moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...

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11.04.2013 Views

118 caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu mundo, sua segurança, seu bálsamo; ele entende do silêncio, do não-esquecimento, da espera, do momentâneo apequenamento e da humilhação própria. Uma raça de tais homens do ressentimento resultará necessariamente mais inteligente que qualquer raça nobre, e venerará a inteligência numa medida muito maior: a saber, como uma condição de existência de primeira ordem, enquanto para os homens nobres ela facilmente adquire um gosto sutil de luxo e refinamento – pois neles ela está longe de ser tão essencial quanto a completa certeza de funcionamento dos instintos reguladores inconscientes” (GM I §10) A partir do que foi posto acima podemos perceber que, para Nietzsche, o desenvolvimento da inteligência e da consciência se configura como condição de conservação e crescimento de um determinado tipo. Os valores que colocam esse desenvolvimento como algo “venerável”, almejado, como algo a ser assegurado são os valores expressos pelo asceta e que afirmam o seu tipo. Curioso, porém é pensar que o desenvolvimento da inteligência está associado à promoção da doença, às condições de conservação e crescimento do que é doente, pois o tipo ascético, como já sabemos, é o doente que se quer doente, que frui a sua doença, o seu sofrimento. Frente a isso, já temos como vislumbrar o que Nietzsche pretende dizer quando afirma que “somente no âmbito dessa forma essencialmente perigosa de existência humana, a sacerdotal, é que o homem se tornou um animal interessante” (GM I §6) – para o filósofo, estar doente é mais instrutivo do que estar são (GM III §9). Além do que já foi pontuado, para Nietzsche, com o sacerdote ascético “a alma humana ganhou em profundidade num sentido superior e tornou-se má” (GM I §6). Ora, observemos que a “maldade” do sacerdote ascético em muito se diferencia da do nobre. Pois o nobre, um superficial que não sabia separar a vontade do ato, simplesmente exteriorizava a sua agressividade, mas o sacerdote, sendo o “grande odiador”, o que se opõe, por inveja, ambição e ressentimento a tudo aquilo que é vigoroso e expressa o caráter da vontade de potência é, para o filósofo, o mais terrível inimigo: “Na sua impotência o ódio toma proporções sinistras, torna-se coisa mais espiritual e venenosa [...] comparado ao espírito da vingança sacerdotal, todo espírito restante empalidece. A história humana seria uma tolice, sem o espírito que os impotentes lhe trouxeram” (GM I 7). Apesar da interpretação ascética e o tipo ascético serem inerentes um ao outro, é importante que tenhamos em mente que essa interpretação surge de maneira interessada: para garantir o domínio do seu tipo e ao mesmo tempo promover a sua vingança para com os nobres. Tal como vimos, no item 2 do capítulo anterior, o tipo nobre tinha na noção de bom a própria afirmação de si, a afirmação dos “estados de alma elevados e orgulhosos que são

considerados distintivos e determinantes na hierarquia” (BM §260). O que, porém, não estava relacionado a ele, o tipo escravo e as suas respectivas características, não era sentido como algo odioso, mas simplesmente como algo comum, plebeu, simples – e aí temos, como mencionamos anteriormente (página 71), a origem da noção “ruim”. De acordo com a genealogia nietzschiana, paralelamente à transformação conceitual de “aristocrático” em “bom”, deu-se, a transformação de plebeu em “ruim” (GM I §4): “O homem nobre afasta de si os seres nos quais se exprime o contrário desses estados de elevação e orgulho: ele os despreza” (BM §260). Nascida no seio de uma época aristocrática, a moral sacerdotal – lembremos que o sacerdote, no seu surgimento, comunga em parte dos valores nobres –, deriva da moral dos senhores, afinal ela, apesar de colocar-se de acordo com a degenerescência, tanto se mantém na perspectiva do valor, quanto tem a sua escala de valores dada entre dois pólos – sendo esses, no seu caso, “bom” e “mau”. Todavia, – e aqui temos um primeiro indício para compreender o porquê do império ascético –, a valoração ascética só consegue estabelecer-se com o declínio dos valores nobres, em outras palavras, dos valores que se põem de acordo com a vida (e aqui deparamo-nos com certa normatividade por parte de Nietzsche). Somente com o declínio da nobreza é que o termo “bom” passa a designar unicamente a aristocracia espiritual. E os sacerdotes apoderaram-se desta transformação, de modo a conceber no “bom” justamente aquilo que era tido como desprezível pela moral dos senhores, tal como a “compaixão, a mão solícita e afável, o coração cálido, a paciência, a diligência, a humildade, a amabilidade”, enfim “as propriedades que servem para aliviar a existência dos que sofrem” e como “mau” as propriedades veneradas pelos senhores, como o poder, a periculosidade, enfim tudo o que lhes inspirava medo (BM §260). De acordo com Nietzsche, os sacerdotes promoveram uma radical trasvaloração dos valores nobres (GM I §7). Na concepção nietzschiana, a transvaloração dos valores promovida pelo asceta – “ato da mais espiritual vingança” (GM I §7) – tem como marco criador a negação dos valores nobres. Estando vedada ao asceta a verdadeira reação, a dos atos, tudo o que lhe resta é obter reparo através de uma vingança imaginária. Nesse sentido é que, para Marton, é “a impossibilidade de agir neste mundo que o leva a forjar a existência de outro, onde terá posição de destaque” 75 (MARTON, 1990, p. 75). O asceta, portanto, inverte os valores 75 Marton parece não conceber o tipo ascético como aquele a quem, para Nietzsche, cabe as honras pela criação do “outro mundo”. Naturalmente, ela não nega que esse seja um dos papéis do asceta, mas ao falar do “responsável” pela criação do “outro mundo”, utiliza um termo mais genérico – qual seja, 119

