moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...

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11.04.2013 Views

modo, julgamos oportuno salientá-lo. Primeiramente, percebamos que o “nobre”, como afirma Marton, não é um mero conceito, pois em contextos muito precisos Nietzsche acredita deparar-se com ele: “O aristocratismo ou a maneira nobre de avaliar, por certo, não constituem a priori metafísicos nem essências atemporais; são tipos que emergem da pesquisa histórica” (MARTON,1990, p.81). Todavia, podemos também entender o nobre no sentido mais abstrato, isto é, como um tipo mais propriamente psicológico, desvinculado da nobreza enquanto classe social – algo que se torna possível quando o regime aristocrático entra em declínio e o termo nobre resta para designar uma proeminência espiritual. Se estamos expondo isso, é para fazer notar que muitas das características atribuídas ao nobre como, por exemplo, a solidão e o sofrimento 58 se referem sobretudo a esse nobre tardio, que habita uma sociedade, para Nietzsche, medíocre – as culturas tardias são de um modo geral assim consideradas pelo filósofo. Além disso, observemos que se, para esse nobre tardio, o natural é que ele se aparte dos valores sociais, para viver de acordo com as próprias leis, o mesmo não se pode dizer do nobre arcaico. Pois foram os seus valores, as suas leis que fundaram uma nova forma de sociedade, a aristocrática e, com esta, uma nova forma de moralidade, a moral como autoelevação (a moral dos senhores). De fato, Nietzsche afirma que o indivíduo soberano seria o indivíduo “novamente liberado da moralidade dos costumes, indivíduo autônomo e supramoral (pois 'autônomo' e 'moral' se excluem)” (GM II §2). Contudo, não julgamos que esse “autônomo e supramoral” deva ser compreendido no sentido de um abandono da moralidade como um todo – ao menos não quando pensamos nesse nobre arcaico. O indivíduo soberano encontra-se liberado da antiga coerção externa (moralidade dos costumes), já que esta não lhe é mais necessária. Mas observemos bem: esse indivíduo soberano dos tempos arcaicos, irá, como dissemos acima, conformar novas teias de relações, novos organismos, as sociedades aristocráticas. E toda relação implica em alguma espécie de tolhimento, e, sendo uma relação entre homens, alguma espécie de relação moral. Diante do que foi dito, podemos observar que não há, nessa era intermediária, nenhuma ruptura. A coerção “afrouxa” e cabe ao homem explorar, criar novas potêncialidades, novas formas de ampliação e crescimento. São essas concepções que se inserem na afirmação sintética de que: 58 Nesse sentido, vide Além do Bem e do Mal, § 282 e 284. 74

“Os pontos altos da cultura e da civilização são diferentes [...]. Os grandes momentos da cultura foram sempre, dito moralmente, tempos de corrupção; por outro lado, foram as épocas da domesticação animalesca do homem, voluntária e forçada (“civilização”) os tempos de intolerância com as naturezas mais espirituais e ousadas” (VP §121). Ao lado dessa afirmação, porém, devemos colocar uma advertência feita pelo filósofo, que se refere, justamente, à diferença entre o “afrouxamento” que resultou na aristocracia e o “afrouxamento” das culturas tardias – que vem a marginalizar o tipo nobre. Pois enquanto aquele se revela como criação/aprimoramento da cultura, esse se revela como autodissolução, como o ápice de um processo de degeneração moral, cultural, civilizatória: “Contra o que advirto: [...] os meios da civilização que desagregam e levam necessariamente à décadence não devem ser confundidos com a cultura” (VP §122). Fixando-nos, então, na questão do aprimoramento do homem, não pensemos que esse aprimoramento se daria nos limites de um determinado povo, ou seja, exclusivamente a partir dos descendentes dos legisladores. Nos termos postos por Nietzsche, a formação de uma estirpe superior só se faz possível através do domínio de uma raça, de um povo sobre outro. Desse modo, se vamos pensar na formação de uma estirpe superior, de uma nobreza, temos de pensar, necessariamente, na escravização de um outro povo. Para Nietzsche, a escravização é a base necessária para a produção de um tipo superior (VP §859). O fato de a nobreza não se originar no interior de um determinado povo, melhor dizendo de um determinado clã – já que, em se tratando desse estágio, os indivíduos de uma comunidade estariam ligados por um ancestral em comum – se deve ao sentimento de unidade entre os seus membros, sentimento, que como sabemos, foi desenvolvido durante o processo de formação do clã. E esse sentimento não admite a escravização entre os seus membros; não há distância valorativa entre eles. Lembremos que os homens pertencentes a uma estirpe se conformaram em “homem”, mais precisamente, em um determinado tipo de “homem”, conjuntamente, através da moralidade dos costumes – o elemento configurador do sentimento de unidade. Nesse sentido, é importante atentarmos para o fato de que, durante essa autoformação, os hábitos e objetos que conservavam o todo, ao mesmo tempo em que formavam os indivíduos, foram valorados positivamente, tornando-se, portanto os valores em si: “Está no instinto de uma comunidade (estirpe, linhagem, rebanho, comuna) experimentar como valiosos em si os estados e os desejos aos quais ela deve a sua conservação [...] – e, por conseguinte, reprimir tudo o que estorva ou contradiz os mesmos” (VP §216). Na medida em que o indivíduo representa a comunidade em sua pessoa, o seu orgulho próprio confunde-se com o orgulho do todo. 75

