moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...

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106 domado, o eternamente futuro, que não encontra sossego de uma força própria que o impele, de modo que seu futuro, uma espora, mergulha na carne de todo presente – como não seria tão rico animal também o mais exposto ao perigo, o mais longa e profundamente enfermo entre todos os animais enfermos? (GM III §13) Numa perspectiva diferente, também ousamos discordar de André Itaparica, pois para ele, Nietzsche, nas suas interpretações acerca da moral, “elucubra como a cultura, enquanto um fenômeno natural, fez o homem passar de animal de rapina para animal doméstico” (ITAPARICA, 2008, p. ). Ora, de fato, a cultura, quando dominada pelo ascetismo, decerto faz desaparecer o animal de rapina, mas somente quando dominada pelo ideal ascético. Pois tal como vimos, a própria origem do Estado surge justamente a partir do animal de rapina e mais do que isso é posto como meio para a sua auto-elevação. Traçar uma relação absoluta entre cultura e a domesticação doentia, constitui-se para o próprio filósofo como um erro: Supondo que fosse verdadeiro o que agora se crê como “verdade”, ou seja, que o sentido de toda cultura é amestrar o animal de rapina “homem”, reduzi-lo a um animal manso, civilizado, doméstico, então deveríamos sem dúvida tomar aqueles instintos de reação e ressentimento, com cujo auxílio foram finalmente liquidadas e vencidas as estirpes nobres e os seus ideais, como autênticos instrumentos da cultura; com o que estaria dizendo que seus portadores representem eles mesmos a cultura. O contrário é que seria não apenas provável – não! atualmente é palpável! [...] Esses “instrumentos da cultura são uma vergonha para o homem, e na verdade uma acusação, um argumento contrário à “cultura”! (GM I §11) Aqui, portanto, explicitado o significado e formação da má-consciência, encerramos o presente item. Antes, porém, relembremos que, estando a doença da “maioria explorada” sob o jugo dos senhores, não se tem propriamente um problema, como, por exemplo, a doença da sociedade. Lembremos que para Nietzsche uma sociedade saudável não existe para o bem de todos, mas para o bem dos nobres, dos homens superiores que detêm o poder: O essencial numa aristocracia boa e sã é que não se sinta como função, mas como seu sentido e suprema justificativa [...] – que portanto aceite com boa consciência o sacrifício de inúmeros homens que, por sua causa, devem ser oprimidos e reduzidos a seres incompletos, escravos, instrumentos. Sua fé fundamental tem de ser que a sociedade não deve existir a bem da sociedade, mas apenas como alicerce e andaime no qual um tipo seleto de seres possa elevar-se até sua tarefa superior de modo a ser superior (BM §258).

Todavia, como bem o sabemos, essa subjugação será em um dado momento inviável: pois tanto o homem submisso e sofredor entrará em franco colapso, quanto os próprios nobres e, por conseguinte, o seu domínio – afinal, tudo aquilo que se forma vem, em algum momento, a perecer. 2. O tipo ascético: a criação de um novo poder A partir de tudo o que foi desenvolvido no item anterior, não é difícil concluir que o processo de décadence, anarquia instintiva que torna a existência insuportável, atingirá, primeiramente, os homens subalternos. Afinal, eles, sob a impossibilidade de exteriorizarem os seus instintos, passaram a tê-los se contrapondo de maneira doentia e autodestrutiva – sendo essa contraposição não um mero estado, mas sim aquilo que veio distinguir esses homens, configurá-los enquanto “tipo”. Pois, notemos que a exploração à qual estavam submetidos estendeu-se ao longo de gerações, e, assim, o esgotamento, uma vez iniciado, foi tanto transmitido hereditariamente, quanto pelo meio – alimentação insuficiente, condições precárias de higiene, exploração física. Perante esse fenômeno, concebido, pelo filósofo, como “feio e doloroso” (GM II §18), décadence como estado normal, podemos nos perguntar, o que fez com que esse homem, o sofredor de si, insistisse na sua existência degenerada, em outras palavras, o que o impediu de, estando sob a lógica da décadence, dar um “salto no nada” e finalizar a vida que a ele só se apresentou como sofrimento. Ora, tal como explicitamos no item 3 do capítulo anterior, esse “salto no nada” pode tanto se realizar a partir do suicídio direto, seja coletivo ou individual, quanto a partir de práticas abusivas que conduzem, paulatinamente, ao autoextermínio. A resposta a essa questão não é simples. Bem verdade, nela se encerra o objetivo da presente dissertação, que é o de compreender como os valores ascéticos, valores hostis à vida, puderam se formar e vir a imperar. Para que cheguemos a esse nosso objetivo, que como já podemos supor, em tudo está relacionado à conservação do homem portador da má-consciência, temos de compreender o tipo ascético. Pois o asceta, com a sua oculta violação de si mesmo (ele também é um homem de má-consciência), fez-se ventre de acontecimentos e ideais imaginosos (GM II §18), oferecendo com isso toda uma interpretação, todo um significado à má-consciência e ao sofrimento que dela advém – sendo justamente esta interpretação o que possibilitou a permanência e conseguinte 107

