moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...

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11.04.2013 Views

queremos nos deter, necessariamente ativos: os homens nobres “não sabiam separar felicidade da ação – para eles, ser ativo é parte necessária da sua felicidade”. Observemos que esse ser “necessariamente ativo” dos nobres implica que a sua consciência e reflexão estavam longe de se apresentar como algo de fundamental. No intuito de entendermos o que isso significa, relembremo-nos que tanto o domínio, quanto a imposição da moral dos senhores se estabeleceram unicamente através da ação, ou seja, da guerra, da força e da crueldade explícita. Os nobres encontraram a sua supremacia na ostensiva superioridade do seu poder, o papel da consciência limitava-se aí a reconhecer esse “óbvio” e louvá-lo na sua integralidade. Nesse contexto, a reflexão e mesmo a inteligência adquiriam “um gosto sutil de luxo e refinamento”, enfim, apresentavam-se- lhes como “aparatos” supérfluos que se punham muito longe de ser tão essenciais “quanto a completa certeza de funcionamento dos instintos reguladores inconscientes, ou mesmo certa imprudência, como a valente precipitação, seja ao perigo, seja ao inimigo, ou aquela exaltada impulsividade na cólera, no amor, na gratidão, vingança, na qual têm reconhecido os homens nobres de todos os tempos” (GM I, §10). Como afirma Bornedal, a “[s]uperficialidade só é excelente quando é profunda; só é nobre quando toca o núcleo inconsciente ou instintivo” (BORNEDAL, 2004, p.132). Os nobres não agiam, portanto, a partir de “princípios morais”, antes simplesmente agiam e depois louvavam os seus atos – sendo essa ação e posterior louvor o que constituía a sua moralidade; ela se seguia à ação, vinha no final. Naturalmente, propagado ao longo do tempo tal louvor configurava-se como uma espécie de código, mas um código que prescindia da reflexão. De acordo com Nietzsche, então, “tempos e povos fortes não refletem sobre seu direito, sobre os princípios do agir, sobre instinto e razão” (VP §423). Demorando-nos um pouco mais nessa questão da consciência, ou melhor, da prescindibilidade dela, tenhamos em mente que para Nietzsche “todo pensamento que transcorre conscientemente é mera tentativa, na maioria das vezes um mero contraponto à moral”. Ora, isso nos remete à relação entre instinto e valor desenvolvida no capítulo anterior, pois, colocando o que foi dito sob a presente perspectiva, veremos que quando o corpo e a moral se encontram em harmonia, ou seja, quando a moral é apenas a expressão mais complexa da fisiologia, não há necessidade alguma da consciência auto-reflexiva. Daí é que para Nietzsche “só se age perfeitamente quando se age por instinto” e, mais do que isso, para ele, só se age moralmente quando se age por instinto, sendo essa a grande virada, a grande mudança que se expressa na moral como auto-elevação: “Quando a moral foi como que armazenada por meio do exercício em toda uma série de gerações – portanto a 84

sutileza, a circunspeção, a coragem, a justiça – então a força conjunta dessa atividade irradia mesmo até onde raramente chega a honestidade: até a esfera espiritual” (VP §440). Nesse sentido, como bem conclui Bornedal: “A verdadeira inocência é sempre inconsciente” (BORNEDAL, 2004, p. 135). 3. O processo de décadence É nas palavras do próprio Nietzsche que o problema da décadence se revela como uma questão crucial à sua filosofia: “O que me ocupou mais profundamente foi o problema da décadence” (CW, “Prólogo”). Ora, tal revelação, se levada a sério, pode vir a surpreender grande parte dos seus leitores, já que essa expressão de origem francesa 62 é algo que só aparece, ao menos de maneira significativa, no final do penúltimo ano do seu pensamento (1887-1888) 63 e ainda assim sem uma conceituação detalhada – e isto, em especial, no que se refere às suas obras publicadas. Contudo, essa falta de uma introdução formal e análise sustentável se dá, como afirma Conway, na maioria dos seus escritos pós-Zaratustra. Apesar de, como veremos, Nietzsche acreditar que a décadence aflige épocas, povos e indivíduos, ele não oferece uma descrição detalhada, de modo que essa teoria fica na sua maior parte implícita e incompleta. (CONWAY, 1999, p. 53). Independentemente, porém, do peso que essa incompletude e importância venham a ter, é certo que essa noção desempenha um papel que, se não essencial, ao menos é bastante intrigante. O surgimento da noção de décadence se dá em conjunto com a ênfase na noção de fisiologia. Esta, apesar de encontrar-se presente em reflexões anteriores (desde o início da terceira fase), é revigorada com o surgimento da noção de décadence, já que se faz indispensável para a sua compreensão. Sinalizada essa inter-relação, observemos que a décadence é o elemento que – sendo essa a nossa interpretação –, mais do que qualquer outro, é capaz de sintetizar, de interconectar, as principais noções, concepções e posturas 62 O fato do termo estar em francês deve-se sobretudo à influência de Paul Bourget sobre Nietzsche. No seu livro Essays de psychologie contemporaine (Volume I), há uma seção denominada “Théorie de lá décadence” na qual Bourget desenvolve uma teoria da decadência literária, extraindo dela uma teoria da decadência da própria sociedade. Essa teoria foi absorvida quase que inteiramente pelo filósofo, já que ela trata justamente da desconfiguração do todo a partir da desagregação das partes. 63 Apesar de a décadence enquanto o conceito a ser aqui explicitado ter se delineado no periodo indicado (1887-1888), ela aparece anteriormente na obra nietzschiana: “A palavra décadence (sic.) aparece pela primeira vez na obra nietzschiana no final de 1876 ao verão de 1877 [...] Assim, se é correto afirmar que o termo é usado desde muito cedo por Nietzsche [...] é verdade também que ele adquire amplexidade enquanto conceito apenas no último período de sua produção, justamente ligado à reflexão tardia sobre o rompimento com Richard Wagner” (OLIVEIRA, 2008, p. 110). 85

