moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...

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11.04.2013 Views

1. Homem, valor e civilização CAPÍTULO I Hominização e cosmovisão De acordo com Nietzsche, “avaliar” caracteriza-se como o modo tipicamente humano de assimilação da existência. Enquanto os outros animais são determinados a partir de uma rija e sólida disposição dos instintos – o que lhes confere uma considerável homogeneidade comportamental –, o bicho homem, devido à sua complexidade instintual, tem seus instintos fixados pelos seus valores. Isso significa que os instintos dominantes em um homem, só conseguem fixar-se como dominantes, quando transmoldados em uma estimação valorativa. Como “fixar domínio” é justamente o que configura a existência de um ente 1 , temos que a relação entre homem e valor é uma relação necessária. Todo instinto (Trieb) é compreendido pelo filósofo, como “uma espécie de ambição despótica”, e isso de tal modo que “cada um tem a sua perspectiva que gostaria de impor sobre os demais como uma norma” (VP §481). Dito em palavras breves, isso significa que cada instinto busca invariavelmente dominar os demais, para que estes trabalhem na realização daquilo a que ele impele. Os instintos mais fortes impõem-se aos mais fracos – dirigindo, dessa maneira, o animal por eles conformado. Não basta que essa imposição seja momentânea, é necessário que ela se fixe, conforme uma determinada hierarquia instintual. Através das relações hierarquizadas, os instintos tolhem-se mutuamente – o que é imprescindível. Dado o caráter insaciavelmente despótico dos instintos, não havendo moderação, eles simplesmente destroem-se uns aos outros: “todo instinto, enquanto esteja ativo, sacrifica força e outros instintos: finalmente ele é tolhido; caso não o fosse ele destruiria a tudo através do seu desperdício” (VP §372). Diante desse caráter tirânico dos instintos, em nenhum animal, a hierarquia se estabelece pacificamente. Não havendo, porém, oposição entre eles, é possível que cada um realize a sua potência – ainda que sob a coordenação (tolhimento) de um outro mais poderoso. Bem verdade, é justamente nesse aspecto que reside a diferença mais elementar 1 No item seguinte desenvolveremos o porquê desta afirmação. 14

entre homens e “animais”, pois os homens diferentemente dos animais são constituídos por uma profusão de instintos contrários uns aos outros: “em um único homem habita uma vasta confusão de [...] instintos contraditórios [...] o que se dá em contraste aos animais, nos quais todos os instintos existentes correspondem a tarefas [Aufgaben] bastante precisas” (VP §259). Essa rica e confusa compleição instintiva do homem, não lhe possibilita qualquer determinação: tudo dependede como os instintos venham a se hierarquizar – algo de absolutamente imprevisível. Daí Nietzsche considerar o homem como o animal ainda não determinado, isto é, como o animal não fixado de maneira determinada pelos instintos. O fato de o homem ser um animal indeterminado é tomado, por alguns intérpretes da obra nietzschiana, como sinônimo de doença. Para Karl Jaspers, por exemplo, a não fixação do homem o torna necessariamente doente. Curiosamente, é fazendo uso da anotação citada no parágrafo anterior, que ele chega a essa conclusão: “A doença da humanidade 'em contraste aos animais, nos quais todos os instintos existentes correspondem a tarefas bastante precisas ' é expressa pelo fato de que o homem, sendo um mero feixe de possibilidades não realizadas de uma 'natureza indeterminada', 'pulula de avaliações contraditórias e, por conseguinte de impulsos contraditórios'” (JASPERS, 1997, p. 130). Mais do que um ser doente, para Jaspers, a indeterminação faz do homem, um não animal – já que segundo ele, é algo cuja natureza ainda está por ser determinada: “Mas, de fato, o homem não é um animal. É apenas porque ele distingue a si mesmo dos demais animais que é tão óbvio para ele ser um animal ou estar apto a sê-lo” (JASPERS, 1997, p. 129). De maneira diversa, para nós, Nietzsche não apenas defende que o homem é um animal 2 , mas também que, através da criação e fixação dos valores (cujo desenvolvimento será explicitado no presente item), o homem conseguiu, sim, embora não de maneira definitiva ou homogênea, fixar os seus instintos hierarquicamente – sendo justamente esse movimento, o que o constituiu enquanto homem, melhor dizendo, no animal avaliador. Bem verdade, se não lhe fosse nunca possível alguma espécie de determinação, o homem simplesmente teria sucumbido no curso do devir – pois, como dissemos logo no início do presente item, “fixar domínio” é justamente o que, para Nietzsche, configura a existência de um ente. Nesse sentido, não compreendemos o homem como um animal 2 Para que justifiquemos essa nossa compreensão do homem como animal, uma série de outras considerações se fazem ainda necessárias – o que nos obriga, forçosamente, a deixar essa justificação para o terceiro capítulo. 15

