moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...
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prazer é entorpecimento, é adormecer: “A grande confusão dos psicólogos consiste no fato de que eles não distinguiram essas duas espécies de prazer – a do adormecer e a da vitória. Os esgotados querem repouso, espreguiçar dos membros, paz, calma [...] – os ricos e vivazes querem vitória, opositores superados, torrentes faustuosas de sentimentos de poder sobre os domínios mais vastos do que os de até então: todas as funções salutares do organismo têm essa necessidade, – e todo organismo é um tal complexo lutando por crescimento de sentimento de poder” (VP §703). Ora, as práticas abusivas cometidas pelo decadente revelam o movimento desesperado de alguém em luta contra o sofrimento. Para Nietzsche, o uso de produtos químicos excitantes, o apelo às emoções fortes, desmesuradas, as experiências aumentadas até o monstruoso, a precocidade erótica são exemplos que denunciam a tentativa de fuga do sentimento de desprazer através de intensas excitações, de doses cavalares de “prazer”. A embriaguez do degenerado, portanto, os seus gestos de suprema atividade e descarga espiritual ou nervosa – que muitas vezes se caracterizavam não pelo uso de “aditivos”, mas, ao contrário, por uma radical abstinência – apesar de terem sido, como desenvolveremos no capítulo posterior, confundidos com a plenitude dos afortunados, configuram-se, para o filósofo, apenas como uma situação “de alimentação doentia do cérebro” (VP §48). Diante disso, podemos perceber o apreço do bicho homem degenerado pelos estados de aniquilação da personalidade em detrimento da auto-afirmação de si. De qualquer sorte, a nenhum homem é dado suportar tamanho grau de excitabilidade por muito tempo: da excitabilidade se segue, como já o dissemos, um estágio de profundo esgotamento. Uma vez atingido este estágio, a morte passa a operar ainda mais sedutoramente, ela se apresenta ao décadent como única possibilidade de escapar do tormento que lhe é a vida. Compreendamos que, em se tratando de toda uma sociedade, esse modo de avaliar consiste em algo de bastante grave e perigoso. Sem moral, sem a fixação de uma interpretação para a vida – ainda que temporária – o sofrimento passa a ser algo de insuportável, um fardo demasiado pesado para se carregar. O bicho homem, complexidade de potências nunca definitivamente determinadas, tem apenas na moral um meio de estabelecer-se, de tomar forma para crescer e agir. Se uma vontade não se impõe, se uma perspectiva não se fixa, o homem doente se perde na multiplicidade das suas possibilidades: todo peso de uma existência sem sentido decai sobre ele. O problema que se impõe ao esgotado não é o sofrimento mesmo, pois este 92
sempre existiu – a sua dor é dada pela ausência de resposta à pergunta para qual ele volta todo o seu clamor: “para que sofrer?”. O sofrimento sem interpretação é o que lhe era demasiado difícil de suportar (GM III, §28). O bicho homem degenerado, sem força para tomar a vida em suas mãos, para significá-la, perde-se no fluxo de um devir desenfreado que lhe provoca intenso sofrimento. Incapaz de valorar, as portas do suicídio são abertas. A morte passa a ser o único consolo, a única saída para um devir sem sentido e cruel – nesse momento a décadence se aproxima do seu desfecho. Ao desestruturar o sistema de valores sob o qual se funda uma sociedade, o processo de décadence impossibilita não só uma existência saudável, como a própria existência. Quanto mais esse processo avança, mais o homem é assolado pelo desejo, pela necessidade de perecer. Sem forças para lutar contra a morte, a favor da vida, o que resta ao bicho homem doente é tomar o partido da morte. Dessa maneira, não ficando satisfeito em simplesmente deixar-se morrer, pode utilizar, tamanho é seu desgosto com a vida, o pouco de força que lhe resta para organizar verdadeiras epidemias de aniquilamento. Contudo, paradoxalmente, desse ódio contra a vida, desse desejo de morte, um direcionamento, uma valoração é extraída pelos instintos de cura e proteção da vida que degenera – e é assim que o instinto da décadence entra em cena como vontade de potência (VP § 401). 93
