenhenhém”, estava falando nheengatu.<br />
No Centro-Oeste o “candango”<br />
Come “Maria-Isabel”<br />
Sua dança é o fandango<br />
Se é de fora é tabaréu.<br />
O nheengatu ajudou muito a formar, por exemplo, o<br />
popular sotaque caipira. De acordo <strong>com</strong> José de Souza<br />
Martins, professor de sociologia da Universidade<br />
de São Paulo, os índios tinham dificuldades em falar<br />
<strong>um</strong>a série de palavras portuguesas, sobretudo aquelas<br />
<strong>com</strong> a letra “r”. Mulher, colher e orelha eram ditas<br />
<strong>com</strong>o “muié“, “cuié“ e “oreia“. A partir daí veio o chamado<br />
“r” retroflexo, aquele “r” dobrado que, <strong>com</strong> a letra “i”,<br />
resulta naquele jeito de falar “cairne” e “poirta”, característico<br />
do interior de São Paulo.<br />
Muita gente considera esse sotaque <strong>com</strong>o <strong>um</strong> jeito<br />
de falar equivocado. Martins deixa claro que se trata<br />
de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> dialetal, e não de <strong>um</strong> erro. “O caipira<br />
inventa algo que ele entenda, só isso. Por exemplo, fizemos<br />
<strong>um</strong>a pesquisa no interior em que perguntávamos:<br />
‘Você concorda ou não concorda?‘. Muita gente<br />
não entendia. Até que mudamos a pergunta: ‘Você<br />
concorda ou disconcorda?‘ ”. Daí entenderam.<br />
Lá no Sul é trilegal<br />
Ver <strong>um</strong> guapo de bombacha<br />
Tem china e tem bagual<br />
Ai tchê, tudo se acha.<br />
Justamente por esse julgamento de achar errado o<br />
modo de falar do outro existem muitos preconceitos<br />
em relação aos sotaques brasileiros. O sujeito abre a<br />
boca e quem ouve já imagina de onde ele veio, <strong>sua</strong><br />
classe social e assim por diante. Especialistas dizem<br />
que boa parte desse preconceito se dá por causa da<br />
tentativa de uniformizar os sotaques dos apresentadores<br />
de televisão conforme o padrão das duas maiores<br />
capitais, Rio de Janeiro e São Paulo.<br />
É <strong>com</strong>o torcer o nariz quando o mineiro abandona<br />
alg<strong>um</strong>as palavras no meio do caminho ao perguntar<br />
“ôndôtô?” em vez de “onde eu estou?”. Ou ainda<br />
o “s” dos cariocas ou o “oxente” nordestino. “Embora,<br />
do ponto de vista linguístico, não haja<br />
forma errada de falar, os indivíduos atribuem<br />
julgamentos de valor a determinadas<br />
características linguísticas.<br />
Como acontece<br />
em relação a outros aspectos da vida social, a forma<br />
de falar de grupos menos prestigiados socialmente<br />
acaba por ter alguns de seus traços estigmatizados”,<br />
explica Silvia Brandão.<br />
A boa notícia é que esse estigma pode desaparecer<br />
caso o sotaque caia, literalmente, na boca do povo. “A<br />
partir do momento em que <strong>um</strong> traço, antes restrito a<br />
<strong>um</strong> grupo, se difunde e atinge a fala da maioria dos<br />
indivíduos, ele deixa de ser socialmente marcado.”<br />
No Norte tem xirimbaba<br />
Animal de estimação<br />
Matrinxã e maniçoba<br />
Servem de alimentação.<br />
A difusão de <strong>um</strong> modo de falar é algo realmente fascinante.<br />
E isso acontece, muitas vezes, não apenas a<br />
partir de <strong>um</strong> sotaque <strong>com</strong>o também de <strong>um</strong>a só pessoa.<br />
É o que se chama de “idioleto”, ou seja, o conjunto<br />
dos usos de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> próprio de <strong>um</strong> determinado<br />
indivíduo. <strong>Cada</strong> pessoa, além de apresentar, na<br />
<strong>sua</strong> maneira de falar, o seu sotaque, usa a <strong>língua</strong> de<br />
<strong>um</strong>a forma peculiar. Quem não se lembra da <strong>língua</strong><br />
inventada pelo Muss<strong>um</strong>, de Os Trapalhões, que fazia a<br />
criançada morrer de rir quando dizia “Ai, Cacildis!”. Rapidamente,<br />
o idioleto de Muss<strong>um</strong>, <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> própria<br />
terminada em “s”, misturada ao seu sotaque carioca, se<br />
difundiu. Tanto que até hoje muita gente fala (em tom<br />
de brincadeira, claro) <strong>com</strong>o ele.<br />
Muss<strong>um</strong> adotava <strong>um</strong> jeito específico de falar, e não<br />
gírias, que são palavras, termos ou expressões que, de<br />
tanto usadas, podem até entrar no dicionário. “Foi o<br />
que ocorreu, por exemplo, <strong>com</strong> as novas acepções de<br />
vocábulos <strong>com</strong>o broto, grilo, legal, bacana, entre outros”,<br />
lembra Silvia Brandão. Agora é esperar para ver<br />
o que será incorporado <strong>com</strong> o advento da internet,<br />
que usa <strong>um</strong>a linguagem escrita semelhante à falada.<br />
O que Machado de Assis acharia disso?<br />
8 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 9
Palavras são sensações<br />
Quando aprendidas na infância, certas palavras adquirem significados que<br />
nos a<strong>com</strong>panham vida afora.<br />
Por Antonio Carlos Viana | Ilustração Joana Lira<br />
artigo<br />
No tempo em que se cantava o Hino Nacional antes das aulas, eu ficava intrigado <strong>com</strong> o verso que dizia:<br />
“Dos filhos deste solesmãe gentil, pátria amada Brasil”. O que significava aquele “solesmãe”? Para mim, era <strong>um</strong><br />
mistério. Tê-lo <strong>um</strong> dia desfeito, ainda mais pela análise sintática, acabou <strong>com</strong> a beleza do verso. Mesmo hoje,<br />
ao ouvir o hino, o “solesmãe” me transporta para <strong>um</strong> tempo em que as palavras tinham <strong>um</strong> sabor ainda não<br />
contaminado pela gramática e pelos dicionários.<br />
Todos nós temos <strong>um</strong> dicionário pessoal. Ele se constrói naturalmente, à revelia dos dicionários oficiais. Quando<br />
tomamos consciência de que estes existem, o nosso já está formado e é difícil contrariá-lo. A criança vive<br />
n<strong>um</strong>a eterna metalinguagem. Ela mesma cria seus códigos de decifração e, assim, vai formando seu dicionário<br />
particular, até o dia em que vêm os dicionários de verdade e acabam <strong>com</strong> a fantasia.<br />
Voltando aos meus encontros mais remotos <strong>com</strong> as palavras, lembro-me de <strong>um</strong>a expressão cujo sentido<br />
que lhe dei é o que me vem logo à cabeça ao me deparar <strong>com</strong> ela. Quando tinha meus 7, 8 anos, passava<br />
diante dos cinemas e via cartazes anunciando alguns filmes para “em breve”. Nunca perguntei a ninguém o<br />
que aquilo significava. Como o filme anunciado demorava muito a passar, a expressão entrou para o meu<br />
dicionário <strong>com</strong>o sinônimo de “dali a <strong>um</strong> bom tempo”.<br />
É na infância que construímos <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> própria, que nos faz entender o mundo diferentemente de <strong>com</strong>o<br />
os adultos o entendem. Ela é <strong>um</strong>a janela particular por onde observamos coisas e pessoas. Mesmo quando<br />
aprendemos a folhear os dicionários, raramente perdemos o sentido original que demos a alg<strong>um</strong>as palavras.<br />
São elas que forram o nosso chão primordial. Não há dicionários que as traduzam da forma <strong>com</strong>o as sentimos<br />
pela primeira vez. Elas são antes sensações que significados. Geralmente nos decepcionamos quando<br />
descobrimos que o dicionário oficial nos contraria.<br />
Jamais me esqueci de<br />
<strong>um</strong>a palavra que, para mim, pertencia<br />
ao gênero masculino. Quando<br />
descobri que era feminina, não a reconheci.<br />
Achei que os dicionários estavam errados. Pesquisei<br />
em vários deles para ver se alg<strong>um</strong> me salvava<br />
e a dava <strong>com</strong>o masculina. Não dava. Para mim,<br />
“a <strong>com</strong>ichão” não era o mesmo que “o <strong>com</strong>ichão”. Eu<br />
achava que só lhe cabia os artigos “o” ou “<strong>um</strong>”. Desde<br />
então, ela não passa de <strong>um</strong> termo morto no meu<br />
acervo linguístico.<br />
Janelas para o mundo<br />
Minhas primeiras relações <strong>com</strong> as palavras, <strong>com</strong>o<br />
as de toda criança, foram sempre lúdicas. Quando<br />
descobri o gosto por elas, lia os textos do livro de<br />
português antes que o professor os lesse em sala<br />
de aula. Eu protelava a consulta ao vocabulário que<br />
ficava no final do livro ou ao pé da página. Preferia<br />
deduzir pelo contexto o que elas significavam. Às<br />
vezes dava certo, outras vezes não. Imagino <strong>com</strong>o<br />
seriam bem mais interessantes as aulas de <strong>língua</strong> se,<br />
em vez de mandarmos os alunos direto ao dicionário,<br />
os incentivássemos a imaginar <strong>um</strong> sentido para<br />
as palavras desconhecidas.<br />
Quando <strong>com</strong>ecei a estudar francês, meu primeiro<br />
professor gostava de brincar <strong>com</strong> as palavras<br />
e foi isso que me levou a me apaixonar, cada vez<br />
mais, por essa <strong>língua</strong>. Já o professor de inglês<br />
era seco, técnico, nos mandava logo ao dicionário,<br />
sem nenh<strong>um</strong>a poesia. Suas aulas eram de<br />
<strong>um</strong> tédio sem fim. O de francês fazia <strong>com</strong> que<br />
a gente atentasse para a <strong>com</strong>binação dos sons,<br />
para a sequência das sílabas, e o sentido apareceria<br />
depois. Era <strong>um</strong> exercício que deixava toda a<br />
turma em contínua atenção. O verbo “bouleverser”<br />
foi <strong>um</strong> dos exemplos mais vivos que ele deu.<br />
Quando vou<br />
traduzi-lo, fico sempre<br />
insatisfeito, acho que está faltando<br />
alg<strong>um</strong>a coisa. Não sinto em<br />
“transtornar” o mesmo movimento interior<br />
do original. Não é que haja <strong>um</strong>a <strong>língua</strong><br />
mais expressiva que outra, cada <strong>um</strong>a o é à <strong>sua</strong><br />
maneira, mas há palavras que nunca deveriam<br />
ser traduzidas. “Bouleverser” seria <strong>um</strong>a delas.<br />
Seja em que <strong>língua</strong> for, o primeiro contato <strong>com</strong> as<br />
palavras é decisivo para a construção de nosso estar<br />
no mundo. Por mais que, <strong>um</strong> dia, você lide <strong>com</strong> elas,<br />
o que vale mesmo é a forma <strong>com</strong>o as sentiu pela primeira<br />
vez. Há <strong>um</strong> dicionário vivo que nos a<strong>com</strong>panha<br />
desde o momento em que passamos a nomear o<br />
que nos cerca. Um menino que nasce no sertão nordestino<br />
não vê a palavra “terra” <strong>com</strong> o mesmo olhar<br />
de outro que nasce no Sul. <strong>Cada</strong> <strong>um</strong> cria <strong>um</strong> universo<br />
de sentidos particulares que carregará vida afora. Há<br />
<strong>um</strong> dicionário que antecede todos os dicionários, e é<br />
esse o que mais conta na hora da criação.<br />
As palavras abrem janelas para o mundo, mas para<br />
abri-las de verdade precisam ter <strong>um</strong> sopro original.<br />
Quando escrevemos <strong>um</strong> poema, <strong>um</strong> conto, é bem<br />
isto o que procuramos: buscar sentidos ainda não<br />
contaminados pela baba do mundo. Para encerrar,<br />
recorro a Roland Barthes, quando diz que o escritor<br />
“não possui mais em si paixões, h<strong>um</strong>ores, sentimentos,<br />
impressões, mas esse imenso dicionário de onde<br />
retira <strong>um</strong>a escritura [...] a vida nunca faz outra coisa<br />
senão imitar o livro, e esse mesmo livro não é mais<br />
que <strong>um</strong> tecido de signos, imitação perdida, infinitamente<br />
recuada”.<br />
Antonio Carlos Viana, mestre em teoria literária e<br />
doutor em literatura <strong>com</strong>parada, é autor de O Meio do<br />
Mundo e Outros Contos (1999) e Aberto Está o Inferno<br />
(2004), publicados pela Cia. das Letras.<br />
10 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 11
Uma visita à Torre de Babel<br />
Para entender <strong>um</strong>a sociedade, entenda primeiro <strong>sua</strong> <strong>língua</strong>.<br />
Por Rita Loiola | Fotos João Wainer<br />
reportagem<br />
O homem tem a sorte, entre outras, de conhecer <strong>sua</strong> história desde o princípio. E o <strong>com</strong>eço diz que havia<br />
apenas <strong>um</strong> homem, que falava <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> concedida por <strong>um</strong> ser divino. Mas, <strong>um</strong> dia, os descendentes<br />
desse homem resolveram construir <strong>um</strong>a torre muito alta e chegar aos céus, onde morava seu deus. Só que<br />
o proprietário das nuvens não gostou nada dessa invasão e evitou a construção dos últimos andares <strong>com</strong><br />
<strong>um</strong>a ideia muito engenhosa: confundiu a <strong>língua</strong> dos operários. Sem se entenderem, eles migraram para<br />
outras regiões, amargando o fracasso do projeto.<br />
Torre de Babel, Grande Pirâmide de Cholula e Zacuali são alguns dos nomes que a construção leva em<br />
diferentes tradições. O mito é <strong>um</strong>a das tentativas mais bem-sucedidas de resolver a questão milenar da<br />
diversidade das <strong>língua</strong>s no mundo. Afinal, <strong>com</strong>o explicar <strong>um</strong> assunto que se confunde <strong>com</strong> a origem do<br />
homem? Como abordar essa “coisa” que chamamos <strong>língua</strong> e que já foi definida <strong>com</strong>o <strong>um</strong>a energia, <strong>um</strong> organismo<br />
ou <strong>um</strong> sistema social?<br />
No século XVIII, conhecido <strong>com</strong>o século das luzes, o filósofo francês Rousseau escreveu, em <strong>um</strong> de<br />
seus ensaios menos conhecidos, longamente sobre o assunto. Para ele, o homem <strong>com</strong>eçou<br />
a falar para emocionar os outros. “Pode-se crer que a necessidade ditou<br />
os primeiros gestos e as paixões arrancaram as primeiras vozes”,<br />
diz ele em seu Ensaio sobre a Origem das Línguas, de<br />
1761 (Unicamp, 2008). Rousseau acreditava<br />
que, se o homem tivesse apenas necessidades<br />
físicas, da mesma maneira que<br />
outros animais, ele provavelmente<br />
nunca falaria. Mas, <strong>com</strong>o se desconfia,<br />
o Homo sapiens precisa<br />
de alg<strong>um</strong>as coisas a mais.<br />
Tem desejos e sentimentos<br />
e, depois que <strong>com</strong>eçou a<br />
duvidar da narrativa bíblica<br />
sobre a origem<br />
h<strong>um</strong>ana, conheceu novas vontades. Quis entender<br />
qual era a linguagem que caminhou <strong>com</strong> o primeiro<br />
homem e <strong>com</strong>eçou, no fim do século XIX, a especular<br />
sobre a “<strong>língua</strong> perfeita”, “original” ou “adâmica”.<br />
Foi nesse rastro, por exemplo, que nasceu o esperanto,<br />
na Polônia, ou o volapük, na Alemanha, <strong>língua</strong>s<br />
francas internacionais [faladas por gente de diferentes<br />
idiomas <strong>com</strong> o objetivo de <strong>com</strong>unicaremse<br />
entre si] <strong>com</strong> a missão de acabar <strong>com</strong> a maldição<br />
de Babel. “Afinal de contas, o plurilinguismo é visto<br />
<strong>com</strong>o <strong>um</strong> castigo de Deus em todo o Ocidente, e<br />
só é redimido <strong>com</strong> a descida do Espírito Santo sobre<br />
os apóstolos”, explica o linguista José Luiz Fiorin,<br />
da Universidade de São Paulo. “Nesse episódio, todos<br />
falaram e se entenderam, mas não se sabe se<br />
os apóstolos ouviram a mensagem na <strong>sua</strong> própria<br />
<strong>língua</strong> ou se ganharam todos os idiomas, n<strong>um</strong>a espécie<br />
de ‘esperanto místico’ ”, explica.<br />
As partes da colcha de retalhos<br />
A solução do Espírito Santo ganhou contornos práticos<br />
nas <strong>língua</strong>s universais ou em ideias mais bemh<strong>um</strong>oradas,<br />
<strong>com</strong>o a de Jonathan Swift: “Visto que as<br />
palavras são apenas nomes de coisas, seria bastante<br />
mais cômodo que cada <strong>um</strong> carregasse consigo as<br />
coisas que lhe servem para exprimir os assuntos que<br />
tenciona falar [...] desse modo, os embaixadores poderiam<br />
negociar <strong>com</strong> príncipes ou ministros estrangeiros<br />
sem terem que conhecer as <strong>sua</strong>s <strong>língua</strong>s”, diz<br />
o autor irlandês nas <strong>sua</strong>s Viagens de Gulliver, de 1726<br />
(L&PM, 2005). Nessa época apareceram também especulações<br />
sobre a origem e o motivo que levavam<br />
os homens a se <strong>com</strong>unicar, <strong>com</strong>o <strong>um</strong>a história de<br />
que eles <strong>com</strong>eçaram a falar a partir dos grunhidos<br />
associados ao esforço para levantar objetos pesados.<br />
Cansados dessas ideias estapafúrdias, em 1866 os estudiosos<br />
da Sociedade Linguística de Paris proibiram<br />
todo e qualquer estudo de tema relativo à “origem da<br />
linguagem”. Para eles, o assunto estava longe de ser<br />
científico. No entanto, <strong>um</strong> inglês chamado Willian Jones<br />
viajou para a Índia e acabou convencido de que<br />
alguns falares da Europa, da Índia e do Oriente Médio<br />
tinham parentesco. A publicação de seus estudos é<br />
o marco inicial da linguística <strong>com</strong>parada, a responsável<br />
pelo estabelecimento do que hoje conhecemos<br />
<strong>com</strong>o famílias linguísticas, o mais próximo que se<br />
pôde chegar dos primórdios das <strong>língua</strong>s.<br />
12 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 13
Aquelas<br />
semelhanças que<br />
Jones apontou acabaram no indoeuropeu,<br />
<strong>um</strong>a <strong>língua</strong> que jamais foi ouvida,<br />
mas que pôde ser reconstruída a partir das<br />
coincidências entre idiomas aparentemente<br />
tão díspares <strong>com</strong>o o sânscrito, o grego e o latim.<br />
Seus ramos são os responsáveis pelo nosso português,<br />
mas também por muitas outras <strong>língua</strong>s,<br />
entre elas o romeno (também do braço latino), o<br />
inglês e o alemão (do grupo germânico) e o russo<br />
(do grupo balto-eslavo). Atualmente, os pesquisadores<br />
acreditam que haja no mínimo duas dezenas<br />
de famílias <strong>com</strong>o o indo-europeu que, remontadas a<br />
mais de 10 mil anos a.C., poderiam acabar em <strong>um</strong>a única<br />
<strong>língua</strong>, ainda muito mais antiga, chamada scan. Ou não!<br />
Porque, <strong>com</strong>o não existem registros, poderiam existir várias <strong>língua</strong>s<br />
dos vários primeiros homens que deram origem a essa colcha de<br />
retalhos dos quase 7 mil idiomas falados em todo o mundo.<br />
Prática e fortalecimento<br />
Mas, se não é possível saber <strong>com</strong>o as <strong>língua</strong>s surgiram, pelo menos<br />
sabemos que elas morrem, certo? Nem sempre. “Essa história<br />
de pensar que a <strong>língua</strong> nasce, evolui e morre é coisa do<br />
século XIX, quando se tentava enquadrar tudo nos<br />
esquemas biológicos e evolucionistas”, explica<br />
o professor de linguística Carlos Faraco, da<br />
Universidade Federal do Paraná. Basta<br />
pensar, por exemplo, no hebraico,<br />
que deixou de ser falado por causa da<br />
dispersão dos judeus pelo mundo.<br />
Ou seja, estava morto. Só que, <strong>com</strong><br />
a criação de Israel, em 1948, ele foi<br />
resgatado, adaptado e virou a <strong>língua</strong><br />
oficial da nação. No Norte da<br />
Itália também há dialetos desaparecidos,<br />
mas registrados em doc<strong>um</strong>entos<br />
e livros, que voltaram<br />
a ser estudados e, <strong>com</strong>o o hebraico,<br />
“reviveram” no país <strong>com</strong><br />
os novos falantes. “As únicas <strong>língua</strong>s<br />
que morrem são aquelas<br />
totalmente orais e que acabam enterradas<br />
