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A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a marinha – Alguns<br />
apontamentos autobiográficos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong><br />
<strong>para</strong> a marinha – Alguns apontamentos<br />
autobiográficos A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a<br />
marinha – Alguns apontamentos autobiográfi-<br />
cos A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a marinha –<br />
Alguns apontamentos autobiográ A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong><br />
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
<strong>para</strong> a marinha – Alguns apontamentos<br />
autobiográficos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a<br />
Alguns apontamentos autobiográficos<br />
marinha – Alguns apontamentos autobiográfi-<br />
cos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a marinha –<br />
Alguns apontamentos autobiográficos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a marinha – Alguns apontamen-<br />
tos autobiográficos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a<br />
marinha – Alguns apontamentos autobiográfi-<br />
cos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a marinha –<br />
Alguns apontamentos autobiográficos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a marinha – Alguns apontamen-<br />
1<br />
tos autobiográficos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a<br />
marinha – Alguns apontamentos autobiográfi-<br />
2002<br />
José Monteiro Morais
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
2
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Alguns apontamentos autobiográficos<br />
José Monteiro Morais<br />
3
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
4
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
INTRODUÇÃO<br />
Com este trabalho, o <strong>Zé</strong> pretende recrear-se recordan<strong>do</strong> e contan<strong>do</strong><br />
ocorrências, na sua grande maioria, de caracter humorístico, bem de<br />
acor<strong>do</strong> com o mo<strong>do</strong> de estar da marujada.<br />
São peripécias que foram suceden<strong>do</strong> ao longo da caminhada desde<br />
<strong>Zé</strong> que saiu, aos 20 anos de idade, de uma “longínqua” aldeia <strong>do</strong> Alto<br />
Douro – Celeirós <strong>do</strong> Douro - <strong>para</strong> se apresentar numa inspecção, no Alfei-<br />
te, a fim de, eventualmente, ingressar na <strong>Marinha</strong> de Guerra Portuguesa.<br />
Aconteceu que o <strong>Zé</strong> foi apura<strong>do</strong>, correu mun<strong>do</strong>, conheceu e convi-<br />
veu com muita gente desde 1946 a 1950.<br />
Como é natural, sempre há pessoas, entre tanta gente, umas mais<br />
próximas que outras; mas as que o <strong>Zé</strong> aqui vai referir, não é por serem<br />
alguns <strong>do</strong>s amigos mais chega<strong>do</strong>s – também o são em parte - mas sim<br />
porque eles são os protagonistas das histórias aqui referidas. Sem fazer<br />
acepção de pessoas, o <strong>Zé</strong> terá de começar por uma personalidade amiga<br />
sim, mas que se situa num grau da hierarquia militar que nada tem a ver<br />
com o grumete nº.7004, nem de longe nem de perto com a caminhada que<br />
o <strong>Zé</strong> percorreu desde a sua origem, igualmente na <strong>Marinha</strong>. Essa perso-<br />
nalidade é exactamente, o 2º Comandante da Escola da Aviação Naval<br />
Almirante Gago Coutinho de S. Jacinto – Aveiro, ao tempo 1º Tenente –<br />
hoje Almirante – Francisco Ferrer Caeiro. O <strong>Zé</strong> coloca-o desde já neste<br />
trabalho porque, como disse ele é um <strong>do</strong>s intervenientes mais marcantes,<br />
na sequência <strong>do</strong>s acontecimentos.<br />
Os “outros” são: O “Cabo <strong>Zé</strong>” – filho da mesma escola, o <strong>Zé</strong> Rama –<br />
um Grumete de Manobra - <strong>do</strong>is compinxas de grande destaque entre a<br />
marujada, os quais partici<strong>para</strong>m, como o <strong>Zé</strong>, na viagem da SAGRES, em<br />
1948, à América <strong>do</strong> Norte.<br />
5
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Por último, o <strong>Zé</strong> faz referência a um certo Oficial, o senhor Tenente<br />
Fontes, não devi<strong>do</strong> a qualquer proximidade, mas sim pelas invulgares<br />
características enquanto Oficial da <strong>Marinha</strong>. O senhor ten. Fontes mercê<br />
de uma invulgar tolerância, supõe o <strong>Zé</strong>, permitia-se, inclusive, desrespeitar<br />
regulamentos e pessoas, ao sabor <strong>do</strong> seu mo<strong>do</strong> que mais não era que for-<br />
temente grosseiro.<br />
O <strong>Zé</strong> conviveu com ele, em duas alturas, na Escola de Alunos<br />
Marinheiros, e na Escola de Mecânicos, em Vila Franca de Xira.<br />
Outra pessoa aqui referida, o Senhor Capitão Joaquim Nunes Duar-<br />
te, já faleci<strong>do</strong> -, autor da obra intitulada: “ HIDROAVIÕES NOS CÉUS DE<br />
AVEIRO”, faz parte <strong>do</strong> número de pessoas aqui mencionadas, tanto por-<br />
que o <strong>Zé</strong> conviveu com ele na Escola de Aviação nos anos de 1947/48,<br />
mas também porque foi da sua obra que o <strong>Zé</strong> colheu preciosas informa-<br />
ções, relativamente a S. Jacinto.<br />
6<br />
J. Morais<br />
Aveiro, 2002
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
<strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Sai o <strong>Zé</strong> da sua aldeia,<br />
Curioso, par’a cidade.<br />
Tal desejo tem na ideia<br />
Desde muito tenra idade.<br />
Eram quatro de Janeiro<br />
Dum ano já tão distante<br />
Lá vai ele de pé ligeiro,<br />
De chapéu, bem elegante!<br />
Só ele sabe o que passou<br />
A vida que ali viveu<br />
Se o demo lhe amassou,<br />
Muito <strong>do</strong> pão que comeu<br />
Mas grande sonho ele tinha,<br />
Noite e dia sussurra<strong>do</strong><br />
Era ir <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong>,<br />
Se por bem fosse apura<strong>do</strong><br />
De Celeirós ao Pinhão,<br />
Dez quilómetros de distância.<br />
Carrega as cestas à mão,<br />
Mas não lhe dá importância.<br />
Chega o comboio sonante,<br />
A largar negra fumaça,<br />
Aquele fagulho constante<br />
Pôs-lhe o fato uma desgraça.<br />
Corre o comboio, veloz,<br />
Desvaira<strong>do</strong> corre à toa;<br />
Mas, p'ra trás é Celeirós,<br />
E <strong>para</strong> a frente é Lisboa.<br />
7
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Pelo mesmo vai também<br />
Um tal Pires, seu companheiro;<br />
Está mais feliz que ninguém<br />
Já se sente marinheiro.<br />
Outras palavras não tinha<br />
Não mais mudava de assunto;<br />
Só falava da <strong>Marinha</strong><br />
Entre lascas de presunto.<br />
Dissertava sobre o mar...<br />
Quanta largura teria,<br />
E acabou por achar<br />
De fun<strong>do</strong>, quanto media!<br />
Ficara de estar no Porto,<br />
Um tal Zeca à sua espera;<br />
Mas a coisa deu p’ró torto<br />
O tal rapaz não viera<br />
Pasma<strong>do</strong>s de tanta gente,<br />
Lá na estação de S. Bento,<br />
Vai o <strong>Zé</strong> diz de repente<br />
Espera Pires um só momento.<br />
Saiu, logo achou<br />
O tal Zeca ao dar da esquina,<br />
Afinal só se atrasou<br />
Por diferença pequenina.<br />
Reentra<strong>do</strong>s na estação<br />
Lá está o Pires triste sozinho,<br />
Iludin<strong>do</strong> a solidão,<br />
Com mais copo de vinho<br />
Eh pá! Brada o Zeca em alvoroço.<br />
Pensavas que já não vinha?<br />
Venha de lá esse abraço,<br />
Já sei que vais p'rá <strong>Marinha</strong>!<br />
8
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Limpa o Pires ainda a boca<br />
Do tinto que lhe escorria,<br />
Puxa o chapéu <strong>para</strong> a nuca<br />
A transbordar de alegria<br />
Foi o abraço mais torto...<br />
De nunca vista emoção!<br />
Depois, falámos <strong>do</strong> Porto,<br />
Que o Porto é uma nação!<br />
Fala o Zeca <strong>do</strong> seu Porto,<br />
De modesto, tem um toque;<br />
Às tantas diz absorto:<br />
Grande, sim, é Nova York”!<br />
E vejam só... Quem diria,<br />
Nessa noite tão distante,<br />
Que só o <strong>Zé</strong> é que iria<br />
A essa terra gigante! 1<br />
Mas vamos lá, devagar,<br />
Que a razão se respeite<br />
Era preciso passar<br />
Nas inspecções <strong>do</strong> Alfeite.<br />
E lá partiram <strong>do</strong> Porto<br />
Talvez duas da manhã;<br />
Alheios ao desconforto<br />
Na busca dum “talismã”.<br />
Reluziam horizontes<br />
Desde o nascer daquele dia,<br />
Bem longe de Trás-os-Montes<br />
Um novo mun<strong>do</strong> surgia.<br />
Ao chegarem a Lisboa<br />
Deu-se ali a mesma fita;<br />
Pois lá não estava pessoa<br />
Que ficou de estar na dita!<br />
1 Viagem da Sagres América <strong>do</strong> Norte em 1948<br />
