moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...

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11.04.2013 Views

nobres, e cria o “outro mundo” para justificar essa inversão. Através desse outro mundo, o além-do-mundo, os valores nobres e tudo mais que se relaciona com a vida, com o caráter da vontade de potência são negados. Frente a isso, justifica-se a afirmação de Giacoia de que o ascetismo é um processo conduzido inteiramente pela negatividade, no qual toda e qualquer alteridade é negada (GIACOIA, 2002, p.22) – seja esta o mundo, o caráter da vida ou o próprio corpo. Ainda a partir da interpretação de Giacoia, podemos afirmar que o “imaginário reativo” que caracteriza o asceta, “cujo conteúdo é haurido na negação da alteridade, caracteriza, para Nietzsche, a décadence fisiológica transposta para o plano dos afetos” (idem, p. 24): 120 Este mundo é aparente – consequentemente, há um mundo verdadeiro. Este mundo é condicionado – consequentemente, há um mundo incondicionado. Este mundo é contraditório – consequentemente, há um mundo sem contradição. Este mundo está em devir – consequentemente, há um mundo que é. [...] O sofrimento inspira essas conclusões: no fundo são desejos de que pudesse haver tal mundo; do mesmo modo no simples fato de que um outro mundo seja imaginado, um mundo mais valioso, exprime-se ódio contra um mundo que faz sofrer: aqui o ressentimento dos metafísicos contra o real é criativo. (VP §579). Como dissemos já na introdução do presente trabalho, não é nossa pretensão desenvolver a história do ascetismo, nem explicitar as diferentes vertentes presente nesse movimento. No que se refere ao Ocidente, por exemplo, temos dois expoentes principais: o socratismo e o cristianismo. É certo que esses movimentos – compreendidos por Nietzsche, como homogêneos – revelam diferentes estágios do desenvolvimento e soberania do ascetismo, isto é, da vontade de nada. No capítulo IV de Crepúsculo dos Ídolos, podemos observar a diferença de estágio entre esses dois movimentos: o cristianismo, em verdade, é a mais completa expressão do ascetismo, isto é: da sede de vingança, da impotência, da automortificação inventiva etc. De todo modo, ainda que não nos detenhamos nos estágios pelos quais se deu o crescente domínio do ascetismo – afinal, nosso objetivo finda com o entendimento de como ele pôde imperar – é importante que compreendamos, ainda que de uma maneira geral, sob que lógica eles vieram a se conformar. Lógica essa que é sempre a da negação da vida, muito embora o ressentimento não esteja presente em todas as suas expressões – como é o caso do budismo. Detendo-nos, então na perspectiva mais geral do problema do ascetismo, em outras palavras, a mais trabalhada por Nietzsche, podemos afirmar que o asceta promoveu, de “homem do ressentimento”.

acordo com o filósofo, “com apavorante coerência” – que é o que podemos observar na citação acima –, a inversão da equação dos valores aristocráticos – a saber: bom= nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses (GM I §7). Julgando a vida como algo sem valor – “[e]m todos os tempos, os homens mais sábios fizeram o mesmo juízo da vida: ela não vale nada” (CI II §1) –, os ascetas arrancaram os juízos morais de seu caráter condicional, a partir do qual cresceram e têm algum sentido, para colocá-los de acordo com um mundo quimérico, supostamente incondicional. E aqui podemos compreender com propriedade a citação que colocamos logo no início do presente item: “de suas condições maiores, mais profundas e fundamentais” (GM III §11). O asceta, ao negar o caráter da vida, nega não só a supremacia dos nobres, mas a possibilidade de que haja diferentes expressões tipológicas, que haja diferentes expressões culturais: 121 A vontade de uma única moral mostra-se, portanto, na tirania daquela espécie, que talhou essa moral única no corpo, sobre as outras espécies: trata-se do aniquilamento ou uniformização a favor da moral dominante (seja para não ser mais um motivo de temor a ela, seja para ser aproveitado por ela). (VP §315) Uma vez que seu mundo degenerado é incondicional, o asceta passa a medir tudo o que há, que é sempre condicionado, passageiro, de acordo com o seu mundo. A suprema autoridade que o asceta reivindica para o seu mundo, mundo do qual ele é o porta-voz, revela para Nietzsche, a vontade de potência ascética: ele busca uma autoridade tão alto quanto possível, a fim de encontrar-se tão pouco quanto possível humilhado sob ela (VP §275). Dessa maneira coloca o seu tipo, “o bom”, “o feliz”, “o sábio”, “o virtuoso”, como único tipo verdadeiramente existente. Esse bom ascético, que é o mesmo que o bom escravo – ao menos no que se refere ao Ocidente –, representa uma vingança contra os nobres, ao mesmo tempo em que revela a tentativa de trazer para o primeiro plano da existência, as propriedades que servem para promover a sua existência: Que significa essa vontade de poder por parte dos poderes morais que, em colossais desenvolvimentos, passaram até aqui sobre a Terra? Resposta: três poderes se escondem por trás dela: 1. o instinto do rebanho contra os fortes e independentes 2. o instinto dos sofredores e malsucedidos contra os felizes 3. o instinto dos medíocres contra os tipos de exceção. Vantagem incomparável desse movimento, quanto de crueldade, falsidade e estupidez também contribuiu nele: (pois a história do combate moral contra os instintos fundamentais da vida é, ela mesma, a maior imoralidade que já existiu sobre a Terra...) (VP §274)