<strong>com</strong> o último conhecedor”, explica Faraco. Foi assim<br />
<strong>com</strong> o dalmático, antigamente falado nas margens<br />
do Mar Adriático, e <strong>com</strong> dezenas de <strong>língua</strong>s indígenas<br />
brasileiras, que s<strong>um</strong>iram ao mesmo tempo que<br />
<strong>sua</strong>s tribos.<br />
Melhor que falar de morte, então, seria falar de falta<br />
de uso. “Quanto mais a <strong>língua</strong> é praticada, mais ela<br />
se fortalece”, explica a professora de linguística histórica<br />
Enilde Faulstich, da Universidade de Brasília.<br />
“Falar de morte é <strong>um</strong>a metáfora, porque <strong>língua</strong> é<br />
algo abstrato. E ninguém mata algo abstrato. Língua<br />
e mente caminham juntas e é por isso que, para<br />
matá-la, é preciso, antes, matar as pessoas”, diz.<br />
Fazer a mágica de “reviver” <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> só é possível<br />
se houver registros de seu uso. E, <strong>com</strong>o a escrita é o<br />
modo mais antigo de “guardar” a fala, é a partir desses<br />
doc<strong>um</strong>entos que se pode sair por aí “desenterrando”<br />
idiomas. Só que, mesmo <strong>com</strong> eles, descobrir <strong>com</strong>o os<br />
seres h<strong>um</strong>anos se expressavam antigamente é tarefa<br />
quase impossível. Porque escrita e oralidade são duas<br />
modalidades distintas da linguagem, e não o espelho<br />
<strong>um</strong>a da outra. É só pensar que, se alguém <strong>com</strong>eçar a<br />
falar <strong>com</strong>o escreve, o resultado sairá <strong>um</strong> tanto esquisito.<br />
“É <strong>com</strong>o se imaginássemos <strong>um</strong>a linha contínua que<br />
vai de algo mais escrito a algo mais oral. De <strong>um</strong>a ponta<br />
a outra existem várias nuances, vários gêneros que<br />
misturam características dos dois”, explica Fiorin. O diálogo<br />
em casa, por exemplo, estaria n<strong>um</strong>a extremidade<br />
oral, enquanto <strong>um</strong> artigo científico, cheio de burocracias,<br />
estaria em outra. Mas a fala de <strong>um</strong> apresentador<br />
de telejornal fica entre as duas porque, apesar de falado,<br />
tem marcas claras da caneta de quem construiu o<br />
texto. ”Fala e escrita são coisas muito diferentes, mas<br />
não opostas”, diz o professor. Juntas, no entanto, essas<br />
duas modalidades <strong>com</strong>põem o todo que, além de ser<br />
dito ou grafado, é capaz de definir o homem e seu lugar<br />
no mundo.<br />
Construção de sentidos<br />
“A sociedade só é possível pela <strong>língua</strong>; e por ela também<br />
o indivíduo”, escreveu Émile Benveniste, em<br />
Problemas de Linguística Geral, de 1966 (Pontes Editores,<br />
2008). Mas será que a <strong>língua</strong> é mesmo capaz de<br />
construir tudo isso, <strong>com</strong>o acredita o teórico francês?<br />
“É por meio dela que o ser h<strong>um</strong>ano se revela”, esclarece<br />
Luiz Francisco Dias, professor de linguística e<br />
semântica da Universidade Federal de Minas Gerais.<br />
“Falando para o outro, falamos para nós mesmos e,<br />
assim, construímos os sentidos e nos descobrimos.”<br />
Afinal, basta alguém <strong>com</strong>eçar a dizer algo para, imediatamente,<br />
denunciar de onde veio, qual a “turma” a<br />
que pertence e, nas entrelinhas e entonações, declarar<br />
até os sentimentos e medos que o cercam. Ou, ao<br />
menos, foi nisso que o neurologista alemão Sigmund<br />
Freud pensou quando concebeu a psicanálise, em<br />
1890. Grosseiramente, seu método nada mais é que<br />
<strong>um</strong>a forma de desbravar o inconsciente por meio<br />
das artimanhas da linguagem.<br />
As palavras usadas, no entanto, fazem parte de outro<br />
sistema, definido política e socialmente. A <strong>língua</strong>,<br />
afinal, é o meio de <strong>com</strong>unicação de <strong>um</strong> determinado<br />
território, usado por seus indivíduos, “<strong>um</strong> dialeto<br />
<strong>com</strong> exército e marinha”, nas palavras do linguista<br />
alemão Max Weinreich. A primeira coisa que <strong>um</strong>a<br />
nova nação precisa, além de definir <strong>sua</strong>s fronteiras,<br />
é de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> nacional. “Nosso idioma está inscrito<br />
na Constituição, e ele é <strong>um</strong> dos elementos que<br />
nos definem <strong>com</strong>o brasileiros”, diz a especialista em<br />
linguística histórica Rosa Mattos e Silva, da Universidade<br />
Federal da Bahia. “A construção da identidade<br />
pessoal passa pela <strong>língua</strong>, porque é por meio dela<br />
que os seres veem a realidade e é <strong>com</strong> ela que eles<br />
se expressam”, diz. Tanto é que não existe gente sem<br />
<strong>língua</strong>, qualquer que seja. E talvez seja por isso que<br />
tantas mitologias, tentando explicar o <strong>com</strong>eço do<br />
mundo a partir do nada, foram parar na palavra.<br />
Leia na Continu<strong>um</strong> On-Line entrevista <strong>com</strong> a linguista<br />
Marta Scherre, da Universidade Federal do Espírito<br />
Santo, sobre preconceito linguístico.<br />
14 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 15
O beija-flor de Nei Lopes<br />
Por Marco Aurélio Fiochi | Foto Cia de Foto<br />
O samba deu régua e <strong>com</strong>passo ao <strong>com</strong>positor, cantor e escritor carioca Nei Lopes para<br />
empreender seu respeitável estudo sobre a presença das <strong>língua</strong>s africanas na formação do<br />
português falado no Brasil. Sua produção inclui 23 livros publicados e dois a ser lançados<br />
neste ano. São ensaios, contos, perfis e narrativas, além do constante levantamento das<br />
palavras de origem africana que integram o vocabulário dos brasileiros, o que rendeu quatro<br />
dicionários (dois voltados ao grupo linguístico banto, outro <strong>com</strong> termos afro-brasileiros<br />
para estudantes e mais <strong>um</strong> <strong>com</strong> verbetes sobre a produção literária negra). No campo da<br />
história, Lopes realizou a extensa pesquisa que <strong>com</strong>põe os cerca de 9 mil verbetes de <strong>sua</strong><br />
Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (S<strong>um</strong>mus, 2004). Um dos mestres do partido<br />
alto, reunião musical em que o improviso é essencial para criar na hora versos inspirados e<br />
bem-h<strong>um</strong>orados sobre o cotidiano, é autor de vários sambas de sucesso, cantados, entre<br />
outros, por Clara Nunes, Alcione e Beth Carvalho. Distante da agitação do Rio de Janeiro e<br />
de <strong>sua</strong> paixão, o Salgueiro, vive tranquilo <strong>com</strong> a esposa, Sonia, em Seropédica, interior fl<strong>um</strong>inense.<br />
É lá que funciona o NEI (Núcleo de Estudos Independentes), <strong>um</strong>a brincadeira do<br />
escritor para falar de seu lugar de trabalho, <strong>um</strong> escritório repleto de livros, e para ressaltar<br />
que <strong>sua</strong> produção é feita de maneira solitária, sem filiação a nenh<strong>um</strong>a universidade, mas<br />
<strong>com</strong> a generosidade de amigos que lhe trazem materiais de estudo de várias partes do<br />
mundo. É no jardim de <strong>sua</strong> casa que ele recebe de vez em quando a visita de <strong>um</strong> passarinho,<br />
que, graças à verve afiada do sambista para a improvisação, foi batizado de “beija-flor<br />
de Nei Lopes”, trocadilho saboroso <strong>com</strong> o nome de outra famosa escola de samba, a Beija-<br />
Flor de Nilópolis.<br />
O sambista Nei Lopes em <strong>sua</strong> casa: “O samba é fonte de referência, apesar do esvaziamento cultural”<br />
16 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 17<br />
entrevista
Você ficou contente <strong>com</strong> a vitória do Salgueiro no<br />
último Carnaval?<br />
Esta é <strong>um</strong>a longa história. Estou afastado do Salgueiro<br />
desde 1989. Quando saí da escola, devido a <strong>um</strong>a<br />
in<strong>com</strong>patibilidade <strong>com</strong> a direção, fui para a Vila Isabel.<br />
Sempre morei naquela região, da Grande Tijuca.<br />
Eu era <strong>um</strong> simples <strong>com</strong>ponente do Salgueiro e na Vila<br />
Isabel virei dirigente.<br />
Você era da ala dos <strong>com</strong>positores do Salgueiro?<br />
Fui da ala dos <strong>com</strong>positores, mas quando saí estava<br />
na velha-guarda. Eu me desentendi <strong>com</strong> eles porque<br />
concorri <strong>com</strong> <strong>um</strong> samba-enredo para o Carnaval de<br />
1989 e houve alg<strong>um</strong>as confusões, que são típicas de<br />
escolas de samba. Mas meu coração é salgueirense.<br />
Fiquei muito feliz <strong>com</strong> a vitória da escola nesse Carnaval.<br />
Eu vi o desfile pela televisão, mas não se tem a<br />
noção exata do que seja, pois, apesar de toda a tecnologia,<br />
ela não aprendeu ainda a transmitir desfiles de<br />
escolas de samba. É algo tão rico... Um cortejo no qual<br />
se encena <strong>um</strong> espetáculo, <strong>com</strong>o se fosse <strong>um</strong>a ópera.<br />
Neste ano, eu me emocionei profundamente porque<br />
o desfile estava muito bom, muito bem acabado do<br />
início ao fim. A Vila Isabel eu não vi, lá tenho grandes<br />
amigos, mas ela não mexe <strong>com</strong> minha sensibilidade<br />
<strong>com</strong>o o Salgueiro, para o qual entrei no final da adolescência.<br />
Foi <strong>um</strong> convívio muito intenso.<br />
O Salgueiro foi <strong>um</strong>a das primeiras escolas a trabalhar<br />
<strong>com</strong> temas ligados a questões dos negros...<br />
Sim, isso foi o que me chamou a atenção na adolescência.<br />
A primeira vez que vi o Salgueiro foi em 1958.<br />
A escola tem <strong>um</strong>a história social <strong>com</strong>pleta, muito coerente<br />
em toda a <strong>sua</strong> existência. Foi a primeira agremiação<br />
na qual se exercitou a possibilidade de o meio<br />
conduzir a mensagem. Normalmente, o que se via nas<br />
escolas de samba era a <strong>com</strong>unidade majoritariamente<br />
negra transmitir os conteúdos da história convencional,<br />
oficial, eurocêntrica. Colocar <strong>um</strong> negro vestido<br />
de escravo foi <strong>um</strong>a mudança difícil. Negro queria era<br />
sair fantasiado de senhor. É até ilógica minha participação<br />
no Salgueiro pelo fato de eu ter nascido e sido<br />
criado no Irajá, subúrbio carioca, <strong>com</strong>pletamente distante<br />
do núcleo salgueirense. O Irajá tem forte tradição<br />
de samba, pois está cercado pelo Império Serrano,<br />
pela Portela. O lógico seria eu ir para <strong>um</strong>a dessas.<br />
Inclusive, quando menino, tinha <strong>um</strong>a tia que foi <strong>um</strong>a<br />
grande figura da Portela, foi <strong>com</strong>positora, cozinheira.<br />
Recentemente tive acesso a <strong>um</strong>a carteirinha dela e ali<br />
estão seu nome e número da matrícula. Imagina <strong>um</strong><br />
<strong>com</strong>ponente da Portela <strong>com</strong> a carteirinha de número<br />
5, então é da fundação mesmo. Alguns membros da<br />
“O samba fixou muita coisa, principalmente na contribuição<br />
vocabular, que andava solta pelos morros.”<br />
velha-guarda, <strong>com</strong>o Monarco e Casquinha, a conheceram<br />
bem e, de vez em quando, me questionam por eu<br />
não pegar os sambas dela, que só tinham a primeira<br />
parte – u<strong>sua</strong>l naquele tempo –, e não os <strong>com</strong>pletar.<br />
Conheço uns dois, que estão na memória, só. Ela foi<br />
<strong>um</strong>a pessoa que me influenciou muito. Seria coerente,<br />
então, que eu fosse da Portela ou do Império Serrano,<br />
onde tenho amigos, mas nunca estive lá. A razão, no<br />
entanto, é muito simples: tenho <strong>um</strong> amigo de infância<br />
que atualmente mora no Recife e sai todo ano na<br />
velha-guarda do Salgueiro. Ele pertencia à <strong>com</strong>unidade<br />
dessa escola, era <strong>um</strong> salgueirense convicto. A gente<br />
se criou junto. Quando atingimos a maioridade, ele<br />
me convidou para sair no Salgueiro, eu disse que não<br />
dava, não tinha dinheiro, não estava trabalhando, e ele<br />
me falou que a escola iria dar a roupa a pessoas que<br />
tivessem facilidade <strong>com</strong> dança, para integrar <strong>um</strong> quadro<br />
que não era exatamente de samba, era <strong>um</strong> balé.<br />
Isso foi em 1963, o primeiro ano em que a escola foi<br />
campeã, <strong>com</strong> o enredo sobre Xica da Silva. No ano<br />
seguinte, eu me tornei <strong>com</strong>ponente. Depois, meu<br />
filho, aos 10 anos, deu continuidade a essa tradição,<br />
saiu na bateria, ficou ligado à escola por muito<br />
tempo. É algo natural. Um dia perguntaram<br />
aos meus netos, que são gêmeos, <strong>com</strong> 9<br />
para 10 anos, de que escola eram, responderam<br />
“do Salgueiro”.<br />
O senhor é<br />
<strong>um</strong> dos criadores e mestres<br />
do samba de partido alto. Esse<br />
gênero é marcado por narrações de casos<br />
do cotidiano. Quais artifícios ou ferramentas<br />
a <strong>língua</strong> oferece para criá-los?<br />
É <strong>um</strong> estilo de samba que me encanta muito pela<br />
proximidade <strong>com</strong> a tradição africana. É a forma menos<br />
desafricanizada do samba. Eu me tornei <strong>um</strong> praticante<br />
dele. Hoje já não tenho tanta agilidade <strong>com</strong>o<br />
antigamente, é algo que vai se perdendo <strong>com</strong> a falta<br />
de exercício. Partido alto é <strong>um</strong>a cantoria na base<br />
do improviso. Então, quando se escreve, quando se<br />
grava esse samba, ele já deixou de ser partido alto.<br />
Daí se tem <strong>um</strong> samba em estilo partido alto, mas em<br />
essência não é. Ao gravar, já se escreveu, se memorizou,<br />
então não há improviso. O improviso sempre<br />
acontece no ambiente da informalidade. Quando é<br />
apresentado n<strong>um</strong> teatro, perde a espontaneidade.<br />
Todas as cantorias ocorrem ao sabor do momento.<br />
Tem de haver <strong>um</strong>a base, <strong>um</strong>a poesia previamente<br />
preparada, mas o que vai surgir dali não se sabe. Há<br />
determinados motivos, dentro de refrões, e tem de<br />
se versar <strong>com</strong> esses temas. A cantoria nordestina, por<br />
exemplo, tem vários estilos, cada <strong>um</strong> <strong>com</strong> muita rigidez<br />
formal. O partido alto tem alg<strong>um</strong>as regras, mas<br />
não essa rigidez, essa formalidade em que não se<br />
pode sair do estabelecido. O partido alto tem mais o<br />
caráter de brincadeira, de algo mais lúdico do que a<br />
<strong>com</strong>petição de saber quem é o melhor, <strong>com</strong>o os trovadores<br />
na cantoria nordestina. Nele, quanto mais se<br />
rimar dentro de <strong>um</strong>a métrica, melhor. Por exemplo,<br />
quando se faz <strong>um</strong>a quadrinha: “Lá em cima daquele<br />
morro tem <strong>um</strong> pé de manacá”. Pode-se brincar assim:<br />
“Lá em cima daquele morro eu peço socorro”, entende?<br />
Inclui-se outra qualidade de rima, transforma-se<br />
a quadra n<strong>um</strong>a sextilha, fica algo mais encorpado,<br />
balançado, gostoso. Aí é que se vê a habilidade do<br />
partideiro. Há grandes partideiros atualmente, <strong>com</strong>o<br />
o Tantinho da Mangueira. Dos que estão em atuação<br />
no momento, ele é o melhor. O Arlindo Cruz também<br />
é excelente.<br />
O samba é <strong>com</strong><strong>um</strong>ente associado à preservação<br />
da cultura nacional. Nisso se inclui a <strong>língua</strong> portuguesa.<br />
Qual a contribuição efetiva que o samba<br />
deu à nossa <strong>língua</strong>?<br />
O samba fixou muita coisa, principalmente na contribuição<br />
vocabular. Ele consagrou muita criação lexical<br />
que andava solta pelos morros. Na construção de <strong>um</strong><br />
dicionário, por exemplo, se determinada palavra tem<br />
importância histórica, para registrá-la é preciso fazer<br />
<strong>um</strong>a abonação. Onde está essa palavra, em que local<br />
foi usada. Muitas vezes, essa abonação só vai ser<br />
encontrada em letra de samba. São palavras de uso<br />
muito localizado, <strong>com</strong>o qualquer gíria. A gíria é <strong>um</strong>a<br />
forma verbal sempre restrita a determinado ambiente,<br />
contexto e grupo. O samba é fonte de referência, apesar<br />
do esvaziamento cultural, para o qual a indústria<br />
cultural contribuiu decisivamente.<br />
É o fenômeno do samba axé...<br />
Exato, e também o chamado neopagode, que é sexualização<br />
pura e de <strong>um</strong>a ingenuidade... O samba não é<br />
isso, em <strong>sua</strong> essência é crítico, é cronista da vida. Ultimamente,<br />
está nas mãos de muito poucos <strong>com</strong>positores.<br />
Vemos isso no repertório do Zeca Pagodinho. Sua<br />
grande importância é essa, ele é o guardião, vamos dizer<br />
assim, o bastião da resistência do modo de vida, da<br />
cultura, da expressão oral do mundo do samba. Outros<br />
<strong>com</strong>positores, <strong>com</strong>o Luís Grande, Zé Roberto e Barbeirinho<br />
do Jacarezinho, também são muito bons.<br />
Foi do samba que surgiu seu interesse por estudar as<br />
<strong>língua</strong>s africanas e <strong>sua</strong> influência no português?<br />
Tudo <strong>com</strong>eçou <strong>com</strong> a necessidade que eu sentia desde<br />
muito cedo de denunciar essa forma de as pessoas<br />
encararem tudo que é africano <strong>com</strong>o negativo, desinteressante,<br />
desimportante. Quando descobri que o<br />
português que se fala no Brasil tem forte influência<br />
africana, não só na <strong>sua</strong> estrutura, mas no modo de<br />
falar, no vocabulário, não parei mais. Há palavras que<br />
a gente nem supõe que sejam de origem africana.<br />
Nesta semana, por exemplo, me ocorreu que “maluco”<br />
poderia ser africana. E é. “Maluco” vem do Congo. Outro<br />
exemplo, <strong>um</strong>a palavra que é do campo semântico<br />
da tecnologia, “carimbo”. Ela é de origem africana. Mais<br />
<strong>um</strong>a: “sunga”, do campo da vestimenta, dá a impressão<br />
de ser extremamente moderna. Mas não é. Vem das<br />
origens africanas, quando se usava o termo “assungar”,<br />
que significa diminuir, encurtar. Então, <strong>um</strong>a roupa assungada<br />
é <strong>um</strong>a roupa encurtada, daí vem “sunga”.<br />
Há <strong>um</strong>a infinidade de palavras africanas sendo pes-<br />
18 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 19
quisadas,<br />
inclusive os falares dos<br />
quilombos remanescentes, <strong>com</strong>o<br />
o Cafundó, no interior de São Paulo. São<br />
palavras que têm uso restrito nessas <strong>com</strong>unidades,<br />
que não chegaram ao domínio geral,<br />
mas têm <strong>um</strong>a filiação africana muito clara. Muitas<br />
delas, já observei, são permanentes. Elas “hibernam”<br />
durante <strong>um</strong> tempo e, por alg<strong>um</strong>a razão, voltam.<br />
Quer saber outro termo? Por causa da televisão,<br />
todos sabem o que é <strong>um</strong>a “quenga”. É <strong>um</strong>a palavra<br />
africana muito usada no interior e que ficou restrita<br />
a essas localidades por <strong>um</strong> bom tempo. Hoje, tem<br />
circulação nacional. Há outras ainda: “tamanco”, “camundongo”,<br />
“marimbondo”, palavras extremamente<br />
sonoras, do grupo banto.<br />
O senhor é ligado a alg<strong>um</strong> grupo acadêmico de<br />
estudo da <strong>língua</strong>?<br />
Não. Minha formação é in<strong>com</strong>pleta, sou bacharel em<br />
direito e ciências sociais. O tempo da faculdade foi de<br />
muita turbulência política e o ensino não me agradava<br />