9
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Era a Estação <strong>do</strong> Rossio...<br />
Tanta gente a fervilhar<br />
Mas a multidão sumiu<br />
E eles ali a secar.<br />
Mas onde fica a pensão,<br />
“Lá sabemos nós onde é”...<br />
Com tantas cestas na mão...<br />
E agora!?... diz o <strong>Zé</strong>.<br />
Mas o <strong>Zé</strong> o que queria<br />
Era logo ver o Mar<br />
Toma Pires a cestaria<br />
Que eu vou até ali espreitar”.<br />
Bastante tempo passou<br />
Pois chegou ao cais <strong>do</strong> Sodré<br />
Pobre Pires, desesperou<br />
Ficou c’os nervos em pé.<br />
Esse tal tinha apareci<strong>do</strong>,<br />
Logo, mas, enfim, fora de hora;<br />
Lá deram o <strong>Zé</strong> por perdi<strong>do</strong>,<br />
Por essa Lisboa fora.<br />
Depois dum ralha que ralha<br />
Que to<strong>do</strong>s tinham falha<strong>do</strong>,<br />
E lá guardaram a tralha,<br />
Numa tasca ali ao la<strong>do</strong><br />
No dia seis, manhãzinha,<br />
Toma<strong>do</strong> o café com leite<br />
Do arsenal da <strong>Marinha</strong><br />
Lá partiram pró Alfeite<br />
Julga o <strong>Zé</strong> ir sobre o Mar<br />
Se a lógica lhe não falha<br />
Era água de pasmar...<br />
Mas só era o mar da Palha!<br />
Deu-se pois a inspecção,<br />
E chegam os resulta<strong>do</strong>s<br />
Para uns, desilusão<br />
E outros são apura<strong>do</strong>s.<br />
10
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Ninguém sabe o seu destino<br />
Antes de a hora chegar<br />
Pois foi grande o desatino<br />
Que pôs os <strong>do</strong>is a chorar<br />
Por falta de aptidão<br />
O pobre Pires não serviu<br />
Oh cruel desilusão<br />
Dum sonho que assim ruiu<br />
Impossível compreender<br />
Semelhante desventura;<br />
Deixa o <strong>Zé</strong> triste a valer,<br />
Pelas ruas da amargura<br />
Mas por mais que se incomode,<br />
Já nada pode mudar;<br />
É que ali manda quem pode,<br />
Custe isso, a quem custar!<br />
Tornou o Pires <strong>para</strong> a terra<br />
E o <strong>Zé</strong> pra Vila Franca:<br />
Quanta amargura encerra<br />
A lágrima de não se estanca<br />
Viu pois partir o <strong>Zé</strong><br />
E outros no camião<br />
Já farda<strong>do</strong>, de boné.<br />
Pró local da instrução<br />
A Vila Franca chega<strong>do</strong>s<br />
Era já noite cerrada<br />
E ao man<strong>do</strong> de arvora<strong>do</strong>s<br />
Se instala a marujada<br />
Novas formas de lidar,<br />
Algumas vozes troan<strong>do</strong>;<br />
São instrutores a berrar<br />
E a malta via marchan<strong>do</strong>.<br />
Mas há coisas esquisitas<br />
Que podem acontecer<br />
Pois parecem estar previstas<br />
Para nosso padecer.<br />
11
2 Os 8 indivíduos da sua mesa<br />
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Logo, logo ali chega<strong>do</strong>,<br />
Coube ao <strong>Zé</strong> virar rancheiro;<br />
Para isso foi escala<strong>do</strong>,<br />
Mais um outro companheiro<br />
Entre tachos e panelas<br />
Andava algo confuso<br />
Mal sabia pegar nelas,<br />
Pois disso nunca fez uso.<br />
Um dia, Oh santo Deus<br />
Também já noite cerrada<br />
Tombou o rancho <strong>do</strong>s “seus” 2<br />
Cai-lhe a papa na <strong>para</strong>da<br />
Coita<strong>do</strong>, foi castiga<strong>do</strong>...<br />
“Três privações de saída”<br />
Por derramar o guisa<strong>do</strong>,<br />
Ou lá que era a comida!<br />
Pregou c´os bifes no chão,<br />
O tenente estava a ver<br />
Passou-lhe ali um tal sermão<br />
Deixan<strong>do</strong> o <strong>Zé</strong> a tremer<br />
Quem dera desarvorar<br />
P`ra qualquer la<strong>do</strong>, às cegas<br />
Confuso por estuporar<br />
O jantar <strong>do</strong>s seus colegas<br />
Mas vejam só a fineza<br />
Do porte de tal tenente<br />
Resolve mandar p`rá mesa<br />
Areia e terra aderente<br />
Energúmeno sujeito<br />
Pensa o <strong>Zé</strong>, <strong>do</strong> figurão<br />
Por achar muito bem feito<br />
Comermos os bifes <strong>do</strong> chão<br />
12
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Mais tarde no refeitório<br />
Havia um certo sussurro<br />
E pró <strong>Zé</strong> era notório<br />
Que a coisa cheirava a esturro<br />
Sentia rilhar a areia<br />
Nos dentes <strong>do</strong>s arrancha<strong>do</strong>s<br />
E pensa ir p´rá cadeia<br />
Por danos daí espera<strong>do</strong>s<br />
Não se lhe varre da ideia<br />
Que preso, vai de certeza<br />
Se esta maldita ceia<br />
Provocar a diarreia<br />
Nos oito gajos da mesa<br />
Mas, a sorte já está escrita<br />
“Por quem nos faz os destinos”;<br />
E esta papa maldita<br />
Lá passou nos intestinos.<br />
Tu<strong>do</strong> rolou, passou<br />
E o <strong>Zé</strong> se fez mais forte;<br />
Ginasta se revelou<br />
“Dos melhores, i<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Norte”!<br />
Três meses ali passara<br />
Em trampolins a voar<br />
Até alguém lhe chamara<br />
Um atleta invulgar 3<br />
Depois, adeus Vila Franca,<br />
O <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> Aveiro marchou<br />
Já o comboio arranca;<br />
Já três vezes apitou.<br />
Parte pois o <strong>Zé</strong>, <strong>do</strong> Sul,<br />
Mas agora marinheiro,<br />
Lá vai ele de farda azul,<br />
Senhor <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> inteiro!<br />
3 Palavras de um instrutor de Vila Franca, de nome Gouveia.<br />
13
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Alguns apontamentos Históricos da Aviação Naval 4<br />
É óbvio que muito há que dizer sobre a História da Aviação Naval,<br />
mas essa análise aprofundada, como é devi<strong>do</strong>, não caberia, propriamente,<br />
no âmbito deste modesto trabalho. Transcreverei, entretanto, o seguinte,<br />
sobre os primórdios desta Arma da <strong>Marinha</strong> de Guerra: A Aviação Marí-<br />
tima<br />
“Em 1912, Bento Carqueja, funda<strong>do</strong>r de “O Comércio <strong>do</strong> Porto”<br />
adquiriu um biplano francês. Destinava-se a fazer voos <strong>para</strong> angariação de<br />
fun<strong>do</strong>s <strong>para</strong> a manutenção das creches daquele Diário”.<br />
“Em 1916 foi criada a Escola de Aviação Militar em Vila Nova da<br />
Rainha. Aí surgiu um outro biplano baptiza<strong>do</strong> de “casta Susana”.<br />
“Em 1910 um avia<strong>do</strong>r francês Mamet fazia voos em Belém, a uma<br />
altura de 50 metros”.<br />
“Foi no avião <strong>do</strong> Funda<strong>do</strong>r de O Comércio <strong>do</strong> Porto que Gago Cou-<br />
tinho voou pela primeira vez, a convite de Sacadura Cabral, instrutor em<br />
Vila Nova da Rainha. Este avião acabou despedaça<strong>do</strong> num desastre, mas<br />
Sacadura e o Alferes Pinheiro Correia saíram quase ilesos.”<br />
“Pode dizer-se” – continua a sua narração o Capitão Duarte –, “que<br />
a Aviação Marítima começou a ganhar corpo nas noites tropicais africanas<br />
quan<strong>do</strong> Sacadura Cabral e Gago Coutinho, longe ainda <strong>do</strong> maior feito da<br />
Aviação Portuguesa, se dedicavam à tarefa de medições geodésicas.<br />
Gago Coutinho era, em 1907, o chefe de uma missão em Moçambique<br />
onde ambos se encontraram pela primeira vez, crian<strong>do</strong>-se então profun-<br />
das raízes de amizade.” “...trabalharam juntos de 1907 a 1910”. Sacadura<br />
Cabral “regressou a Lisboa em 1915 e concorreu à Aviação, uma nova<br />
arma que despontava, sen<strong>do</strong> breveta<strong>do</strong> em Chartres, na França”.<br />
4 Segun<strong>do</strong> a Obra <strong>do</strong> Capitão Joaquim Nunes Duarte – Hidroaviões nos Céus de Aveiro.<br />
14
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
A primeira escola de pilotagem no nosso país funcionou em Vila<br />
Nova da Rainha, onde Sacadura Cabral recebeu, em 1916, a visita <strong>do</strong> seu<br />
ilustre amigo Gago Coutinho. Pela primeira vez, voaram juntos, os <strong>do</strong>is<br />
amigos.<br />
Passa<strong>do</strong>s poucos meses foi criada a Aviação Marítima por iniciativa<br />
de Sacadura Cabral com Bases em Lisboa (Bom Sucesso), Aveiro (S.<br />
Jacinto) e Faro (Ilha da Culatra).<br />
Também por iniciativa de Sacadura Cabal e segun<strong>do</strong> um acor<strong>do</strong><br />
com o Governo Francês, foi instalada uma pequena esquadrilha em S.<br />
Jacinto. “A aviação Naval Francesa decidiu-se pelo espelho de água da<br />
Ria de Aveiro”.<br />
No dizer de um Senhor Daniel Constant – com quem o Capitão Joa-<br />
quim Nunes Duarte ainda conversou em Aveiro – “A Ria naquele tempo<br />
era plena de barcos, coalhada de velas, um verdadeiro sonho...”<br />
No ano de 1918 os franceses retiraram-se definitivamente de S.<br />
Jacinto <strong>para</strong> a sua terra natal e, em 8 de Dezembro, procedeu-se à entre-<br />