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caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu mundo, sua<br />

segurança, seu bálsamo; ele enten<strong>de</strong> do silêncio, do não-esquecimento, da<br />

espera, do momentâneo apequenamento e da humilhação própria. Uma<br />

raça <strong>de</strong> tais homens do ressentimento resultará necessariamente mais<br />

inteligente que qualquer raça nobre, e venerará a inteligência numa<br />

medida muito maior: a saber, como uma condição <strong>de</strong> existência <strong>de</strong><br />

primeira or<strong>de</strong>m, enquanto para os homens nobres ela facilmente adquire<br />

um gosto sutil <strong>de</strong> luxo e refinamento – pois neles ela está longe <strong>de</strong> ser tão<br />

essencial quanto a completa certeza <strong>de</strong> funcionamento dos instintos<br />

reguladores inconscientes” (GM I §10)<br />

A partir do que foi posto acima po<strong>de</strong>mos perceber que, para Nietzsche, o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

da inteligência e da consciência se configura como condição <strong>de</strong> conservação e crescimento<br />

<strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado tipo. Os valores que colocam esse <strong>de</strong>senvolvimento como algo<br />

“venerável”, almejado, como algo a ser assegurado são os valores expressos pelo asceta e<br />

que afirmam o seu tipo. Curioso, porém é pensar que o <strong>de</strong>senvolvimento da inteligência<br />

está associado à promoção da doença, às condições <strong>de</strong> conservação e crescimento do que é<br />

doente, pois o tipo ascético, como já sabemos, é o doente que se quer doente, que frui a sua<br />

doença, o seu sofrimento. Frente a isso, já temos como vislumbrar o que Nietzsche<br />

preten<strong>de</strong> dizer quando afirma que “somente no âmbito <strong>de</strong>ssa forma essencialmente<br />

perigosa <strong>de</strong> existência humana, a sacerdotal, é que o homem se tornou um animal<br />

interessante” (GM I §6) – para o filósofo, estar doente é mais instrutivo do que estar são<br />

(GM III §9).<br />

Além do que já foi pontuado, para Nietzsche, com o sacerdote ascético “a alma<br />

humana ganhou em profundida<strong>de</strong> num sentido superior e tornou-se má” (GM I §6). Ora,<br />

observemos que a “malda<strong>de</strong>” do sacerdote ascético em muito se diferencia da do nobre.<br />

Pois o nobre, um superficial que não sabia separar a vonta<strong>de</strong> do ato, simplesmente<br />

exteriorizava a sua agressivida<strong>de</strong>, mas o sacerdote, sendo o “gran<strong>de</strong> odiador”, o que se<br />

opõe, por inveja, ambição e ressentimento a tudo aquilo que é vigoroso e expressa o caráter<br />

da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> potência é, para o filósofo, o mais terrível inimigo: “Na sua impotência o<br />

ódio toma proporções sinistras, torna-se coisa mais espiritual e venenosa [...] comparado ao<br />

espírito da vingança sacerdotal, todo espírito restante empali<strong>de</strong>ce. A história humana seria<br />

uma tolice, sem o espírito que os impotentes lhe trouxeram” (GM I 7). Apesar da<br />

interpretação ascética e o tipo ascético serem inerentes um ao outro, é importante que<br />

tenhamos em mente que essa interpretação surge <strong>de</strong> maneira interessada: para garantir o<br />

domínio do seu tipo e ao mesmo tempo promover a sua vingança para com os nobres.<br />

Tal como vimos, no item 2 do capítulo anterior, o tipo nobre tinha na noção <strong>de</strong> bom a<br />

própria afirmação <strong>de</strong> si, a afirmação dos “estados <strong>de</strong> alma elevados e orgulhosos que são

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