muito. Apesar disso, eu me formei e advoguei durante<br />
<strong>um</strong> período, mas o que ficou foi só <strong>um</strong>a base.<br />
Acho que tinha vocação de antropólogo mesmo.<br />
Na época era o tipo de conhecimento que não era<br />
vulgarizado. Sou autodidata. Tenho <strong>um</strong>a base formal,<br />
mas não sou ligado a nenh<strong>um</strong> grupo acadêmico.<br />
Mesmo porque tenho críticas à academia. O trabalho<br />
acadêmico é muito em torno do próprio <strong>um</strong>bigo. As<br />
pessoas, em geral, não têm <strong>um</strong>a preocupação mais<br />
adiante, mais social, de transformação. Querem é defender<br />
<strong>sua</strong> tese, ganhar <strong>sua</strong> promoção, fazer grana. E<br />
a vaidade é muito grande.<br />
Seus estudos linguísticos <strong>com</strong>eçaram a despontar<br />
quando a carreira musical já estava consolidada.<br />
Hoje, <strong>com</strong>o <strong>um</strong> assunto visita o outro: o<br />
estudo abastece a <strong>com</strong>posição e a <strong>com</strong>posição<br />
exemplifica o estudo?<br />
Em 2006, por exemplo, publiquei <strong>um</strong> livro de ficção,<br />
Vinte Contos e uns Trocados, pela editora Record. Ou-<br />
tro dia, <strong>com</strong>ecei a relê-lo e me surpreendi. Eu escrevi<br />
esses contos no intervalo de outro trabalho, que não<br />
foi publicado ainda, o Dicionário da Antiguidade Africana.<br />
Ele vai sair pela Civilização Brasileira, que é do<br />
grupo Record também. É <strong>um</strong> estudo que está sendo<br />
muito bem elaborado, porque é pioneiro, ninguém<br />
tinha analisado a África antes da chegada dos portugueses.<br />
Pois bem, eu percebi, ao reler as histórias de<br />
Vinte Contos que nelas, em vários momentos, aparecem<br />
referências à música. Todos os contos se passam<br />
no ambiente das escolas de samba. A todo momento<br />
esse ritmo está nas histórias; e, em várias passagens,<br />
a antiguidade africana também. Então tudo<br />
vai se ligando, não há dúvida. Reparei também que,<br />
atualmente, quando faço <strong>um</strong> samba, muita coisa da<br />
minha formação jurídica tem entrado nas <strong>com</strong>posições.<br />
Quero reunir as músicas em que essa influência<br />
é recorrente. Esse recurso é usado mais <strong>com</strong>o <strong>um</strong>a<br />
brincadeira, <strong>com</strong>o <strong>um</strong> deboche, mas é interessante,<br />
de qualquer forma. As coisas se entrecruzam sem<br />
preconceito nenh<strong>um</strong>.<br />
Na introdução do Novo Dicionário Banto do Brasil<br />
(Pallas, 2003), o senhor faz <strong>um</strong>a observação sobre a<br />
influência das <strong>língua</strong>s africanas no português ao<br />
dizer que <strong>um</strong>a das formas de racismo mais arraigadas<br />
na alma brasileira é reduzir essas <strong>língua</strong>s à<br />
condição de “dialetos”. Outro aspecto pontuado<br />
nesse texto é a definição do português brasileiro<br />
<strong>com</strong>o <strong>um</strong> dialeto do idioma falado em Portugal...<br />
Teoricamente seria, porque <strong>um</strong> dialeto é <strong>um</strong>a forma<br />
linguística resultante da transmutação, da transposição<br />
de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> para outro ambiente. O que aconteceu<br />
<strong>com</strong> o português de Portugal e do Brasil? A <strong>língua</strong><br />
de Portugal, ao vir para o Brasil e ter contato <strong>com</strong><br />
outras realidades linguísticas, transformou-se bastante.<br />
Minha crítica nesse texto é ao preconceito<br />
de que toda <strong>língua</strong> africana é <strong>um</strong> dialeto. A existência<br />
de <strong>um</strong> dialeto pressupõe a existência de<br />
<strong>um</strong>a <strong>língua</strong>. É evidente que na África há dialetos,<br />
mas há <strong>língua</strong>s também. O quicongo<br />
é <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> falada por milhões<br />
de pessoas, o hauçá, o<br />
m a n -<br />
dinga são <strong>língua</strong>s<br />
que têm subdivisões dialetais,<br />
de acordo <strong>com</strong> as regiões. Chamar<br />
toda <strong>língua</strong> africana de dialeto é racista,<br />
inferiorizante. Em outro livro meu, Dicionário<br />
Literário Afro-Brasileiro (Pallas, 2007), discuto a<br />
questão do racismo na literatura. Por exemplo, há<br />
<strong>um</strong> grupo de literatos negros em São Paulo, chamado<br />
Quilombhoje, que se reúne em torno dos Cadernos<br />
Negros, publicação editada há cerca de 30 anos.<br />
Eles publicam às próprias custas antologias de ficção<br />
e de poesia. É <strong>um</strong> grupo reconhecido internacionalmente,<br />
mas o Brasil não o reconhece. Em nosso país<br />
só alcançam reconhecimento as pessoas que estão<br />
ligadas aos círculos literários influentes, que vendem<br />
muitos livros, estão em grandes editoras.<br />
O senhor postou recentemente em seu blog<br />
[www.neilopes.blogger.<strong>com</strong>.br] <strong>um</strong> texto sobre<br />
<strong>um</strong>a recente pesquisa da situação social do negro<br />
brasileiro no último ano. Nele, faz <strong>um</strong>a crítica<br />
ao debate atual sobre a existência ou não de raças.<br />
Por que surgem essas proposições, e por que<br />
elas ganham força?<br />
Meu pai e minha mãe são do século XIX; meu pai<br />
nasceu em 1888, poucos meses antes da Abolição.<br />
Para mim, o grande acontecimento de 2008 foi a descoberta<br />
de minha ancestralidade <strong>um</strong> pouco além de<br />
meu pai. O historiador Flávio Santos Gomes está trabalhando<br />
<strong>com</strong> registros de batismos de pessoas nascidas<br />
nos séculos XVIII, XIX, pertencentes a igrejas. Ele<br />
me auxiliou. Meu pai dizia que tinha sido batizado na<br />
Igreja da Lampadosa, no centro do Rio, que concentrou<br />
grande irmandade de pardos. Então, pressupõese<br />
que minha ancestralidade mais próxima não seja<br />
totalmente africana, tenha <strong>um</strong> grau de mestiçagem.<br />
Em casa, desde cedo fui o primeiro a pensar nas questões<br />
que envolvem os negros, por ter sido o primeiro<br />
a ter acesso a esse tipo de informação – meu pai<br />
e minha mãe não gostavam de tocar nesse assunto.<br />
Diziam: “Deixa para lá que a gente tem que melhorar”.<br />
Era aquele conceito de melhorar no sentido do<br />
embranquecimento mesmo, de deixar a condição de<br />
negro para trás. Minha mãe não queria que eu me envolvesse<br />
<strong>com</strong> gente do samba, e eu me envolvi, contrariando<br />
todas as expectativas. Além do samba, havia<br />
a questão da religião, quanto menos africanizada<br />
“Há <strong>um</strong>a infinidade de palavras africanas sendo pesquisadas,<br />
inclusive os falares dos quilombos remanescentes.<br />
São de uso restrito nessas <strong>com</strong>unidades, que não chegaram<br />
ao domínio geral.”<br />
fosse, melhor, apesar de minha mãe ser médi<strong>um</strong>. Ela<br />
recebia preta-velha, e meus tios recebiam caboclos.<br />
Mas, quanto menos africano a gente fosse, melhor. É<br />
lógico, <strong>um</strong> pai que nasceu em 1888 e <strong>um</strong>a mãe que<br />
nasceu em 1900 não vão querer nunca que a formação<br />
do filho remeta àquele passado aviltante do qual,<br />
embora distantes, sentiram as consequências. Não era<br />
bom ser negro, não era confortável. O que eles queriam?<br />
Que o filho estudasse, subisse na vida. Comecei,<br />
então, a ver que enquanto o negro permanecesse no<br />
lugar reservado a ele, ocuparia, sem demérito, funções<br />
<strong>com</strong>o mecânico ou operário qualificado, <strong>com</strong>o se dizia<br />
antigamente. Se, no entanto, o negro pensasse em<br />
ser doutor, <strong>um</strong> ser pensante, <strong>com</strong>eçaria a entrar n<strong>um</strong>a<br />
área de conflito <strong>com</strong> o branco. E é exatamente isso o<br />
que está acontecendo. Mas também é <strong>um</strong> momento<br />
muito saudável, pois se trata de <strong>um</strong> assunto que<br />
nunca se discutiu e agora está na pauta do Congresso,<br />
<strong>com</strong> o Estatuto da Igualdade Racial. Se raça não existe,<br />
existe o racismo! Essa é a grande questão. Se não tenho<br />
a possibilidade de avançar, tenho no mínimo de<br />
me preocupar.<br />
Assista na Continu<strong>um</strong> On-Line a trecho do DVD Toca<br />
Brasil – Nei Lopes.<br />
20 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 21
Em outras palavras...<br />
Escrever “é viajar entre mundos e ter morada apenas na zona de fronteira”. As palavras são do escritor moçambicano<br />
Mia Couto, <strong>um</strong> dos mais conhecidos do continente africano e da literatura em <strong>língua</strong> portuguesa.<br />
Biólogo e jornalista de formação, tem mais de 20 livros publicados, em países <strong>com</strong>o Alemanha e<br />
Dinamarca. Em entrevista, Couto fala de seu trabalho e de questões <strong>com</strong>o a lusofonia e o acordo ortográfico.<br />
***<br />
O que pode acontecer <strong>com</strong> <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> quando retirada de seu contexto? Se os cost<strong>um</strong>es estão intimamente<br />
ligados ao idioma e à evolução deste, o que significa retirá-lo de seu local de origem? Muitos afirmam que ele<br />
se estagnaria. Em artigo, o professor de teoria literária da Unicamp Alcir Pécora discorda: “A matriz da <strong>língua</strong> não<br />
anula o seu exercício, seja ele partilhado pelos membros da <strong>com</strong>unidade original de falantes, seja pelos de <strong>um</strong><br />
grupo mais reduzido, por vezes interessado n<strong>um</strong> registro exclusivamente literário dessa <strong>língua</strong>”.<br />
***<br />
A relação entre <strong>língua</strong> e música também tem espaço na versão on-line da Continu<strong>um</strong>. Ouça o programa<br />
Mapa – Em Busca do Brasil Sonoro <strong>com</strong> Luiz Tatit, <strong>um</strong> dos participantes do grupo R<strong>um</strong>o, que reuniu também<br />
Ná Ozzetti e Gal Oppido, entre outros. Com 30 anos de formação e discos <strong>com</strong>o R<strong>um</strong>o aos Antigos e Diletantismo,<br />
o grupo inovou a forma de utilizar os recursos da <strong>língua</strong> em <strong>sua</strong>s letras.<br />
***<br />
Confira, em maio e junho, atualizações exclusivas no site da Continu<strong>um</strong> (www.itaucultural.org.br/continu<strong>um</strong>).<br />
Ouça o audiobook produzido <strong>com</strong> curadoria de Cacá Machado, responsável pela exposição sobre<br />
Machado de Assis do Museu da Língua Portuguesa; leia o glossário sobre linguagem escrito pela professora<br />
Mayra Rodrigues Gomes; conheça a poesia verbovocovi<strong>sua</strong>l em criação de Ricardo Aleixo; saiba qual a relação<br />
entre som e significado no artigo do professor Welington Andrade, entre muitos outras. No site, você<br />
também pode se cadastrar para receber nossa newsletter e acessar as edições anteriores da revista.<br />
O escritor moçambicano Mia Couto: “A <strong>língua</strong> é <strong>um</strong>a moradia, <strong>um</strong>a casa para o pensamento”<br />
on-line<br />
Abra a gaveta e participe!<br />
22 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 23<br />
convocação<br />
Cansado de guardar <strong>sua</strong> produção na gaveta? Mande contos, poemas, ilustrações, fotografias, vídeos<br />
e demais trabalhos artísticos para a Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural! Eles podem ser publicados nas páginas –<br />
impressas e virtuais – da revista.<br />
Basta ficar de olho no tema do mês e enviar <strong>sua</strong> obra pelo e-mail participecontinu<strong>um</strong>@itaucultural.org.br.<br />
Maio-junho: Língua<br />
Julho-agosto: Conectividade<br />
As portas da Continu<strong>um</strong> não estão abertas apenas para obras de arte. Você também pode participar <strong>com</strong><br />
matérias jornalísticas, reflexões, <strong>com</strong>entários, críticas, sugestões etc. A cada edição <strong>um</strong>a enquete convida os<br />
leitores a dar <strong>sua</strong> opinião. Para o tema corrente entre maio e junho, a enquete é: Qual o futuro das <strong>língua</strong>s?.<br />
Acesse e diga o que pensa!<br />
***<br />
As relações sociais estabelecidas por intermédio da internet – tema cada vez mais presente em tempos de<br />
Orkut, MySpace, Twitter e outros programas que vêm tornando o mundo mais integrado e em conexão<br />
– são o mote da entrevista especial, <strong>com</strong> o jornalista Marcelo Tas, que será publicada na edição sobre<br />
Conectividade (julho-agosto).<br />
E quem vai fazer essa entrevista é você: envie perguntas, exclusivamente relacionadas ao universo da<br />
internet, para ser respondidas por Tas. O fim do mês de maio é o prazo para mandar quantas perguntas<br />
quiser, usando o e-mail da redação: participecontinu<strong>um</strong>@itaucultural.org.br.<br />
Para conhecer mais sobre o <strong>com</strong>unicador, visite seu blog (marcelotas.uol.<strong>com</strong>.br), <strong>um</strong>a das páginas virtuais<br />
mais visitadas do país. É lá que ele <strong>com</strong>enta e analisa as novidades da rede não só brasileira, mas a de todo<br />
o mundo. Tas também é <strong>um</strong> dos mais seguidos no Twitter, em que dá dicas sobre o que é bom ficar de olho<br />
na internet.<br />
Para saber mais, acesse www.itaucultural.org.br/continu<strong>um</strong>.
O homem que abdicou das palavras<br />
Por Diogo Sponchiato | Ilustração Hare Lanz<br />
área livre<br />
Abdicou das palavras <strong>com</strong>o quem para de beber cerveja. Talvez estivesse bêbado quando ditou a aposta. Os<br />
<strong>com</strong>panheiros de bar nunca acreditaram na proposta de Jorge. Mas ele a fez. Fez para si, porque sabia que<br />
de <strong>sua</strong>s entranhas não brotariam revoluções. Usou os amigos e os quatro ou cinco copos de cerveja <strong>com</strong>o<br />
álibi para dar força ao seu plano egoísta. Sabia que não era o primeiro nem o último a fazê-lo. E ninguém<br />
atentou às <strong>sua</strong>s últimas palavras.<br />
Jorge se achava mais <strong>um</strong> lobo da estepe. Não tinha nem 50 anos, mas se portava feito <strong>um</strong> velho car<strong>com</strong>ido<br />
por <strong>um</strong> tempo sem alterações. Considerava-se o melhor entre os alunos e o pior entre os professores. Nunca<br />
publicou <strong>um</strong> livro, ele que se via intelectual, <strong>com</strong> os óculos na ponta do nariz adunco, o cigarro no canto<br />
direito da boca, <strong>um</strong> ou dois livros presos à axila. Tantas poesias confinadas no armário, prisioneiras do pó. E<br />
<strong>um</strong> romance que o fogo da lareira dilacerou, após <strong>um</strong>a noite regada a puro malte escocês. Não que fosse<br />
pusilânime, mas ciente de que o mundo não se importaria <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s insossas palavras e débeis ideias. Seus<br />
textos não refletiam a originalidade que, <strong>um</strong> dia assegurou ele, habitava <strong>sua</strong> mente. Jorge era o intelectual<br />
que estaria sempre prestes a nascer, mas nunca nasceria.<br />
Nesse impasse, decidiu-se pelo aborto. Cansou-se da prosa, esse mar artificial; enfastiou-se da poesia, esse<br />
riacho de extremos, antíteses e falsidades. Rasgou os jornais, a interpretação barata da realidade estúpida<br />
que vivia. Cobriu <strong>com</strong> <strong>um</strong>a lona <strong>sua</strong> exígua biblioteca, repleta de exemplares emprestados e nunca lidos,<br />
afinal, ele sempre preferiu os livros <strong>com</strong>prados pelo próprio bolso. Ao espreitar <strong>um</strong> vol<strong>um</strong>e de contos de<br />
Machado de Assis, colocou-se no lugar do alienista, mas logo cuspiu a lembrança. Árduo trabalho o de mandar<br />
ao inferno, ao vazio, ao nada, tudo o que havia lido. Adeus a personagens e mundos. Adeus ao tempo<br />
construído por frases. Sua meta era se desvencilhar das palavras.<br />
Aposentou-se da leitura. E maior esforço despendeu para renunciar aos diálogos do cotidiano, essas coisas<br />
aparentemente insignificantes, mas que são os verdadeiros tijolos do conhecimento h<strong>um</strong>ano. Suou para<br />
transformar os pedidos de café na padaria em singelos gestos e interpretações. Tornou-se <strong>um</strong> ator de filme<br />
mudo. Logo se viu posicionando os dedos em “v” e levando-os à boca. Minutos depois, estaria <strong>com</strong> <strong>um</strong> novo<br />
maço de cigarros. Preteriu todos os bons-dias, obrigados e rituais de reciprocidade que, há alg<strong>um</strong> tempo,<br />
saíram de moda na urbe. Abnegou o céu, evitando os outdoors e as fantasias sugeridas pelas nuvens.<br />
Extinguiram-se as poucas amizades. O telefone antigo<br />
fora arrancado, a caixa de correio lacrada, o rádio de<br />
pilha chutado e a televisão relegada à calçada. Deixou<br />
n<strong>um</strong> ferro velho o fusca, herança da esquecida família;<br />
evitaria assim os xingamentos que tanto praticava<br />
no trânsito. Sobretudo, sofreu para abster-se dos filhos<br />
da puta, cacetes e putas que o pariu. As topadas no pé<br />
da cama não eram respondidas. Ao esbarrar <strong>com</strong> <strong>um</strong><br />
jovem desatento na rua, retribuía apenas <strong>um</strong> olhar. Os<br />
olhos tornaram-se delatores; deles, saíam calados todos<br />
os impropérios. As relações h<strong>um</strong>anas se apagavam, mas<br />
ele sobrevivia. Tentou se acost<strong>um</strong>ar, simplesmente.<br />
O primeiro ano calado e fechado aos discursos alheios<br />
fora <strong>um</strong>a sucessão de crises. Como desde o princípio<br />
temeu, embora não proferisse as palavras, elas continuavam<br />
vivendo em seu pensar. As reflexões, as lembranças,<br />
os anseios e os sonhos sempre negados estavam<br />
lá, dentro daquela cabeça careca, construídos<br />
e consolidados por meio de substantivos, adjetivos e<br />
verbos, <strong>um</strong> infinito de verbos.<br />
Contorcia-se, espancava as têmporas tentando expulsar<br />
as palavras. Pensou em desistir, mas resistia.<br />
De repente, <strong>sua</strong> mente entrava em transe e observava<br />
a tênue diferença que residia entre esses<br />
dois verbos: desistir e resistir. Lágrimas vertiam<br />
daqueles olhos esbugalhados, enquanto<br />
<strong>um</strong> “d” se transformava em “r” e, <strong>com</strong>o<br />
<strong>um</strong> relâmpago, ocorria o movimento<br />
inverso.<br />
Certa noite, para obliterar as letras e mergulhar no rio<br />
do sono, sorveu, ansioso, duas garrafas de pinga. Caiu<br />
e adormeceu. Acordou no meio da madrugada devolvendo<br />
ao mundo aquilo que só os canaviais poderiam<br />
conceber. Jorge, esse nome que, todos os dias, se desenhava<br />
em <strong>sua</strong> mente, quis se valer do vômito para<br />
expurgar as palavras que pulsavam em <strong>sua</strong> cabeça.<br />
Tomou banho, para lavar-se das sílabas e do cheiro de<br />
álcool. Sentou-se na cama e persignou-se, <strong>um</strong> velho<br />
hábito que era menos fé do que mania. Dessa vez, ao<br />
<strong>com</strong>pletar o sinal da cruz, Deus invadiu-lhe o cérebro.<br />
Antes tivesse se endereçado ao coração. “D”, “E”, “U”,<br />
“S”. Essas letras pululavam, emergiam e submergiam,<br />
metamorfoseavam-se, apagavam-se <strong>com</strong>o <strong>um</strong> vagal<strong>um</strong>e<br />
que some na imensidão da noite e estouravam<br />
feito <strong>um</strong> rojão. Ele pensou estar diante de <strong>um</strong>a revelação.<br />
Decerto era <strong>um</strong> castigo. Estava a ponto de gritar,<br />
de urrar, mas manteve o silêncio e pensou que Deus,<br />
tão menosprezado em <strong>sua</strong>s antigas conversas filosóficas,<br />
havia sentido pena. Três anos tentando fazer de seu<br />
