moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...

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11.04.2013 Views

Em um tempo em que os valores eram cunhados por homens violentos, naturalmente temor e reverência eram indissociáveis 71 . Sendo “o sofrimento, a crueldade, a dissimulação, a vingança, o repúdio à verdade” claras virtudes (GM II §9), o único modo de aquele novo tipo se fazer respeitado era “inspirar um decidido temor a si”. E isso não apenas diante dos outros homens, mas – e como uma necessidade ainda mais fundamental – diante de si mesmos. Pois notemos, que os homens contemplativos com a criação de novos hábitos estavam criando novos valores e com estes todo um outro modo de portarse, de colocar-se perante a existência. Contudo, sendo membros de uma determinada comunidade, os deuses e a tradição referentes a essa comunidade que, como sabemos, estavam de acordo com a moral dos senhores, conformavam-lhes em uma boa medida – estando aí uma outra fonte de conflito. Para poderem, então, crer em sua inovação, e com isso, crer em si mesmos, esses homens tiveram a necessidade de primeiro violentar dentro de si esses deuses e tradição. E quais foram os meios empregados? Ora, não é de admirar que sendo homens de tempos terríveis, eles dispusessem de meios igualmente terríveis, tais como a crueldade consigo, a automortificação inventiva, o automartírio, suplícios: 110 Lembro a famosa história do rei Vishvamitra, que através de milênios de automartírio alcançou tal sentimento de poder e confiança em si que empreendeu a tarefa de construir um novo céu: [...] todo aquele que alguma vez construiu um novo céu, encontrou poder para isso apenas no próprio inferno. (GM III §10) Retomando a relação entre credor e devedor – que, como vimos, configura o molde das relações pré-históricas, seja dos homens entre si, ou desses para com o “Estado” –, Nietzsche afirma que ela “foi mais uma vez, e de maneira historicamente curiosa e problemática, introduzida [...] na relação entre os vivos e seus antepassados”. Nas comunidades arcaicas, imperava a convicção de que a sua subsistência era viabilizada pelos sacrifícios e realizações dos antepassados, em especial para com os primeiros, os fundadores da estirpe (GM II §19). Essa convicção não estava posta como um mero vínculo de sentimento – coisa que, para Nietzsche, não existia nesse mais longo período da existência humana –, mas sim como obrigação jurídica: “reconhece-se uma dívida [Schuld] que cresce permanentemente, pelo fato de que os antepassados não cessam, em sua 71 Bem verdade, para Nietzsche, independentemente de uma questão de época, tudo aquilo que é potente, triunfante, que quer tornar-se maior desperta reverência na mesma medida em que desperta temor (GM I §12).

sobrevida como espíritos poderosos de conceder à estirpe novas vantagens e adiantamentos a partir da sua força” (idem). Observemos que o modo de pagamento dessa dívida tanto se põe de acordo com a mnemotécnica, quanto fortalece a moralidade dos costumes, em outras palavras, a linha, o todo orgânico que um determinado indivíduo representa – além de ser uma importante expressão do prazer na crueldade: 111 O que se pode lhes dar em troca? Sacrifícios (inicialmente para a alimentação, entendida do modo mais grosseiro), festas, músicas, homenagens, sobretudo obediência – pois os costumes são obras dos antepassados, também seus preceitos e ordens –: é possível lhes dar bastante? Esta suspeita cresce e aumenta: de quando em quando exige um imenso resgate, algo monstruoso como pagamento ao “credor” (o famigerado sacrifício do primogênito, por exemplo; sangue, sangue humano, em todo caso). (ibidem) Diferentemente do que podemos supor, para Nietzsche, “o medo do ancestral e do seu poder, a consciência de ter dívidas para com ele – dívidas que podem ser consideradas como uma espécie rudimentar de culpa –, cresce na medida exata em que cresce o poder da estirpe, na medida em que ela se torna mais vitoriosa, independente, venerada e temida”. Nesse sentido, podemos então afirmar que os ancestrais das estirpes mais poderosas assumiram, “por força da fantasia do temor crescente”, proporções cada vez mais gigantescas até, por fim, desaparecerem “na treva de uma dimensão divina inquietante e inconcebível”. Para Nietzsche, é na transfiguração do ancestral dessas estirpes mais poderosas que se encerra a origem da concepção de deus – “uma origem no medo portanto!” (ibidem). Com a aristocratização das estirpes mais poderosas – o que ocorre na era intermediária –, é constituída uma nova forma de relação com os deuses, uma vez que eles também são aristocratizados. De acordo com o filósofo, formadas as estirpes nobres, elas, de fato, “restituíram com juros, a seus criadores, seus ancestrais (deuses, heróis), as qualidades que nesse meio tempo se haviam tornado evidentes nelas mesmas, as qualidades nobres” (ibidem). Utilizando, como exemplo, os deuses gregos, Nietzsche afirma que eles seriam os reflexos e expressão máxima das qualidades dos homens nobres e senhores de si, o que, por sua vez, viria a divinizar o animal no homem e assim esse não se dilacerava, não se enraivecia consigo (GM II §23). Curiosamente, Nietzsche menciona que os gregos, “essas crianças magníficas e leoninas”, utilizavam dos seus deuses precisamente para manter afastada a má consciência (idem). Se, em consonância com Nietzsche, podemos afirmar que os escravos e servos de