sutileza, a circunspeção, a coragem, a justiça – então a força conjunta <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong><br />

irradia mesmo até on<strong>de</strong> raramente chega a honestida<strong>de</strong>: até a esfera espiritual” (VP §440).<br />

Nesse sentido, como bem conclui Bornedal: “A verda<strong>de</strong>ira inocência é sempre<br />

inconsciente” (BORNEDAL, 2004, p. 135).<br />

3. O processo <strong>de</strong> déca<strong>de</strong>nce<br />

É nas palavras do próprio Nietzsche que o problema da déca<strong>de</strong>nce se revela como uma<br />

questão crucial à sua filosofia: “O que me ocupou mais profundamente foi o problema da<br />

déca<strong>de</strong>nce” (CW, “Prólogo”). Ora, tal revelação, se levada a sério, po<strong>de</strong> vir a surpreen<strong>de</strong>r<br />

gran<strong>de</strong> parte dos seus leitores, já que essa expressão <strong>de</strong> origem francesa 62 é algo que só<br />

aparece, ao menos <strong>de</strong> maneira significativa, no final do penúltimo ano do seu pensamento<br />

(1887-1888) 63 e ainda assim sem uma conceituação <strong>de</strong>talhada – e isto, em especial, no que<br />

se refere às suas obras publicadas. Contudo, essa falta <strong>de</strong> uma introdução formal e análise<br />

sustentável se dá, como afirma Conway, na maioria dos seus escritos pós-Zaratustra.<br />

Apesar <strong>de</strong>, como veremos, Nietzsche acreditar que a déca<strong>de</strong>nce aflige épocas, povos e<br />

indivíduos, ele não oferece uma <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>talhada, <strong>de</strong> modo que essa teoria fica na sua<br />

maior parte implícita e incompleta. (CONWAY, 1999, p. 53). In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente, porém,<br />

do peso que essa incompletu<strong>de</strong> e importância venham a ter, é certo que essa noção<br />

<strong>de</strong>sempenha um papel que, se não essencial, ao menos é bastante intrigante.<br />

O surgimento da noção <strong>de</strong> déca<strong>de</strong>nce se dá em conjunto com a ênfase na noção <strong>de</strong><br />

fisiologia. Esta, apesar <strong>de</strong> encontrar-se presente em reflexões anteriores (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da<br />

terceira fase), é revigorada com o surgimento da noção <strong>de</strong> déca<strong>de</strong>nce, já que se faz<br />

indispensável para a sua compreensão. Sinalizada essa inter-relação, observemos que a<br />

déca<strong>de</strong>nce é o elemento que – sendo essa a nossa interpretação –, mais do que qualquer<br />

outro, é capaz <strong>de</strong> sintetizar, <strong>de</strong> interconectar, as principais noções, concepções e posturas<br />

62 O fato do termo estar em francês <strong>de</strong>ve-se sobretudo à influência <strong>de</strong> Paul Bourget sobre Nietzsche. No seu<br />

livro Essays <strong>de</strong> psychologie contemporaine (Volume I), há uma seção <strong>de</strong>nominada “Théorie <strong>de</strong> lá<br />

déca<strong>de</strong>nce” na qual Bourget <strong>de</strong>senvolve uma teoria da <strong><strong>de</strong>cadência</strong> literária, extraindo <strong>de</strong>la uma teoria da<br />

<strong><strong>de</strong>cadência</strong> da própria socieda<strong>de</strong>. Essa teoria foi absorvida quase que inteiramente pelo filósofo, já que ela<br />

trata justamente da <strong>de</strong>sconfiguração do todo a partir da <strong>de</strong>sagregação das partes.<br />

63 Apesar <strong>de</strong> a déca<strong>de</strong>nce enquanto o conceito a ser aqui explicitado ter se <strong>de</strong>lineado no periodo indicado<br />

(1887-1888), ela aparece anteriormente na obra nietzschiana: “A palavra déca<strong>de</strong>nce (sic.) aparece pela<br />

primeira vez na obra nietzschiana no final <strong>de</strong> 1876 ao verão <strong>de</strong> 1877 [...] Assim, se é correto afirmar que<br />

o termo é usado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito cedo por Nietzsche [...] é verda<strong>de</strong> também que ele adquire amplexida<strong>de</strong><br />

enquanto conceito apenas no último período <strong>de</strong> sua produção, justamente ligado à reflexão tardia sobre o<br />

rompimento com Richard Wagner” (OLIVEIRA, 2008, p. 110).<br />

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