mundo a negação do verbo. Três anos seculares. Uma<br />
guerra cujas trincheiras estavam dispostas dentro de si.<br />
Desarmado, desalmado, Jorge já avistava a derrota.<br />
Enxergou a morte travestida de abecedário e deixou<br />
de sair de casa. Uma semana esgotando as cervejas. A<br />
única semana em que as palavras não o perturbaram.<br />
Talvez profetizasse o início de <strong>um</strong> fim. Se no princípio<br />
era o Verbo, ao fim somente caberia o silêncio. Um silêncio<br />
antecipado. Um silêncio ambíguo. Vencedor e<br />
vencido; necessário e egocêntrico.<br />
No último dia daquela última semana, percebeu que as palavras<br />
já re<strong>com</strong>eçavam a borbulhar. Sentiu a morte tocar-lhe as<br />
costas. Olhou-se no espelho e viu-se no meio de <strong>um</strong>a ponte<br />
em cujas extremidades se opunham a palavra e a morte.<br />
Subitamente, sentiu <strong>um</strong>a intensa dor no peito. E, n<strong>um</strong><br />
rodamoinho de imagens e nomes que assaltou seu<br />
pensar, pegou <strong>um</strong> papel escondido debaixo da cama.<br />
Ele previa o momento.<br />
Gritou, gemeu,<br />
pediu perdão aos<br />
homens, aos verbos e a Deus. Praguejou,<br />
recitou <strong>um</strong> soneto. Suc<strong>um</strong>biu<br />
<strong>com</strong> <strong>um</strong> dicionário explodindo na mente. Para<br />
Jorge, a morte não era a maior derrota.<br />
Em seu túmulo não havia seu nome, tampouco <strong>um</strong> epitáfio.<br />
Uma lápide lisa. Poucos <strong>com</strong>pareceram ao enterro.<br />
Um funcionário da funerária dirigiu-se a <strong>um</strong> dos antigos<br />
amigos e entregou-lhe <strong>um</strong> papel. O amigo abriu <strong>um</strong>a folha<br />
de caderno já amarelada pelos anos e reconheceu a caligrafia<br />
de Jorge, tão perfeita <strong>com</strong>o nos tempos em que escrevia<br />
poemas no colégio. O verbo derradeiro c<strong>um</strong>pria <strong>sua</strong> ação.<br />
Talvez as palavras não o rodeariam mais. Talvez seu livro se<br />
fecharia sob o som do silêncio e à luz da escuridão.<br />
Diogo Sponchiato é jornalista.<br />
24 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 25
Série Paisagens Descritas-SP, 2009, de Rebeca Rasel<br />
Sem Título, de Alexandre Hypolito<br />
26 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 27
A unificação da <strong>língua</strong> portuguesa aproximará o Brasil dos outros países lusófonos? O Acordo Ortográfico da<br />
Língua Portuguesa, em vigor desde janeiro último, além de normatizar o uso escrito do idioma, traz em seu bojo<br />
implicações históricas e antropológicas. Seria esse doc<strong>um</strong>ento capaz de promover <strong>um</strong>a união mais coesa entre<br />
oito povos dispersos em três continentes? Nações irmãs, mas em muito estranhas entre si, seus laços por vezes<br />
circunscrevem-se aos limites da diplomacia. Seria a <strong>língua</strong> capaz de superar essa barreira?<br />
Esforço de “universalização”<br />
Por Roberto DaMatta<br />
arena<br />
Os elos entre visões de mundo e seu modo de expressão mais potente, fluido, permanente e fundamental –<br />
a linguagem articulada, falada ou escrita – são problemáticos. Sem <strong>um</strong> suporte material – <strong>um</strong>a escrita e <strong>um</strong>a<br />
literatura – as <strong>língua</strong>s desaparecem <strong>com</strong> os seus falantes. A expressão “<strong>língua</strong> morta”, usada para designar<br />
linguagens cifradas, utilizadas em campos específicos, <strong>com</strong>o o do direito e da filosofia, é <strong>um</strong>a contradição<br />
em termos. Pois essas <strong>língua</strong>s estão mais vivas do que muitos idiomas que, devido ao contato cultural, têmse<br />
esvanecido sistemática e tragicamente do mapa da h<strong>um</strong>anidade. Isso nos dá, talvez, <strong>um</strong>a noção mais<br />
precisa da importância de <strong>um</strong>a padronização da <strong>língua</strong> na <strong>sua</strong> dimensão escrita, <strong>com</strong> todas as dificuldades<br />
e limitações que ela apresenta aos seus usuários, sejam eles nativos, sejam estrangeiros, analfabetos ou<br />
instruídos. Pois <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> escrita unifica-se revelando – <strong>com</strong>o tem ocorrido <strong>com</strong> a reforma do português<br />
– os seus arbítrios. Estes nada mais são do que as escolhas de sons e sentidos que todos os códigos de<br />
<strong>com</strong>unicação h<strong>um</strong>anos, <strong>com</strong>o meios de contato projetados para fora e independentes do organismo e<br />
dos códigos genéticos que regem o mundo da biologia, expõem. Pois todas as <strong>língua</strong>s h<strong>um</strong>anas escolhem,<br />
distinguem e excluem sons e modos de <strong>com</strong>binar cadeias sintáticas e semânticas que formam seu léxico e<br />
<strong>sua</strong> gramática.<br />
Por esse motivo, entendo que o acordo de reunir, n<strong>um</strong> único protocolo, a dimensão escrita de <strong>um</strong>a mesma<br />
<strong>língua</strong> falada por oito nações localizadas em continentes diversos é algo muito importante. Trata-se de <strong>um</strong><br />
esforço de “universalização” do português. O acordo ortográfico – ainda que remeta às nossas dificuldades<br />
mais elementares de reaprender a escrever o português, daí alg<strong>um</strong>as das reações à novidade – traz no seu<br />
eixo <strong>um</strong>a padronização da forma ou do material que carrega o pensamento, os valores e os hábitos, n<strong>um</strong><br />
sistema capaz de juntar n<strong>um</strong> mesmo código as inevitáveis e mais do que importantes variações culturais<br />
e sociais, bem <strong>com</strong>o históricas, que separam os países falantes do idioma. Penso que isso o redime de <strong>um</strong><br />
paulificante reaprendizado da <strong>língua</strong>.<br />
Roberto DaMatta é professor de antropologia da PUC/Rio e professor emérito da Universidade de Notre<br />
Dame, Indiana, Estados Unidos. Autor de livros sobre sociedades indígenas do Brasil e a sociedade brasileira<br />
e colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.<br />
ilustração Liane Iwahashi<br />
O desacordo ortográfico<br />
Por João Pereira Coutinho<br />
Não é preciso ter lido os românticos para saber que a <strong>língua</strong> é o produto de <strong>um</strong> povo, e não de<br />
alguns sábios que resolvem decidir que existe apenas <strong>um</strong>a forma correcta de falar, escrever e<br />
pensar em português.<br />
O primeiro problema <strong>com</strong> o Acordo Ortográfico <strong>com</strong>eça aqui: tomando <strong>com</strong>o base duas pronúnciaspadrão<br />
– a brasileira e a portuguesa –, os sábios de ambos os países chamaram a si a tarefa hercúlea<br />
de “unificar” a <strong>língua</strong>, <strong>com</strong>o se isso fosse desejável. Não é. Ao ignorar os outros falantes do português,<br />
a atitude revela prepotência perante povos terceiros e alegadamente “inferiores”.<br />
Não existem donos de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong>. Ela pertence a quem a fala, <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s variações fonéticas e<br />
ortográficas. O caso não é singular: o inglês, o francês ou o espanhol possuem variações linguísticas<br />
e geográficas que nunca puseram em causa <strong>sua</strong> importância no mundo. A diversidade é <strong>um</strong>a<br />
força, não <strong>um</strong>a fraqueza.<br />
Mas a natureza aberrante do acordo não está apenas na forma desrespeitosa <strong>com</strong>o se tratam<br />
tradições linguísticas que devem e merecem ser protegidas. Como cidadão português, existe <strong>um</strong>a<br />
razão suplementar para me opôr a ele. E essa é estritamente linguística.<br />
De acordo <strong>com</strong> os pais do acordo, a “unidade da <strong>língua</strong>” só se consegue quando a ortografia de<br />
base alfabética for <strong>um</strong>a transcrição fonética o mais fidedigna possível. Assim se entende a obsessão<br />
de eliminar certas consoantes mudas, <strong>com</strong>o o “p” de “adopção” ou o “c” de “actor”.<br />
Essa obsessão assenta em novo erro. O facto de existirem certas consoantes mudas nas palavras<br />
do português de Portugal <strong>com</strong>eça por representar <strong>um</strong>a pegada etimológica de inegável riqueza<br />
para o estudo de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong>. O “p” de “adopção” não é <strong>um</strong> mero arcaísmo: é <strong>um</strong>a expressão de<br />
história e de identidade. Mas não só: o “p” permite aos portugueses abrir a vogal que antecede a<br />
consoante, funcionando assim <strong>com</strong>o importante indicador fonético.<br />
A discussão ignora alg<strong>um</strong>as dessas idéias. E até os opositores do acordo, pelo menos em Portugal,<br />
parecem ter preferido considerações nacionalistas (e economicistas) que passam ao largo do<br />
real problema: persistem em dizer que ele apenas serve os interesses económicos do Brasil, que<br />
acabará por ter posição dominante no mercado livreiro em todo o mundo de <strong>língua</strong> portuguesa.<br />
Ainda que isso seja verdade, o problema principal não está na economia; está no reduto histórico,<br />
filosófico e cultural. Aceitar o acordo será aceitar <strong>um</strong>a imposição artificial sobre a mais singular construção<br />
h<strong>um</strong>ana. Será <strong>com</strong>pactuar <strong>com</strong> <strong>um</strong>a intromissão arbitrária na nossa mais profunda h<strong>um</strong>anidade.<br />
João Pereira Coutinho é jornalista português, escritor e autor de Avenida Paulista (Editora Record,<br />
2009). Escreve semanalmente para a Folha de S.Paulo.<br />
Este artigo foi escrito <strong>com</strong> as regras ortográficas utilizadas em Portugal antes do atual Boom, acordo. de Lúcio Carvalho<br />
28 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 29
CINEMA<br />
Comunicar é preciso<br />
A <strong>língua</strong> que se expressa pela arte<br />
imagem: TVZero/divulgação<br />
Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira (idem, Portugal,<br />
2003, Paris Filmes)<br />
Rosa Maria (Leonor Silveira), professora de <strong>um</strong>a universidade<br />
portuguesa, e <strong>sua</strong> pequena filha, Maria Joana<br />
(Filipa de Almeida), partem em <strong>um</strong> cruzeiro de Lisboa<br />
r<strong>um</strong>o a Bombaim (Índia). No trajeto, visitam lugares<br />
que marcaram a civilização ocidental, <strong>com</strong>o Pompeia<br />
(Itália), Ceuta (Espanha), Atenas (Grécia), Cairo (Egito),<br />
Istambul (Turquia). Preste atenção na cena em que<br />
<strong>um</strong> americano, <strong>um</strong>a francesa, <strong>um</strong>a grega e <strong>um</strong>a italiana<br />
conversam, cada qual falando seu idioma, e todos<br />
se entendem.<br />
CINEMA<br />
balaio<br />
Língua – Vidas em Português, de Victor Lopes (idem,<br />
Brasil e Portugal, 2002, TV Zero/Sambascope)<br />
Doc<strong>um</strong>entário, dirigido por <strong>um</strong> moçambicano de nacionalidade<br />
portuguesa que vive no Brasil, traça <strong>um</strong><br />
retrato poético sobre a <strong>língua</strong> portuguesa e a lusofonia<br />
mundo afora. Rodado em países <strong>com</strong>o Moçambique,<br />
Brasil, Índia, Portugal e Japão, a obra deixa evidente<br />
o paradoxo <strong>língua</strong>/cultura: enquanto a primeira<br />
une, a segunda separa.<br />
[este doc<strong>um</strong>entário faz parte da Midiateca do Itaú<br />
Cultural e pode ser consultado gratuitamente]<br />
imagem: Paris Filmes/divulgação<br />
30 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 31<br />
INTERNET<br />
Enciclopédia Itaú Cultural de Literatura Brasileira<br />
(www.itaucultural.org.br/literatura)<br />
Criada em 2007, a enciclopédia é <strong>um</strong>a das mais <strong>com</strong>pletas<br />
referências sobre literatura brasileira disponibilizada<br />
gratuitamente. Além dos verbetes sobre obras,<br />
movimentos literários e biografias de romancistas, poetas,<br />
contistas e críticos, a publicação oferece histórias<br />
de bastidores, ensaios e textos reflexivos, trechos de<br />
obras e <strong>um</strong>a seção de vídeos. Nessa seção, é possível<br />
encontrar pérolas, <strong>com</strong>o a recitação de poemas<br />
de Adélia Prado e Ferreira Gullar, feita pelos próprios<br />
autores; e os depoimentos de Lygia Fagundes Telles e<br />
Milton Hato<strong>um</strong>, entre outros.<br />
imagem: Ricardo Labastier/divulgação<br />
LITERATURA<br />
La Divina Increnca, de Juó Bananére (Editora 34, 43<br />
páginas, 2001)<br />
Em paródia à <strong>língua</strong> falada pelos italianos que imigraram<br />
para São Paulo no <strong>com</strong>eço do século passado,<br />
este livro reúne poemas publicados, em <strong>sua</strong> maioria,<br />
no periódico O Pirralho. Bananére, pseudônimo do<br />
poeta paulista Alexandre Marcondes Machado, satiriza<br />
não só o falar, mas também os hábitos da n<strong>um</strong>erosa<br />
colônia, <strong>com</strong>o nos poemas O Studenti du Bó<br />
Ritiro e Círgolo Vizioso, este último dedicado a <strong>um</strong> tal<br />
de Maxado di Assizi.<br />
[este livro faz parte da Midiateca do Itaú Cultural e<br />
pode ser consultado gratuitamente]<br />
MÚSICA<br />
Violas de Bronze, de Roberto Corrêa e Siba (independente,<br />
2009)<br />
Disco marca o encontro do violeiro mineiro Roberto<br />
Corrêa <strong>com</strong> o rabequeiro pernambucano Siba. Músicas<br />
<strong>com</strong>o Cara de Bronze (nome também de <strong>um</strong> conto<br />
de Guimarães Rosa), Big Brother Mental, Boi Tristeza e<br />
L<strong>um</strong>e demonstram a harmonia entre a viola (caipira,<br />
de cocho, elétrica...) e a rabeca, e – por que não? – entre<br />
o sertão de Corrêa e a zona da mata de Siba. Destaque<br />
para a faixa Nos Gerais, que narra <strong>um</strong> confronto<br />
<strong>com</strong> o diabo no sertão mineiro, a qual ficou curiosamente<br />
bela no sotaque de Siba.
fotorreportagem<br />
Letras que não são<br />
Pessoas, objetos, paisagens... Nos lugares menos<br />
esperados, elas ganham corpo. Fotógrafos de todo<br />
o país encontram formatos de letras onde poucos<br />
as percebem.<br />
imagem: Pedro David (pedrodavid.<strong>com</strong>)<br />
imagem: Gustavo Pellizzon (gustavopellizzon.<strong>com</strong>)<br />
32 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 33
imagem: Fernanda Preto (fernandapreto.<strong>com</strong>)<br />
imagem: Pedro David (pedrodavid.<strong>com</strong>)<br />
34 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 35
imagem: Formiga (flickr.<strong>com</strong>/-formiga-)<br />
imagem: Mirian Fichtner (mirianfichtner.<strong>com</strong>)<br />
36 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 37<br />
Veja mais imagens na Continu<strong>um</strong> On-Line
Los cibermonos de Lo<strong>com</strong>bia<br />
Por Ronaldo Bressane | Ilustração Projeto Dulcinéia Catadora<br />
Fragmento do relatório do Agente Zed Stein encontrado em <strong>um</strong> sebo de livros escolares<br />
no mercado de Getsemaní, em Cartagena de Índias, maio de 2051. É o último doc<strong>um</strong>ento<br />
deixado por Stein antes de desligar-se da Divisão dos Não Lineares.<br />
De: Agente Zed Stein<br />
Para: Sub<strong>com</strong>andante Mark Sandman<br />
Asunto: El desaparecimiento del Agente Seymour Glass<br />
En: Barichara, Colômbia, 12 de março de 2047<br />
Voy te contar, papito. No es facil escrivir nesta lengua nueva. Ja no es facil cuentar esta historia. Ni mesmo<br />
sei bien lo que se pasó. Estoy en una sinistra ciudadezita colonial que parece extraída de los montes de<br />
Minas Gerais, mas quedase en los Andes, aunque los sinos toquem con gusto de orapronobis y jo acabe de<br />
almorzar <strong>um</strong> maravilloso bode, que acá ellos jamam de cabros. No es facil una lengua nueva, toda palabra<br />
parece un error. Voy te cuentar.<br />
Bueno, conforme la misión, estoy en Lo<strong>com</strong>bia em busca do Agente Glass: los ultimos sinales que envió perderanse<br />
entre las cordilleras Central y Oriental. Y de hecho aché uns parceros en Bogotá, pierto del Mercado<br />
San Alejo, que terian visto en janero un gringo narigudo <strong>com</strong> una superchevere ropa de monge, pedindo infos<br />
sobre cactus Sanpedro. Solo sería Glass: el siempre tuve essa quediña por mescalina. Ahora deveria estar<br />
ahi por La Candelaria. Donde? No pára de llover, un frio y una neblina ducaray que envolven <strong>com</strong>o chantilly<br />
la enormisima ciudad, cuadriculada <strong>com</strong>o <strong>um</strong> jugo de xadrez donde los peones son enanos vestidos de<br />
mariachis, los caballos burricos desembestados, los bispos ziguezagueantes táxis amarillentos subindo los<br />
calzadones y continue tu mesmo la metafora (acá en Lo<strong>com</strong>bia todo quer dizer otra coisa, <strong>com</strong>o voy a explicar<br />
más tarde): un lugar perfecto para s<strong>um</strong>ir.<br />
Despues de muchas r<strong>um</strong>bas y andanzas sin r<strong>um</strong>bo, descobri, en una galeria llamada Terraza Pasteur, donde<br />
allá por las diez de la noche se encontra de tudo, un cierto bar Rayuela, decorado con motivos de Escher.<br />
Mostré la fueto de Glass a lo mesero, un punk cafeinómano:<br />
ficção – Si, me acuerdo, he venido dos noches seguidas, pareció<br />
meditabundo, <strong>com</strong>o un niño sin su brinquedo... Bebia<br />
mojitos encuanto facia palabras cruzadas. Recuerdo<br />
que cuando terminó su librito sonrió, una única vez. Ay,<br />
dejó acá su libro! Pega, ia mesmo atirar afuera.<br />
Guardé las cruzadas y fue de bar en bar hasta la Macarena,<br />
donde, en un tal de Ciudad Invisible, una guapisima<br />
danzarina insinuó:<br />
– Lo vi <strong>com</strong>prar unos vestidos de <strong>um</strong> travesti.<br />
38 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 39<br />
– Enserio?<br />
– Cual es lo problema?<br />
– Pareciam amigos, ele y lo travesti? Los viu antes deso?<br />
– No, fue la unica vez. Pareciam amigos, hablavam de<br />
moda... Ah! me acuerdo que el tiozito estaba tambié<br />
interesado en ropas de torero...<br />
Pagué y sali, zonzo con el perf<strong>um</strong>e opiáceo de la chica.<br />
Tuve una il<strong>um</strong>inación sin noción y domingo seguinte<br />
<strong>com</strong>pré un sombrero preto y fue a la Plaza de Toros<br />
Santamaria. Pagué los ojos de la cara, cien mijones<br />
de dineros, por un lugar apretado entre los vinte mil<br />
playboys,<br />
no habia miserabiles.<br />
No tengo nada que ver con essas<br />
tradiciones que gozan con el palo<br />
alleno: me cagué si el toro o si el torero o<br />
el público van a morir; aché el espetáculo una<br />
chatura sin fin... Un toro entrava, danzava y moria,<br />
otro toro entrava, danzava y moria, estava a<br />
me quedar de sueño, si!, de sueño, de dormirme,<br />
y no de sueño, de fantasiar encuanto se durme (jo<br />
hablo que esto portuñol oficial es más pobre que<br />
el muerto português), embora parecesse mesmo un<br />
sueño estúpido, toro após toro si jodiendo, de sus<br />
almofaditas los gomelos atirando sombreros y gritando<br />
olé, olé, olé, cuando de repente sucedió una<br />
puta cosa esquisita.<br />
El torero cayó muertito de la silva.<br />
Si! Y poco a poco los toreros assistentes <strong>com</strong>enzaran<br />
a joderse en la arena, espajando pánico por la plaza<br />
de cuernos. Pensé: algun puto francoatirador con una<br />
arma phaser, una arma que solo nosotros, Agentes,<br />
podemos usar. Tenté quedarme parado encuanto los<br />
plays corrian y giré mis ojos para encuentrar la fuente<br />
de los disparos – y b<strong>um</strong>!, dez fileras abajo, una viejita<br />
no dejaba dúvidas.
