moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...
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6. Algumas considerações sobre a fisiologia Como dissemos logo no início, Nietzsche, na última fase do seu pensamento, desenvolve uma fundamentação biológico-filosófica. Utilizamos a expressão “biológicofilosófica”, e não simplesmente “biológica”, porque, como já mencionamos, Nietzsche não condiciona as suas reflexões aos parâmetros impostos pelas ciências naturais, antes faz uso delas de modo a convertê-las a serviço das suas concepções – que, como vimos no item 2, foram inicialmente moldadas “apenas” a partir da perspectiva de noções da filologia, história, antropologia etc. Não devemos pensar com isso, porém, que o pensamento de Nietzsche sobre a biologia se configura como um mero adorno. Apesar da falta de conhecimentos especializados nas ciências da natureza, Nietzsche, que em biologia interessava-se sobretudo pelas questões referentes à teoria da evolução e à fisiologia, transforma aquilo que lhe foi possível adaptar em matéria da sua cosmovisão ou filosofia da natureza e fundamento de suas concepções morais. Quando estivermos tratando da “fisiologia” no sentido dado por Nietzsche, devemos ter em mente que estamos tratando, ao menos de acordo com os anseios explicitados pelo filósofo, de algo bastante diferente da fisiologia compreendida sob os parâmetros darwinistas: “Os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o impulso de autoconservação como o impulso cardinal de um ser orgânico” (BM §13). Contudo, o fato de a “fisiologia” nietzschiana pretender pôr-se distante das interpretações de cunho darwinista não significa, tal como pretende Tongeren, que ela se ponha distante de todas as concepções fisiólogicas: “Fisiologia [a nietzschiana] não deve ser tomada no sentido que os fisiólogos a tomam, que interpretam o organismo a partir do instinto de autopreservação” (TONGEREN, 2003, p.207). Nietzsche, como bem afirma Moore, leu um expressivo número de livros sobre o evolucionismo, tratados de biologia especializada, e também trabalhos de ciência para divulgação popular 42 (MOORE, 2006, pp.519-20). Dentre os pesquisadores das ciências naturais que mais influenciaram o pensamento de Nietzsche, podemos destacar os biólogos Wilheim Roux e William Rolph. Roux teria fornecido ao filósofo a idéia de que a concorrência vital situada por Darwin apenas no exterior, estaria também presente no interior do organismo, reproduzindo-se nas suas mais ínfimas partículas. Essa luta interna seria ainda concebida por ele como mais relevante para a evolução das espécies do que a concorrência externa. Já de Rolph, ele teria incorporado a 42 Esses textos, que curiosamente, expressavam, sem exceção, posturas não-darwinistas, certamente influenciaram “para melhor ou pior” as concepções nietzschianas referentes à biologia e à fisiologia. 54
idéia de que o ser vivo absorveria mais alimento do que precisava, dada a sua insaciabilidade. Essa insaciabilidade, por sua vez, seria o que, ao invés da necessidade de sobrevivência, conduziria à deflagração do combate. A evolução ocorreria justamente a partir desse acúmulo de alimento. A concorrência portanto longe de prejudicar a vida, aumentaria a sua qualidade (MARTON, 1990, p. 43). Poderíamos citar outros exemplos, mas não julgamos necessário. Só com esses dois podemos perceber que a doutrina da vontade de potência, bem como a “fisiologia”, que, naturalmente, deve ser entendida em correlação à essa doutrina – são conformadas a partir de um intenso, embora não especializado, diálogo entre Nietzsche e as ciências da época. Daí é que Müller-Lauter afirma que uma das acepções de “fisiologia” estaria de acordo com o uso feito pelas ciências da época. O papel da “fisiologia” no pensamento nietzschiano é crucial. O estudo do corpo permitiu ao filósofo tanto uma “fundamentação” para a existência e domínio dos “valores hostis à vida”, quanto uma justificativa para o que ele entende por “valores de acordo com a vida”. Com essa consideração, entramos em contato com a segunda acepção da fisiologia propagada por Müller-Lauter, qual seja a de fisiologia como “o que determina de modo somático (e por isso fundamental) os homens. Está na base, em sua respectiva autocompreensão, dos ocultamentos “ideais” taticamente já dados” (MÜLLER-LAUTER, 1999, p. 21). Sob essa perspectiva, dá-se que enquanto um corpo debilitado fisiologicamente viria a promover uma valoração negativa acerca da vida, um corpo saudável e robusto viria a promover uma valoração a favor da vida: “Nossas convicções mais sagradas, nosso permanecer imutável com respeito aos valores supremos são juízos dos nossos músculos” (VP §314). Frente a essas, ainda sucintas considerações, podemos destacar dois pontos de extrema relevância para a compreensão da “fisiologia” de Nietzsche. A “fisiologia” está também relacionada ao modo de hierarquização dos instintos (ou vontades) 43 , isto é, ao grau de coesão e complexidade da hierarquia instintiva. Há ainda um terceiro elemento, o do modo de disposição das vontades que, tal como dissemos na nota 43 Podemos tomar aqui os termos “instinto” e “vontade de potência” de modo a não distingui-los, pois o instinto, apesar de se configurar como uma instância mais complexa que a vontade de potência, é algo de muito elementar nos animais, o que implica em a sua descrição, em muitos momentos, não diferir da descrição da vontade de potência no seu sentido mais elementar. Naturalmente, o homem, a civilização são também expressões mais complexas da vontade, mas por serem bem mais complexos, cabe a eles uma série de considerações que não cabem à vontade de potência nesse sentido do que há de mais elementar. No caso dos instintos, porém, embora possamos supor que eles sejam conformados por múltiplas vontades de potência, não há mudança de sentido em dizer “homem como multiplicidade de vontades” ou “homem como multiplicidade de instintos”. 55
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Como dissemos logo no início, Nietzsche, na última fase do seu pensamento,<br />
<strong>de</strong>senvolve uma fundamentação biológico-filosófica. Utilizamos a expressão “biológicofilosófica”,<br />
e não simplesmente “biológica”, porque, como já mencionamos, Nietzsche não<br />
condiciona as suas reflexões aos parâmetros impostos pelas ciências naturais, antes faz uso<br />
<strong>de</strong>las <strong>de</strong> modo a convertê-las a serviço das suas concepções – que, como vimos no item 2,<br />
foram inicialmente moldadas “apenas” a partir da perspectiva <strong>de</strong> noções da filologia,<br />
história, antropologia etc. Não <strong>de</strong>vemos pensar com isso, porém, que o pensamento <strong>de</strong><br />
Nietzsche sobre a biologia se configura como um mero adorno. Apesar da falta <strong>de</strong><br />
conhecimentos especializados nas ciências da natureza, Nietzsche, que em biologia<br />
interessava-se sobretudo pelas questões referentes à teoria da evolução e à fisiologia,<br />
transforma aquilo que lhe foi possível adaptar em matéria da sua cosmovisão ou filosofia<br />
da natureza e fundamento <strong>de</strong> suas concepções morais.<br />
Quando estivermos tratando da “fisiologia” no sentido dado por Nietzsche, <strong>de</strong>vemos<br />
ter em mente que estamos tratando, ao menos <strong>de</strong> acordo com os anseios explicitados pelo<br />
filósofo, <strong>de</strong> algo bastante diferente da fisiologia compreendida sob os parâmetros<br />
darwinistas: “Os fisiólogos <strong>de</strong>veriam refletir, antes <strong>de</strong> estabelecer o impulso <strong>de</strong><br />
autoconservação como o impulso cardinal <strong>de</strong> um ser orgânico” (BM §13). Contudo, o fato<br />
<strong>de</strong> a “fisiologia” nietzschiana preten<strong>de</strong>r pôr-se distante das interpretações <strong>de</strong> cunho<br />
darwinista não significa, tal como preten<strong>de</strong> Tongeren, que ela se ponha distante <strong>de</strong> todas as<br />
concepções fisiólogicas: “Fisiologia [a nietzschiana] não <strong>de</strong>ve ser tomada no sentido que<br />
os fisiólogos a tomam, que interpretam o organismo a partir do instinto <strong>de</strong><br />
autopreservação” (TONGEREN, 2003, p.207). Nietzsche, como bem afirma Moore, leu<br />
um expressivo número <strong>de</strong> livros sobre o evolucionismo, tratados <strong>de</strong> biologia especializada,<br />
e também trabalhos <strong>de</strong> ciência para divulgação popular 42 (MOORE, 2006, pp.519-20).<br />
Dentre os pesquisadores das ciências naturais que mais influenciaram o pensamento <strong>de</strong><br />
Nietzsche, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar os biólogos Wilheim Roux e William Rolph. Roux teria<br />
fornecido ao filósofo a idéia <strong>de</strong> que a concorrência vital situada por Darwin apenas no<br />
exterior, estaria também presente no interior do organismo, reproduzindo-se nas suas mais<br />
ínfimas partículas. Essa luta interna seria ainda concebida por ele como mais relevante para<br />
a evolução das espécies do que a concorrência externa. Já <strong>de</strong> Rolph, ele teria incorporado a<br />
42 Esses textos, que curiosamente, expressavam, sem exceção, posturas não-darwinistas, certamente<br />
influenciaram “para melhor ou pior” as concepções nietzschianas referentes à biologia e à fisiologia.<br />
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