moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...
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para com os po<strong>de</strong>rosos. Apesar <strong>de</strong> a interpretação do asceta surgir a partir dos seus<br />
intricados mecanismos psicológicos, ela se configura, para o filósofo, como uma<br />
interpretação interessada: garantir seu domínio e ao mesmo tempo promover a sua<br />
vingança para com os nobres. Notemos que o nobre, cujos instintos se exteriorizavam<br />
livremente, é, sob a lógica da moral ascética, absolutamente culpado perante <strong>de</strong>us.<br />
Como afirma Carlos A. R. <strong>de</strong> Moura, ao “medir-se com os fortes, a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
condições e dos talentos parecerá ao fraco um escândalo, ele se porá em busca dos<br />
culpáveis por semelhante injustiça. Esta será a astúcia do seu ego doentio: ele escolherá<br />
dominar indiretamente seus instintos caóticos, colocando-os sob o julgo da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
vingança” (MOURA, 2005, p. 245). Frente a essa instigante consi<strong>de</strong>ração, fica claro, já <strong>de</strong><br />
antemão, que a moral empreendida pelo asceta é uma con<strong>de</strong>nação ressentida dos nobres<br />
que conduz à auto-afirmação. O sacerdote, o “organizador do rebanho <strong>de</strong> escravos” 74<br />
(i<strong>de</strong>m, p. 148) é, para Nietzsche, o gran<strong>de</strong> “odiador”: “Na história universal, os gran<strong>de</strong>s<br />
odiadores sempre foram sacerdotes, também os mais ricos em espírito” (GM I §7).<br />
A capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar todo um reino na consciência (o reino <strong>de</strong> <strong>de</strong>us) significa, para<br />
Nietzsche, que o tipo ascético acabou por resultar em um animal mais inteligente. Po<strong>de</strong>mos<br />
perceber que o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um “reino” na consciência indica que o sacerdote foi o<br />
responsável pelo <strong>de</strong>senvolvimento da própria consciência, isto é, foi o responsável por<br />
tornar o “órgão mais frágil e mais falível”, num órgão <strong>de</strong> primeira instância, num órgão<br />
capaz <strong>de</strong> tiranizar os instintos. Sem a “segurança do instinto”, nele, a inteligência, a<br />
consciência inflada, torturante, são condições <strong>de</strong> existência. Notemos que, não sendo<br />
dotado do equilíbrio entre memória e esquecimento, tudo o que lhe restava era justamente<br />
<strong>de</strong>senvolver a consciência, o que implica no <strong>de</strong>senvolvimento da própria inteligência. Dito<br />
isso, parece bastante natural que o tipo ascético resulte em um animal mais inteligente do<br />
que qualquer raça nobre:<br />
117<br />
Sua alma olha <strong>de</strong> través, ele ama os refúgios, os subterfúgios, os<br />
74 Moura parece admitir que a moral ascética não é exatamente a mesma que a moral <strong>de</strong> escravos, muito<br />
embora admita que ambas tenham crescido no solo do ressentimento (MOURA, 2005, p. 132). Para nós,<br />
porém, esses termos são intercambiáveis, apesar <strong>de</strong> naturalmente indicarem perspectivas diferentes. Na<br />
nossa concepção, uma vez que o escravo, como um fraco, não tem força para impor uma perspectiva não<br />
há sentido em falar <strong>de</strong> uma moral escrava, na qual não esteja sendo levada em conta a presença do asceta.<br />
Como comprovação disso, dirijamo-nos tanto a Além do Bem e do Mal quanto à Genealogia da Moral.<br />
No primeiro, Nietzsche, ao introduzir o que ele enten<strong>de</strong> por “moral <strong>de</strong> escravos”, no conhecido aforismo<br />
260, ele a coloca como suposição: “Supondo que os violentados, oprimidos, prisioneiros, sofredores,<br />
inseguros e cansados <strong>de</strong> si moralizem: o que terão em comum suas valorações morais?”. Já na<br />
Genealogia, a valoração escrava e o tipo ascético são tratados, ao longo <strong>de</strong> todo o livro, como<br />
indissociáveis.