– Agente Glass, hijoeputa! –, grité, feliz.<br />
Luego en seguida la viejita mató el último torero, volteó<br />
su cabeza y me miró. En la muesca: era elle, el Escritor<br />
Recluso travestido. Desapareció en la multidón<br />
– perdón, papito...<br />
Las semanas siguientes otros atentados acontecieran<br />
formando un padrón, lo que, <strong>com</strong>o sabe el Sub<strong>com</strong>andante,<br />
é algo dificil en Lo<strong>com</strong>bia, donde ni mesmo<br />
las mijones de maneras de salsar facen lógica,<br />
donde cada cosa quer dizer otra cosa. Mas de gringos<br />
que perdieran las orejas en asaltos en Villa de Neyva,<br />
freiras molestadas en las busetas de Medellín (lo que<br />
parece jover en el mojado), buembas explodindo nas<br />
mansiones de narcocaudillos de Cartago y trafico de<br />
cadáveres de cantores de pós-vallenato en maletas<br />
etc., los jornales estan llenos, hoy, mañana y siempre.<br />
Extrañísimo, sí, fueran los episodios de la Gallera San<br />
Miguel, en Bogotá, y de la Finca Paraíso, en un pántano<br />
pierto de Mompós.<br />
En el clube gallístico moriran uns cien – todos enbenenados,<br />
losers. Solamente restaran los gallos<br />
y don Claudio Tovar, el dono, que estaba en el<br />
bañero haciendo titica cuando la f<strong>um</strong>aza<br />
asasinou sus sócios. La policía tartamudaba<br />
de un veneno a que los supergallos<br />
son imunes.<br />
– Un silêncio extraño, povoado por cantos de gallos...<br />
Jo me senti acuerdando dentro de un pesadelo kafkiano<br />
–, el sobrevivente cacarejaba a la prensa, bañado<br />
en lágrimas, su ton paradojalmente gallináceo a<br />
lembrar un crítico literário.<br />
Ja en la Finca Paraíso facian otra pelea: telecatch de cachuerrones<br />
teleguiados. Nada se pasó con los canzitos<br />
mutantes, de mastins-sucuris a pitbulls de seis pernas<br />
hasta akitas cocainómanos, todos sin lengua, para no<br />
llamar atención de la ley. Mas los apostadores, propietarios<br />
y visitantes y hasta las tiazitas que venden chicha,<br />
aquella cachaza de millo horrible, unos 50 adictos por<br />
la pelea de perros fueran snifar coca pela raiz.<br />
Si de un lado el goberno notava un padrón en el gás<br />
que matava solo h<strong>um</strong>anos y no afectava animales, jo,<br />
entre una r<strong>um</strong>ba y otra, imaginava el proximo paso<br />
del ensandecido Agente Seymour Glass. Si estaba<br />
indo para el norte, mas cierto que se marchase para el<br />
Parque Tayrona, território militarizado de las reservas<br />
de robonobos, la espécimen de cibermonos creada<br />
con orgullo nacional – “Los Macacos Lo<strong>com</strong>bianos<br />
Do It Better” – para el marketing de porn snuff movies<br />
aditivados por la triptoheroina plantada en los contrafortes<br />
de la Sierra Nevada de Santa Marta.<br />
Alugué una barca y subi el<br />
Magdalena hasta salir por el Caribe,<br />
y atraqué en el Cabo San Juan de Guia.<br />
Como siempre, no pensaba que el más fácil<br />
fuese mesmo tan fácil, me olvidava da esquisita<br />
conexión entre los Agentes No-Lineares, aquejo<br />
iman que pulsa en nuestro sangue congelado que<br />
nos afasta y nos atrai y, claro, trai nuestra condición<br />
de pós-h<strong>um</strong>anos, nuestra maldición maçon de judeus<br />
errantes que desenbocan en la puta y mesma<br />
Jerusalém. El cielo estaba azul y el espacio, lleno de<br />
luz – y vi el Escritor Recluso, J. D. Salinger, aquejo que<br />
paró de escribir en 1963, la lenda, la piel enferma, la<br />
boca rota por copas y copas de mojitos, desdibujado,<br />
desangrado, <strong>com</strong>pletamente solo en la pequeña angra<br />
del Cabo, sob las palmas de coqueros, nu sobre<br />
una canga colorida en que se percebia el deseño de<br />
un caballo. En sus manos, una caneta, un cuaderno.<br />
Jo digo solo pues era el unico ser h<strong>um</strong>ano en la plaja<br />
tomada por los cibermonos que hacian sexo <strong>com</strong>o se<br />
no havia mañana, a dos, a tres, cuatro, cinco, octaedros,<br />
trenziños, mandalas de macacos lúbricos dando duro<br />
en su lenguaje requintada y obsesiva, pero ahora sin<br />
un director ditador. El Agente Seymour Glass miraba<br />
esto verdadero congreso politico y todo escribia en<br />
su cuadernito, rindo, rindose todiño el loko terrorista<br />
en su solitário labor libertário, un diós que pregase la<br />
anarquia para atingir el zen en la literatura, devolviendo<br />
su propio senso al mundo – mesmo que un senso<br />
mico. Esto observé de mi barca, mirando las piedras<br />
que pareciam gigantescas cobras, tortugas, peces, y el<br />
mar parecia el ciel, y el ciel parecia las montañas, y cada<br />
una desas cosas parecian símbolos de la civilización<br />
Tayrona... acá cada cosa quer dizer otra cosa.<br />
– Hace tiempo, Agente Stein –, mandó con su voz de<br />
tronco seco.<br />
– Hace tiempo, Agente Glass! Gran idea, jamás hé<br />
pensado en la ecologia sexual <strong>com</strong>o terrorismo político<br />
–, y andé hasta la canga de caballo con mi mano en<br />
el culo, con miedo de ser violado por <strong>um</strong> robonobo,<br />
mi mamá nunca me perdonaria, papito.<br />
Abrazamonos y el Agente Glass me ofereció un cachimbito.<br />
– Te acuesta al sol un poco, hombre. Mira! El ópio lo<strong>com</strong>biano<br />
és el mas relax del mundo –, y me estendió<br />
el fuego.<br />
Poco antes de tragar pensé en mostrar, <strong>com</strong>o un aluno<br />
estudioso, el librito de palabras cruzadas donde<br />
todo estava <strong>com</strong>pleto – minos la contesta para “Par-<br />
Si de un lado el goberno notava un padrón en el gás que<br />
matava solo h<strong>um</strong>anos y no afectava animales, jo, entre una<br />
r<strong>um</strong>ba y otra, imaginava el proximo paso del ensandecido<br />
Agente Seymour Glass.<br />
que donde se localiza Sierra Nevada de Santa Marta”:<br />
el Tayrona. Ni Jack Sparrow ni españoles imaginarian<br />
su Eldorado devastado por monos herosexômanos<br />
anestesiados en un toreo tántrico.<br />
Tragué el ópio y, tras olor de flores y amendoas y manos<br />
del viento, me recuerdo del Agente fejar el cuadierno y<br />
salir a pescar unas piedritas volcánicas; juntó sus cosas,<br />
guardó na canga y caminó lento sobre los lilases del<br />
Caribe. La trilha sonora en mi cabeza era mambo chocolate<br />
cuando empezé a cuentar el ritmo de las ondas.<br />
Series de tres, cinco, nove, cuatro. Tres, cinco, nove, cuatro.<br />
Un padrón. Todo quer dizer otra cosa. Mas fue nessa<br />
hora, cuando ja estaba cuase achando buena una bonoba,<br />
que jo mesmo <strong>com</strong>enzé a levitar.<br />
Ronaldo Bressane é jornalista e escritor. Publicou, entre<br />
outros, a trilogia de contos A Outra Comédia, entre 1999 e<br />
2003. Mantém o blog Impostor (impostor.wordpress.<strong>com</strong>).<br />
40 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 41
Amolando a <strong>língua</strong> no veludo<br />
A história da Aurélia, a “dicionária” sem preconceitos.<br />
Por Hilton Lacerda | Cartuns Allan Sieber<br />
resenha<br />
Uma das diversões mais tolas que eu experimentava quando era adolescente consistia em abrir o dicionário<br />
em <strong>um</strong>a página aleatória e ler n<strong>um</strong>a roda de amigos – invariavelmente em estado de <strong>um</strong> interessante<br />
transtorno de h<strong>um</strong>or – o significado de alg<strong>um</strong> verbete, e eles tinham que descobrir qual a palavra a que<br />
me referia. Divertimento engraçado e pouco útil, diga-se de passagem. Agora me vejo aqui, <strong>com</strong> o nariz<br />
tocando a tela do <strong>com</strong>putador, desmembrando meu raciocínio para falar sobre a Aurélia – A Dicionária da<br />
Língua Afiada.<br />
Acredito que no ano 2000, n<strong>um</strong> sábado de sol, encontrei-me <strong>com</strong> Fred Libi – codinome de Wanderley Joaquim,<br />
que nem nome é – em torno da Praça Benedito Calixto, em São Paulo. Ele estava na <strong>com</strong>panhia de<br />
amigos e por essa época ainda não tinha ass<strong>um</strong>ido o pic<strong>um</strong>ã vasto e descolorido que passou a usar alg<strong>um</strong><br />
tempo depois. Ainda morava em São Paulo – o destino e as convicções o empurraram para Ushuaia, no início<br />
do fim do mundo, bem ali na Argentina. Eu estava a<strong>com</strong>panhado de duas mamíferas (Duda e Juliana) e<br />
mais que rapidamente fui chamado de marsupiellen. Como é mais fácil perder amigos que piadas, fiquei feliz<br />
ao saber de onde vinha essa palavra. Até hoje fico em dúvida se eu era o motivo da criação ou <strong>um</strong> exemplo<br />
prático que se aproximava no momento da descoberta. Libi, juntamente <strong>com</strong> Angelo Vip (Victor Ângelo,<br />
jornalista), <strong>um</strong>a espécie de diplomata do xoxo, estava, naquela altura, trabalhando n<strong>um</strong> site gay chamado<br />
Supersite. Ambos, fazia certo tempo, traduziam alg<strong>um</strong>as expressões para tornar o site mais <strong>com</strong>preensível.<br />
Um glossário à Laranja Mecânica (A Clockwork Orange,<br />
de Anthony Burgess, escrito em 1962 e levado às telas<br />
em 1971 por Stanley Kubrick). Muitas outras pessoas,<br />
direta ou indiretamente, participaram dessa brigada.<br />
A questão é que, ao pescar o monge, o hábito veio<br />
junto. O dialeto específico de grupos pesquisados<br />
em alg<strong>um</strong>as capitais brasileiras trazia <strong>um</strong>a quantidade<br />
imensa de termos afinados na <strong>língua</strong> e <strong>com</strong> aspectos<br />
regionais interessantíssimos. Sorte e semente<br />
estavam lançadas. E a máquina da imaginação <strong>com</strong>eçou<br />
a funcionar junto.<br />
Da experiência passageira do Supersite, as expressões<br />
ganharam fôlego e ocuparam <strong>um</strong> degrau de eternidade<br />
<strong>com</strong> a realização da “dicionária” Aurélia. Assim<br />
mesmo, palavra desvirtuada em seu gênero, travestida,<br />
em homenagem que se tornou quase problema,<br />
quando a família do filólogo Aurélio Buarque de Holanda<br />
e a editora do dicionário Aurélio, a Nova Fronteira,<br />
tentaram impedir o lançamento do <strong>com</strong>pêndio.<br />
Aurélio, que já estava adjetivado, agora era sublimado<br />
a outro espaço de convivência dos modos<br />
da fala. Não foi possível o impedimento. Lucrou<br />
a <strong>língua</strong>, que a partir daquele momento <strong>com</strong>eçou<br />
a ser afiada no veludo do bajubá<br />
(ou pajubá), que vinha logo dali, das<br />
esquinas fervidas do Brasil.<br />
O bajubá é a <strong>língua</strong> utilizada nos terreiros de <strong>um</strong>banda<br />
e candomblé, adotada pelas amapoas de canudo,<br />
que a popularizaram, a recriaram e nela enxertaram<br />
<strong>um</strong> tanto de vivências e <strong>língua</strong>s que estão presentes<br />
na dicionária. Uma <strong>com</strong>binação de criação e adequação<br />
da <strong>língua</strong> iorubá (nagô) <strong>com</strong> a velocidade da fala<br />
marginal desenvolvida para defesa e ataque. Essas<br />
expressões tomaram o universo gay e finalmente desaguaram<br />
no mundo <strong>com</strong>o <strong>um</strong>a catarata criativa e<br />
abundante. Logo, o ofidã ficou popular, e o ofofi veio<br />
junto. E a adé acorreu e aquendou na confusão. Pense<br />
n<strong>um</strong>a coisa viva e ativa (e passiva). Pensou? É ela, a<br />
dicionária.<br />
Mundo-satélite<br />
Claro que essa abertura tem seus padrinhos no passado.<br />
Um pequeno <strong>com</strong>pêndio havia sido realizado por José<br />
Fabio Barbosa da Silva em <strong>sua</strong> dissertação de mestrado<br />
Homossexualismo em São Paulo: Estudo de <strong>um</strong> Grupo<br />
Minoritário, escrita em fins dos anos 1950 e publicada<br />
em 2005 pela Editora Unesp, em conjunto <strong>com</strong> outros<br />
textos organizados pelos pesquisadores James Green e<br />
Ronaldo Trindade. N<strong>um</strong>a provinciana São Paulo do meio<br />
do século passado, falar sobre néctar divino, salão de chá,<br />
quebrar a louça e divino ato é algo quase incrível. O orientador<br />
da tese foi o sociólogo Florestan Fernandes e Fernando<br />
Henrique Cardoso fez parte da banca.<br />
42 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 43
Aurélia, lançada oficialmente no primeiro semestre<br />
de 2006, pela Editora do(a) Bispo(a), de São Paulo, não<br />
teve novas edições. Mas dezenas de sites estampam,<br />
senão integralmente, partes de seu conteúdo, basta<br />
“googlar” seu nome.<br />
Mas a dicionária não é apenas veículo de expressões<br />
que nasceram do bajubá ou de <strong>sua</strong>s pequenas (ou<br />
grandes) corruptelas. Ela foi muito além disso, buscando<br />
no mundo lusófono palavras e expressões en-<br />
riquecedoras para o mundo gay (mais <strong>um</strong>a <strong>língua</strong>) e<br />
<strong>sua</strong>s adjacências (muitas e outras <strong>língua</strong>s). O mundosatélite<br />
está ali para marcar presença. Além das expressões<br />
regionais brasileiras (Úrsula; trucosa; asilada etc.),<br />
a África portuguesa emprestou termos (andzáco; anuna;<br />
turra, entre outros); e Portugal bateu à porta (abafar<br />
a palhinha; abébia etc.). É <strong>com</strong>o se, de repente,<br />
todo o mundo fosse unificado pela <strong>língua</strong> afiada.<br />
E assim Ronalda ganha vida além de seu quintal;<br />
Gustafa leva seu muxoxo para o mundo;<br />
e as Ornitorrincas saem do isolamento<br />
que lhes foi imposto pelo meio<br />
e pela mensagem.<br />
Para Angelo Vip, a dicionária não é apenas instr<strong>um</strong>ento<br />
de tradução e revelação. Tem <strong>um</strong>a função prática.<br />
Em matérias publicadas na época do lançamento da<br />
dicionária, ele afirmava que o livro tinha a função de<br />
aproximar pais e filhos, além de bofes e <strong>sua</strong>s namoradas.<br />
Acredito que ela é <strong>um</strong>a heroína ao desbravar<br />
todas as <strong>língua</strong>s que desaguam no aparentemente divertido<br />
e no claramente utilitário (você pode se tornar<br />
poliglota em muito pouco tempo!).<br />
Ao pescar o monge, o hábito veio junto. O dialeto específico<br />
de cada grupo pesquisado trazia <strong>um</strong>a quantidade<br />
imensa de termos afinados na <strong>língua</strong> e <strong>com</strong> aspectos regionais<br />
interessantíssimos.<br />
A Aurélia vai de a a zuzo bem. Mas seu alcance é maior.<br />
Vai dar bem longe, onde o lugar para a imaginação<br />
faz a <strong>língua</strong> ganhar vida. Devo concordar <strong>com</strong> A. Jaccourd,<br />
doutor em linguística, especialista na obra de<br />
Ferdinand de Saussaure, Ph.D. em lexicografia, filólogo,<br />
<strong>com</strong> tese de doutorado na Sorbonne, Paris, sobre<br />
a linguagem chula e a linguagem erudita falada nos<br />
tristes trópicos. Autor da “prefácia” da dicionária, ele reflete<br />
nesse texto sobre a criação da in<strong>com</strong>unicabilidade<br />
a partir do evento da Torre de Babel. Mas a Aurélia<br />
é <strong>um</strong> sopro de vida, mantendo certa unidade entre<br />
os mundos, equilibrando balanças, fazendo algo para<br />
que, por falta de <strong>com</strong>unicação, a vida não se torne o<br />
uó que por vezes achamos que ela é.<br />
Hilton Lacerda é cineasta e roteirista. Realizou os roteiros de Baile<br />
Perf<strong>um</strong>ado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997) e Amarelo Manga<br />
(Cláudio Assis, 2002).<br />
De a a zuzo bem<br />
Conheça alguns verbetes da Aurélia.<br />
A – art. def. f. No mundo gay, o artigo definido feminino é,<br />
em muitos casos, anteposto a substantivos próprios ou <strong>com</strong>uns<br />
do gênero masculino. No caso dos <strong>com</strong>uns, o substantivo,<br />
ele próprio, também passa, se possível, para o feminino,<br />
criando-se <strong>um</strong> neologismo. Ex.: a Pedro, a Mário, a<br />
Zezinho, a Robertão; a prédia, a fota, a relógia, a dicionária.<br />
Abafar a palhinha – (Portugal) expr. Ser passivo n<strong>um</strong>a relação<br />
homossexual.<br />
Abébia – (Portugal) s. f. Mentira, truque, caô, tanga, couros.<br />
Adé – (do bajubá) s. m. Homossexual masculino.<br />
Amapoa de canudo – (do bajubá, Rio de Janeiro) s. f. Travesti.<br />
Andzáco – (do ronga, Moçambique) adv. O lado de trás.<br />
Anuna – (do changana, Moçambique) s. Marido.<br />
Aquendar – (do bajubá) v. t. d. e intr. 1. Chamar para prestar<br />
atenção; prestar atenção; 2. Pegar; roubar. Forma imperativa<br />
e sincopada do verbo kuein!<br />
Asilada – (Ceará) adj. Louca.<br />
Bajubá – s. m. Baseado nas <strong>língua</strong>s africanas empregadas<br />
pela <strong>um</strong>banda e pelo candomblé. É a linguagem praticada<br />
inicialmente pelos travestis e posteriormente estendida a<br />
todo o universo gay. O bajubá falado emprega <strong>um</strong>a mistura<br />
lexical (do próprio bajubá, do português e, em menor grau,<br />
do tupi) sobre a base gramatical e fonológica da <strong>língua</strong> portuguesa.<br />
[var.: pajubá].<br />
Bofe – s. m. Homem heterossexual ou homossexual ativo.<br />
Fervida – 1. s. f. Pessoa ou local agitado; adj. 2 Próprio do<br />
que ou de quem ferve; divertido.<br />
Gustafa – s. f. Gay cansativo.<br />
Mamíferas – s. f. pl. Grupo de mulheres que saem em bando.<br />
Marsupiellen – s. f. Gay que anda anexo às mamíferas.<br />
Ofidã – (do bajubá) s. m. 1. Zona erógena do bofe; 2. O próprio<br />
bofe.<br />
Ofofi – (do bajubá) s. m. Fedor, catinga [var.: afofi].<br />
Ornitorrinca – s. f. Mulher híbrida, meio pata, antagônica<br />
da mamífera.<br />
Pic<strong>um</strong>ã – (do bajubá) s. m. Peruca, cabeleira; cabelo.<br />
Ronalda – s. f. Gay grandalhão, bigodudo e empertigado,<br />
<strong>com</strong> fala grossa e lenta. Podem-se ouvir as vibrações de <strong>sua</strong>s<br />
cordas vocais quando diz: “Meu nome é Ronaaaaalda!“.<br />
Trucosa – (Pará) adj. Relativo ao gay mentiroso.<br />
Turra – (Moçambique) s. m. Bandido.<br />
Uó – (do bajubá) adj. Ruim, feio, desagradável, desprezível,<br />
errado, equivocado.<br />
Úrsula – (São Paulo) s. f. Gay que <strong>com</strong>pra em lugar barato,<br />
mas diz que foi em local caro.<br />
Xoxo – s. m. Deboche, sarro, onda, caçoada, grea, gozo, avacalhação,<br />
ironia.<br />
Zuzo bem – adv. “Tudo bem” de bêbado. Ex.: Ficou zuzo<br />
bem pra zozo mundo, menos pra Gustafa!<br />
44 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 45
Entre dois tempos<br />
Um pequeno lugarejo no interior gaúcho assiste à desaparição do dialeto<br />
de seus antepassados.<br />
Por Fábio Prikladnicki | Fotos Cristiano Santana<br />
reportagem<br />
No sábado que antecede o feriado de Carnaval, os moradores de Vale Vêneto têm <strong>sua</strong> rotina consideravelmente<br />
alterada. O clube onde os idosos cost<strong>um</strong>am se reunir para jogar baralho e conversar, depois da missa<br />
das 20 horas, é fechado para <strong>um</strong>a festa pré-carnavalesca que reúne de 700 a 800 jovens da região. Até a<br />
madrugada que anuncia o dia seguinte, a população local, de 530 habitantes, a<strong>um</strong>enta temporariamente<br />
