moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...

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11.04.2013 Views

22, por se relacionar à décadence ainda não é passível de ser desenvolvido. Detendo-nos, então, naquilo que nos é possibilitado agora, observemos que, enquanto a saúde e a doença estão relacionadas ao grau de coesão, a excepcionalidade – algo de extremamente relevante na tipologia nietzschiana – está relacionada ao grau de complexidade. Concentrando-nos ao primeiro ponto, grau de coesão, teremos que um homem cujas partes estejam bem conexas será um homem saudável – visto que pouco será o seu desgaste interno (a luta entre os seus diferentes instintos estará controlada) e assim, grande a força para o domínio e ampliação da sua potência. Já um homem cujas partes estejam mal conexas, possuirá grande desgaste interno, e assim pouco vigor para o domínio. Como é conhecido, toda essa insuficiente ou mais que suficiente coesão entre as partes, reflitir-se- á diretamente na estrutura psíquica e moral de um homem. Daí a Nietzsche cunhar o termo fisiopsicologia (BM §23) como algo de bastante próprio aos seus intentos. A força e a fraqueza de um homem são postas pelo filósofo como correlatas à sua saúde e doença. Isso significa que um homem saudável seria necessariamente forte e um homem doente necessariamente fraco. Embora essa correlação valha para a maior parte dos casos, podemos conceber certas exceções. Afinal, se há povos mais fortes que outros, podemos afirmar que há homens mais coesos, mais inteiros do que outros. A maior coesão de um homem em relação a outro não indicaria, porém, necessariamente, uma doença por parte do menos coeso, mas uma menor força, ou ainda, uma maior fraqueza. Com isso, podemos afirmar que homens mais fracos ou menos coesos, tenderiam a conformar sociedades pacíficas, dadas à agricultura e comércio, enquanto os mais fortes, ou mais coesos, uma sociedade guerreira, tenderiam a se impor sobre as demais sociedades, subjugando-as: “bárbaros em toda terrível acepção da palavra, homens de rapina, ainda possuidores de energias de vontade e ânsia de poder intactas, arremeteram sobre raças mais fracas, mais polidas, mais pacíficas, raças comerciantes ou pastoras, talvez, ou sobre culturas antigas e murchas [...] sua preponderância não estava primariamente na força física, mas na psíquica – eram os homens mais inteiros (o que em qualquer nível significa também 'bestas mais inteiras')” (BM §257). Uma outra exceção, e essa ainda mais contundente, seria a do asceta cujas partes bem coesas lhe conferiria força, mas não saúde. Como o porquê disso está relacionado à questão do “modo de disposição entre as vontades”, adiantemos, apenas, que o tipo ascético, por expressar uma inversão na hierarquia instintiva, e, assim, um estado de morbidez, jamais poderia ser considerado como saudável. No que se refere aos homens mais complexos, teríamos neles algo que se põe à 56

margem das questões de saúde e doença. Afinal, tais homens são os “acasos felizes” dos quais nos fala Nietzsche, em outras palavras, o tipo superior. Essa superioridade, ou maior complexidade, diferentemente das demais características tipológicas, como a propensão à saúde ou doença, não é transmitida pela hereditariedade – “O tipo é herdado, um tipo não é nada de extremo não é nenhum 'acaso feliz'” (VP §684) –, antes se configura como um acontecimento imprevisível que pode surgir no seio de qualquer povo, em qualquer época: “nos mais diversos lugares da Terra e nas mais diversas culturas, nos quais um tipo mais elevado realmente se manifesta: algo que em relação à humanidade como um todo, é uma espécie de super-homem” (AC §4). Para Nietzsche, o homem superior é justamente o mais rico em contradições, o que têm uma espécie de “antena para todos os tipos de homem” 44 . A riqueza de contradições permite que na lide com uma determinada situação, uma série de afetos fale sobre ela, interpretem-na. Essa pluralidade de vozes, de perspectivas possibilita uma compreensão maior, mais completa daquilo que está sendo tratado – o que indica pois uma maior sabedoria da parte do detentor de tal suma de interpretações. Contudo, para que esta pluralidade de vozes faça-se possível sem que leve o indivíduo a uma anarquia é necessário, inclusive para a sua conservação, “momentos de grande harmonia”. E isso é um acontecimento ainda mais difícil do que a formação de um tipo superior (VP §259) 45 . A concepção de fisiologia é amplamente utilizada pelo filósofo. Contudo, apesar de ser bastante relevante a sua aplicabilidade, ele não oferece informações suficientes para uma conceituação mais apurada. Além de estar relacionada às questões referentes à hierarquia instintiva, podemos apenas acrescentar ao conceito de “fisiologia” que Nietzsche também o relaciona a questões referentes a uma hierarquização entre órgãos, células e tecidos que compõem um corpo, que compõem um homem. Disso se segue que, para o filósofo, o corpo, no seu sentido mais estrito (conjunto de órgãos, tecidos, células e funções vitais), também deve ser compreendido como uma formação de domínio, à qual são inerentes a luta e o estabelecimento de hierarquia: “O indivíduo é uma luta das partes (pela nutrição, pelo espaço etc.): sua evolução está unida à vitória ou à predominância de partes individuais, a um perecer, a um “vir-a-ser órgão” de outras partes” (VP §647). 44 O “gênio” é o exemplo mais pertinente para isso. Para Nietzsche, não é raro que ao lado de toda a potencialidade característica a esse tipo resida um forte componente degenerativo – para uma aceitação dessa hipótese, basta que nos detenhamos, rapidamente, na história desses grandes homens. O gênio, por ser um homem mais complexo, possui um maior poder criativo e plasmador, mas tende, por isso mesmo, a uma degeneração precoce. 45 É importante que notemos que esse homem contraditório do qual falamos aqui, é bastante diferente do bicho homem ainda não civilizado. Como ainda nos faltam uma série de concepções para que essa diferença seja compreendida, contentemo-nos, por ora, com esse aviso. 57

margem das questões <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e doença. Afinal, tais homens são os “acasos felizes” dos<br />

quais nos fala Nietzsche, em outras palavras, o tipo superior. Essa superiorida<strong>de</strong>, ou maior<br />

complexida<strong>de</strong>, diferentemente das <strong>de</strong>mais características tipológicas, como a propensão à<br />

saú<strong>de</strong> ou doença, não é transmitida pela hereditarieda<strong>de</strong> – “O tipo é herdado, um tipo não é<br />

nada <strong>de</strong> extremo não é nenhum 'acaso feliz'” (VP §684) –, antes se configura como um<br />

acontecimento imprevisível que po<strong>de</strong> surgir no seio <strong>de</strong> qualquer povo, em qualquer época:<br />

“nos mais diversos lugares da Terra e nas mais diversas culturas, nos quais um tipo mais<br />

elevado realmente se manifesta: algo que em relação à humanida<strong>de</strong> como um todo, é uma<br />

espécie <strong>de</strong> super-homem” (AC §4).<br />

Para Nietzsche, o homem superior é justamente o mais rico em contradições, o que<br />

têm uma espécie <strong>de</strong> “antena para todos os tipos <strong>de</strong> homem” 44 . A riqueza <strong>de</strong> contradições<br />

permite que na li<strong>de</strong> com uma <strong>de</strong>terminada situação, uma série <strong>de</strong> afetos fale sobre ela,<br />

interpretem-na. Essa pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vozes, <strong>de</strong> perspectivas possibilita uma compreensão<br />

maior, mais completa daquilo que está sendo tratado – o que indica pois uma maior<br />

sabedoria da parte do <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> tal suma <strong>de</strong> interpretações. Contudo, para que esta<br />

pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vozes faça-se possível sem que leve o indivíduo a uma anarquia é<br />

necessário, inclusive para a sua conservação, “momentos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> harmonia”. E isso é um<br />

acontecimento ainda mais difícil do que a formação <strong>de</strong> um tipo superior (VP §259) 45 .<br />

A concepção <strong>de</strong> fisiologia é amplamente utilizada pelo filósofo. Contudo, apesar <strong>de</strong><br />

ser bastante relevante a sua aplicabilida<strong>de</strong>, ele não oferece informações suficientes para<br />

uma conceituação mais apurada. Além <strong>de</strong> estar relacionada às questões referentes à<br />

hierarquia instintiva, po<strong>de</strong>mos apenas acrescentar ao conceito <strong>de</strong> “fisiologia” que<br />

Nietzsche também o relaciona a questões referentes a uma hierarquização entre órgãos,<br />

células e tecidos que compõem um corpo, que compõem um homem. Disso se segue que,<br />

para o filósofo, o corpo, no seu sentido mais estrito (conjunto <strong>de</strong> órgãos, tecidos, células e<br />

funções vitais), também <strong>de</strong>ve ser compreendido como uma formação <strong>de</strong> domínio, à qual<br />

são inerentes a luta e o estabelecimento <strong>de</strong> hierarquia: “O indivíduo é uma luta das partes<br />

(pela nutrição, pelo espaço etc.): sua evolução está unida à vitória ou à predominância <strong>de</strong><br />

partes individuais, a um perecer, a um “vir-a-ser órgão” <strong>de</strong> outras partes” (VP §647).<br />

44 O “gênio” é o exemplo mais pertinente para isso. Para Nietzsche, não é raro que ao lado <strong>de</strong> toda a<br />

potencialida<strong>de</strong> característica a esse tipo resida um forte componente <strong>de</strong>generativo – para uma aceitação<br />

<strong>de</strong>ssa hipótese, basta que nos <strong>de</strong>tenhamos, rapidamente, na história <strong>de</strong>sses gran<strong>de</strong>s homens. O gênio, por<br />

ser um homem mais complexo, possui um maior po<strong>de</strong>r criativo e plasmador, mas ten<strong>de</strong>, por isso mesmo,<br />

a uma <strong>de</strong>generação precoce.<br />

45 É importante que notemos que esse homem contraditório do qual falamos aqui, é bastante diferente do<br />

bicho homem ainda não civilizado. Como ainda nos faltam uma série <strong>de</strong> concepções para que essa<br />

diferença seja compreendida, contentemo-nos, por ora, com esse aviso.<br />

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