ga solene <strong>do</strong> Centro de S. Jacinto com to<strong>do</strong>s os aparelhos e equipamento.<br />
Logo de seguida, deu-se a revolta no Porto, a “Traulitânia”. Implan-<br />
tação da Monarquia <strong>do</strong> Norte – que apenas durou 25 dias. Os aviões de S.<br />
Jacinto entraram imediatamente ao serviço. As tropas revoltosas avança-<br />
vam em direcção ao Sul, pelo que as estradas de Aveiro eram atravessa-<br />
das pelos seus veículos. O caminho-de-ferro era também usa<strong>do</strong> pelos<br />
trauliteiros. Os aviões de S. Jacinto entraram na contenda pelo la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
Governo Republicano, lançan<strong>do</strong> primeiramente panfletos sobre a cidade<br />
<strong>do</strong> Porto e, depois, bombardearam a linha <strong>do</strong> C. Ferro ali por alturas de<br />
Espinho.<br />
Sacadura Cabal fez parte na primeira linha, pelo que foi louva<strong>do</strong> por<br />
Portaria de 15-10-1919.<br />
15
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Em 1920 chegaram da Inglaterra os aviões «F-3», construí<strong>do</strong>s e<br />
adapta<strong>do</strong>s a largos voos com vista à I Travessia Aérea <strong>do</strong> Atlântico Sul.<br />
A dada altura Sacadura Cabral pediu a Gago Coutinho que viesse<br />
de Lisboa de comboio <strong>para</strong> saírem de Aveiro <strong>para</strong> Lisboa de avião. To<strong>do</strong>s<br />
estes gestos eram pre<strong>para</strong>tivos <strong>para</strong> a travessia Lisboa- Madeira.<br />
Assim aconteceu e sobre isso, são as seguintes as palavras de<br />
Sacadura Cabal: “Com a violência da nortada que fazia e auxilia<strong>do</strong> pela<br />
mareta que se tinha forma<strong>do</strong> na Ria de Aveiro, o hidroavião descolou<br />
como nunca o vira descolar...”<br />
Como já se disse, o <strong>Zé</strong> veio da recruta de Vila Franca de Xira <strong>para</strong> a<br />
Escola de Aviação Naval de S. Jacinto.<br />
Esteve nesta Unidade <strong>do</strong>is anos como telefonista da Base e, agora,<br />
vê, com curiosidade, que, só muito recentemente, através da Obra <strong>do</strong><br />
Capitão Duarte se apercebeu que, sobre a história da aviação e da história<br />
da própria Unidade, nada se disse.<br />
Ora, um <strong>do</strong>s mais encanta<strong>do</strong>res atributos daquela Unidade e conse-<br />
quentemente da laguna de Aveiro intimamente ligadas, é, exactamente, a<br />
presença <strong>do</strong> glorioso Avia<strong>do</strong>r português, Sacadura Cabral. Isto, obviamen-<br />
te, sem o mínimo desprimor <strong>para</strong> tantos outros obreiros que o próprio <strong>Zé</strong><br />
conheceu, alguns, em pessoa. Mas nem mesmo desses se falou; da sua<br />
carreira, <strong>do</strong> seu contributo.<br />
No que respeita a Sacadura Cabral, mercê de ser um herói destaca-<br />
<strong>do</strong> da nossa História, foi-nos “apresenta<strong>do</strong>” - nessa qualidade -, na Escola<br />
Primária. Foi então que muito mais tarde, agora marinheiro em S. Jacinto,<br />
o <strong>Zé</strong> se apercebeu de como os heróis ficam desprovi<strong>do</strong>s da humanidade<br />
<strong>do</strong> homem vulgar, que teimosa e aturadamente, conseguem atingir os<br />
seus objectivos. Objectivos que, sem dúvida, não são ganharem louros<br />
que, por bem, mais tarde lhes atribuímos.<br />
16
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Por tu<strong>do</strong> isso, é muito gratificante <strong>para</strong> o <strong>Zé</strong> saber agora, que, neste<br />
lugar maravilhoso – Aveiro e a sua Ria – foram feitos todas as experiên-<br />
cias e ultima<strong>do</strong>s os últimos pre<strong>para</strong>tivos, <strong>para</strong> que, os heróis Sacadura<br />
Cabral e Gago Coutinho, se pre<strong>para</strong>ram <strong>para</strong> a travessia <strong>do</strong> Atlântico Sul,<br />
que tão alto bra<strong>do</strong> deu.<br />
Apenas como ilação, desta falta de comunicação, que normalmente<br />
não fazemos, de viva voz, apoia<strong>do</strong>s nas nossas tradições, - seja qual for a<br />
área da vida em que nos inserimos, desenraíza-nos uns <strong>do</strong>s outros, afas-<br />
ta-nos das raízes, que são afinal a razão de ser <strong>do</strong> nosso presente. É<br />
óbvio que esta falta de informação que o <strong>Zé</strong> aqui refere, longe de ser um<br />
reparo a quem orientava os recém-chega<strong>do</strong>s grumetes, é apenas a invo-<br />
cação de um lugar-comum extensivo a áreas da maior importância da vida<br />
<strong>do</strong>s povos, o que, no caso português nos situa numa improvisação cons-<br />
tante, num individualismo sempre crescente.<br />
Contu<strong>do</strong> esta forma de ver as coisas da parte <strong>do</strong> <strong>Zé</strong>, fica, por agora,<br />
compensada com a notícia extra <strong>do</strong> Capitão Duarte, talvez o <strong>Zé</strong> particula-<br />
rize um pouco a questão, porque, de alguma forma partilhou, ainda que<br />
muito modestamente, da realidade <strong>do</strong>s factos enquanto grumete da Uni-<br />
dade de S. Jacinto. Na verdade o <strong>Zé</strong> fez parte da guarnição da Escola e<br />
até teve a sorte de estar presente na visita que o Almirante Gago Coutinho<br />
fez à Unidade, em 1946.<br />
A esse respeito, o Capitão Duarte diz no seu livro:<br />
“Em 1946, o Almirante Gago Coutinho visitou a Escola com o seu<br />
nome. Foi a última vez que o ilustre marinheiro esteve em S. Jacinto, onde<br />
foi recebi<strong>do</strong> pelo Comandante Car<strong>do</strong>so de Oliveira e por toda a guarnição<br />
que o acarinhou de mo<strong>do</strong> especial.<br />
Depois de uma cerimónia no hangar, com o outro herói da Travessia<br />
a tecer elogios a Sacadura Cabral, seu companheiro de viagem, o pessoal<br />
17
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
liga<strong>do</strong> ao voo transportou-o pelo ar, senta<strong>do</strong> numa cadeira, o patrono da<br />
Escola que agradeceu, comovi<strong>do</strong>, a manifestação de carinho e simpatia”.<br />
18
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
MARAVILHOSO CENÁRIO DA NATUREZA<br />
O <strong>Zé</strong> chegou a esta Unidade da <strong>Marinha</strong> no mês de Abril, tempo em<br />
que tu<strong>do</strong> o que há <strong>para</strong> florir, já floriu.<br />
Os espaços verdes da Unidade e, igualmente, a mata que se esten-<br />
de até às praias de S. Jacinto, já se tinham revesti<strong>do</strong> <strong>do</strong> amarelo vivo das<br />
acácias e <strong>do</strong>s variadíssimos verdes <strong>do</strong>s arbustos. Foi interessante de<strong>para</strong>r<br />
com o asseio da Unidade nomeadamente o impacto que causava o<br />
esbranquiça<strong>do</strong> arenoso das ruas, a contrastar, fortemente, com o verde-<br />
escuro das árvores que, cerradamente, as ladeavam.<br />
Além disso, era a novidade da visão que se teve da grande exten-<br />
são da laguna – a Ria de Aveiro –, a beleza <strong>do</strong>s moliceiros sulcan<strong>do</strong> as<br />
águas da ria – vela ao vento –, o movimento <strong>do</strong>s aviões levantan<strong>do</strong> e des-<br />
cen<strong>do</strong> na Ria e no campo, o espectáculo das acrobacias <strong>do</strong>s Tigers em<br />
céu azul, a azáfama nos hangares, tu<strong>do</strong> isso constituía, <strong>para</strong> o <strong>Zé</strong> e <strong>para</strong><br />
os demais recém-chega<strong>do</strong>s, algo novo, encanta<strong>do</strong>r. O <strong>Zé</strong> sentia em tu<strong>do</strong><br />
aquilo, toda uma “promessa de bem-estar”, o que veio a ter o melhor des-<br />
fecho.<br />
19
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Escolha <strong>do</strong>s Recém-chega<strong>do</strong>s<br />
Estamos numa formatura. A formatura <strong>do</strong>s recém-chega<strong>do</strong>s. O<br />
Senhor Comandante escolheu... “pela cara” (!) – palavras suas – os gru-<br />
metes que haveriam de ocupar os diversos lugares, na Unidade.<br />
Pela cara ou não, o grumete 7004/46, foi manda<strong>do</strong> <strong>para</strong> o P.B.X. e,<br />
se sorte tivera, desde logo, em ficar isento de fazer guardas à Unidade,<br />
sorte muitíssimo maior, o esperava na linha telefónica. É que a miraculosa<br />
linha telefónica, haveria de levar a sua voz e, um pouco mais tarde, os<br />
sons da sua guitarra a lugares que, o seu destino, não se poderia imagi-<br />
nar.<br />
Um telefonista-guitarrista na linha!<br />
E foi pela cara, disse o Comandante! Mas como é que se percebe,<br />
por exemplo, que o <strong>Zé</strong> tinha cara <strong>para</strong> telefonista!? Como é que Coman-<br />
dante podia descobrir, pela cara, que o <strong>Zé</strong> era guitarrista!? E como é que<br />