1. Homem, valor e <strong>civilização</strong><br />

CAPÍTULO I<br />

Hominização e cosmovisão<br />

De acordo com Nietzsche, “avaliar” caracteriza-se como o modo tipicamente humano<br />

<strong>de</strong> assimilação da existência. Enquanto os outros animais são <strong>de</strong>terminados a partir <strong>de</strong> uma<br />

rija e sólida disposição dos instintos – o que lhes confere uma consi<strong>de</strong>rável homogeneida<strong>de</strong><br />

comportamental –, o bicho homem, <strong>de</strong>vido à sua complexida<strong>de</strong> instintual, tem seus<br />

instintos fixados pelos seus valores. Isso significa que os instintos dominantes em um<br />

homem, só conseguem fixar-se como dominantes, quando transmoldados em uma<br />

estimação valorativa. Como “fixar domínio” é justamente o que configura a existência <strong>de</strong><br />

um ente 1 , temos que a relação entre homem e valor é uma relação necessária.<br />

Todo instinto (Trieb) é compreendido pelo filósofo, como “uma espécie <strong>de</strong> ambição<br />

<strong>de</strong>spótica”, e isso <strong>de</strong> tal modo que “cada um tem a sua perspectiva que gostaria <strong>de</strong> impor<br />

sobre os <strong>de</strong>mais como uma norma” (VP §481). Dito em palavras breves, isso significa que<br />

cada instinto busca invariavelmente dominar os <strong>de</strong>mais, para que estes trabalhem na<br />

realização daquilo a que ele impele. Os instintos mais fortes impõem-se aos mais fracos –<br />

dirigindo, <strong>de</strong>ssa maneira, o animal por eles conformado. Não basta que essa imposição seja<br />

momentânea, é necessário que ela se fixe, conforme uma <strong>de</strong>terminada hierarquia instintual.<br />

Através das relações hierarquizadas, os instintos tolhem-se mutuamente – o que é<br />

imprescindível. Dado o caráter insaciavelmente <strong>de</strong>spótico dos instintos, não havendo<br />

mo<strong>de</strong>ração, eles simplesmente <strong>de</strong>stroem-se uns aos outros: “todo instinto, enquanto esteja<br />

ativo, sacrifica força e outros instintos: finalmente ele é tolhido; caso não o fosse ele<br />

<strong>de</strong>struiria a tudo através do seu <strong>de</strong>sperdício” (VP §372).<br />

Diante <strong>de</strong>sse caráter tirânico dos instintos, em nenhum animal, a hierarquia se<br />

estabelece pacificamente. Não havendo, porém, oposição entre eles, é possível que cada<br />

um realize a sua potência – ainda que sob a coor<strong>de</strong>nação (tolhimento) <strong>de</strong> um outro mais<br />

po<strong>de</strong>roso. Bem verda<strong>de</strong>, é justamente nesse aspecto que resi<strong>de</strong> a diferença mais elementar<br />

1 No item seguinte <strong>de</strong>senvolveremos o porquê <strong>de</strong>sta afirmação.<br />

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