Em um tempo em que os valores eram cunhados por homens violentos, naturalmente<br />

temor e reverência eram indissociáveis 71 . Sendo “o sofrimento, a cruelda<strong>de</strong>, a<br />

dissimulação, a vingança, o repúdio à verda<strong>de</strong>” claras virtu<strong>de</strong>s (GM II §9), o único modo<br />

<strong>de</strong> aquele novo tipo se fazer respeitado era “inspirar um <strong>de</strong>cidido temor a si”. E isso não<br />

apenas diante dos outros homens, mas – e como uma necessida<strong>de</strong> ainda mais fundamental<br />

– diante <strong>de</strong> si mesmos. Pois notemos, que os homens contemplativos com a criação <strong>de</strong><br />

novos hábitos estavam criando novos valores e com estes todo um outro modo <strong>de</strong> portarse,<br />

<strong>de</strong> colocar-se perante a existência. Contudo, sendo membros <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada<br />

comunida<strong>de</strong>, os <strong>de</strong>uses e a tradição referentes a essa comunida<strong>de</strong> que, como sabemos,<br />

estavam <strong>de</strong> acordo com a moral dos senhores, conformavam-lhes em uma boa medida –<br />

estando aí uma outra fonte <strong>de</strong> conflito. Para po<strong>de</strong>rem, então, crer em sua inovação, e com<br />

isso, crer em si mesmos, esses homens tiveram a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> primeiro violentar <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> si esses <strong>de</strong>uses e tradição. E quais foram os meios empregados? Ora, não é <strong>de</strong> admirar<br />

que sendo homens <strong>de</strong> tempos terríveis, eles dispusessem <strong>de</strong> meios igualmente terríveis, tais<br />

como a cruelda<strong>de</strong> consigo, a automortificação inventiva, o automartírio, suplícios:<br />

110<br />

Lembro a famosa história do rei Vishvamitra, que através <strong>de</strong> milênios <strong>de</strong><br />

automartírio alcançou tal sentimento <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e confiança em si que<br />

empreen<strong>de</strong>u a tarefa <strong>de</strong> construir um novo céu: [...] todo aquele que<br />

alguma vez construiu um novo céu, encontrou po<strong>de</strong>r para isso apenas no<br />

próprio inferno. (GM III §10)<br />

Retomando a relação entre credor e <strong>de</strong>vedor – que, como vimos, configura o mol<strong>de</strong><br />

das relações pré-históricas, seja dos homens entre si, ou <strong>de</strong>sses para com o “Estado” –,<br />

Nietzsche afirma que ela “foi mais uma vez, e <strong>de</strong> maneira historicamente curiosa e<br />

problemática, introduzida [...] na relação entre os vivos e seus antepassados”. Nas<br />

comunida<strong>de</strong>s arcaicas, imperava a convicção <strong>de</strong> que a sua subsistência era viabilizada<br />

pelos sacrifícios e realizações dos antepassados, em especial para com os primeiros, os<br />

fundadores da estirpe (GM II §19). Essa convicção não estava posta como um mero<br />

vínculo <strong>de</strong> sentimento – coisa que, para Nietzsche, não existia nesse mais longo período da<br />

existência humana –, mas sim como obrigação jurídica: “reconhece-se uma dívida [Schuld]<br />

que cresce permanentemente, pelo fato <strong>de</strong> que os antepassados não cessam, em sua<br />

71 Bem verda<strong>de</strong>, para Nietzsche, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> uma questão <strong>de</strong> época, tudo aquilo que é potente,<br />

triunfante, que quer tornar-se maior <strong>de</strong>sperta reverência na mesma medida em que <strong>de</strong>sperta temor (GM I<br />

§12).

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