se poderia saber que, só a guitarra poderia atrair – e não as vozes de mal-<br />
afama<strong>do</strong>s marujos – as meninas da rede telefónica de Aveiro!?<br />
E, também, como foi que o Comandante descobriu – pela cara –, na<br />
mesma formatura, um grumete <strong>para</strong> pastor!? Exactamente, um grumete<br />
recém-chega<strong>do</strong> de Vila Franca <strong>para</strong> pastorear um rebanho que, nem sei<br />
porque carga de água, existia na Aviação!?<br />
Mas deve dizer-se que o grupo ali presente não era lá muito <strong>do</strong>ta<strong>do</strong><br />
profissionalmente.<br />
Risada geral foi quan<strong>do</strong> o Senhor Comandante perguntou a um<br />
deles, o 7009/46: Qual é a sua profissão? Este, estranho a tu<strong>do</strong> que ali o<br />
esperava, talvez nervoso, o que nós víamos era uma cara aflita, sobrance-<br />
lhas em jeito de asa delta, acabou por responder: “minha profissão, é pro-<br />
prietário”.<br />
20
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
O Senhor Comandante sorriu e disse:<br />
– Se eu fosse proprietário, não andava aqui, meu amigo.<br />
Mas, interessante foi também aquela abordagem estratégica <strong>do</strong><br />
Comandante inteligentemente guarnecida de regalias que não eram <strong>para</strong><br />
desprezar, tão só <strong>para</strong> desencantar na mesma formatura um qualquer<br />
grumete que, sem dúvida tinha saí<strong>do</strong> de casa <strong>para</strong> ir <strong>para</strong> os mares e que<br />
ali o estavam a aliciar <strong>para</strong> ser um marinheiro pastor!!! Bom. Diga-se que o<br />
convite era tão descabi<strong>do</strong>, como tão descabi<strong>do</strong> e insólito seria um rebanho<br />
de carneiros numa base de aviões! Seja como for, nunca se ouvira falar de<br />
pastores marítimos pelo que só um voluntário poderia fazer tal milagre e<br />
exercer a função. O certo é que o grumete de cara corada e re<strong>do</strong>nda<br />
aprumou-se e disse: “Aceito eu, Senhor Comandante”.<br />
Ao fim e ao cabo, o rapaz não tar<strong>do</strong>u a descobrir que tinha uma<br />
imensa mata <strong>para</strong> descansar à sombra das acácias e <strong>do</strong>s pinheiros, desde<br />
manhã ao sol-pôr; que, com jeitinho poderia até refrescar-se na praia; que<br />
não fazia guardas; que tinha direito a licenças extra. E tu<strong>do</strong> isto <strong>para</strong> pre-<br />
miar a humildade e a solidão <strong>do</strong> “pobre” pastor.<br />
Pois é; o tempo corria normalmente e, a dada altura, o <strong>Zé</strong> prevari-<br />
cou, e o Senhor Comandante castigou. Seis guardas de castigo. Azar.<br />
Pior, ainda, porque o raio <strong>do</strong> castigo logo foi incidir nas festas de S. Jacin-<br />
to, e isso era, <strong>para</strong> o <strong>Zé</strong>, o pior <strong>do</strong>s contratempos.<br />
De facto nunca ninguém soube que o 7004/46 dessas seis guardas,<br />
só fez duas. É óbvio que isso daria um castigo muito maior mas... o <strong>Zé</strong><br />
não faltou à festa. O <strong>Zé</strong> diz agora estas coisas porque as infracções cadu-<br />
cam ao fim de... 50 anos. O <strong>Zé</strong> pede desculpa ao Comandante que estima<br />
e ao Sargento que não topou a jogada.<br />
Costuma dizer-se: “quem tem amigos, não morre na cadeia”. Pelo<br />
que o dita<strong>do</strong> não pode estar melhor aplica<strong>do</strong>.<br />
21
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
O <strong>Zé</strong> tinha uma quantidade de colegas a fazerem o seu serviço,<br />
quan<strong>do</strong> dessa ajuda precisasse. Mas essa ajuda resultava afinal de uma<br />
troca de serviço, mais ou menos, à margem das Ordens de Serviço. O <strong>Zé</strong><br />
é oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong> Alto Douro, longe, portanto, de casa, pelo que passava, nor-<br />
malmente, os fins-de-semana no quartel. Deste mo<strong>do</strong>, nada lhe custava<br />
fazer o serviço que cabia a colegas mora<strong>do</strong>res nas re<strong>do</strong>ndezas. Mas havia<br />
uma outra razão bastante mais preponderante que levava o <strong>Zé</strong> a ficar, de<br />
bom gra<strong>do</strong>, de serviço, no P. B. X, ao fim de semana.<br />
A guitarra e a voz <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> já de há muito eram conhecidas e mesmo<br />
acarinhadas pelas meninas da rede, de mo<strong>do</strong> que aquelas tardes, no<br />
segre<strong>do</strong> que permitiam as desabonadas 5 , eram ouro sobre azul. Assim o<br />
<strong>Zé</strong> descobriu que entre essas telefonistas estava a sua namorada e mais<br />
tarde a sua mulher.<br />
Talvez seja a altura de dizer que o Senhor Comandante não era<br />
pessoa <strong>para</strong> brincadeiras, era extremamente exigente em tu<strong>do</strong> e consigo<br />
mesmo.<br />
Porém, se aplicou um castigo ao <strong>Zé</strong> por o ter encontra<strong>do</strong> a fazer chi-<br />
chi por detrás da Casa da Guarda, foi extremamente benevolente quan<strong>do</strong>,<br />
um dia, vin<strong>do</strong> à Base num fim-de-semana, fez que não viu o <strong>Zé</strong> no P. B.<br />
X., no Edifício <strong>do</strong> Coman<strong>do</strong>, a tocar guitarra <strong>para</strong> Aveiro. Não sabe o <strong>Zé</strong> a<br />
que santo deve esta falta de visão <strong>do</strong> Comandante, pois a irregularidade<br />
<strong>do</strong> <strong>Zé</strong> era grave, se levada em conta.<br />
E se algum dia o Senhor Comandante, hoje Almirante, ler estas<br />
palavras, o <strong>Zé</strong> crê que lhe desculpará to<strong>do</strong> este tom de brincadeira, com<br />
que agora fala destas passagens.<br />
Ainda quanto á situação atrás referida, Senhor Almirante, nem ima-<br />
gina a aflição <strong>do</strong> 1º marinheiro, Senhor Paula, ordenança ao oficial de Ser-<br />
5 Fins-de-semana, de 6ª a 2ª<br />
22
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
viço, quan<strong>do</strong>, de olhos esbugalha<strong>do</strong>s, chegou à porta <strong>do</strong> PBX a dizer ao<br />
alegre toca<strong>do</strong>r: – Ai “4”, você está desgraça<strong>do</strong>!<br />
23
Outra ocorrência<br />
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Esta talvez mais preponderante na caminhada que o <strong>Zé</strong> percorreu.<br />
A dada altura a marujada de S. Jacinto, deu em falar telefonicamen-<br />
te <strong>para</strong> Aveiro, com grande frequência.<br />
Telefonemas motiva<strong>do</strong>s pelas mais diversas razões, mas, na sua<br />
grande maioria, contariam histórias de estroinices, de rebaldaria, dizíamos<br />
nós, algumas bem conhecidas na praça pública, o que justificava, afinal, a<br />
má fama <strong>do</strong>s marinheiros “Oh Homens de caserna – diziam – cuida<strong>do</strong> com<br />
essa ralé!”<br />
Bom; essa ocupação exagerada <strong>do</strong> telefone mereceu reparo <strong>do</strong><br />
Coman<strong>do</strong> o que levou a determinadas restrições.<br />
Um dia o <strong>Zé</strong> estava a telefonar, e o Senhor Comandante Ferrer viu<br />
e, interferiu dizen<strong>do</strong>:<br />
– Vossemecê foi chama<strong>do</strong> ou chamou?<br />
O <strong>Zé</strong>, já em senti<strong>do</strong>, respondeu:<br />
– Senhor Comandante, por acaso fui chama<strong>do</strong>.<br />
– Sabe – diz ele –, ainda que não referissem o seu nome, disseram-<br />
me que os telefonistas estão sempre a falar <strong>para</strong> o exterior.<br />
Mas o <strong>Zé</strong> disse-lhe com to<strong>do</strong> o à vontade:<br />
– Senhor Comandante, informaram-no mal, porquanto, ninguém, na<br />
Unidade, fala mais que eu. – E continuan<strong>do</strong> – a diferença estará, certa-<br />
mente, em que, os meus telefonemas, não passam da Central Telefónica<br />
de Aveiro.<br />
O Comandante, ao ver tanta clareza, sem ponta de constrangimen-<br />
to, respondeu, da porta entreaberta:<br />
24
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
– Sim senhor; assim é que se fala! Dali vai <strong>para</strong> o seu gabinete e, a<br />
breves momentos, voltan<strong>do</strong>, abre a porta, simplesmente <strong>para</strong> dizer de<br />
novo:<br />
– Sim senhor; assim é que se fala! E sabe que mais... A mim, nem<br />
me aquece nem arrefece.<br />
E com essa se foi.<br />
Escusa<strong>do</strong> será dizer que o sucedi<strong>do</strong> causou, digamos, uma certa<br />
simpatia mútua.<br />
Haveria muitos e varia<strong>do</strong>s episódios ocorri<strong>do</strong>s em S. Jacinto, não só<br />
aqueles em que o <strong>Zé</strong> foi protagonista, mas também muitos outros, que<br />
primam pelo seu impacto humorístico.<br />
Porém, <strong>para</strong> não alargar demasia<strong>do</strong> o rol das suas recordações, o<br />
<strong>Zé</strong>, aponta apenas <strong>do</strong>is desses momentos hilariantes.<br />
