moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...

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11.04.2013 Views

poloneses: deles tenho muito instinto de raça no corpo, quem sabe até mesmo ainda o liberum veto” (EC “Por que sou tão sábio” §3). Walter Kaufmann, nesse sentido, vai em uma direção completamente oposta. A precedência polonesa que Nietzsche reivindica para si, é compreendida por Kaufmann como um assentimento do filósofo a favor da miscigenação. Ora, julgamos essa uma interpretação equivocada, influenciada pela ânsia de inocentar o filósofo da apropriação nazista – tarefa à qual Kaufmann se dedicou com veemência. Concordamos com a sua afirmação de que nenhum processo da vida humana, incluindo a hereditariedade, é concebido por Nietzsche apenas em termos de sangue (KAUFMANN, 1986, p. 295), mas daí a advogar que o filósofo era a favor da mistura de raças constitui, a nosso ver, uma deturpação. Pois, para Nietzsche, o homem mestiço é via de regra um homem fraco: “O homem de uma era de mestiçagem confusa [...], que leva no corpo uma herança de ascendência múltipla, isto é, impulsos e escalas de valor mais que contraditórios, que lutam entre si e raramente se dão trégua – esse homem das culturas tardias e das luzes veladas será, por via de regra, um homem bem fraco” (BM §200). Se Nietzsche, porém, reivindica para si uma outra ascendência que não a alemã, não é porque ele queria se dizer um fraco, pois nos homens de exceção, que é como filósofo concebe a si mesmo, “a contradição e a guerra atuam como uma atração, um estímulo mais”. Contudo, tampouco essa potencialização das exceções 41 , pode ser tomada como argumento para a concepção de que o filósofo defenderia a miscigenação. De acordo com o que vimos, para que compreendamos o tipo que um homem representa, temos de perpassar todos os diversos âmbitos que o conformam. O tipo se relaciona tanto a questões fisiológicas – referentes ao corpo, à hierarquização dos instintos –, quanto a questões morais, psicológicas, comportamentais e, nos tempos remotos – nos quais a individualidade não existia – a questões sobretudo sociais. Curioso é que, para Nietzsche, essas diferenças desassemelham a tal ponto os variados tipos de homem que ele decidiu certas horas por arrematá-las de modo extremo: para ele, não há humanidade – “A 41 Essas exceções estão associadas a uma outra época, bem como estão mais associadas a indivíduos, os frutos maduros de todo processo de hominização. 52

'humanidade' não avança, ela nem ao menos existe. O aspecto geral das coisas é um tremendo laboratório experimental no qual uns poucos sucessos são atingidos, dispersos ao longo de todas as épocas, enquanto existem inúmeros fracassos, e toda ordem, lógica, união estão faltando” (VP §90). Testemunhamos, assim, no presente item, o estabelecimento da noção de tipo em detrimento da noção de espécie. Na concepção nietzschiana, o termo “espécie” é algo de muito genérico, pois só tem aplicabilidade garantida quando abstraída a maior parte dos atributos referentes aos tipos que visa agregar. Sendo um conceito pautado no destaque de características muito gerais, a noção de espécie é insuficiente para a compreensão do homem – afinal, de acordo com os parâmetros nietzschianos, não é dado pensar o homem excluindo a questão do valor ou as questões relativas às suas condições de conservação e crescimento. Para Nietzsche, os homens devem ser, então, compreendidos a partir da sua diferença tipológica e não da sua igualdade de espécie. Homens tipologicamente diferentes serão animais desiguais fisiologica, psicologica e valorativamente – o que torna o conceito de espécie um conceito vazio: “Os conceitos de 'indivíduo' e 'espécie' são igualmente falsos e meramente aparentes. 'Espécie' expressa apenas o fato de que uma quantidade de seres semelhantes surge ao mesmo tempo e que o compasso do contínuo medrar e modificar-se torna-se mais moroso” (VP §521). De acordo com Müller-Lauter, os últimos “organismos” (formações de domínio, hierarquia entre vontades) admitidos por Nietzsche seriam os povos, estados e sociedades. Isso porque, segundo ele, toda vontade de potência (e essas formações são vontades de potência complexas) carece de uma contra-vontade, isto é, de uma vontade que se lhe oponha. Daí é que ele compreende o motivo da rejeição de Nietzsche à noção de humanidade: “a humanidade não é, para ele [Nietzsche], organismo e, com isso, não é vontade de poder” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 97). Ora, apesar de não termos recorrido a essa idéia em nossa argumentação, julgamos oportuno expô-la, já que ela se apresenta como via interpretativa bastante apropriada e interessante. Uma série de nuances, conceitos e reflexões se fazem ainda necessários para a compreensão da noção de tipo, bem como para uma diferenciação tipológica. Aqui tratamos apenas de introduzir algumas noções preliminares, com o intuito de que nos iniciemos na pluralidade sob a qual Nietzsche compreende o homem, pluralidade que, como vimos, é indicada através do termo tipo. No decorrer da dissertação, nos depararemos com o lado mais geral da tipologia nietzschiana, no qual esses tipos são separados e entendidos a partir de categorias tipológicas. 53