modo, julgamos oportuno salientá-lo. Primeiramente, percebamos que o “nobre”, como<br />

afirma Marton, não é um mero conceito, pois em contextos muito precisos Nietzsche<br />

acredita <strong>de</strong>parar-se com ele: “O aristocratismo ou a maneira nobre <strong>de</strong> avaliar, por certo,<br />

não constituem a priori metafísicos nem essências atemporais; são tipos que emergem da<br />

pesquisa histórica” (MARTON,1990, p.81). Todavia, po<strong>de</strong>mos também enten<strong>de</strong>r o nobre<br />

no sentido mais abstrato, isto é, como um tipo mais propriamente psicológico,<br />

<strong>de</strong>svinculado da nobreza enquanto classe social – algo que se torna possível quando o<br />

regime aristocrático entra em <strong>de</strong>clínio e o termo nobre resta para <strong>de</strong>signar uma<br />

proeminência espiritual.<br />

Se estamos expondo isso, é para fazer notar que muitas das características atribuídas<br />

ao nobre como, por exemplo, a solidão e o sofrimento 58 se referem sobretudo a esse nobre<br />

tardio, que habita uma socieda<strong>de</strong>, para Nietzsche, medíocre – as culturas tardias são <strong>de</strong> um<br />

modo geral assim consi<strong>de</strong>radas pelo filósofo. Além disso, observemos que se, para esse<br />

nobre tardio, o natural é que ele se aparte dos valores sociais, para viver <strong>de</strong> acordo com as<br />

próprias leis, o mesmo não se po<strong>de</strong> dizer do nobre arcaico. Pois foram os seus valores, as<br />

suas leis que fundaram uma nova forma <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, a aristocrática e, com esta, uma nova<br />

forma <strong>de</strong> <strong>moralida<strong>de</strong></strong>, a moral como autoelevação (a moral dos senhores).<br />

De fato, Nietzsche afirma que o indivíduo soberano seria o indivíduo “novamente<br />

liberado da <strong>moralida<strong>de</strong></strong> dos costumes, indivíduo autônomo e supramoral (pois 'autônomo' e<br />

'moral' se excluem)” (GM II §2). Contudo, não julgamos que esse “autônomo e<br />

supramoral” <strong>de</strong>va ser compreendido no sentido <strong>de</strong> um abandono da <strong>moralida<strong>de</strong></strong> como um<br />

todo – ao menos não quando pensamos nesse nobre arcaico. O indivíduo soberano<br />

encontra-se liberado da antiga coerção externa (<strong>moralida<strong>de</strong></strong> dos costumes), já que esta não<br />

lhe é mais necessária. Mas observemos bem: esse indivíduo soberano dos tempos arcaicos,<br />

irá, como dissemos acima, conformar novas teias <strong>de</strong> relações, novos organismos, as<br />

socieda<strong>de</strong>s aristocráticas. E toda relação implica em alguma espécie <strong>de</strong> tolhimento, e,<br />

sendo uma relação entre homens, alguma espécie <strong>de</strong> relação moral.<br />

Diante do que foi dito, po<strong>de</strong>mos observar que não há, nessa era intermediária,<br />

nenhuma ruptura. A coerção “afrouxa” e cabe ao homem explorar, criar novas<br />

potêncialida<strong>de</strong>s, novas formas <strong>de</strong> ampliação e crescimento. São essas concepções que se<br />

inserem na afirmação sintética <strong>de</strong> que:<br />

58 Nesse sentido, vi<strong>de</strong> Além do Bem e do Mal, § 282 e 284.<br />

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