Um, que se prende com a amostra de uma refeição, em que, um tal<br />
grumete – o 6937/45 – nos proporcionou uma cena de alta comédia, ainda<br />
que demasiadamente atrevida; outro, uma cena maluca <strong>do</strong> grumete<br />
7018/46 numa visita guiada à Escutaria da Base.<br />
25
A malandrice dum Rancheiro<br />
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Na <strong>Marinha</strong> nenhuma refeição é servida sem se obter a aprovação<br />
<strong>do</strong> oficial de serviço.<br />
Para o efeito, o cozinheiro pre<strong>para</strong> uma pequenina refeição, incluin-<br />
<strong>do</strong> um pouco de tu<strong>do</strong> que vai <strong>para</strong>r às mesas. Essa amostra é levada ao<br />
oficial de serviço, esteja este onde estiver, sem o que a refeição não é dis-<br />
tribuída.<br />
Mas há uma preocupação de que to<strong>do</strong>s partilham que é fazer che-<br />
gar o comer às mesas, tão rapidamente quanto possível, <strong>para</strong> que chegue<br />
quente.<br />
Ora o que aconteceu naquele dia foi que o oficial de serviço, um<br />
tenente já bastante alquebra<strong>do</strong>, talvez devi<strong>do</strong> à idade, mas não só, pois<br />
dizia-se que o senhor, uma vez por outra, bebia um copo a mais; o caso é<br />
que o oficial tinha já deixa<strong>do</strong> o seu gabinete e recolhi<strong>do</strong> à messe <strong>do</strong>s ofi-<br />
ciais.<br />
A messe <strong>do</strong>s oficiais dista <strong>do</strong>s refeitórios entre os 100 e os 200<br />
metros. Os <strong>do</strong>is edifícios estão situa<strong>do</strong>s praticamente nos topos de uma<br />
avenida ladeada de árvores.<br />
A amostra foi pois levada àquele oficial pelo dito grumete, tal como<br />
mandam os “cânones”, mas o velho tenente, talvez com as ideias muito<br />
pouco claras, disse <strong>para</strong> o grumete: “prova tu”.<br />
engendrou.<br />
É aqui que começa a insólita comédia que o “safa<strong>do</strong>” <strong>do</strong> grumete<br />
26
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Sempre na ideia de que o comer arrefecesse o menos possível, era<br />
costume o rancheiro acenar lá de longe, à saída da messe, com um gesto<br />
convenciona<strong>do</strong> que significava o “pode seguir”; precisamente a frase que<br />
os oficias de serviço dizem, no caso de aprovação.<br />
Mas naquele dia, algo de estranho se passava, dada a atitude <strong>do</strong><br />
safa<strong>do</strong> <strong>do</strong> grumete, que se limitava a percorrer o caminho, na maior das<br />
calmas, sem emitir o mais pequeno sinal.<br />
Na ponta de cá da avenida, o Sargento de dia e os restantes ran-<br />
cheiros interpelavam-se mutuamente e bradavam: “então pá!?<br />
Era já audível a voz <strong>do</strong> descara<strong>do</strong> grumete, e só lhe ouvíamos dizer:<br />
calma meus senhores, calma meus senhores.<br />
entre nós.<br />
O sargento, perplexo, dizia: – então pá, estás maluco ou quê!?<br />
Mas o “pato bravo” só pedia calma e assim lá ia passan<strong>do</strong>, agora,<br />
Perplexos, to<strong>do</strong>s vão atrás dele, à frente o Sargento Gusmão. Toda<br />
a gente entra, finalmente, na cozinha.<br />
Aí o rapaz pousa, ostensivamente, a caixinha da amostra em cima<br />
duma mesa de mármore e, com o maior <strong>do</strong>s desplantes, põe-se a provar e<br />
a saborear, coisa por coisa, enquanto o sargento Gusmão, estupefacto,<br />
desconcerta<strong>do</strong>, fulo, já a dizer que ia participar dele.<br />
Finalmente, o grumete, mal acabou o meio copo de vinho da amos-<br />
tra, dá um forte estali<strong>do</strong>, com a língua, e diz, alto e bom som: PODE<br />
SEGUIR.<br />
O sargento, pessoa de trato agradável, mas perplexo, fora de si,<br />
acaba por dizer ao grumete que ia participar dele, etc.<br />
Resposta <strong>do</strong> descara<strong>do</strong>: “Não sei porquê, senhor sargento; eu ape-<br />
nas estou a cumprir uma ordem”.<br />
27
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
O 7018/46 e a Metralha<strong>do</strong>ra Enferrujada<br />
O outro caso<br />
Quan<strong>do</strong> chegamos à Escola de Aviação Naval, coube ao Senhor<br />
tenente Rego – uma pessoa calma e extremamente educada – mostrar<br />
aos recém-chega<strong>do</strong>s a Escutaria da Base.<br />
Para quem não sabe, aí se guardam armas e munições, e, neste<br />
caso, a par <strong>do</strong> armamento operacional, estavam também ali, umas armas<br />
mais ou menos antigas, expostas, digamos, como se de um museu se tra-<br />
tasse.<br />
O tenente ia dan<strong>do</strong> as suas explicações, e o grupo, seguia-o com a<br />
devida atenção.<br />
A da<strong>do</strong> momento, deparámos com uma metralha<strong>do</strong>ra muito antiga<br />
que o tenente passou a descrever: características e história da velha<br />
arma.<br />
No fim, resumin<strong>do</strong>, acabou por dizer que, apesar de haver ali outras<br />
armas, também antigas, aquela metralha<strong>do</strong>ra, era a única peça que não<br />
funcionava; isto não só porque ficara parcialmente destruída, mas, tam-<br />
bém, porque era de to<strong>do</strong> impossível, encontrar as peças que lhe faltavam.<br />
O 7018/46 – que não batia a cem por cento – mal ouvira dizer que a<br />
peça não tinha conserto, vira-se rapidamente <strong>para</strong> o tenente, já com a<br />
mão estendida, como quem quer selar um contrato, dizen<strong>do</strong>: – “Vale uma<br />
aposta, senhor tenente!?”<br />
28
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
O ZÉ NO CORPO DE MARINHEIROS DA ARMADA<br />
O Alfeite é a Unidade da <strong>Marinha</strong> que movimenta mais gente. O <strong>Zé</strong><br />
esteve ali pouco tempo, o que acontece com to<strong>do</strong>s aqueles que desejam<br />
ser destaca<strong>do</strong>s <strong>para</strong> os navios e outras Unidades, existentes por to<strong>do</strong> o<br />
país.<br />
Dessa Unidade, o <strong>Zé</strong> poderia contar complicadíssimas histórias da<br />
marinhagem, que partilhavam a sua vida maruja com faias e brigões,<br />
alguns bastante perigosos, pelos bairros mais prostituí<strong>do</strong>s de Lisboa.<br />
Em jeito de pormenor, diz-se que, é a esta Unidade que chegam e<br />
dela partem, marujos que têm a cumprir castigos mais severos, que aque-<br />
les que, normalmente, são cumpri<strong>do</strong>s nas próprias Unidades. A propósito<br />
da prisão de um desses afama<strong>do</strong>s marinheiros chulos e brigões, o <strong>Zé</strong><br />
assistiu à cena que descreve a seguir.<br />
UM GESTO DE CONFIANÇA EXTREMA<br />
Está ainda nas lembranças <strong>do</strong> <strong>Zé</strong>, uma cena que muito tem a ver<br />
com princípios de honradez, ética e companheirismo, pratica<strong>do</strong>s por um<br />
desses marujos. É facto que existe entre a marujada um espírito de ajuda<br />
mútua mesmo que essa ajuda exija zaragata na rua, ou mesmo, interna-<br />
mente, encobrimento de faltas. É amigo, está dito. Seja grumete ou oficial!<br />
Um dia saiu <strong>do</strong> Alfeite, um desses marinheiros rufias de primeira no<br />
meio lisboeta <strong>para</strong> cumprir uma pena grave que exigia prisão, no Forte de<br />
Elvas.<br />
Nestes casos é nomeada uma escolta armada composta por um<br />
Cabo e um Marinheiro, que acompanha o preso ao destino. Diz-se, e o <strong>Zé</strong><br />
ouviu isso várias vezes, que é da ordem que a escolta seja penalizada se<br />
acontecer uma fuga.<br />
29
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Bom; o certo é que o <strong>Zé</strong> viu partir <strong>do</strong> Alfeite <strong>para</strong> Lisboa os três<br />
homens e, ten<strong>do</strong> vin<strong>do</strong> de licença, <strong>para</strong> a cidade, voltou a encontrá-los –<br />
esteve com eles algum tempo –, na Estação <strong>do</strong> Rossio. Ali aguardavam a<br />
hora de partida.<br />
Foi nesse momento que o <strong>Zé</strong> assistiu à cena mais “desconsertante”,<br />
que se possa imaginar; um gesto de incrível solidariedade e confiança<br />
mútuas, apenas basea<strong>do</strong> na honra e na tal protecção mútua entre mari-<br />
nheiros.<br />
O marinheiro preso conhecia muito bem o grau de responsabilidade<br />
<strong>do</strong>s que foram encarrega<strong>do</strong>s de o levar ao presídio. O cabo e o marinheiro<br />
sabiam que o preso era um <strong>do</strong>s “gabirus” mais credencia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Bairro<br />
Alto.<br />
Pois, não é que o Cabo e o Marinheiro, acreditan<strong>do</strong> que aquele<br />
marinheiro cumpriria rigorosamente o seu dever, acederam ao seu pedi<strong>do</strong><br />
que era deslocar-se livremente ao Bairro Alto <strong>para</strong> se despedir da amante,<br />
