moralidade, civilização e decadência - Programa de Pós ...
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Para Nietzsche, então, a cruelda<strong>de</strong> constituía – e em certa medida ainda constitui, embora<br />
<strong>de</strong> maneira sublimada – o gran<strong>de</strong> prazer festivo da humanida<strong>de</strong> antiga (GM II §6). Não<br />
pensemos, porém, que tal constatação indique alguma espécie <strong>de</strong> argumento contra o<br />
homem. Dada a i<strong>de</strong>ntificação entre homem e vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> potência, entre vida e vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
potência, o prazer na cruelda<strong>de</strong> é um traço psicológico esperado, natural – e daí o filósofo<br />
falar, com certo júbilo, acerca do fazer-sofrer como um encanto <strong>de</strong> primeira or<strong>de</strong>m, como<br />
um verda<strong>de</strong>iro chamariz à vida:<br />
102<br />
Ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais bem ainda – eis uma frase dura,<br />
mais um velho e sólido axioma, humano, <strong>de</strong>masiado humano, que talvez<br />
até os símios subscrevessem: conta-se que na invenção das cruelda<strong>de</strong>s<br />
bizarras eles já anunciam e como que “preludiam” o homem. Sem<br />
cruelda<strong>de</strong> não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história<br />
do homem – e no castigo também há muito <strong>de</strong> festivo! (i<strong>de</strong>m)<br />
Ao contrário do que po<strong>de</strong>mos imaginar, não foi <strong>de</strong>ssa cruelda<strong>de</strong> prazerosa e ao mesmo<br />
tempo útil, já que instrumento primordial da mnemotécnica, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> surgiu a grave doença<br />
que abateu o homem. Até mesmo porque, observemos, a sensibilida<strong>de</strong> do homem primevo<br />
à dor não era, <strong>de</strong> acordo com o filósofo, a mesma do que a <strong>de</strong> um homem mo<strong>de</strong>rno,<br />
espiritualizado: “A curva da sensibilida<strong>de</strong> humana à dor parece <strong>de</strong> fato cair<br />
extraordinariamente, e quase <strong>de</strong> repente, assim que <strong>de</strong>ixamos para trás os primeiros 10 mil<br />
ou 10 milhões <strong>de</strong> indivíduos da hipercultura” (GM II §7). Ao que parece, a má-consciência<br />
surge não do ser alvo da cruelda<strong>de</strong>, mas do não po<strong>de</strong>r exercê-la.<br />
Como dissemos anteriormente, uma vez que diferentes povos configuram diferentes<br />
organismos, eles, em um mesmo período <strong>de</strong> tempo, apresentam-se em diferentes estágios<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. Sob essa lógica, temos, então que, nos tempos primevos, enquanto<br />
<strong>de</strong>terminados clãs já haviam, por exemplo, alcançado a automatização dos instintos, outros<br />
malmente haviam <strong>de</strong>senvolvido os seus costumes, melhor dizendo, malmente haviam<br />
entrado no estágio da <strong>moralida<strong>de</strong></strong> dos costumes. Observemos que, no caso <strong>de</strong> ser<br />
<strong>de</strong>flagrado o domínio e, portanto, a exploração dos clãs mais avançados, e mais fortes –<br />
compostos <strong>de</strong> homens mais “inteiros” –, sobre os mais rudimentares – “população talvez<br />
imensamente superior em número, mas ainda informe e nôma<strong>de</strong>” (GM II §17) –, ocorrerá<br />
uma mudança radical, uma ruptura geral no que se refere à vida, ao modo <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>sses