em mais de 100%. Embora seja <strong>um</strong> lugar de colonização tipicamente italiana, o repertório que se ouve, em<br />
vol<strong>um</strong>e máximo, dos carros dos jovens estacionados na rua não é nada folclórico. Funk carioca e Macarena<br />
dão o tom. Vale Vêneto, hoje, vive desses paradoxos. Distrito do não menos desconhecido município de<br />
São João do Polêsine, no coração da “quarta colônia”, região na qual se instalou <strong>um</strong>a das principais ondas<br />
de imigração italiana no Rio Grande do Sul, o pacato vilarejo está a 40 quilômetros de Santa Maria, <strong>um</strong>a das<br />
maiores cidades gaúchas, e a 250 quilômetros da capital. Se alguém colocar o dedo no centro do mapa do<br />
estado – desde que seja <strong>um</strong> mapa rico em detalhes –, lá estará Vale Vêneto.<br />
Pela posição geográfica distante dos centros urbanos, acredita-se que as coisas tenham mudado menos do<br />
que em outras localidades que datam aproximadamente da mesma época (os primeiros imigrantes chegaram<br />
em 1878). Os moradores ainda cultivam a lavoura <strong>com</strong> poucas máquinas e muito gado, fazem <strong>com</strong>idas<br />
e bebidas caseiras e, principalmente, conservam <strong>um</strong>a maneira bastante particular de se <strong>com</strong>unicar. É <strong>um</strong><br />
dos únicos lugares do mundo onde ainda se fala o dialeto vêneto. O nome é referência à região do Norte<br />
da Itália de onde levas de pessoas saíram para diversas partes do mundo em busca de <strong>um</strong>a vida melhor.<br />
Em cada lugar, o vêneto sofreu pequenas modificações e ganhou cores locais. Em <strong>um</strong>a definição simples,<br />
dialeto é <strong>um</strong>a variação linguística que se desenvolve em certo território. Já <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> é a elevação de <strong>um</strong>a<br />
das variações existentes ao status de idioma oficial, em geral escolhida em função de prestígio (econômico,<br />
cultural etc.).<br />
Há <strong>um</strong> debate entre estudiosos que defendem o italiano dos descendentes de imigrantes <strong>com</strong>o dialeto e outros<br />
que dizem se tratar de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> propriamente dita. Mas os moradores de Vale Vêneto estão mais preocupados<br />
<strong>com</strong> outra coisa: o lugar se tornou <strong>um</strong>a terra de idosos e, <strong>com</strong> isso, o “italiano gaúcho” é cada vez menos falado.<br />
Metade dos cerca de 100 alunos da única escola que resta vem das redondezas, e o ensino contempla apenas o<br />
ciclo fundamental. Os jovens <strong>com</strong>pletam <strong>sua</strong> formação fora, entram na faculdade, <strong>com</strong>eçam a trabalhar e vol-<br />
A família Venturini, que fala o dialeto friulano<br />
46 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 47
tam apenas<br />
nos fins de semana<br />
para visitar os parentes. “Não<br />
é mais <strong>com</strong>o antes, que ficavam em<br />
casa trabalhando na roça. Eram famílias<br />
tão n<strong>um</strong>erosas que, quando iam à missa, enchiam<br />
a igreja. Se havia serão, jogava-se baralho,<br />
cantava-se, <strong>com</strong>ia-se batata-doce, amendoim, pipoca.<br />
Era bonita a nossa vida assim”, lembra Antônia<br />
Carolina Bortoluzzi, 82 anos, que mora <strong>com</strong> o irmão,<br />
seu Ângelo, 75. Língua e religião, <strong>com</strong>o ela sugere,<br />
conviviam em paz: “A missa era em latim, mas o padre<br />
fazia o sermão em dialeto. Era difícil alguém falar português”.<br />
A portentosa igreja, <strong>com</strong> capacidade para<br />
cerca de 300 pessoas, foi reformada recentemente. A<br />
casa de retiro das irmãs, que já foi <strong>um</strong> internato, agora<br />
recebe turistas, e o seminário dos padres também já<br />
viveu dias mais movimentados. A geração deles é a<br />
última a dominar o vêneto. Os filhos <strong>com</strong>preendem,<br />
mas, na maioria das vezes, não falam. Os netos, nos<br />
melhores casos, sapecam apenas alg<strong>um</strong>as palavras.<br />
O dialeto também virou coisa de idosos.<br />
48 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 49<br />
Antônio e Amadeu, membros da família Cielo, durante ensaio musical<br />
Outras falas<br />
Os Bortoluzzi foram a família mais n<strong>um</strong>erosa a desembarcar<br />
por lá, e Paolo Bortoluzzi – primo do avô<br />
paterno de dona Antônia e seu Ângelo –, a figura<br />
mais importante da história local. Espécie de líder<br />
<strong>com</strong>unitário, foi quem mandou trazer da Itália os primeiros<br />
dois padres. A influência era tão grande que o<br />
local foi chamado inicialmente de Vale dos Bortoluzzi.<br />
Depois da chegada de outras famílias e de muita<br />
discussão, além da intervenção pacificadora de <strong>um</strong><br />
sacerdote, decidiu-se rebatizá-lo <strong>com</strong> o nome atual.<br />
O vêneto, entretanto, não é o único dialeto de Vale<br />
Vêneto. Há <strong>um</strong>a minoria de imigrantes que vieram da<br />
região de Friuli-Venezia Giulia, no extremo Nordeste<br />
italiano, a leste da região do Vêneto. O dialeto que<br />
trouxeram de lá é outro, o friulano. Enquanto o vêneto<br />
se assemelha mais ao italiano padrão, o friulano<br />
tem influência de localidades fronteiriças, <strong>com</strong>o<br />
o alemão e o esloveno. O tempo se encarregou de<br />
integrar os imigrantes vindos das duas regiões. Houve<br />
casamentos mistos e seus descendentes se orgulham<br />
de dizer que falam vêneto, friulano e português.<br />
Nem sempre foi assim. Como os dois grupos, literalmente,<br />
nem sempre se entendiam, o senso de convivência<br />
obrigou os imigrantes friulanos a aprender o<br />
dialeto da maioria de seus vizinhos. A recíproca, claro,<br />
não era verdadeira. Até hoje os moradores das duas<br />
procedências chamam o dialeto vêneto de “italiano”,<br />
<strong>com</strong>o se o friulano fosse <strong>um</strong> idioma estrangeiro. As<br />
provocações <strong>com</strong>eçavam já na infância, <strong>com</strong>o conta<br />
Archilino Guido Venturini, 80, neto de imigrantes que<br />
vieram da <strong>com</strong>una de Gemona del Friuli: “Às vezes<br />
dava até rolo, aquelas briguinhas de gurizada. Jogavam<br />
pedras uns nos outros, mas no dia seguinte estava<br />
tudo bem”. Sua esposa, Ana Maria Forsin Venturini,<br />
63, recorda-se de <strong>um</strong>a típica rixa familiar: “Quando a<br />
vó falava <strong>com</strong> minha mãe sobre assuntos que não<br />
queria que as crianças entendessem – por exemplo,<br />
se alg<strong>um</strong>a vizinha ganhava nenê –, falavam em friulano.<br />
E minha outra vó dizia: ‘É <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> tão estúpida<br />
que não existe nenh<strong>um</strong> livro sobre isso’ ”.<br />
Talvez por isso os Venturini exibam <strong>com</strong> tanto orgulho<br />
o material que recebem de <strong>um</strong>a associação internacional<br />
dedicada à divulgação da cultura friulana. É<br />
<strong>um</strong>a coleção de livros, todos escritos no dialeto, alguns<br />
dedicados a ensiná-lo. Mas não adiantou para<br />
estimular os filhos a aprender. A maioria nem mora<br />
mais por lá. Um deles trabalha em São Paulo, outros<br />
dois se mudaram para Mato Grosso do Sul para cultivar<br />
arroz. Restou José, 23, que cursa matemática<br />
em Santa Maria. E depois da faculdade? “Acho que o<br />
melhor é voltar para casa mesmo”, responde. Ele alega<br />
que a profissão não tem futuro, diz que precisaria<br />
fazer mestrado e doutorado, mas parece motivado<br />
mesmo por <strong>um</strong> sentimento de que alguém precisa<br />
ficar para cuidar da família e da terra. É <strong>um</strong>a escolha<br />
rara entre os jovens de Vale Vêneto. A volta não significa<br />
<strong>um</strong> retorno ao dialeto. “Eu entendo tudo,<br />
mas não falo. Meus irmãos também não falam<br />
muita coisa. Acho que não houve muito<br />
incentivo por medo de que a gente<br />
não fosse aprender o português<br />
correto na escola”, diz.
Parreiral no quintal<br />
É possível que, por circunstâncias socioeconômicas,<br />
os dialetos viessem a perder espaço para o português<br />
entre os descendentes de imigrantes. Mas <strong>um</strong><br />
fato, mencionado por todos <strong>com</strong> quem se conversa<br />
em Vale Vêneto, parece ter ficado <strong>com</strong>o <strong>um</strong> tra<strong>um</strong>a:<br />
a proibição de manifestações em dialeto durante o<br />
Estado Novo, na década de 1940, na esteira do projeto<br />
de nacionalização de Getúlio Vargas. Ainda se<br />
conta, por lá, a história de <strong>um</strong> senhor que teria dado<br />
bom-dia, em italiano, a <strong>um</strong> conhecido na rua e que,<br />
por isso, teria sido levado preso por <strong>um</strong> encarregado<br />
do governo de fiscalizar o lugarejo. O detalhe<br />
mórbido é que, por motivos de saúde, ele teria logo<br />
morrido na prisão.<br />
De resto, as escolas intensificaram o ensino do português,<br />
e todos aprenderam a rezar na <strong>língua</strong> pátria.<br />
A lei alimentou, inclusive, intrigas entre famílias,<br />
<strong>com</strong>o relata Iracema Fátima Cielo, 64: “Famílias que<br />
não se gostavam colocavam livros estrangeiros nas<br />
outras casas e depois denunciavam. Aí eles prendiam.<br />
Muita literatura boa se perdeu dessa forma”.<br />
Os Cielo têm se esforçado para que outras coisas<br />
não se percam. “O pai queria que nós tomássemos<br />
vinho e cantássemos. No <strong>com</strong>eço da família, ele tinha<br />
<strong>um</strong> conjunto. Foi <strong>um</strong> dos meus irmãos que incentivou<br />
os outros a fazer vinho e botar o conjunto<br />
de volta. Depois, faleceu”, conta. A família é <strong>um</strong>a das<br />
últimas que ainda realiza o tradicional “filó”, reunião<br />
<strong>com</strong> muita música (em italiano), bebida (vinho, claro)<br />
e conversa. A casa da matriarca, dona Virgínia<br />
Varaschini Cielo, 88, tem inclusive <strong>um</strong> parreiral no<br />
quintal. “Naquele tempo, se fazia muito vinho. Então,<br />
chegava gente de todos os lados para tomar,<br />
e ficavam todos bêbados. Os ricos pensam mais<br />
em fazer dinheiro; os pobres, em se divertir e<br />
cantar”, diz ela. “Não somos apegados aos bens<br />
materiais, então conservamos os cost<strong>um</strong>es”,<br />
<strong>com</strong>pleta o filho, Pio, 51, <strong>um</strong> dos músicos<br />
do conjunto, que congrega cinco familiares<br />
e três amigos.<br />
O maior desejo do patriarca, no entanto, era conhecer<br />
Trissino, na província de Vicenza, na Itália, de onde tinha<br />
vindo seu pai. A filha Iracema tratou de fazer <strong>um</strong>as<br />
economias e marcou a viagem de ambos para certo<br />
dia 24 de agosto. Em 31 de maio, o patriarca morreu.<br />
Decidiu ir sozinha mesmo assim e descobriu que a<br />
casa dos antepassados ainda existia. Fez contato <strong>com</strong><br />
parentes que buscou no guia telefônico e ficou <strong>um</strong><br />
mês em <strong>um</strong> tour genealógico. Iracema foi decidida a<br />
praticar não o dialeto, mas o italiano padrão, que havia<br />
aprendido por iniciativa própria: “Gosto mais do<br />
italiano gramatical. Acho mais bonito, mais sonoro.<br />
Mas quando me escapava <strong>um</strong>a palavra em dialeto<br />
eles vibravam, porque sentiam que eu estava falando<br />
<strong>com</strong>o eles. Lá o dialeto também está se perdendo, eu<br />
ouvia muito pouco. Os mais idosos falam. Mas no rádio,<br />
na TV, na escola é o gramatical”.<br />
Em 2002, a escola de Vale Vêneto iniciou <strong>um</strong> projeto<br />
de resgate da história e da cultura <strong>com</strong> os alunos.<br />
Foram trabalhados temas <strong>com</strong>o o motivo da vinda<br />
dos imigrantes para o Brasil, o que encontraram por<br />
aqui e <strong>com</strong>o viviam. “As crianças pesquisaram muito<br />
em casa <strong>com</strong> os avós e os pais”, diz Maria do Carmo<br />
Pivetta Cielo, 41, professora da escola e esposa de Pio.<br />
“Elas tinham que escrever as palavras conforme ouviam,<br />
porque se escrevessem <strong>com</strong>o está na gramática<br />
já não seria dialeto.” O projeto durou seis anos, mas<br />
não incluiu o ensino da <strong>língua</strong> – nem do dialeto, nem<br />
do italiano padrão. No currículo da escola, que é estadual,<br />
consta apenas o inglês <strong>com</strong>o idioma estrangeiro.<br />
Uma solução seria <strong>um</strong> projeto que funcionasse em<br />
turno inverso, mas que esbarraria na falta de pessoas<br />
<strong>com</strong> tempo ou disposição para o trabalho voluntário<br />
– problema que provocou a descontinuidade do projeto<br />
de resgate. Os pais dos alunos tampouco manifestam<br />
vontade de que as novas gerações aprendam<br />
o dialeto que <strong>um</strong> dia foi moeda corrente nas ruas do<br />
simpático lugarejo. Vale Vêneto vive, mesmo, de paradoxos:<br />
lamenta que as coisas tenham mudado, mas<br />
não quer estar na contramão da história.<br />
Confira, na Continu<strong>um</strong> On-Line, relato sobre a visita do<br />
repórter ao Vale Vêneto.<br />
Vista do Vale Vêneto<br />
50 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 51
Uma cidade tomada por livros<br />
Às vezes, Buenos Aires parece <strong>um</strong>a livraria a céu aberto.<br />
Por Rodrigo Lara Serrano, de Buenos Aires, Argentina | Tradução Josely Vianna Baptista |<br />
Ilustração Davi Calil<br />
Que tipo de vinho seria o filósofo alemão Friedrich Nietzsche? E quanto ao pensador francês Michel Foucault?<br />
Na Eterna Cadencia, <strong>um</strong>a das livrarias mais originais de Buenos Aires, têm-se as respostas: o primeiro<br />
seria <strong>um</strong> syrah; e o segundo nada mais nada menos que <strong>um</strong> robusto malbec.<br />
Mensalmente, em <strong>um</strong>a terça-feira, ocorre no local o evento Cata de Ideas, <strong>com</strong>andado por Luis Diego Fernández,<br />
o alquimista que busca o prazer <strong>com</strong>binando filosofia e vinhos. Durante os encontros, ele e os<br />
demais participantes degustam alg<strong>um</strong>as taças e travam polêmicas – no caso do filósofo alemão – acerca do<br />
super-homem e da ausência do divino.<br />
Falando dessa mistura de enologia e filosofia, Lucio Ramírez, diretor <strong>com</strong>ercial do espaço, sorri. Para ele,<br />
mais que <strong>um</strong>a livraria, Eterna Cadencia “é <strong>um</strong>a casa tomada por escritores”. Localizado na Rua Honduras,<br />
em <strong>um</strong>a área conhecida <strong>com</strong>o Palermo Hollywood, o local é <strong>um</strong> exemplo do fervor dos portenhos pelos<br />
livros. “Estamos preparando o que batizamos de ‘serviço aspiracional’ ”, conta. “O cliente estipula <strong>um</strong> valor e,<br />
<strong>com</strong> base nele, nós lhe montamos <strong>um</strong>a biblioteca ideal.” Os funcionários da Eterna Cadencia entrevistarão o<br />
interessado, farão perguntas sobre seu cônjuge, seus filhos e amigos e, finalmente, estenderão <strong>um</strong>a ponte a<br />
<strong>um</strong> mundo onde os livros não são mais <strong>um</strong> castigo escolar. “Talvez fracassemos <strong>com</strong>pletamente”, desabafa<br />
Ramírez, abrindo <strong>um</strong> sorriso bem-h<strong>um</strong>orado.<br />
Ecos de outro tempo<br />
mirada<br />
Mas, se há <strong>um</strong>a coisa que não fracassou em Buenos Aires, é a venda de livros. E a Ávila, localizada na Rua Bolívar,<br />
no microcentro da cidade, é <strong>um</strong> bom exemplo disso. “Que eu saiba, é a única livraria do mundo que se mantém<br />
no mesmo espaço físico desde o final do século XVIII”, <strong>com</strong>enta seu dono, Miguel Ávila. “Por isso muitos turistas<br />
vêm aqui. E, às vezes, até <strong>com</strong>pram alg<strong>um</strong> livro”, acrescenta, soltando <strong>um</strong>a gargalhada.<br />
Do edifício clássico de 1830, quando ainda se chamava<br />
La Librería del Colegio, passou-se ao atual, construído<br />
em 1926. O estabelecimento, situado a duas quadras<br />
da sede do governo (a Casa Rosada), foi visitado assiduamente<br />
por quase todos os presidentes argentinos<br />
e por intelectuais. Ainda assim, para não ter de fechar<br />
as portas, a livraria se especializou em história local e do<br />
continente americano. E, no silêncio de <strong>sua</strong>s estantes,<br />
ecoa <strong>um</strong> tempo “em que o que se dizia <strong>com</strong> a <strong>língua</strong><br />
se sustentava <strong>com</strong> os colhões”, sublinha o livreiro, lembrando<br />
<strong>com</strong>o os duelos verbais de outrora terminavam<br />
em duelos <strong>com</strong> pistola ou sabre.<br />
É que − <strong>com</strong>o negar? − as palavras curam ou ferem.<br />
E as livrarias são verdadeiros Bancos Centrais de Palavras.<br />
A escritora Cecilia Szperling vê a coisa desse<br />
modo: “No sábado passado, entrou na Caleidoscopio<br />
[<strong>um</strong>a pequena livraria no bairro Belgrano R] o intelectual<br />
Eduardo Grunner, procurando por <strong>um</strong>a biografia<br />
de 1.500 páginas do escritor Osvaldo Lamborghini”.<br />
Um homem de leituras maratônicas? Não necessariamente:<br />
“Disse que gostaria de lê-la para ver o que<br />
dizia sobre ele, já que conhecia o biografado e lhe haviam<br />
dito que seu nome era mencionado no livro. Os<br />
<strong>com</strong>entários foram feitos por amigos nem <strong>um</strong> pouco<br />
contentes <strong>com</strong> o modo pelo qual foram retratados<br />
na biografia, bem <strong>com</strong>pleta e exaustiva”.<br />
Palcos de amizades e rivalidades<br />
As livrarias portenhas são redutos de grandes amizades,<br />
grandes ciúmes e grandes despedidas. A Alberto<br />
Casares – Libros Antiguos y Modernos foi testemunha,<br />
por exemplo, do adeus entre dois dos mais importantes<br />
escritores de expressão hispânica do século XX:<br />
Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. Isso ocorreu<br />
em 27 de novembro de 1985. No dia seguinte, Borges<br />
partiu para a Europa, onde viria a morrer em Genebra.<br />
A livraria já não fica na Rua Arenales, onde se deu a<br />
despedida, e sim na Suipacha, e Alberto Casares<br />
transformou-se n<strong>um</strong> dos organizadores da feira<br />
do livro antigo da cidade. Na edição 2008, por<br />
exemplo, Casares ofereceu <strong>um</strong> exemplar<br />
da primeira edição de Fervor de Buenos<br />
Aires (1923), de Borges, por<br />
30 mil dólares.<br />
52 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 53
Mas Buenos Aires não é<br />
somente o lugar de livrarias para<br />
gostos hipercaros e refinados. “Quando<br />
eu era adolescente, morava no sul, nos arredores<br />
da capital, e <strong>um</strong>a vez por mês, ou a cada<br />
mês e meio, ia ao centro <strong>com</strong> meus amigos para<br />
<strong>com</strong>prar livros na Avenida Corrientes”, relata o escritor<br />
e revisor Fernando Mazzeo. “Naquela época, a<br />
Corrientes estava coalhada de livrarias; o que existe<br />
hoje não é nem a sombra do que havia antes.” A “sombra”<br />
são as quase 30 lojas que sobrevivem na via, entre<br />