com a promessa de que se não atrasaria da hora da partida <strong>do</strong> comboio<br />
<strong>para</strong> o Forte. E foi o que aconteceu.<br />
O <strong>Zé</strong> ainda recorda a recomendação <strong>do</strong> Cabo: Vê lá pá, não me<br />
deixes ficar mal... Vai lá, vai lá. Pois o rufia, habitua<strong>do</strong> a desman<strong>do</strong>s de<br />
toda a ordem, lá estava, certinho, à hora da partida <strong>do</strong> comboio.<br />
30
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Centro da Aviação Naval em Pedrouços<br />
Esta foi uma das bases da Aviação Marítima, criada também sob a<br />
influência de Sacadura Cabral em 1916.<br />
Em 1947, tempo em que o <strong>Zé</strong> aqui prestou serviço, era um Centro<br />
de grande movimento, ainda que muito mais modesto que a Base de S.<br />
Jacinto. Foi extinto, como a própria Aviação Naval, em 1952.<br />
Sen<strong>do</strong> que este trabalho pretende, acima de tu<strong>do</strong>, recordar passa-<br />
gens mais ou menos pitorescas, o <strong>Zé</strong> recorda uma partida – uma malan-<br />
drice, melhor dizen<strong>do</strong>, ocorrida nesta Unidade da <strong>Marinha</strong>.<br />
Certo dia, o rancho era, carneiro estufa<strong>do</strong>, ou coisa assim.<br />
O cozinheiro amanhou o animal e, deitou <strong>para</strong> o bidão <strong>do</strong> lixo, cabe-<br />
ça e olhos, tu<strong>do</strong> esfacela<strong>do</strong>, obviamente.<br />
Ao saberem da existência da cabeça <strong>do</strong> carneiro, os brincalhões<br />
combinaram e decidiram engendrar uma tremenda partida que, por pouco,<br />
ia deixan<strong>do</strong> um Sargento-Ajudante, entre a cruz e a caldeirinha. Combina-<br />
<strong>do</strong>s, uns três ou quatro Cabos, retiraram <strong>do</strong> lixo a cabeça e os olhos e,<br />
com essa amálgama ensanguentada, encenaram um tremen<strong>do</strong> desastre,<br />
por detrás <strong>do</strong>s aviões.<br />
Empurraram uma quantidade de latas e tambores, o que fez as pes-<br />
soas correr <strong>para</strong> o local. Aí o Sargento, induzi<strong>do</strong> a correr à frente, deparou<br />
com a cara <strong>do</strong> mecânico esfacelada e os olhos pendura<strong>do</strong>s!<br />
O homem ficou <strong>do</strong>i<strong>do</strong>. Apavora<strong>do</strong>, fora de si, an<strong>do</strong>u por ali às voltas,<br />
até que deu em correr, na direcção <strong>do</strong> gabinete <strong>do</strong> Oficial de Serviço, em<br />
altos bra<strong>do</strong>s, pedin<strong>do</strong> socorro.<br />
Os mecânicos, ven<strong>do</strong> que tu<strong>do</strong> aquilo foi muito <strong>para</strong> além <strong>do</strong> que<br />
esperavam – pois já o Oficial de Serviço corria, <strong>para</strong> o local <strong>do</strong> “desastre”<br />
31
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
–, decidiram esconder, rapidamente, a cabeça <strong>do</strong> carneiro e porem-se a<br />
trabalhar, tão disfarçadamente quanto possível.<br />
O Oficial chega ao local e, não ven<strong>do</strong> nada fora <strong>do</strong> normal, pergun-<br />
tava o que se tinha passa<strong>do</strong>.<br />
Mas o pobre Sargento, se possível, ainda mais fora de si, confuso,<br />
pois via o “filho da mãe” <strong>do</strong> cabo atingi<strong>do</strong> com a cara limpa e sorridente,<br />
desatou a gritar, de novo, bradan<strong>do</strong>: Milagre! Milagre! Milagre, Senhor<br />
Tenente! Milagre...<br />
O Oficial de Serviço, ven<strong>do</strong>, desde logo, que se tratava de uma<br />
grande maroteira, não terá queri<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, tirar a limpo o sucedi<strong>do</strong>, cer-<br />
tamente <strong>para</strong> não levar as coisas <strong>para</strong> o la<strong>do</strong> disciplinar. Daí que o caso<br />
ficou por isso mesmo, acaban<strong>do</strong> por ser conheci<strong>do</strong>, à socapa, aqui e ali.<br />
32
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
N.R.P. AVISO DE 2ª CLASSE JOAO DE LISBOA<br />
Do Corpo de Marinheiros da Armada, no Alfeite, o <strong>Zé</strong> foi destaca<strong>do</strong><br />
<strong>para</strong> o Aviso de 2ª Classe, João de Lisboa.<br />
Não sen<strong>do</strong> já novidade <strong>para</strong> o <strong>Zé</strong> a normal convivência – alegre e<br />
descontraída – da marujada, o recém-chega<strong>do</strong> achou que na guarnição<br />
deste navio, além da habitual descontracção, havia um certo toque pater-<br />
nal por parte de um bom número de veteranos, que de há muito faziam<br />
parte da tripulação deste navio.<br />
No parecer <strong>do</strong> <strong>Zé</strong>, essa característica “paternal”, é adquirida num<br />
longo perío<strong>do</strong> de tempo <strong>do</strong>s marinheiros em cada uma das Unidades. Por<br />
outro la<strong>do</strong>, há também grande receptividade da parte <strong>do</strong>s mais novos por<br />
esse mesmo ambiente familiar.<br />
O <strong>Zé</strong> tem gratas recordações <strong>do</strong> navio, João de Lisboa.<br />
Assim à distância, quan<strong>do</strong> recorda a passagem por este navio, tem<br />
a sensação de que, em tempos i<strong>do</strong>s, teve uma vivenda em pleno Tejo,<br />
frente ao Terreiro <strong>do</strong> Paço, com um gasolina 6 à “porta”, no qual se deslo-<br />
cava, quase diariamente, à cidade, pelo entardecer, e ali regressava pela<br />
meia-noite.<br />
A propósito <strong>do</strong> regresso, isto é, se por qualquer motivo não chegas-<br />
se a tempo <strong>do</strong> embarque, lá estava uma cama à sua espera – por cinco<br />
escu<strong>do</strong>s – no Arsenal da <strong>Marinha</strong>.<br />
Mas, no dia seguinte de manhã, lá estava, de novo, no cais, o trans-<br />
porte que havíamos perdi<strong>do</strong>, de regresso a “casa”.<br />
A propósito, e porque umas recordações trazem outras, o <strong>Zé</strong> tem<br />
presente o perfil e o ambiente de Lisboa nesse tempo.<br />
6 Uma lancha<br />
33
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Lá estava a Praça da Figueira, os cafés no Rossio, o Cinema Galo,<br />
na Avenida da Liberdade (preço único 2$50 (?)...) enfim, uma Lisboa fami-<br />
liar e pacata tal como é retratada nos filmes portugueses dessa época.<br />
Importa dizer que o <strong>Zé</strong> acabava sen<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong> de muita gente em<br />
várias unidades da <strong>Marinha</strong>, muito mais por tocar guitarra portuguesa -<br />
razão pela qual estava sempre rodea<strong>do</strong> de ouvintes.<br />
Um dia, já noite dentro, o <strong>Zé</strong> deu por si a falar na coberta <strong>do</strong> navio<br />
sobre os valores e os efeitos da <strong>do</strong>utrina cristã.<br />
Isso aconteceu uma única vez.<br />
A da<strong>do</strong> momento, o <strong>Zé</strong> terá dito algo semelhante a isto: o cristianis-<br />
mo pratica<strong>do</strong>, constitui o meio mais seguro de levar uma vida equilibrada,<br />
evitan<strong>do</strong> problemas como, por exemplo, os de alguns filhos da escola, lim-<br />
pos e sadios ao chegarem das suas terras à recruta, em Vila Franca, e<br />
agora mergulha<strong>do</strong>s na prostituição, feitos chulos de infelizes prostitutas,<br />
ou assumi<strong>do</strong>s rufias, <strong>do</strong>s bairros de Lisboa.<br />
Mas o <strong>Zé</strong>, ao referir esses valores, terá dito essa disciplina cristã,<br />
também ele, a não a cumpria.<br />
Houve naturalmente observações, perguntas e respostas, mas <strong>do</strong><br />
que o <strong>Zé</strong> se recorda é de um alentejano, falan<strong>do</strong> alto, entre os presentes<br />
disse: – Ouve lá, ó “4”, então se tu sabes que o cristianismo é assim tão<br />
importante porque não o cumpres tu!?<br />
O <strong>Zé</strong> respondeu: – Olha pá! Quanto ao valor <strong>do</strong> cristianismo de que<br />
falo, ele pode ser o caminho mais perfeito <strong>para</strong> o equilíbrio <strong>do</strong> homem e da<br />
humanidade. Por que o não cumpro, o que te digo é que estou a tentar, e<br />
nisso me sinto fortemente empenha<strong>do</strong>.<br />
resposta.<br />
O alentejano olhou, pensou e disse: – Está bem, “pá”; satisfaz-me a<br />
34
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
O <strong>Zé</strong> achou curiosa esta resposta <strong>do</strong> alentejano. Mas, interessante<br />
foi que na semana seguinte, depois de ter vin<strong>do</strong> de fim-de-semana diz ele:<br />
– “Ó “4”; sabes, tu que fui à missa no Domingo, com a minha irmã!?”<br />
Entre a guarnição havia um velhote pachorrento, protestante, que<br />
gostava de trocar ideias e pontos de vista com o <strong>Zé</strong> e um Sargento-<br />
Ajudante, ateu, um durão, ar grave, que dizia com ênfase: – “se alguém<br />
