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moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...

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Detendo-nos, então, na questão da cruelda<strong>de</strong> como algo constitutivo do bicho homem<br />

– já que é essa cruelda<strong>de</strong> internalizada que conduz à formação da má-consciência –, temos<br />

que, para Nietzsche, nas relações arcaicas a cruelda<strong>de</strong> era um elemento explicita e<br />

intensamente presente. E isso, por dois motivos: primeiro, porque o sofrimento foi<br />

instintivamente concebido como um po<strong>de</strong>roso instrumento para a criação da memória e<br />

segundo porque o ato <strong>de</strong> infligir dor é no homem algo extremamente prazeroso e<br />

gratificante.<br />

No que se refere ao primeiro motivo, Nietzsche afirma que o antiqüíssimo problema<br />

<strong>de</strong> criar no homem uma memória não foi, e nem podia – dada a violência que caracteriza o<br />

bicho homem primitivo –, ser resolvido com meios e respostas suaves. Bem verda<strong>de</strong>, para<br />

o filósofo, nada existe <strong>de</strong> mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que a sua<br />

mnemotéctica: “'Grava-se algo com fogo, para que fique na memória: apenas o que não<br />

cessa <strong>de</strong> causar dor fica na memória' – eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais<br />

duradoura) psicologia da terra” (GM II §3). Ora, se remontarmos essa consi<strong>de</strong>ração aos<br />

costumes antigos, po<strong>de</strong>remos observar a extrema cruelda<strong>de</strong> presente em alguns <strong>de</strong>les,<br />

cruelda<strong>de</strong> que Nietzsche em parte compreen<strong>de</strong> como necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se criar uma memória:<br />

Jamais <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem<br />

sentiu em si a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar uma memória; os mais horrendos<br />

sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais<br />

repugnantes mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis<br />

rituais <strong>de</strong> todos os cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível<br />

mais profundo, sistemas <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong>) – tudo isso tem origem naquele<br />

instinto que divisou na dor o mais po<strong>de</strong>roso auxiliar da mnemônica.<br />

(i<strong>de</strong>m)<br />

Observemos que se o processo <strong>de</strong> hominização conduz à criação <strong>de</strong> uma memória da<br />

vonta<strong>de</strong>, o que torna o homem o animal capaz <strong>de</strong> prometer, então, “o estágio mais recuado<br />

do processo <strong>de</strong> hominização” <strong>de</strong>ve coincidir com o surgimento da necessida<strong>de</strong> da<br />

promessa, o que, como afirma Giacoia, indica que esse “estágio mais recuado” <strong>de</strong>ve ser<br />

encontrado “no terreno das relações pessoais <strong>de</strong> direito obrigacional: no âmbito das<br />

relações <strong>de</strong> escambo, troca, compra, venda, crédito” (GIACOIA, 2008, p. 199). Ora, essa<br />

última afirmação nos informa que Nietzsche, ao menos no que se refere à sua Genealogia,<br />

compreen<strong>de</strong> as relações primordiais entre os homens sob os parâmetros da relação entre<br />

comprador e ven<strong>de</strong>dor, entre credor e <strong>de</strong>vedor. Para ele, sendo comprar e ven<strong>de</strong>r,<br />

juntamente com seu aparato psicológico – “[e]stabelecer preços, medir valores, imaginar<br />

equivalências, trocar” – mais velhos do que os começos <strong>de</strong> qualquer forma <strong>de</strong> organização<br />

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