acordo com o filósofo, “com apavorante coerência” – que é o que po<strong>de</strong>mos observar na<br />

citação acima –, a inversão da equação dos valores aristocráticos – a saber: bom= nobre =<br />

po<strong>de</strong>roso = belo = feliz = caro aos <strong>de</strong>uses (GM I §7). Julgando a vida como algo sem valor<br />

– “[e]m todos os tempos, os homens mais sábios fizeram o mesmo juízo da vida: ela não<br />

vale nada” (CI II §1) –, os ascetas arrancaram os juízos morais <strong>de</strong> seu caráter condicional,<br />

a partir do qual cresceram e têm algum sentido, para colocá-los <strong>de</strong> acordo com um mundo<br />

quimérico, supostamente incondicional. E aqui po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r com proprieda<strong>de</strong> a<br />

citação que colocamos logo no início do presente item: “<strong>de</strong> suas condições maiores, mais<br />

profundas e fundamentais” (GM III §11). O asceta, ao negar o caráter da vida, nega não só<br />

a supremacia dos nobres, mas a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que haja diferentes expressões tipológicas,<br />

que haja diferentes expressões culturais:<br />

121<br />

A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma única moral mostra-se, portanto, na tirania daquela<br />

espécie, que talhou essa moral única no corpo, sobre as outras espécies:<br />

trata-se do aniquilamento ou uniformização a favor da moral dominante<br />

(seja para não ser mais um motivo <strong>de</strong> temor a ela, seja para ser<br />

aproveitado por ela). (VP §315)<br />

Uma vez que seu mundo <strong>de</strong>generado é incondicional, o asceta passa a medir tudo o<br />

que há, que é sempre condicionado, passageiro, <strong>de</strong> acordo com o seu mundo. A suprema<br />

autorida<strong>de</strong> que o asceta reivindica para o seu mundo, mundo do qual ele é o porta-voz,<br />

revela para Nietzsche, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> potência ascética: ele busca uma autorida<strong>de</strong> tão alto<br />

quanto possível, a fim <strong>de</strong> encontrar-se tão pouco quanto possível humilhado sob ela (VP<br />

§275). Dessa maneira coloca o seu tipo, “o bom”, “o feliz”, “o sábio”, “o virtuoso”, como<br />

único tipo verda<strong>de</strong>iramente existente. Esse bom ascético, que é o mesmo que o bom<br />

escravo – ao menos no que se refere ao Oci<strong>de</strong>nte –, representa uma vingança contra os<br />

nobres, ao mesmo tempo em que revela a tentativa <strong>de</strong> trazer para o primeiro plano da<br />

existência, as proprieda<strong>de</strong>s que servem para promover a sua existência:<br />

Que significa essa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r por parte dos po<strong>de</strong>res morais que,<br />

em colossais <strong>de</strong>senvolvimentos, passaram até aqui sobre a Terra?<br />

Resposta: três po<strong>de</strong>res se escon<strong>de</strong>m por trás <strong>de</strong>la: 1. o instinto do<br />

rebanho contra os fortes e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes 2. o instinto dos sofredores e<br />

malsucedidos contra os felizes 3. o instinto dos medíocres contra os tipos<br />

<strong>de</strong> exceção. Vantagem incomparável <strong>de</strong>sse movimento, quanto <strong>de</strong><br />

cruelda<strong>de</strong>, falsida<strong>de</strong> e estupi<strong>de</strong>z também contribuiu nele: (pois a história<br />

do combate moral contra os instintos fundamentais da vida é, ela mesma,<br />

a maior i<strong>moralida<strong>de</strong></strong> que já existiu sobre a Terra...) (VP §274)

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