fizer mal a este indivíduo terá que se haver comigo.”<br />
Bom! O <strong>Zé</strong>, a dada altura, foi destaca<strong>do</strong> <strong>para</strong> o Navio Escola Sagres<br />
<strong>para</strong> se integrar na tripulação que partia <strong>para</strong> a América <strong>do</strong> Norte.<br />
35
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
O NAVIO ESCOLA SAGRES<br />
Ser destaca<strong>do</strong> de uma qualquer Unidade da <strong>Marinha</strong> <strong>para</strong> o Navio<br />
Escola Sagres, nomeadamente com o fim de participar das suas viagens,<br />
torna-se necessário que, <strong>para</strong> além das especialidades fundamentais<br />
como seja, por exemplo o caso <strong>do</strong>s fogueiros, os marinheiros de manobra,<br />
etc., os candidatos terão de possuir determina<strong>do</strong>s atributos, como seja,<br />
por exemplo, ser músico e ser necessário na charanga de bor<strong>do</strong> ou mes-<br />
mo <strong>do</strong> grupo de jazz. Ser, por exemplo, barbeiro, alfaiate, etc.<br />
Mas, porque o número de elementos da tripulação é sempre limita<strong>do</strong><br />
e as eventuais aptidões artísticas são raras, disso resulta que, muitíssimo<br />
poucos marinheiros têm a oportunidade de viajar naquele navio.<br />
Na realidade, a Sagres, e mesmo os outros navios que partem em<br />
viagem mun<strong>do</strong> fora, ficam muito fora das aspirações da quase totalidade<br />
<strong>do</strong>s marinheiros em geral.<br />
No caso <strong>do</strong> <strong>Zé</strong>, tinha aptidão <strong>para</strong> ser destaca<strong>do</strong> <strong>para</strong> a Sagres ao<br />
abrigo da sua veia musical, tal como o fora um acordeonista <strong>do</strong> seu ano. –<br />
36
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Afinal o <strong>Zé</strong> foi desde logo integra<strong>do</strong> no grupo de Jazz de bor<strong>do</strong>. Mas não<br />
foi por essa via que o <strong>Zé</strong> foi <strong>do</strong> João de Lisboa <strong>para</strong> a Sagres.<br />
Estava já havia <strong>do</strong>is anos na <strong>Marinha</strong> sem nunca se lhe ter propor-<br />
ciona<strong>do</strong> uma saída da barra, sequer; pois havia navios patrulha, como S.<br />
Miguel, por exemplo, navegan<strong>do</strong> entre portos ao longo da costa portugue-<br />
sa.<br />
O que aconteceu foi que, num qualquer Domingo <strong>do</strong> ano de 1948, o<br />
<strong>Zé</strong> foi à missa – como era seu hábito – por acaso à Escola Naval <strong>do</strong> Alfei-<br />
te, da<strong>do</strong> que o João de Lisboa estava fundea<strong>do</strong> ali perto, no Mar da Palha.<br />
Terminada a missa e ainda na presença de uns quantos marinhei-<br />
ros, o <strong>Zé</strong> pediu ao capelão que, <strong>para</strong> quem não sabe, é também um oficial,<br />
o Cónego Correia de Sá, que lhe arranjasse forma de ir <strong>para</strong> o mar. Que já<br />
tinha <strong>do</strong>is anos de marinha e ainda não navegara.<br />
A sua resposta foi imediata, dizen<strong>do</strong>: – “Queres ir comigo à Améri-<br />
ca!?... O Capelão tem direito a uma ordenança, por isso posso levar-te.<br />
Pasmámos. Como é bom de ver, <strong>para</strong> o <strong>Zé</strong> foi ouro sobre azul.<br />
Pois bem. A partir dessa viagem o <strong>Zé</strong> ficou porta<strong>do</strong>r de uma história<br />
muito mais rica <strong>para</strong> contar aos netos. Disso se fará relato mais adiante.<br />
Pode dizer-se que quan<strong>do</strong> a Sagres sai a barra, vai, certamente,<br />
<strong>para</strong> uma festa algures no mun<strong>do</strong>. Vai leve, vai ligeira, <strong>do</strong>nairosa como<br />
outro navio não há.<br />
Isso mesmo se viu na Espanha – em Sevilha –, uma festa invulgar,<br />
tanto quanto é invulgar juntarem-se, num festival, marinhas de sete<br />
nações!<br />
Aí se viu o impacto que tinha a elegância da Sagres, mais aquele<br />
toque inconfundível de espiritualidade, que sobressai das vermelhas cru-<br />
zes <strong>do</strong> Gama estampa<strong>do</strong> no pano alvo das velas.<br />
37
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Bom, o <strong>Zé</strong> está a fazer estas referências quan<strong>do</strong> já cerca de cin-<br />
quenta anos passaram sobre os acontecimentos e, acontece até que, essa<br />
mesma Sagres, já há muito deixou os mares, ceden<strong>do</strong> a sua bela imagem<br />
à sua sucessora.<br />
Por isso parece importante deixar aqui, um resumo da sua história<br />
deste navio de eleição.<br />
38
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
NAVIO ESCOLA SAGRES (II)<br />
Construí<strong>do</strong> na Alemanha em1896, de ferro, armou primeiro em gale-<br />
ra e posteriormente em barca. Denominava-se RICKMER RICKMERS e<br />
pertencia à marinha <strong>do</strong> comércio. Em 1912, já na posse de outro arma<strong>do</strong>r,<br />
foi baptiza<strong>do</strong> MAX.<br />
Durante a I Grande Guerra, quan<strong>do</strong> estava na Horta, foi apresa<strong>do</strong><br />
pelo Governo Português ten<strong>do</strong> fica<strong>do</strong> sua propriedade com o nome de<br />
FLORES. Foi incorpora<strong>do</strong> na Armada em 1924 como navio-escola, com a<br />
designação de SAGRES. Em 1962 foi classifica<strong>do</strong> como navio depósito<br />
com o nome de SANTO ANDRÉ.<br />
A Sagres foi entregue à Associação alemã “Windjammer fur Ham-<br />
burg” no dia 28 de Abril de 1983, que entregou como contrapartida o Polar.<br />
Durante os 36 anos que navegou com a bandeira de Portugal, efec-<br />
tuou o equivalente a dez voltas ao mun<strong>do</strong>. As Cruzes de Cristo ostentadas<br />
nas velas re<strong>do</strong>ndas e na mezena tornaram-no célebre e inconfundível em<br />
to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, tradição que se mantém com o seu sucessor, a Sagres III<br />
O velho navio-escola SAGRES é hoje um navio-museu no porto de<br />
Hamburgo com o primeiro nome, RICKMER RICKMERS, no qual se pode<br />
apreciar a história da construção de veleiros, a vida e o trabalho <strong>do</strong>s<br />
homens <strong>do</strong> mar na passagem <strong>do</strong> século, <strong>do</strong>cumentos da história das via-<br />
39
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
gens marítimas à vela, bem como exposições temporárias sobre temas<br />
relaciona<strong>do</strong>s com assuntos <strong>do</strong> mar.<br />
Tem uma exposição permanente portuguesa com uma vitrina com o<br />
modelo da Sagres, 36 fotos da actividade <strong>do</strong> veleiro e <strong>do</strong>s dez comandan-<br />
tes que por ele passaram e o trofeu da vitória da regata entre Brest e<br />
Tenerife, em 1985.<br />
Características<br />
Deslocamento: 2116 tons.<br />
Comprimento: 96,85 m.<br />
40
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Viagem à América <strong>do</strong> Norte 1948<br />
Rota: Lisboa – Porto Santo – Madeira – Cabo Verde – Boston – Providence<br />
– Provinceton – New Bedeford – Nova York – Lisboa<br />
Ao largo no Rio Tejo<br />
Paira a Sagres ancorada;<br />
Barco mais belo não vejo,<br />
Na frota da nossa Armada!<br />
Se no Tejo é sedução<br />
Encanto da Marujada,<br />
Lá no mar é uma visão,<br />
Pelos céus emoldurada<br />
To<strong>do</strong>s dizem, quem me dera,<br />
Ir na Sagres viajar;<br />
Mas nem toda a gente espera,<br />
Tal sonho realizar<br />
Suas velas enfunadas<br />
Ostentam a cruz <strong>do</strong> Gama<br />
Deixam gentes encantadas<br />
Inda mais que sua fama<br />
Passei já S. Julião,<br />
Para trás deixei Lisboa;<br />
Agora com emoção,<br />
Navego na sua proa<br />
Já ao longe fica a barra,<br />
P’rá frente fica a Madeira;<br />
E o <strong>Zé</strong> tange a guitarra,<br />
Pelos mares, a vez primeira.<br />
41
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Há silêncio... é mar chão.<br />
Um convés enluara<strong>do</strong>,<br />
Nesta cena a guarnição<br />
Repousa escutan<strong>do</strong> o fa<strong>do</strong><br />
Passa lenta a branda aragem<br />
Pelas cordas da guitarra<br />
Vem de Lisboa a mensagem<br />
De certas noites de farra<br />
Voz <strong>do</strong> fa<strong>do</strong> nas vielas,<br />
Nas tasquinhas de Lisboa<br />
Escuta<strong>do</strong> à luz de velas,<br />
Ante um quadro de Malhoa.<br />
Como é de calcular, nessa multidão maruja, oriunda de todas as<br />
regiões <strong>do</strong> país, surgem indivíduos com as características mais diversas<br />
que se possam imaginar. Isso é bem evidente desde logo na recruta em<br />
Vila Franca e mais tarde no dia-a-dia. Assim é no Navio Escola Sagres.<br />
Para não falar de to<strong>do</strong>s os tiques e habilidades de cada um <strong>do</strong>s “engraça-<br />
<strong>do</strong>s” que seguiam nesta viagem, o <strong>Zé</strong> apenas refere aqui, <strong>do</strong>is deles: o <strong>Zé</strong><br />