a Cerrito e a Riobamba, e herdaram a glória, mas<br />
não o público, daquele que era o local de maior concentração<br />
de livrarias do mundo hispânico na América<br />
Latina: “Só nessa avenida há mais livrarias do que<br />
em todo o Chile”, cost<strong>um</strong>ava dizer o escritor chileno<br />
Darío Oses ao visitá-la.<br />
A Libros Alberto Casares foi testemunha<br />
do adeus entre Borges e Bioy Casares.<br />
Nela sobrevivem alg<strong>um</strong>as “históricas”, <strong>com</strong>o a Gandhi<br />
ou a Hernández. No porão desta última, Alberto Laiseca<br />
lançou seu Los Soria, o mais longo de todos os romances<br />
argentinos: 1.390 páginas e <strong>um</strong> protagonista<br />
chamado Personagem. Alejandro Seselovsky, autor de<br />
Cristo, Llame Ya! Crónicas de la Avanzada Evangélica en<br />
la Argentina (Editorial Norma, 2005), lembra-se de ter<br />
<strong>com</strong>parecido ao evento, “que foi muito divertido: Rodolfo<br />
Fogwill, <strong>com</strong> seu brilhantismo delirante, estava<br />
entre os palestrantes e, de repente, <strong>com</strong>eçou a atacar<br />
Ricardo Piglia, o romancista mais respeitado dos anos<br />
1980 e 1990, resmungando em seu estilo sarcástico e<br />
incendiário alg<strong>um</strong>as barbaridades terríveis contra ele.<br />
E então, ao fundo, abriu-se <strong>um</strong>a clareira no público, e<br />
lá estava Piglia, muito sorridente. De braços cruzados,<br />
assentindo em voz baixa: ‘Sim, Rodolfo, claro, Rodolfo...’ ”.<br />
Palácios fundados pela tentação<br />
Formada em letras, Patricia Anselmo lembra que abriu<br />
a pequena La Cautiva – situada quase na esquina da<br />
Salguero <strong>com</strong> a El Salvador, na região de Palermo que<br />
não está na moda – em outubro de 2008, “em plena<br />
“Muitos não <strong>com</strong>pram livros,<br />
mas vêm para sentir-se<br />
rodeados por eles.” (Néstor<br />
Pascuozzo, da Crack Up)<br />
crise financeira mundial”, <strong>com</strong> seu <strong>com</strong>panheiro, o<br />
poeta Fernando Molle. Nada indica que seja <strong>um</strong> lugar<br />
apropriado para <strong>um</strong>a livraria: “Agora estamos <strong>com</strong>eçando<br />
a vender pela internet, para não dependermos<br />
das pessoas que passam”, explica.<br />
O fato é que instalar <strong>um</strong>a livraria em Buenos Aires não<br />
é <strong>um</strong> negócio, mas <strong>um</strong>a tentação. Néstor Horacio Pascuozzo,<br />
<strong>com</strong> Diego Singer, da Crack Up, vê a coisa do<br />
seguinte modo: “Em março de 2006, eu e seis amigos,<br />
que vínhamos de empregos em livrarias, pensamos: nós<br />
gostamos disso e, se vamos fracassar, que fracassemos<br />
melhor, <strong>com</strong>o diria Beckett. Então fundamos a loja”.<br />
Situada na Rua Costa Rica, quase esquina <strong>com</strong> a J. L.<br />
Borges, representa, <strong>com</strong>o a Eterna Cadencia ou La Internacional<br />
Argentina, <strong>um</strong> tipo de livraria que faz de<br />
tudo para se manter – edita livros, vende café, sanduíches<br />
ou CDs de tango –, mas recupera <strong>um</strong>a tradição:<br />
tem funcionários à moda antiga, que entendem de livros.<br />
Em seu caso, norte-americanos ou colombianos.<br />
“Todos os livros têm <strong>um</strong>a aura: cada palavra que usamos<br />
já percorreu a civilização inteira. É <strong>um</strong>a dívida<br />
impagável”, diz <strong>com</strong> entusiasmo. “Muitas vezes as<br />
pessoas não <strong>com</strong>pram nossos livros, mas vêm aqui<br />
para sentar e sentir-se rodeadas por eles.”<br />
Tal “abrigo” é particularmente impactante na livraria El<br />
Ateneo Grand Splendid, <strong>um</strong> velho teatro reformado<br />
na Avenida Santa Fe que se tornou <strong>um</strong>a das joias da<br />
cidade. Parece <strong>um</strong> palácio de ópera transformado em<br />
livraria. Seu aspecto grandioso certamente espanta<br />
muitos bibliófilos, mas faz <strong>com</strong> que sintamos fortemente<br />
esse toque da civilização que é a tolerância<br />
para <strong>com</strong> o prazer e a leitura alheios. Sentada no café<br />
construído sobre o que <strong>um</strong> dia foi o palco do teatro,<br />
Florencia Gutman, desenhista gráfica especializada<br />
em capas (fez as de livros de Paulo Coelho editados<br />
em espanhol e na Europa do Leste), <strong>com</strong>e<br />
<strong>um</strong>a minipizza de mussarela, observa a galáxia<br />
livresca repleta de luzes e leitores n<strong>um</strong> domingo<br />
à tarde e exclama: “Não é mesmo<br />
fabuloso estar aqui!?”.<br />
54 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 55
Roçando a <strong>língua</strong> de Luís de Camões<br />
Os desafios para a construção de <strong>um</strong>a <strong>com</strong>unidade lusófona internacional<br />
Por Micheliny Verunschk | Fotos Cia de Foto<br />
Um avô contava histórias de Trancoso, na Bahia, e relatos maravilhosos de princesas e castelos fabulosos de<br />
além-mar ou de além-sonho. O outro avô, por <strong>sua</strong> vez, falava de índios e, em particular, de <strong>um</strong>a moça que<br />
virou pássaro e que até hoje canta nas noites do sertão, a “mãe da lua”. A mãe a colocava para dormir embalada<br />
na leitura de poetas românticos do século XIX. Os três, sem saber, exerciam <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> viva, capaz de<br />
se reinventar e de se lançar r<strong>um</strong>o ao futuro. Fora de qualquer pauta política, exerciam lusofonia e criaram<br />
alguém absolutamente encantado pela palavra e pelo seu poder.<br />
Ao pé da letra a palavra lusofonia significa “o que tem som luso”, ou o que soa em <strong>língua</strong> portuguesa. Para<br />
além do significado estrito, é <strong>um</strong> conceito político-cultural que <strong>com</strong>preende o conjunto de identidades<br />
<strong>com</strong>uns existentes entre os falantes do português, o terceiro idioma de origem europeia mais falado no<br />
mundo, <strong>com</strong> cerca de 230 milhões de “usuários” atualmente.<br />
Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro<br />
reportagem<br />
Da própria <strong>língua</strong> e seus “produtos” mais evidentes,<br />
<strong>com</strong>o a música, a literatura e as artes em geral, passando<br />
pela gastronomia, até a preocupação <strong>com</strong> o<br />
ensino e a difusão do português pelo mundo, a lusofonia<br />
é presença política oficial desde 1996, ano de<br />
criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa<br />
(CPLP), organismo internacional que reúne Angola,<br />
Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique,<br />
Portugal, São Tomé e Princípe e Timor Leste, além de<br />
nações observadoras e outras interessadas, caso da<br />
Venezuela, por <strong>sua</strong> proximidade territorial e cultural<br />
<strong>com</strong> o Brasil.<br />
Segundo projeções estatísticas, até 2050 o português<br />
será falado por mais de 300 milhões de pessoas<br />
em todo o mundo, daí a justificativa de <strong>um</strong>a<br />
integração mais eficiente entre os países lusófonos,<br />
que possa inserir programas de desenvolvimento e<br />
cooperação mútua em níveis políticos, econômicos<br />
ou culturais.<br />
Mas o que é lusofonia de fato?<br />
Fora das agendas políticas, a lusofonia viva deveria ser<br />
aquela que superasse os desconhecimentos que temos<br />
acerca de nós mesmos <strong>com</strong>o falantes do português e<br />
da sociedade contemporânea que nos cerca. Essa seria<br />
a lusofonia potente que reside na fala do povo nas<br />
ruas do Rio de Janeiro, na contação de histórias seja<br />
n<strong>um</strong> grotão da Amazônia, seja em Catió, na Guiné-<br />
Bissau, no portunhol falado na região entre fronteiras<br />
da América do Sul, nas relações íntimas<br />
que oralidade e literatura mantêm na<br />
construção e reconstrução de<br />
<strong>um</strong>a <strong>língua</strong> pulsante.<br />
Horácio Costa, poeta e<br />
professor da Universidade de São<br />
Paulo (USP), dá conta da pluralidade dessa<br />
imersão da <strong>língua</strong> na contemporaneidade:<br />
“Como brasileiro, prefiro pensar a terra ao mar.<br />
Interessa-me a fala de <strong>língua</strong> portuguesa no mundo<br />
em <strong>sua</strong>s fronteiras: no caso das Américas, o confronto<br />
entre o português brasileiro e o espanhol; no caso<br />
africano, entre a voz que fala português e o inglês da<br />
África austral”.<br />
“Prefiro a associação de quem fala português no mundo<br />
não <strong>com</strong>o lusofonia, voz de luso, mas <strong>com</strong>o as vozes que<br />
falam português pelo mundo. A <strong>língua</strong> portuguesa não é<br />
de luso, mas de todos os que a usam.” (Horácio Costa)<br />
Geralmente quando se pensa em lusofonia no sentido<br />
mais formal do termo, pensa-se também n<strong>um</strong>a suposta<br />
participação do escritor na propagação da <strong>sua</strong> <strong>língua</strong> e da<br />
cultura que ela abarca. O escritor moçambicano Mia Couto<br />
rechaça essa inc<strong>um</strong>bência: “Minha responsabilidade é<br />
escrever. E fazê-lo o melhor que posso. Não chamo para<br />
mim outras missões. Escrever é outra coisa e não pode<br />
ser sujeita a esse sentido utilitário. A <strong>língua</strong> não pode ser<br />
entendida <strong>com</strong>o o único veículo de identidade <strong>com</strong><strong>um</strong>.<br />
Existem <strong>com</strong>ponentes que por vezes esquecemos. E <strong>um</strong><br />
deles é o factor religioso”.<br />
Língua não centralizadora<br />
Nascida em Portugal e radicada no Brasil, Cremilda Medina,<br />
também professora da USP e autora de Sonha Mamana<br />
África (Epopéia; Secretaria de Cultura do Estado de São<br />
Paulo, 1987), tem <strong>um</strong>a longa trajetória no que diz respeito<br />
às relações entre os países de <strong>língua</strong> portuguesa, trabalho<br />
que se iniciou na década de 1970, quando os chamados<br />
“cinco da África” (Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe,<br />
Guiné-Bissau e Cabo Verde) se aprofundavam nas<br />
lutas pela independência e o Brasil se municiava para o<br />
que ela chama de “período épico” de luta pela queda da<br />
ditadura militar na década seguinte.<br />
56 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 57
Uma das funções do escritor lusófono é garantir a continuidade do português<br />
Cremilda ressalta que lusofonia é muito mais <strong>um</strong>a questão<br />
de conhecer a si mesmo e ao outro. “O que facilita é<br />
nos conhecermos e, principalmente, nos reconhecermos<br />
dentro da diferença e da diversidade da fértil diáspora<br />
que espalhou a <strong>língua</strong> portuguesa pelo mundo. Quando<br />
vemos as especificidades da literatura de Mia Couto,<br />
em Moçambique, de Nélida Piñon, no Brasil, e de Teolinda<br />
Gersão, em Portugal, <strong>com</strong>preendemos que a <strong>língua</strong><br />
é o espelho das culturas, de <strong>sua</strong> diversidade. O fato de<br />
Portugal não ter tido, a exemplo de outros países, <strong>um</strong>a<br />
academia real da <strong>língua</strong> fez do português <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> não<br />
centralizadora, o que, à luz da história, é <strong>um</strong>a bênção.”<br />
O que nos une é o que nos separa<br />
Com <strong>um</strong> programa que pretende atuar em tantas<br />
frentes, o projeto lusófono institucional de organizações<br />
<strong>com</strong>o a CPLP, <strong>com</strong>o não poderia deixar de ser,<br />
apresenta <strong>sua</strong>s fragilidades. Uma delas é o exagerado<br />
foco em Portugal e no Brasil. As críticas ao país são<br />
tantas que se fala até n<strong>um</strong>a “brasilofonia”, que seria<br />
<strong>um</strong>a tentativa colonialista contemporânea de sobrepor<br />
os interesses brasileiros aos dos demais países<br />
da <strong>com</strong>unidade no uso do português.<br />
Esse debate tem se intensificado <strong>com</strong> a recente<br />
entrada em vigor do Acordo Ortográfico<br />
da Língua Portuguesa. A poetisa e artista<br />
plástica portuguesa Ana Hatherly<br />
afirma ter dúvidas<br />
quanto à eficácia imediata do acordo, mas acrescenta<br />
que “<strong>um</strong>a das funções relevantes do escritor – neste<br />
caso, do escritor lusófono – é contribuir para a continuidade<br />
e a dignidade de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> tão antiga e tão<br />
prestigiada <strong>com</strong>o é o português”.<br />
Para o escritor e crítico literário português Arnaldo<br />
Saraiva, a <strong>língua</strong> e <strong>sua</strong> difusão devem estar a serviço<br />
do ser h<strong>um</strong>ano e não o contrário. “Se é natural o empenho<br />
na <strong>língua</strong> materna, também parece perigosa a<br />
tentativa de sobrepô-la a <strong>língua</strong>s maternas de outros,<br />
sobretudo se <strong>com</strong> ela não vai a luta por <strong>um</strong>a sociedade<br />
mais democrática, mais rica e mais justa.” Saraiva<br />
lembra que o português já foi <strong>língua</strong> imperial e <strong>língua</strong><br />
franca no Oriente. “Não se trata de colocar [o idioma]<br />
de novo a serviço de alg<strong>um</strong> projecto imperial, mas de<br />
afirmar a dignidade e a cultura nunca devidamente<br />
reconhecida das nossas <strong>com</strong>unidades, e fazer <strong>com</strong><br />
que [a <strong>língua</strong>] seja também <strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ento valioso<br />
para a melhoria do mundo.”<br />
Outra questão, <strong>com</strong>o coloca Costa, é a distância entre<br />
a teoria e a prática dessa suposta aproximação:<br />
“Quando se fala em lusofonia, pensa-se muito no mar<br />
português, no imaginário daquele país, nas <strong>sua</strong>s dores<br />
<strong>com</strong>o <strong>um</strong> ex-império e nos sentimentos belos ou<br />
confusos que isso tudo causa. Prefiro a associação de<br />
quem fala português no mundo não <strong>com</strong>o lusofonia,<br />
voz de luso, mas <strong>com</strong>o as vozes que falam português<br />
pelo mundo. A <strong>língua</strong> portuguesa não é de luso, mas<br />
de todos os que a usam”.<br />
Essa opinião é <strong>com</strong>partilhada<br />
por Mia Couto, crítico<br />
ardoroso do projeto lusófono no âmbito<br />
institucional. “Somos nós que falamos<br />
e escrevemos em <strong>língua</strong> portuguesa todos os<br />
dias. E aqui reside <strong>um</strong>a das muitas inverdades<br />
quando se fala de lusofonia. Boa parte dos 20 milhões<br />
de moçambicanos não fala português. Não<br />
são lusófonos. Se a cidadania que buscamos passa exclusivamente<br />
pelo idioma, esses meus <strong>com</strong>patriotas<br />
estão excluídos. Precisamos de <strong>um</strong>a lusofonia suficientemente<br />
plural para poder ser falada nas <strong>língua</strong>s que<br />
são as nossas. Como diz Eduardo Lourenço [ensaísta<br />
português]: o que importa não é apenas a <strong>língua</strong> que<br />
falamos mas <strong>com</strong>o somos falados por essa <strong>língua</strong>.”<br />
Relações de familiaridade<br />
Talvez <strong>um</strong>a das respostas desse distanciamento das nações<br />
falantes de <strong>língua</strong> portuguesa entre si e também<br />
de parte do mundo resida no fato de que nenh<strong>um</strong> dos<br />
membros da CPLP está entre os índices desejáveis de<br />
desenvolvimento h<strong>um</strong>ano, o que demonstra que as<br />
questões de aproximação passam por agendas muito<br />
mais <strong>com</strong>plexas que simplesmente o encontro e a<br />
simplificação das diversidades linguísticas.<br />
Saraiva vê na internet e na universidade o <strong>com</strong>eço de<br />
ações mais palpáveis de aproximação entre as múltiplas<br />
culturas lusófonas. “A internet está a fazer milagres,<br />
mas conviria aproveitar mais as instituições culturais e<br />
a televisão, os jornais e as revistas para que as classes<br />
médias se familiarizassem <strong>com</strong> autores que só chegam,<br />
quando muito, a escassas elites. Urge criar em Portugal<br />
<strong>um</strong>a grande biblioteca brasileira. E convirá multiplicar<br />
os encontros de autores, até em festivais.”<br />
Certamente, falta para a desejada integração lusófona<br />
sentir a respiração ofegante, entremeada de sintaxes<br />
muito próprias, de sotaques diversos, de modos<br />
muito únicos de se falar a <strong>língua</strong> mais que plural que<br />
nasceu em Portugal. Falta ainda <strong>com</strong>preender o que o<br />
poeta Manuel Bandeira chamou de “<strong>língua</strong> errada do<br />
povo/<strong>língua</strong> certa do povo”, o português gostoso do<br />
cotidiano das gentes.<br />
A grafia dos depoimentos de participantes de outras<br />
nacionalidades foi preservada.<br />
Leia na Continu<strong>um</strong> On-Line entrevista <strong>com</strong> o escritor<br />
Mia Couto.<br />
58 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 59
Uma operação nada matemática<br />
Os desafios de verter o sentido, o tom, a vida de palavras de <strong>um</strong> idioma para outro.<br />
Por Luciana Veras | Ilustração Rodrigo Silveira<br />
reportagem<br />
Diz a história que São Jerônimo deu à luz a primeira Bíblia em latim. A Vulgata, publicada por volta do ano<br />
400, é até hoje referendada pela Igreja Católica. Concebidos em aramaico e hebraico, antes os textos cristãos<br />
haviam apenas sido passados para o grego. Ao imortalizar as Sagradas Escrituras na <strong>língua</strong> de Roma, ele se<br />
tornou o patrono da tradução. Na acepção teórica, o ato de traduzir é <strong>um</strong>a transferência de palavras, frases<br />
e orações de <strong>um</strong> idioma “de partida” para <strong>um</strong> “de chegada”. Uma operação exata, quase matemática. Na prática,<br />
contudo, a tradução não se restringe à fidelidade, à matriz ou à transformation de, por exemplo, <strong>um</strong>a<br />
edição em inglês de Rei Lear, de William Shakespeare, para o português. Para especialistas, escritores, leitores<br />
e, acima de tudo, tradutores, ela é <strong>um</strong> renascimento. Uma criação. E <strong>um</strong>a homenagem.<br />
Writer and translator Modesto Carone – the main responsible for the translation of the oeuvre of Franz Kafka<br />
in Brazil – who for the past twenty-four years has been immersed in the universe that the Czech writer of The<br />
Metamorphosis, The Trial, and Letter to His Father (all published in Brazil by Cia. das Letras publishing house in 1997)<br />
erected in German–, reminds us that “Goethe believed in the existence of two kinds of translation. One aimed at<br />
making the original work an integral part of the literature to which it was being translated. The second advocated<br />
that the target language should get as close as possible to the source language, thus creating a third language.”<br />
“Toda tradução é impossível se levada a sério. Substituir o<br />
original pela tradução é impraticável.” (Modesto Carone)<br />
O argentino Jorge Luis Borges foi o primeiro tradutor<br />
dos densos e atormentados escritos de Kafka na<br />
América Latina. “Kafka possui beleza em qualquer lugar,<br />