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prazer é entorpecimento, é adormecer:<br />
“A gran<strong>de</strong> confusão dos psicólogos consiste no fato <strong>de</strong> que eles não<br />
distinguiram essas duas espécies <strong>de</strong> prazer – a do adormecer e a da<br />
vitória. Os esgotados querem repouso, espreguiçar dos membros, paz,<br />
calma [...] – os ricos e vivazes querem vitória, opositores superados,<br />
torrentes faustuosas <strong>de</strong> sentimentos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r sobre os domínios mais<br />
vastos do que os <strong>de</strong> até então: todas as funções salutares do organismo<br />
têm essa necessida<strong>de</strong>, – e todo organismo é um tal complexo lutando por<br />
crescimento <strong>de</strong> sentimento <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r” (VP §703).<br />
Ora, as práticas abusivas cometidas pelo <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte revelam o movimento <strong>de</strong>sesperado<br />
<strong>de</strong> alguém em luta contra o sofrimento. Para Nietzsche, o uso <strong>de</strong> produtos químicos<br />
excitantes, o apelo às emoções fortes, <strong>de</strong>smesuradas, as experiências aumentadas até o<br />
monstruoso, a precocida<strong>de</strong> erótica são exemplos que <strong>de</strong>nunciam a tentativa <strong>de</strong> fuga do<br />
sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprazer através <strong>de</strong> intensas excitações, <strong>de</strong> doses cavalares <strong>de</strong> “prazer”. A<br />
embriaguez do <strong>de</strong>generado, portanto, os seus gestos <strong>de</strong> suprema ativida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>scarga<br />
espiritual ou nervosa – que muitas vezes se caracterizavam não pelo uso <strong>de</strong> “aditivos”,<br />
mas, ao contrário, por uma radical abstinência – apesar <strong>de</strong> terem sido, como<br />
<strong>de</strong>senvolveremos no capítulo posterior, confundidos com a plenitu<strong>de</strong> dos afortunados,<br />
configuram-se, para o filósofo, apenas como uma situação “<strong>de</strong> alimentação doentia do<br />
cérebro” (VP §48).<br />
Diante disso, po<strong>de</strong>mos perceber o apreço do bicho homem <strong>de</strong>generado pelos estados <strong>de</strong><br />
aniquilação da personalida<strong>de</strong> em <strong>de</strong>trimento da auto-afirmação <strong>de</strong> si. De qualquer sorte, a<br />
nenhum homem é dado suportar tamanho grau <strong>de</strong> excitabilida<strong>de</strong> por muito tempo: da<br />
excitabilida<strong>de</strong> se segue, como já o dissemos, um estágio <strong>de</strong> profundo esgotamento. Uma<br />
vez atingido este estágio, a morte passa a operar ainda mais sedutoramente, ela se<br />
apresenta ao déca<strong>de</strong>nt como única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escapar do tormento que lhe é a vida.<br />
Compreendamos que, em se tratando <strong>de</strong> toda uma socieda<strong>de</strong>, esse modo <strong>de</strong> avaliar consiste<br />
em algo <strong>de</strong> bastante grave e perigoso.<br />
Sem moral, sem a fixação <strong>de</strong> uma interpretação para a vida – ainda que temporária – o<br />
sofrimento passa a ser algo <strong>de</strong> insuportável, um fardo <strong>de</strong>masiado pesado para se carregar.<br />
O bicho homem, complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> potências nunca <strong>de</strong>finitivamente <strong>de</strong>terminadas, tem<br />
apenas na moral um meio <strong>de</strong> estabelecer-se, <strong>de</strong> tomar forma para crescer e agir. Se uma<br />
vonta<strong>de</strong> não se impõe, se uma perspectiva não se fixa, o homem doente se per<strong>de</strong> na<br />
multiplicida<strong>de</strong> das suas possibilida<strong>de</strong>s: todo peso <strong>de</strong> uma existência sem sentido <strong>de</strong>cai<br />
sobre ele. O problema que se impõe ao esgotado não é o sofrimento mesmo, pois este<br />
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