'humanida<strong>de</strong>' não avança, ela nem ao menos existe. O aspecto geral das coisas é um<br />

tremendo laboratório experimental no qual uns poucos sucessos são atingidos, dispersos ao<br />

longo <strong>de</strong> todas as épocas, enquanto existem inúmeros fracassos, e toda or<strong>de</strong>m, lógica,<br />

união estão faltando” (VP §90).<br />

Testemunhamos, assim, no presente item, o estabelecimento da noção <strong>de</strong> tipo em<br />

<strong>de</strong>trimento da noção <strong>de</strong> espécie. Na concepção nietzschiana, o termo “espécie” é algo <strong>de</strong><br />

muito genérico, pois só tem aplicabilida<strong>de</strong> garantida quando abstraída a maior parte dos<br />

atributos referentes aos tipos que visa agregar. Sendo um conceito pautado no <strong>de</strong>staque <strong>de</strong><br />

características muito gerais, a noção <strong>de</strong> espécie é insuficiente para a compreensão do<br />

homem – afinal, <strong>de</strong> acordo com os parâmetros nietzschianos, não é dado pensar o homem<br />

excluindo a questão do valor ou as questões relativas às suas condições <strong>de</strong> conservação e<br />

crescimento. Para Nietzsche, os homens <strong>de</strong>vem ser, então, compreendidos a partir da sua<br />

diferença tipológica e não da sua igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> espécie. Homens tipologicamente diferentes<br />

serão animais <strong>de</strong>siguais fisiologica, psicologica e valorativamente – o que torna o conceito<br />

<strong>de</strong> espécie um conceito vazio: “Os conceitos <strong>de</strong> 'indivíduo' e 'espécie' são igualmente falsos<br />

e meramente aparentes. 'Espécie' expressa apenas o fato <strong>de</strong> que uma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seres<br />

semelhantes surge ao mesmo tempo e que o compasso do contínuo medrar e modificar-se<br />

torna-se mais moroso” (VP §521).<br />

De acordo com Müller-Lauter, os últimos “organismos” (formações <strong>de</strong> domínio,<br />

hierarquia entre vonta<strong>de</strong>s) admitidos por Nietzsche seriam os povos, estados e socieda<strong>de</strong>s.<br />

Isso porque, segundo ele, toda vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> potência (e essas formações são vonta<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

potência complexas) carece <strong>de</strong> uma contra-vonta<strong>de</strong>, isto é, <strong>de</strong> uma vonta<strong>de</strong> que se lhe<br />

oponha. Daí é que ele compreen<strong>de</strong> o motivo da rejeição <strong>de</strong> Nietzsche à noção <strong>de</strong><br />

humanida<strong>de</strong>: “a humanida<strong>de</strong> não é, para ele [Nietzsche], organismo e, com isso, não é<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 97). Ora, apesar <strong>de</strong> não termos recorrido<br />

a essa idéia em nossa argumentação, julgamos oportuno expô-la, já que ela se apresenta<br />

como via interpretativa bastante apropriada e interessante.<br />

Uma série <strong>de</strong> nuances, conceitos e reflexões se fazem ainda necessários para a<br />

compreensão da noção <strong>de</strong> tipo, bem como para uma diferenciação tipológica. Aqui<br />

tratamos apenas <strong>de</strong> introduzir algumas noções preliminares, com o intuito <strong>de</strong> que nos<br />

iniciemos na pluralida<strong>de</strong> sob a qual Nietzsche compreen<strong>de</strong> o homem, pluralida<strong>de</strong> que,<br />

como vimos, é indicada através do termo tipo. No <strong>de</strong>correr da dissertação, nos<br />

<strong>de</strong>pararemos com o lado mais geral da tipologia nietzschiana, no qual esses tipos são<br />

separados e entendidos a partir <strong>de</strong> categorias tipológicas.<br />

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