mas na tradução de Borges havia a elegância de<br />
<strong>sua</strong> própria literatura. Aquilo não era Kafka, era Borges.<br />
Toda tradução é impossível se levada a sério. Substituir<br />
o original pela tradução é impraticável. O que se<br />
busca é <strong>um</strong>a correspondência entre as duas <strong>língua</strong>s.<br />
As traduções de Borges são belíssimas”, <strong>com</strong>pleta Carone,<br />
ele mesmo author de vários livros.<br />
As várias vidas de <strong>um</strong> texto<br />
Se para Carone a tradução literal não existe diante da<br />
impossibilidade de se reproduzir, letra a letra, <strong>um</strong>a impossibilidade<br />
de se reproduzir, letra a letra, <strong>um</strong>a construção<br />
semântica e <strong>um</strong> conjunto de significados, que<br />
se reinvente o desafio. “A questão é a maneira pela<br />
qual o tradutor consegue – ou não – captar o h<strong>um</strong>or,<br />
a lástima, a sutileza, o que Walter Benjamin chamaria<br />
‘a vida’ do texto original”, <strong>com</strong>enta a acadêmica norte-<br />
americana Karen Sotelino, Ph.D. em literatura pela<br />
Universidade da Califórnia <strong>com</strong> <strong>um</strong>a tese sobre a ambiguidade<br />
da linguagem das memórias em Machado<br />
de Assis e tradutora para o inglês de Lavoura Arcaica<br />
(Cia. das Letras, 1989), do brasileiro Raduan Nassar<br />
(à espera de <strong>um</strong>a decisão editorial para ser publicado).<br />
“Acredito que Benjamin está certo: traduzir é fazer<br />
renascer <strong>um</strong> texto. Se não acreditasse nisso, não<br />
me dedicaria à arte de tradução. Traduzir é <strong>um</strong>a das<br />
maneiras mais sérias de homenagear <strong>um</strong> texto e seu<br />
autor”, continua.<br />
No intuito de c<strong>um</strong>prir <strong>sua</strong> missão, o profissional deve<br />
se preparar. “Os requisitos básicos são o conhecimento<br />
mais amplo possível da <strong>língua</strong> a ser vertida,<br />
sensibilidade para o tom em que o texto foi escrito e<br />
boa capacidade de expressão na <strong>língua</strong> de chegada”,<br />
explica o journaliste e crítico de cinema José Geraldo<br />
Couto, tradutor de Uma Viagem Pessoal pelo Cinema<br />
Americano (Cosac Naif, 2004), de Martin Scorsese, e<br />
Fora do Lugar (Cia. das Letras, 2004), de Edward Said.<br />
No meio do caminho, alguns dilemas. “Além das dificuldades<br />
técnicas pontuais de encontrar os termos<br />
exatos, há a dificuldade geral, agravada em certos<br />
casos, de encontrar a ‘embocadura’, o tom, algo<br />
que vai além do mero sentido das palavras. Às<br />
vezes, é preciso sacrificar a literalidade para<br />
buscar <strong>um</strong>a aproximação <strong>com</strong> o estilo,<br />
<strong>com</strong> o ritmo, <strong>com</strong> o sabor do original”,<br />
pontua.<br />
60 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural<br />
Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 61
A escritora, pensadora e crítica norte-americana Susan<br />
Sontag discorreu sobre “os paradoxos ideológicos<br />
embutidos no exercício da tradução” em <strong>um</strong> dos<br />
ensaios reunidos no livro Questão de Ênfase (Cia. das<br />
Letras, 2005). O motivo: em Sarajevo, durante a guerra<br />
dos Bálcãs, ela dirigiu <strong>um</strong>a montagem teatral de Esperando<br />
Godot, pelo dramaturgo irlandês. peça escrita<br />
em francês e em inglês de Samuel Beckett, No palco,<br />
os atores falavam em servo-croata. No livro, a indagação<br />
de Sontag: “O tradutor é fiel à obra? Ao escritor? À<br />
literatura? À <strong>língua</strong>? Ao público?”.<br />
“Ele é <strong>um</strong> mediador necessário. Sem a tradução, não<br />
conheceríamos As 1001 Noites”, responde Carone –<br />
que destinou dois anos e meio a O Castelo, tempos<br />
después de ter morado em Viena e lá estudado germanística<br />
para estrangeiros, o que o direcionou a<br />
Kafka no original. “Sempre existe grau de perda em<br />
qualquer tradução. Talvez só <strong>um</strong> italiano do século<br />
XIV fosse capaz de fruir em <strong>sua</strong> plenitude de A Divina<br />
Comédia, de Dante, mas a h<strong>um</strong>anidade seria culturalmente<br />
mais pobre se não existissem as traduções<br />
para as mais diversas <strong>língua</strong>s”, acrescenta Couto.<br />
Acertos e desacertos<br />
Por <strong>um</strong> lado, os tradutores cultuam o trabalho de seus<br />
pares. “As traduções de Constance Garnett e Rosemary<br />
Edmunds da obra de Leon Tolstói são muito boas.<br />
Às vezes, ao ler o trabalho de Garnett (Anna Karenina)<br />
e de Edmunds (Guerra e Paz), tinha que me lembrar<br />
que era tradução. Ao mesmo tempo, elas criaram <strong>um</strong><br />
ambiente suficientemente estranho para estimular<br />
a estética do desconhecido. Ou seja, <strong>um</strong> texto bem<br />
escrito no original carrega o tradutor”, observa Karen<br />
Sotelino. “A primeira tradução francesa do difícil Ulisses<br />
foi feita por Valery Larbaud <strong>com</strong> a colaboração do próprio<br />
James Joyce”, cita Carone. “Na poesia, traduções<br />
maravilhosas são as reunidas por Augusto de Campos<br />
em O Anticrítico (Cia. das Letras, 1986). Na prosa, as<br />
traduções do russo de Boris Schnaiderman e as traduções<br />
do inglês de Paulo Henriques Britto são admiráveis”,<br />
en<strong>um</strong>era Couto.<br />
Por outro lado, admitem equívocos e desacertos.<br />
“Em Madame Bovary, de Flaubert, traduzia-se ‘l’amour<br />
fou’ por ‘amor louco’, quando <strong>um</strong>a tradução de maior<br />
sensibilidade seria ‘<strong>um</strong>a paixão enlouquecedora’ ou<br />
mesmo ‘<strong>um</strong>a paixão’ ”, pondera Carone. O cinema<br />
é <strong>um</strong> campo no qual, para infelicidade geral, a má<br />
translation é recorrente. La Peau Douce (a pele doce)<br />
e Baisers Volés (beijos roubados), de François Truffaut,<br />
viraram, respectivamente, Um Só Pecado e Beijos Proibidos.<br />
Em 1992, <strong>um</strong> filme que nos Estados Unidos havia<br />
sido intitulado Leap of Faith (livremente, <strong>um</strong> salto<br />
de fé) chegou ao país <strong>com</strong>o Fé Demais Não Cheira Bem<br />
(Richard Pearce, 1992). Em março deste ano, quando<br />
a adaptação do cineasta paulista Fernando Meirelles<br />
para Ensaio sobre a Cegueira (Cia. das Letras, 1995), romance<br />
de José Saramago, estreou na Espanha, o autor<br />
português reclamou do título local – Às Cegas. Sua<br />
alegação: os personagens, cegos por <strong>um</strong>a condição<br />
física, não pertencem ao sentido implícito na expressão<br />
usada pelos espanhóis.<br />
Outro exemplo recente é dado pela tradutora Débora<br />
Baldelli, <strong>com</strong> anos de experiência em tradução<br />
cinematográfica, inclusive na coordenação do departamento<br />
de legendagem em duas edições do Festival<br />
do Rio. “O filme Sim Senhor (Peyton Reed, 2008) é<br />
baseado no livro Yes Man. Na verdade, o significado<br />
é O Homem do Sim, <strong>com</strong>o o personagem é chamado<br />
no livro. Portanto, Sim Senhor não faz o menor sentido”,<br />
situa. Para cinema, DVD e television, a tradução<br />
é mais econômica, dada a escassez de espaço. “Infelizmente,<br />
existe <strong>um</strong> limite de caracteres que deve ser<br />
respeitado. A quantidade na legenda eletrônica não é<br />
a mesma das cópias <strong>com</strong> legendas queimadas, nem<br />
da exibida em programas de TV. É sempre <strong>um</strong> grande<br />
exercício de síntese”, contextualiza Débora.<br />
Síntese, escolha, estudos, dedicação... A rotina de <strong>um</strong><br />
tradutor é repleta de palavras – <strong>com</strong>o não? – que determinam<br />
os r<strong>um</strong>os de seus trabalhos. Há confrontos,<br />
claro. Carone julga a profissão “importante e indispensável”<br />
e “mal paga”. Karen elege a pressa “a grande inimiga<br />
da tradução, pois o tradutor, em muitos casos,<br />
tem <strong>um</strong>a carreira acadêmica e outros <strong>com</strong>promissos<br />
e precisa ganhar a vida”. E Couto crê que <strong>sua</strong> experiência<br />
<strong>com</strong>o jornalista pode atrapalhar “justamente pela<br />
tendência ao texto objetivo e despojado, que nem<br />
sempre é o que a obra de origem pede”.<br />
“O tradutor é fiel à obra? Ao escritor? À literatura? À <strong>língua</strong>?<br />
Ao público?”(Susan Sontag)<br />
Entretanto, o que seria da literatura, da civilização, da<br />
vida sem eles? Sem a tradução, os brasileiros não apreciariam<br />
Henri Stendhal, Ivan Turguêniev, Julio Cortázar,<br />
Umberto Eco, William Faulkner, Virginia Woolf, Hermann<br />
Hesse, Salman Rushdie e tantos outros. Sem a tradução,<br />
Machado de Assis não seria <strong>um</strong> genius universal e<br />
Guimarães Rosa não teria esboçado, em <strong>um</strong>a carta de<br />
1963 a seu tradutor italiano, <strong>um</strong>a lírica e simbólica definição<br />
para dois ofícios-irmãos: “Eu, quando escrevo<br />
<strong>um</strong> livro, vou fazendo <strong>com</strong>o se o estivesse ‘traduzindo’<br />
de alg<strong>um</strong> alto original, existente alhures, no mundo<br />
astral ou no ‘plano das ideias’, dos arquétipos, por<br />
exemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhando<br />
nessa ‘tradução’. Assim, quando me ‘re’-traduzem para<br />
outro idioma, nunca sei, também, em casos de divergência,<br />
se não foi o tradutor quem, de fato, acertou,<br />
restabelecendo a verdade do ‘original ideal’, que eu<br />
desvirtuara...”.<br />
Na Continu<strong>um</strong> On-Line leia entrevista <strong>com</strong> o tradutor<br />
Modesto Carone.<br />
62 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural<br />
Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 63
Para o Método Suzuki, é possível aplicar os princípios da linguagem ao aprendizado musical<br />
A, b, c, dó, ré, mi<br />
As relações entre a linguagem musical e a <strong>língua</strong> falada são muitas, <strong>com</strong>o<br />
mostra o Método Suzuki de ensino de música a crianças.<br />
Por Carlos Costa | Fotos Luana Fischer<br />
reportagem<br />
Antes de existir o alfabeto, existia o som. A música do vento, árias de ar e poeira, os estalos do fogo, as batucadas<br />
de trovões... A música talvez seja a primeira das <strong>língua</strong>s e, apesar de não ser propriamente <strong>um</strong> idioma, é<br />
considerada <strong>um</strong>a linguagem universal – que tem na partitura o padrão mundial de <strong>sua</strong> representação gráfica.<br />
Formada por conjuntos de cinco linhas, chamados de pauta ou pentagrama, a partitura dá suporte a <strong>um</strong>a<br />
série de símbolos que definem <strong>com</strong>o <strong>um</strong>a peça musical será interpretada: as notas, os tons e a duração<br />
dos sons, das suspensões e dos silêncios. Trata-se de <strong>um</strong> sistema de escrita conhecido genericamente por<br />
notação musical, cuja origem está ligada aos cantos da Igreja Católica Romana da Idade Média e à figura do<br />
monge italiano Guido D’Arezzo (992-1050) – que deu nome, a partir das frases iniciais do hino a São João<br />
Batista Hymnus in Ioannem, às sete notas musicais (dó, ré, mi, fá, sol, lá e si).<br />
Os registros musicais mais antigos, datados da Idade<br />
Média, eram realizados em manuscritos que não<br />
tinham o pentagrama <strong>com</strong>o base. Foi no século XIX,<br />
<strong>com</strong> a consolidação da indústria de edição musical,<br />
que surgiu a partitura no formato atual. A música e<br />
seu sistema de escrita evoluíram. Além das notas, surgiram<br />
as figuras musicais, os <strong>com</strong>passos, as claves, as<br />
pausas, as deslocações de tons e as especificações sobre<br />
a forma de execução (vol<strong>um</strong>e, tempo, articulação<br />
e acentuação). Hoje, a linguagem da notação musical<br />
é <strong>com</strong>preendida por músicos de qualquer nacionalidade;<br />
mas, apesar do progresso, essa linguagem não<br />
foi capaz de solucionar a contradição de a partitura<br />
não ter som.<br />
Alunas da Escuela Cuatro Cuerdas, em Madri<br />
“A notação musical não dá conta de <strong>um</strong>a série de aspectos<br />
relacionados à interpretação e, de forma alg<strong>um</strong>a,<br />
substitui a experiência concreta da audição”, diz<br />
Eduardo Patrício, <strong>com</strong>positor, professor e mestrando<br />
em música pela Universidade Federal do Paraná. “Mas<br />
ela é <strong>um</strong> imenso recurso, não só para registro, mas<br />
para o exercício da criatividade e a expansão de possibilidades<br />
estruturais na música.”<br />
Língua e música<br />
Contudo, a partitura não é a única forma de escrita<br />
musical. A cifra – sistema de representação de<br />
acordes – e a tablatura – sistema baseado na posição<br />
dos dedos do músico nos instr<strong>um</strong>entos<br />
– são outras maneiras de escrever música. E,<br />
além da escrita, há o registro auditivo, a<br />
chamada “música de ouvido”.<br />
64 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 65
Patrício, por exemplo, conta que <strong>sua</strong> experiência <strong>com</strong><br />
a música nasceu <strong>com</strong> a partitura, mas seguiu pela<br />
audição. “Passei anos sem utilizar partituras em meus<br />
estudos, tocando música ‘de ouvido’ ”, afirma. E, <strong>com</strong>o<br />
ele, artistas populares e de culturas não eruditas vivenciam<br />
o fenômeno musical “de ouvido”, encarando<br />
a arte <strong>com</strong>o <strong>um</strong> idioma, aprendido por meio da audição<br />
e da repetição.<br />
Atento a essa relação da música <strong>com</strong> a <strong>língua</strong> falada,<br />
o instr<strong>um</strong>entista e pedagogo japonês Shinichi Suzuki<br />
(1898-1998) desenvolveu o Método Suzuki. Sistema<br />
filosófico de ensino musical a crianças, visa aplicar os<br />
princípios da aquisição da linguagem ao aprendizado<br />
de música.<br />
O método surgiu no Japão em 1945, após a Segunda<br />
Guerra Mundial, e reflete a experiência pessoal de<br />
Suzuki, que concebeu a relação entre <strong>língua</strong> materna<br />
e música depois de se mudar para a Alemanha, aos<br />
22 anos, e perceber <strong>com</strong>o as crianças aprendiam facilmente<br />
o idioma que tanto lhe custou falar. É <strong>um</strong>a<br />
tentativa de reduzir as consequências tra<strong>um</strong>atizantes<br />
do conflito na vida de meninos e meninas, oferecendo<br />
a música <strong>com</strong>o <strong>um</strong> alento.<br />
Também conhecido <strong>com</strong>o Educação para o Talento,<br />
o sistema preconiza que qualquer pessoa pode<br />
aprender música, pois a habilidade não é inata e o talento<br />
se constrói, e que a relação <strong>com</strong> essa arte gera<br />
cidadãos mais felizes e mais preparados para a vida.<br />
Outros preceitos norteiam a aprendizagem por meio<br />
do método, <strong>com</strong>o a participação dos pais, o <strong>com</strong>eço<br />
precoce (a partir dos 3 anos) e o aprendizado junto<br />
<strong>com</strong> outras crianças.<br />
Brincadeiras e melodias<br />
Atualmente, o Método Suzuki é aplicado em escolas<br />
de música de mais de 40 países, dos cinco continentes,<br />
seguindo os livros, as partituras e os registros<br />
de áudio deixados por seu fundador.<br />
No Brasil, é pequeno o número de professores<br />
capacitados oficialmente para<br />
o uso do sistema. Um deles<br />
é Emmanuel<br />
Marcelo, de Curitiba, que se dedica há quatro anos ao<br />
ensino utilizando o processo desenvolvido por Suzuki.<br />
“Informalmente, diversos professores usam conhecimentos<br />
do método, mas, seguindo à risca, há muito<br />
poucos, apenas em alg<strong>um</strong>as cidades do Sul e em São<br />
Paulo”, conta.<br />
Há 15 anos no centro de Madri, Espanha, a Escuela<br />
Cuatro Cuerdas funciona <strong>com</strong>o centro exclusivo de<br />
ensino por meio da Educação para o Talento. Visitar<br />
a escola é <strong>um</strong>a experiência lúdica. Na entrada, <strong>um</strong> espaço<br />
para deixar os calçados dá mostras de quem domina<br />
o ambiente: a quantidade de pares de sapatos<br />
<strong>com</strong> menos de 15 centímetros é bem superior à de<br />
adultos. E as crianças correm e brincam por todos os<br />
espaços <strong>com</strong>uns do local. Austeridade e <strong>com</strong>postura,<br />
apenas na hora e na sala de aula.<br />
O músico Carlos Albuisech dá aulas de violino e viola<br />
na escola e é pai de Clara, de 4 anos, <strong>um</strong>a dos 120<br />
estudantes da instituição. “O aprendizado de música<br />
na infância ajuda no desenvolvimento de funções cerebrais”,<br />
diz ele, que aponta <strong>com</strong>o <strong>um</strong>a das principais<br />
facetas do método o triângulo formado por pai, professor<br />
e aluno. Os pais assistem às aulas <strong>com</strong> os filhos<br />
e participam em casa do processo de aprendizagem.<br />
“Mesmo <strong>um</strong> leigo em música tem de ir aprendendo<br />
junto. É essencial que os pais se envolvam”, reforça.<br />
Os alunos têm duas aulas semanais. Uma, de 30 minutos,<br />
<strong>com</strong> <strong>um</strong> dos pais e o professor. Outra, de 45<br />
minutos, em grupos de cerca de dez crianças, <strong>com</strong><br />
<strong>um</strong> professor à frente. Em meio a brincadeiras e jogos,<br />
vão aprendendo melodias e técnicas para apreciar e<br />
produzir sons.<br />
A partitura é introduzida quando os estudantes atingem<br />
a puberdade. “Ela entra no processo de aprendizado<br />
no período em que o aluno <strong>com</strong>eça a se tornar<br />
independente, maduro. Por volta dos 10, 12 anos”, <strong>com</strong>enta<br />
Albuisech. A experiência marca o amadurecimento<br />
do jovem, pronto para seguir, simultaneamente,<br />
pelos mundos da palavra e da música. Ao mesmo<br />
tempo que, no colégio, podem tomar contato <strong>com</strong> os<br />
símbolos e os segredos da literatura, da arte da palavra,<br />
aprendem, na escola de música, a extrair do papel<br />
– bem <strong>com</strong>o a inserir nele – a <strong>língua</strong> da música, <strong>com</strong><br />
seus próprios símbolos e segredos.<br />
O contato <strong>com</strong> a partitura acontece quando o aluno atinge a puberdade<br />
PARA O INFOGRÁFICO<br />
Como se lê <strong>um</strong>a partitura? O que querem dizer as bolas,<br />
os traços e os caracteres em preto e branco inseridos<br />
no pentagrama? Com base em <strong>um</strong> trecho da canção<br />
Brejeiro, de Ernesto Nazareth, o músico Benjamim<br />
Taubkin <strong>com</strong>enta alguns deles:<br />
CLAVE (que define a posição das notas na pauta)<br />
UMA FRAÇÃO NUMÉRICA (que determina o tempo<br />
e o <strong>com</strong>passo, marcando a estrutura rítmica da música<br />
e, consequentemente, seu estilo)<br />
AS FIGURAS MUSICAIS (semibreve, mínima, semínima,<br />
colcheia, semicolcheia, fusa e semifusa – que<br />
representam as notas)<br />
SUSTENIDOS E BEMÓIS<br />
PAUSAS<br />
INTENSIDADE<br />
ANDAMENTO<br />
OUTROS...<br />
66 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 67
68 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural