moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...

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11.04.2013 Views

o homem soberano – lembremos que a doutrina da vontade de potência rejeita a teleonomia. A formação do homem soberano é uma formação casual. Contudo, paradoxalmente, Nietzsche afirma que embora, no início do processo, não se pudesse prever tal fruto, tudo na “árvore” estava preparado e crescia com vistas a ele (GM II §2). Observemos que as considerações expostas acima revelam a tentativa do filósofo, ainda que um tanto tensa quando posta ao lado da sua rejeição à teleonomia, em firmar um ideal de perfeição humana sem ter de recorrer a autoridades ou propósitos supra-terrenos. É na própria dinâmica do processo natural (casual e espontânea, ao mesmo tempo em que organizada e direcionada) que Nietzsche pretende encontrar os fundamentos do seu ideal de perfeição humana. Para o filósofo, de fato o processo de hominização não se deu com vistas ao homem soberano, mas o modo como este processo se organizou no curso do devir, apontava para ele como expressão suprema. E aqui deparamo-nos novamente com a ambivalência do conceito de vontade de potência, tendo em vista que ele expressa tanto o caráter da existência (dinâmica do processo natural), quanto um ideal de perfeição (tipo superior como expressão máxima da vontade de potência). Ora, mas não é neste aspecto, já trabalhado, que iremos nos deter. Se o expusemos, foi para rememorarmos que apesar de haver, no processo de hominização, um coroamento, ele, não sendo uma finalidade transcendental, é atingido apenas por poucas exceções – estando a maioria “desobrigada” da perfeição. Nietzsche, porém, como já nos é dado supor, não se satisfaz em conceber essa maioria “não perfeita” como seres medianos e medíocres. Devido à violência que, de acordo com o filósofo, possibilitou a formação do homem, uma grave doença veio a atingir os “fracos” – a má-consciência. Quando tratamos da época da moralidade dos costumes, deixamos bem claro que esta moralidade se impôs e se firmou – vindo com isso a fixar os instintos – através da contensão violenta das propensões desregradas, características ao antecedente do homem. Isso significa que a forma do homem foi impressa através de atos de extrema violência – através de sofrimento. Na Segunda Dissertação da Genealogia da Moral, Nietzsche define o processo de hominização como o processo que veio a possibilitar a criação de uma memória da vontade. Ora, essa memória da vontade da qual fala Nietzsche nada mais é do que a potencialidade de “prosseguir-querendo o já querido” contra todas as adversidades – “de modo que entre o primitivo 'quero' e 'farei', e a verdadeira descarga da vontade, seu ato, todo um mundo de novas e estranhas coisas, circunstâncias, mesmo atos de vontade, pode ser resolutamente interposto, sem que assim se rompa a cadeia do querer” (GM II §1) –, algo que, a nosso ver, está diretamente relacionado à questão da hierarquia entre os 96

instintos. Ao apresentar essa idéia na Genealogia, Nietzsche antagoniza memória – resultado do processo de hominização – e esquecimento – potencialidade referente ao homem primitivo, “essa encarnação do esquecimento” (GM II §3). Ora, não pensemos que essa aparente dualidade, faça do esquecimento uma mera força inercial, dispensável uma vez que formado o homem. Longe disso, Nietzsche afirma que o esquecimento, mesmo no caso do homem dotado de uma memória, deve ser compreendido como uma força ativa, que assegura a saúde, já que fecha temporariamente “as portas e janelas da consciência”: Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais na nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar de “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física”. (GM II §1) A partir do que está posto acima, podemos perceber que o elogio ao esquecimento empreendido, pelo filósofo, está relacionado ao elogio que ele faz à inconsciência. Contudo, para que essa inconsciência expresse não um caos de propensões desregradas, mas a “segurança do instinto”, em outras palavras, a hierarquia entre os instintos foi necessário todo o trabalho da moralidade dos costumes. Diante disso, dá-se que a constituição do homem soberano, o nobre, caracteriza-se, de acordo com a perspectiva presente, justamente pelo equilíbrio entre esquecimento e memória, entre inconsciente e consciência. Somente se livre das atividades dos instintos subalternos, graças à capacidade do esquecimento, a consciência permanece saudável o suficiente para assegurar a sua memória da vontade 67 . Observemos que sendo o homem uma profusão de instintos contraditórios, caso todos ou boa parte deles encontrassem espaço na consciência, o homem em questão tornar-se-ia um dispéptico, um animal que de nada consegue “dar conta”. O esquecimento é no homem, dada a sua complexa disposição, uma forma de saúde forte e só deve ser suspenso em determinados casos – os casos em que se deve prometer: 67 A consciência no homem soberano pode tanto ser compreendida como memória da vontade, quanto como autoglorificação de si. Ambos os significados estão, por sua vez, completamente relacionados – afinal, a autoglorificação advém justamente do reconhecimento da capacidade de prometer, da “segurança do instinto”, a memória da vontade. Vejamos com isso, o quão a consciência do homem soberano está ligada à ação e, por conseguinte, distanciada dos pensamentos abstratos. 97

instintos.<br />

Ao apresentar essa idéia na Genealogia, Nietzsche antagoniza memória – resultado do<br />

processo <strong>de</strong> hominização – e esquecimento – potencialida<strong>de</strong> referente ao homem primitivo,<br />

“essa encarnação do esquecimento” (GM II §3). Ora, não pensemos que essa aparente<br />

dualida<strong>de</strong>, faça do esquecimento uma mera força inercial, dispensável uma vez que<br />

formado o homem. Longe disso, Nietzsche afirma que o esquecimento, mesmo no caso do<br />

homem dotado <strong>de</strong> uma memória, <strong>de</strong>ve ser compreendido como uma força ativa, que<br />

assegura a saú<strong>de</strong>, já que fecha temporariamente “as portas e janelas da consciência”:<br />

Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como crêem os<br />

superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso<br />

sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós<br />

acolhido, não penetra mais na nossa consciência, no estado <strong>de</strong> digestão<br />

(ao qual po<strong>de</strong>ríamos chamar <strong>de</strong> “assimilação psíquica”), do que todo o<br />

multiforme processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física”.<br />

(GM II §1)<br />

A partir do que está posto acima, po<strong>de</strong>mos perceber que o elogio ao esquecimento<br />

empreendido, pelo filósofo, está relacionado ao elogio que ele faz à inconsciência.<br />

Contudo, para que essa inconsciência expresse não um caos <strong>de</strong> propensões <strong>de</strong>sregradas,<br />

mas a “segurança do instinto”, em outras palavras, a hierarquia entre os instintos foi<br />

necessário todo o trabalho da <strong>moralida<strong>de</strong></strong> dos costumes. Diante disso, dá-se que a<br />

constituição do homem soberano, o nobre, caracteriza-se, <strong>de</strong> acordo com a perspectiva<br />

presente, justamente pelo equilíbrio entre esquecimento e memória, entre inconsciente e<br />

consciência. Somente se livre das ativida<strong>de</strong>s dos instintos subalternos, graças à capacida<strong>de</strong><br />

do esquecimento, a consciência permanece saudável o suficiente para assegurar a sua<br />

memória da vonta<strong>de</strong> 67 . Observemos que sendo o homem uma profusão <strong>de</strong> instintos<br />

contraditórios, caso todos ou boa parte <strong>de</strong>les encontrassem espaço na consciência, o<br />

homem em questão tornar-se-ia um dispéptico, um animal que <strong>de</strong> nada consegue “dar<br />

conta”. O esquecimento é no homem, dada a sua complexa disposição, uma forma <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong> forte e só <strong>de</strong>ve ser suspenso em <strong>de</strong>terminados casos – os casos em que se <strong>de</strong>ve<br />

prometer:<br />

67 A consciência no homem soberano po<strong>de</strong> tanto ser compreendida como memória da vonta<strong>de</strong>, quanto como<br />

autoglorificação <strong>de</strong> si. Ambos os significados estão, por sua vez, completamente relacionados – afinal, a<br />

autoglorificação advém justamente do reconhecimento da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prometer, da “segurança do<br />

instinto”, a memória da vonta<strong>de</strong>. Vejamos com isso, o quão a consciência do homem soberano está ligada<br />

à ação e, por conseguinte, distanciada dos pensamentos abstratos.<br />

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