moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...

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11.04.2013 Views

explicitada – embora esteja de início posta sob a perspectiva da literatura: “Como se caracteriza toda décadence literária? Pelo fato de a vida não habitar mais o todo. A palavra se torna soberana e pula fora da frase, a frase transborda e obscurece o sentido da página, a página ganha vida em detrimento do todo – o todo já não é um todo. Mas isto é a imagem para todo estilo da décadence: a cada vez a anarquia dos átomos, desagregação da vontade, 'liberdade individual', em termos morais [...] A vida, a vivacidade mesma, a vibração e exuberância de vida comprimida nas mais pequenas formações, o resto pobre de vida. Em toda parte paralisia, cansaço, entorpecimento ou inimizade e caos: uns e outros saltando aos olhos, tanto mais ascendemos nas formas de organização. O todo já não vive absolutamente: é justaposto calculado, postiço, um artefato” (CW §7). No que se refere ao significado mais comum da décadence, que é o de processo de morte, de envelhecimento, a sua atuação, obviamente, restringe-se ao corpo de um indivíduo singular – não acarretando em grandes novidades, excetuando a sua relação com a doutrina da vontade de potência. Todavia, no que se refere ao seu sentido mais específico e mais próprio, o de morte das concreções humanas, os mecanismos são, e não poderia ser diferente, mais intrincados – conduzindo a concepções que, a nosso ver, são bastante surpreendentes, apesar de, como já dissemos, não desenvolvidas de maneira suficiente pelo filósofo. Dito de modo direto, tenhamos em mente que, para Nietzsche, o processo de degenerescência da sociedade começa no corpo de seus membros: é a caotização fisiológica que conduz à caotização moral e social. Certamente, nesse caso, a caotização fisiológica não se restringe a um indivíduo singular, antes seria algo como uma epidemia, uma debilidade precoce, ou melhor, uma tendência à debilidade precoce tornada regra na sociedade em questão. Nas suas anotações, Nietzsche chama atenção para que não confundamos as conseqüências com as causas da décandence, já que segundo ele foi esse erro – cujos meandros desenvolveremos no capítulo posterior – que serviu de base para a justificação dos métodos e preceitos da moral ascética. Para o filósofo, portanto, as degenerescências sociais como “[o] vício – o caráter vicioso; a doença – o caráter doentio; o crime – a criminalidade; o celibato – a esterilidade; a histeria – as fraquezas da vontade; o alcoolismo; o pessimismo; o anarquismo; a libertinagem”, são apenas conseqüências do processo de décadence (VP §42): “Entendimento fundamental sobre a essência da décadence: o que se considerou até hoje como as causas são suas conseqüências” (VP 88

§41). O objetivo de Nietzsche em relação a esse alerta é o de trazer o corpo para o primeiro plano do problema da degenerescência social. É no corpo que o problema da décadence surge e que revela a profundidade, radicalidade do seu mal: pois além de ser passada através dos hábitos, ou seja, através do convívio cultural-social, a décadence também é passada hereditariamente: “Há um conceito que aparentemente não permite nenhuma confusão, nenhuma ambigüidade: é o de esgotamento. Este pode ser adquirido, pode ser herdado – em todo caso, ele modifica o aspecto das coisas, o valor das coisas” (VP §48). Diante da citação acima, temos a noção de esgotamento como correlata à de décadence. Para compreendermos essa correlação, faz-se necessário que nos detenhamos a uma perspectiva “microscópica”, tal como fizemos no item 4 do capítulo anterior. Nesse sentido, observemos, então, que um homem que se encontre em processo de décadence, terá, tal como um homem saudável, as vontades mais fortes a subjugar as mais fracas, mas sendo esse subjugação cada vez mais debilitado, dar-se-á um número cada vez maior de vontades desgovernadas e assim, a anarquia se fará paulatinamente mais presente na hierarquia. Sem a coerção de outrora, muitas das vontades antes subjugadas se colocarão em pé de igualdade com as antes dominantes, deflagrando um combate sem trégua ou direção. Isso implica que o homem será palco dos mais variados antagonismos, sofrendo, dessa maneira, um profundo desgaste interno. Mais do que um homem fraco, teremos, neste caso, um homem esgotado, isto é, um décadent. Uma vez que os instintos se encontrem em um processo contínuo de anarquização, torna-se impossível que a moralidade seja assegurada, já que, tal como explicitamos no item 5 do capítulo anterior, é a automatização instintiva o que possibilita ao homem tornarse um determinado tipo de homem. E esse “tornar-se um determinado tipo” significa que o trabalho dos antepassados está garantido fisiologicamente, podendo então a moral, tal como vimos no item anterior, ser aprimorada e, com isso, sair do registro da mera coerção. Dito isso, percebamos que a décadence vem a minar o âmago do resultado de todo o trabalho da “pré-história” da humanidade – a automatização dos instintos – e com isto, naturalmente, o da história intermediária desta – auto-elevação. A décadence destrói a “linha” que liga os homens aos seus antepassados o que, por sua vez, implica a destruição da segurança do instinto e, portanto, da segurança do agir, da confiança em si, do orgulho de si, da harmonia entre corpo, moral e civilização. Destruir esse âmago é destruir as condições de conservação e crescimento do próprio homem, o que é o mesmo que destruir a possibilidade de existência do homem enquanto homem. A anarquia dos instintos torna a 89

