moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...
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A crítica nietzschiana à impessoalida<strong>de</strong> presente nas investigações acerca da moral,<br />
atinge diretamente o cerne da sua crítica ao i<strong>de</strong>al ascético – e, <strong>de</strong>sse modo, não nos é<br />
possível agora <strong>de</strong>senvolvê-la com maior profundida<strong>de</strong>. Antes, porém, <strong>de</strong> encerramos,<br />
temporariamente, essa questão, percebamos apenas que nessa atitu<strong>de</strong>, a <strong>de</strong> colocar-se<br />
pessoalmente ante o problema da moral, resi<strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada tonalida<strong>de</strong> que não po<strong>de</strong><br />
ser ignorada na compreensão do problema da moral posto por Nietzsche. Afinal <strong>de</strong> contas,<br />
essa tonalida<strong>de</strong> se configura não só como afirmação <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada postura para com<br />
a investigação filosófica, mas como uma <strong>de</strong>terminada estética da existência – que permeia<br />
e caracteriza a filosofia nietzschiana como um todo:<br />
“A nós, filósofos, não nos é dado distinguir entre corpo e alma, como faz<br />
o povo, e menos ainda <strong>de</strong> diferenciar alma <strong>de</strong> espírito. Não somos<br />
batráquios pensantes, não somos aparelhos <strong>de</strong> objetivar e registrar, <strong>de</strong><br />
entranhas congeladas – temos <strong>de</strong> continuamente parir nossos<br />
pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo<br />
sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, <strong>de</strong>stino e<br />
fatalida<strong>de</strong> que há em nós. Viver – isto significa em nós, transformar<br />
continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que<br />
nos atinge; não po<strong>de</strong>mos agir <strong>de</strong> outro modo” (GC “Prólogo” §3).<br />
Retornando à questão do percurso das investigações <strong>de</strong> Nietzsche, observemos que<br />
prenunciando-se nele uma “<strong>de</strong>sconfiança apriorística” com relação à moral dominante, a<br />
sua “perspectiva inquiridora” sobre a origem <strong>de</strong>sta foi, naturalmente, bastante diferente da<br />
adotada pelos <strong>de</strong>mais genealogistas da moral, que nem sequer tomavam, <strong>de</strong> acordo com<br />
Nietzsche, a moral como um problema. Esses investigadores, encerrados no âmbito da<br />
própria moral, buscaram uma “origem” que reafirmasse os valores <strong>de</strong>la 47 . Já Nietzsche,<br />
munido da sua <strong>de</strong>sconfiança, dirigiu-se a ela com o intuito <strong>de</strong> solapá-la:<br />
“Naquele tempo 48 empreendi algo que não po<strong>de</strong> ser para qualquer um:<br />
<strong>de</strong>sci à profun<strong>de</strong>za, penetrei no alicerce, comecei a investigar e escavar<br />
uma velha confiança, sobre a qual nós, filósofos, há alguns milênios<br />
construíamos, como se fora o mais seguro fundamento [...]: eu me pus a<br />
47 De acordo com Nietzsche, esses “genealogistas da moral” seriam constituídos sobretudo pelos psicólogos<br />
e utilitaristas ingleses. Tais psicólogos e utilitaristas ingleses – aos quais se <strong>de</strong>veriam as primeiras<br />
tentativas “<strong>de</strong> subtrair da metafísica o estudo dos problemas relativos à conduta humana, para aplicar<br />
nesse domínio os mesmos métodos empregados na filosofia da natureza” (MARTON, 1990, p.129) –<br />
pa<strong>de</strong>ceriam do mesmo mal que os filósofos, qual seja: faltar-lhes-ia o “espírito histórico”. Desse modo,<br />
teriam produzido uma genealogia tosca que em nada questionaria os valores ou mesmo admitiria a<br />
mudança <strong>de</strong>sses ao longo da história (GM I §1, 2).<br />
48 O “tempo” referido por Nietzsche, é o tempo da execução <strong>de</strong> Aurora. Este livro que se segue ao Humano<br />
<strong>de</strong>masiado Humano, ambos referentes à segunda fase do pensamento nietzschiano, constituiria junto a<br />
esse as primeiras tentativas ostensivas <strong>de</strong> Nietzsche <strong>de</strong> reconstrução da origem e crítica dos valores<br />
dominantes.<br />
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