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domado, o eternamente futuro, que não encontra sossego <strong>de</strong> uma força<br />

própria que o impele, <strong>de</strong> modo que seu futuro, uma espora, mergulha na<br />

carne <strong>de</strong> todo presente – como não seria tão rico animal também o mais<br />

exposto ao perigo, o mais longa e profundamente enfermo entre todos os<br />

animais enfermos? (GM III §13)<br />

Numa perspectiva diferente, também ousamos discordar <strong>de</strong> André Itaparica, pois para<br />

ele, Nietzsche, nas suas interpretações acerca da moral, “elucubra como a cultura, enquanto<br />

um fenômeno natural, fez o homem passar <strong>de</strong> animal <strong>de</strong> rapina para animal doméstico”<br />

(ITAPARICA, 2008, p. ). Ora, <strong>de</strong> fato, a cultura, quando dominada pelo ascetismo, <strong>de</strong>certo<br />

faz <strong>de</strong>saparecer o animal <strong>de</strong> rapina, mas somente quando dominada pelo i<strong>de</strong>al ascético.<br />

Pois tal como vimos, a própria origem do Estado surge justamente a partir do animal <strong>de</strong><br />

rapina e mais do que isso é posto como meio para a sua auto-elevação. Traçar uma relação<br />

absoluta entre cultura e a domesticação doentia, constitui-se para o próprio filósofo como<br />

um erro:<br />

Supondo que fosse verda<strong>de</strong>iro o que agora se crê como “verda<strong>de</strong>”, ou<br />

seja, que o sentido <strong>de</strong> toda cultura é amestrar o animal <strong>de</strong> rapina<br />

“homem”, reduzi-lo a um animal manso, civilizado, doméstico, então<br />

<strong>de</strong>veríamos sem dúvida tomar aqueles instintos <strong>de</strong> reação e<br />

ressentimento, com cujo auxílio foram finalmente liquidadas e vencidas<br />

as estirpes nobres e os seus i<strong>de</strong>ais, como autênticos instrumentos da<br />

cultura; com o que estaria dizendo que seus portadores representem eles<br />

mesmos a cultura. O contrário é que seria não apenas provável – não!<br />

atualmente é palpável! [...] Esses “instrumentos da cultura são uma<br />

vergonha para o homem, e na verda<strong>de</strong> uma acusação, um argumento<br />

contrário à “cultura”! (GM I §11)<br />

Aqui, portanto, explicitado o significado e formação da má-consciência, encerramos o<br />

presente item. Antes, porém, relembremos que, estando a doença da “maioria explorada”<br />

sob o jugo dos senhores, não se tem propriamente um problema, como, por exemplo, a<br />

doença da socieda<strong>de</strong>. Lembremos que para Nietzsche uma socieda<strong>de</strong> saudável não existe<br />

para o bem <strong>de</strong> todos, mas para o bem dos nobres, dos homens superiores que <strong>de</strong>têm o<br />

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O essencial numa aristocracia boa e sã é que não se sinta como função,<br />

mas como seu sentido e suprema justificativa [...] – que portanto aceite<br />

com boa consciência o sacrifício <strong>de</strong> inúmeros homens que, por sua causa,<br />

<strong>de</strong>vem ser oprimidos e reduzidos a seres incompletos, escravos,<br />

instrumentos. Sua fé fundamental tem <strong>de</strong> ser que a socieda<strong>de</strong> não <strong>de</strong>ve<br />

existir a bem da socieda<strong>de</strong>, mas apenas como alicerce e andaime no qual<br />

um tipo seleto <strong>de</strong> seres possa elevar-se até sua tarefa superior <strong>de</strong> modo a<br />

ser superior (BM §258).

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