§41).<br />

O objetivo <strong>de</strong> Nietzsche em relação a esse alerta é o <strong>de</strong> trazer o corpo para o primeiro<br />

plano do problema da <strong>de</strong>generescência social. É no corpo que o problema da déca<strong>de</strong>nce<br />

surge e que revela a profundida<strong>de</strong>, radicalida<strong>de</strong> do seu mal: pois além <strong>de</strong> ser passada<br />

através dos hábitos, ou seja, através do convívio cultural-social, a déca<strong>de</strong>nce também é<br />

passada hereditariamente: “Há um conceito que aparentemente não permite nenhuma<br />

confusão, nenhuma ambigüida<strong>de</strong>: é o <strong>de</strong> esgotamento. Este po<strong>de</strong> ser adquirido, po<strong>de</strong> ser<br />

herdado – em todo caso, ele modifica o aspecto das coisas, o valor das coisas” (VP §48).<br />

Diante da citação acima, temos a noção <strong>de</strong> esgotamento como correlata à <strong>de</strong><br />

déca<strong>de</strong>nce. Para compreen<strong>de</strong>rmos essa correlação, faz-se necessário que nos <strong>de</strong>tenhamos a<br />

uma perspectiva “microscópica”, tal como fizemos no item 4 do capítulo anterior. Nesse<br />

sentido, observemos, então, que um homem que se encontre em processo <strong>de</strong> déca<strong>de</strong>nce,<br />

terá, tal como um homem saudável, as vonta<strong>de</strong>s mais fortes a subjugar as mais fracas, mas<br />

sendo esse subjugação cada vez mais <strong>de</strong>bilitado, dar-se-á um número cada vez maior <strong>de</strong><br />

vonta<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sgovernadas e assim, a anarquia se fará paulatinamente mais presente na<br />

hierarquia. Sem a coerção <strong>de</strong> outrora, muitas das vonta<strong>de</strong>s antes subjugadas se colocarão<br />

em pé <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> com as antes dominantes, <strong>de</strong>flagrando um combate sem trégua ou<br />

direção. Isso implica que o homem será palco dos mais variados antagonismos, sofrendo,<br />

<strong>de</strong>ssa maneira, um profundo <strong>de</strong>sgaste interno. Mais do que um homem fraco, teremos,<br />

neste caso, um homem esgotado, isto é, um déca<strong>de</strong>nt.<br />

Uma vez que os instintos se encontrem em um processo contínuo <strong>de</strong> anarquização,<br />

torna-se impossível que a <strong>moralida<strong>de</strong></strong> seja assegurada, já que, tal como explicitamos no<br />

item 5 do capítulo anterior, é a automatização instintiva o que possibilita ao homem tornarse<br />

um <strong>de</strong>terminado tipo <strong>de</strong> homem. E esse “tornar-se um <strong>de</strong>terminado tipo” significa que o<br />

trabalho dos antepassados está garantido fisiologicamente, po<strong>de</strong>ndo então a moral, tal<br />

como vimos no item anterior, ser aprimorada e, com isso, sair do registro da mera coerção.<br />

Dito isso, percebamos que a déca<strong>de</strong>nce vem a minar o âmago do resultado <strong>de</strong> todo o<br />

trabalho da “pré-história” da humanida<strong>de</strong> – a automatização dos instintos – e com isto,<br />

naturalmente, o da história intermediária <strong>de</strong>sta – auto-elevação. A déca<strong>de</strong>nce <strong>de</strong>strói a<br />

“linha” que liga os homens aos seus antepassados o que, por sua vez, implica a <strong>de</strong>struição<br />

da segurança do instinto e, portanto, da segurança do agir, da confiança em si, do orgulho<br />

<strong>de</strong> si, da harmonia entre corpo, moral e <strong>civilização</strong>. Destruir esse âmago é <strong>de</strong>struir as<br />

condições <strong>de</strong> conservação e crescimento do próprio homem, o que é o mesmo que <strong>de</strong>struir<br />

a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> existência do homem enquanto homem. A anarquia dos instintos torna a<br />

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