moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...

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Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) [...] Precisamente esse animal, no qual o esquecer é uma força, uma forma de saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos – nos casos em que se deve prometer”. (idem) O que dizer, porém, dos homens nos quais o processo de hominização não resultou no bom funcionamento orgânico entre memória e esquecimento? Dos homens cujos antepassados não puderam legar-lhes como herança a responsabilidade, já que nunca (ou muito pouco) puderam exercitar a capacidade de prometer, uma vez que estavam servindo de base para a realização das promessas dos homens mais fortes? Na longa história da humanidade, os homens subalternos (os mais “fracos”) ao serem explorados, ofendidos, violentados incansavelmente geração após geração, adoeceram de tal modo, que a doença deixou de ser neles um simples estado, para vir a tornar-se a sua condição normal. Bem verdade, para Nietzsche, esses homens doentes, apesar de indispensáveis – já que meio para a ampliação da potência dos mais fortes – constituiriam justamente a excrescência da sociedade. Lembremos do que foi dito ao tratarmos do processo de décadence (mais propriamente na página 78): toda sociedade mesmo na sua melhor força tem de formar lixo e detritos – pois bem: esses detritos aos quais Nietzsche se refere constituem-se, entre outras coisas justamente pelos homens subalternos, que acabaram por se tornar homens doentes. No Capítulo I, ao tratarmos do processo de hominização, detivemo-nos não só à perspectiva da saúde, como também reconstruímos a história desse processo concentrandonos sobretudo na questão da hierarquia entre os instintos e na relação desses com os valores. Todos os argumentos ali expostos foram retirados principalmente das anotações do filósofo publicadas na coletânea Vontade de Potência. Já no livro Genealogia da Moral, a perspectiva pela qual Nietzsche desenvolve a idéia do processo de hominização está sobretudo relacionada à formação da má-consciência, bem como, e aqui temos um dado novo, à afirmação da crueldade como algo constitutivo do bicho homem. Com isso, podemos perceber que se, no Capítulo I, fixamo-nos na perspectiva mais fisiológica – tomando aqui, naturalmente, a noção de fisiologia no sentido nietzschiano –, a partir de agora nos fixaremos numa perspectiva mais psicológica. 98

Detendo-nos, então, na questão da crueldade como algo constitutivo do bicho homem – já que é essa crueldade internalizada que conduz à formação da má-consciência –, temos que, para Nietzsche, nas relações arcaicas a crueldade era um elemento explicita e intensamente presente. E isso, por dois motivos: primeiro, porque o sofrimento foi instintivamente concebido como um poderoso instrumento para a criação da memória e segundo porque o ato de infligir dor é no homem algo extremamente prazeroso e gratificante. No que se refere ao primeiro motivo, Nietzsche afirma que o antiqüíssimo problema de criar no homem uma memória não foi, e nem podia – dada a violência que caracteriza o bicho homem primitivo –, ser resolvido com meios e respostas suaves. Bem verdade, para o filósofo, nada existe de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que a sua mnemotéctica: “'Grava-se algo com fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória' – eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra” (GM II §3). Ora, se remontarmos essa consideração aos costumes antigos, poderemos observar a extrema crueldade presente em alguns deles, crueldade que Nietzsche em parte compreende como necessidade de se criar uma memória: Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu em si a necessidade de criar uma memória; os mais horrendos sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais repugnantes mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas de crueldade) – tudo isso tem origem naquele instinto que divisou na dor o mais poderoso auxiliar da mnemônica. (idem) Observemos que se o processo de hominização conduz à criação de uma memória da vontade, o que torna o homem o animal capaz de prometer, então, “o estágio mais recuado do processo de hominização” deve coincidir com o surgimento da necessidade da promessa, o que, como afirma Giacoia, indica que esse “estágio mais recuado” deve ser encontrado “no terreno das relações pessoais de direito obrigacional: no âmbito das relações de escambo, troca, compra, venda, crédito” (GIACOIA, 2008, p. 199). Ora, essa última afirmação nos informa que Nietzsche, ao menos no que se refere à sua Genealogia, compreende as relações primordiais entre os homens sob os parâmetros da relação entre comprador e vendedor, entre credor e devedor. Para ele, sendo comprar e vender, juntamente com seu aparato psicológico – “[e]stabelecer preços, medir valores, imaginar equivalências, trocar” – mais velhos do que os começos de qualquer forma de organização 99

Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer<br />

imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo <strong>de</strong> órgãos<br />

serviçais a cooperar e divergir; um pouco <strong>de</strong> sossego, um pouco <strong>de</strong> tabula<br />

rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo,<br />

sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger,<br />

prever, pre<strong>de</strong>terminar (pois nosso organismo é disposto<br />

hierarquicamente) [...] Precisamente esse animal, no qual o esquecer é<br />

uma força, uma forma <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> forte, <strong>de</strong>senvolveu em si uma faculda<strong>de</strong><br />

oposta, uma memória, com cujo auxílio o esquecimento é suspenso em<br />

<strong>de</strong>terminados casos – nos casos em que se <strong>de</strong>ve prometer”. (i<strong>de</strong>m)<br />

O que dizer, porém, dos homens nos quais o processo <strong>de</strong> hominização não resultou no<br />

bom funcionamento orgânico entre memória e esquecimento? Dos homens cujos<br />

antepassados não pu<strong>de</strong>ram legar-lhes como herança a responsabilida<strong>de</strong>, já que nunca (ou<br />

muito pouco) pu<strong>de</strong>ram exercitar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prometer, uma vez que estavam servindo<br />

<strong>de</strong> base para a realização das promessas dos homens mais fortes?<br />

Na longa história da humanida<strong>de</strong>, os homens subalternos (os mais “fracos”) ao serem<br />

explorados, ofendidos, violentados incansavelmente geração após geração, adoeceram <strong>de</strong><br />

tal modo, que a doença <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser neles um simples estado, para vir a tornar-se a sua<br />

condição normal. Bem verda<strong>de</strong>, para Nietzsche, esses homens doentes, apesar <strong>de</strong><br />

indispensáveis – já que meio para a ampliação da potência dos mais fortes – constituiriam<br />

justamente a excrescência da socieda<strong>de</strong>. Lembremos do que foi dito ao tratarmos do<br />

processo <strong>de</strong> déca<strong>de</strong>nce (mais propriamente na página 78): toda socieda<strong>de</strong> mesmo na sua<br />

melhor força tem <strong>de</strong> formar lixo e <strong>de</strong>tritos – pois bem: esses <strong>de</strong>tritos aos quais Nietzsche se<br />

refere constituem-se, entre outras coisas justamente pelos homens subalternos, que<br />

acabaram por se tornar homens doentes.<br />

No Capítulo I, ao tratarmos do processo <strong>de</strong> hominização, <strong>de</strong>tivemo-nos não só à<br />

perspectiva da saú<strong>de</strong>, como também reconstruímos a história <strong>de</strong>sse processo concentrandonos<br />

sobretudo na questão da hierarquia entre os instintos e na relação <strong>de</strong>sses com os<br />

valores. Todos os argumentos ali expostos foram retirados principalmente das anotações do<br />

filósofo publicadas na coletânea Vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Potência. Já no livro Genealogia da Moral, a<br />

perspectiva pela qual Nietzsche <strong>de</strong>senvolve a idéia do processo <strong>de</strong> hominização está<br />

sobretudo relacionada à formação da má-consciência, bem como, e aqui temos um dado<br />

novo, à afirmação da cruelda<strong>de</strong> como algo constitutivo do bicho homem. Com isso,<br />

po<strong>de</strong>mos perceber que se, no Capítulo I, fixamo-nos na perspectiva mais fisiológica –<br />

tomando aqui, naturalmente, a noção <strong>de</strong> fisiologia no sentido nietzschiano –, a partir <strong>de</strong><br />

agora nos fixaremos numa perspectiva mais psicológica.<br />

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