Rama e o “Cabo <strong>Zé</strong>”.<br />
Este último, o 6969/46 - que nem sequer o <strong>Zé</strong> soube o seu nome, e<br />
isto tão-somente porque o apelidámos, desde logo, em S. Jacinto – Aveiro,<br />
de “cabo <strong>Zé</strong>”, e assim o tratámos toda a vida.<br />
Tal alcunha adveio-lhe <strong>do</strong> facto de ter uma barriga avantajada, mais<br />
ou menos semelhante à barriga <strong>do</strong> verdadeiro cabo <strong>Zé</strong>, um marinheiro já<br />
velhote, fogueiro da Central Eléctrica daquela Unidade.<br />
42
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
O ZÉ RAMA<br />
Mas nem só um triste fa<strong>do</strong><br />
Lhes serve de distracção;<br />
Um grande nome é cita<strong>do</strong><br />
Por muitos da guarnição<br />
Quem não conhece <strong>Zé</strong> Rama,<br />
Pela sua fantasia;<br />
De muito rico tem fama;<br />
Mas nem cheta possuía.<br />
Levantava fardamento,<br />
Parte dele, logo vendia;<br />
“Massa” tinha de momento<br />
Mas, meias ele não trazia!<br />
Nunca a bor<strong>do</strong> se detinha,<br />
Ir p’rá borga era seu fito<br />
E se uns escu<strong>do</strong>s não tinha,<br />
Nem sequer p’ra uma sardinha,<br />
Sempre havia um companheiro,<br />
A pagar-lhe uma ginjinha<br />
Uma isca, ou peixe frito.<br />
As iscas sabiam bem.<br />
Sem elas era um vintém<br />
Quan<strong>do</strong> metia batatas<br />
(que desgraça!)<br />
Trinta reis era um pratinho.<br />
Ai, um tipo nestas casas<br />
Enchia-se sempre de vinho<br />
O próprio <strong>Zé</strong> as comeu, na Rua <strong>do</strong> Arsenal.<br />
Por muito pouco dinheiro...<br />
Dormiria menos mal;<br />
Na Casa <strong>do</strong> Marinheiro.<br />
Na Rua <strong>do</strong> Arsenal.<br />
Mas, cinco escu<strong>do</strong>s não tinha<br />
Para <strong>do</strong>rmir nessa cama<br />
Lá vinha de manhãzinha!<br />
Extenua<strong>do</strong> de Alfama,<br />
43
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Em Cascais diz que esbanjava<br />
Fortunas, lá na má vida<br />
Eram tretas que inventava<br />
Rambóias que imaginava<br />
Ao pernoitar na Avenida<br />
E quan<strong>do</strong> a bor<strong>do</strong> contava<br />
Farras da noite passada<br />
Por salões da burguesia,<br />
A gente muito se ria<br />
Ao ver-lhe a farda cagada<br />
Da caca da passarada<br />
Nos bancos em que <strong>do</strong>rmia!<br />
A propósito de umas “meias” <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> Rama.<br />
Está ainda na lembrança <strong>do</strong> <strong>Zé</strong>, uma das mais engraçadas peripé-<br />
cias deste indivíduo 7 .<br />
Imaginemo-lo nas amuradas de bombor<strong>do</strong> ou estibor<strong>do</strong>, ou estira-<br />
ça<strong>do</strong> no castelo da Sagres, em tardes calmas, a contar façanhas suas, o<br />
que muitas vezes acontecia, perante uma grande parte da guarnição.<br />
“Um dia, dizia ele num desses momentos:- estava eu senta<strong>do</strong> num<br />
<strong>do</strong>s bancos da Avenida da Liberdade, juntamente com umas “gajas”,<br />
algumas delas, eu via pela primeira vez, e vejam o que me aconteceu.<br />
Ainda hoje eu fico vara<strong>do</strong> de vergonha. Agora mesmo, ao contar-vos<br />
esta “barracada”, sinto arrepios na espinha.<br />
Ora oiçam. Oiçam e prestem atenção, se tenho ou não razão!<br />
7 Deve-se dizer que a descrição que aqui faço, <strong>do</strong>s contos <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> Rama, não tem o rigor da letra,<br />
como é óbvio; mas este <strong>Zé</strong> assegura que o espírito e o senti<strong>do</strong> que ele imprimia às suas histórias<br />
e patranhas são exactos.<br />
44
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Ora, talvez porque tanta preambulação já não coubesse na paciên-<br />
cia de um <strong>do</strong>s presentes, diz o gajo lá <strong>do</strong> meio: “Anda lá palerma. Conta lá<br />
isso, e dá volta à conversa”.<br />
urso.<br />
O <strong>Zé</strong> Rama, com curto gesto sugestivo, diz apenas:- Cala a boca,<br />
Um coro: “Vá lá <strong>Zé</strong> Rama, manda-o lixar.<br />
Pois – continua finalmente o <strong>Zé</strong> Rama – estávamos to<strong>do</strong>s mais ou<br />
menos em roda quan<strong>do</strong>, de momento, resolvi sentar-me e traçar a perna,<br />
tu<strong>do</strong> em grande estilo, como quem evita, a to<strong>do</strong> o custo, amarrotar o vinco<br />
<strong>do</strong> seu único fato de cerimónias; percebem?<br />
Sim, claro... – Dizem, alguns.<br />
– Era notório – continuou o <strong>Zé</strong> Rama – que o meu charme havia já<br />
provoca<strong>do</strong> grande impacto principalmente nas recém chegadas ao grupo,<br />
ainda que me olhassem com discreto acanhamento.<br />
patuá!<br />
– Bom. Retraídas talvez, mas, sem dúvida, embevecidas com o meu<br />
– Bem, vocês sabem que nisto de patoá, eu sou o maior.<br />
Algumas risadas, e o <strong>Zé</strong>, retoman<strong>do</strong> o fio da meada, disse, mergu-<br />
lha<strong>do</strong> num profun<strong>do</strong> desalento<br />
– Foi o “chico <strong>do</strong>s pipos”!... Uma bronca!..<br />
Ponto. Mais uma assoreada geral.<br />
– Tu<strong>do</strong> bem – diz o <strong>Zé</strong> Rama – Tenham calma pois, tinha acaba<strong>do</strong><br />
de me sentar e, puxan<strong>do</strong> a calça <strong>para</strong> evitar a joelheira, eis que me vem<br />
junto, agarra<strong>do</strong> à minha mão, o cano da meia, em franja.<br />
Foi o delírio da malta ali presente, pois toda a gente sabia que o <strong>Zé</strong><br />
Rama, pelo facto de vender uma boa parte <strong>do</strong> fardamento que mandava<br />
45
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
vir <strong>do</strong> Casão, nunca trazia umas meias inteiras. Daí os canos estupora<strong>do</strong>s<br />
de que fala.<br />
Acabada a longa risada, o <strong>Zé</strong> continua:<br />
– To<strong>do</strong>s olhavam <strong>para</strong> mim, isto <strong>para</strong> cúmulo da minha desgraça! É<br />
que eu, momentos antes lhes tinha meti<strong>do</strong> o “chaço”, dizen<strong>do</strong>-lhes que, na<br />
noite anterior, teria gasto <strong>para</strong> cima de vinte contos, na borga, em Cascais!<br />
Talvez não acreditam; mas não desejaria semelhante “encravanço”, ao<br />
meu maior inimigo.<br />
– Oh! c´um caraças. – continuou o <strong>Zé</strong> Rama, após terem acaba<strong>do</strong><br />
as risadas – As “putas” das franjas a saírem cá <strong>para</strong> fora das botas e eu,<br />
nem sei se branco se vermelho que nem um peru, suspenso que nem um<br />
actor esqueci<strong>do</strong> da deixa no meio <strong>do</strong> palco, nem, atinava com o que fazer,<br />
mas arrependi<strong>do</strong> de não me levantar imediatamente. Porém, estático,<br />
aparvalha<strong>do</strong>, pus-me a atacar as malditas franjas, <strong>para</strong> dentro das botas,<br />
já com cheiro a chulé, qual estrumeira ao sol.<br />
A marujada apertava as mãos à barriga por tanto rir, enquanto o <strong>Zé</strong><br />
Rama, sério, com um ar de meter dó, esperava poder continuar.<br />
– Fiquei louco – disse – Fiquei louco de raiva. Roguei pragas ao<br />
destino. Parece que foi castigo; talvez por ter dito aquela malta que tinha<br />
gasto “massa” a potes no Casino, e agora descobrirem-me a “careca” de<br />
forma tão violenta.<br />
– Ao ouvir – dizia ele – a risota escancarada daquelas gajas e os<br />
“funfuns” das mais novatas... Oh! Meus amigos, antes a morte!<br />
– Parece que foi castigo – dizia “contrista<strong>do</strong>”.<br />
– É que eu tinha dito àquelas gajas, entre elas aquela “especial” a<br />
quem eu tinha já convenci<strong>do</strong> que era ricaço lá na terra, e que andava na<br />
<strong>Marinha</strong> contra a vontade da família, único herdeiro. Ó que caraças.<br />
46
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
A última vez que o <strong>Zé</strong> viu o <strong>Zé</strong> Rama, terá passa<strong>do</strong> um ano após a<br />
saída da Sagres, em Vila Franca, onde me disse que tinha ganho juízo, e,<br />
tinha casa<strong>do</strong> com uma mulher muito rica, <strong>do</strong>na de nove quintas no Algar-<br />
ve, notem bem!<br />
Entretanto importa dizer que, apesar <strong>do</strong>s seus problemas de carac-<br />
ter financeiro, era um tipo sempre alegre, assea<strong>do</strong>, quanto baste.<br />
Alcache, manta de seda, farda, o boné, calça fortemente vincada,<br />
estavam sempre à altura da vaidade de ser marinheiro.<br />
Além <strong>do</strong> mais esse <strong>Zé</strong> Rama era um bom tipo, ainda que matreiro,<br />
gozão, amigo da reinação e da boémia.<br />
47
ILHA DE PORTO SANTO<br />
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
O PERCURSO DA SAGRES<br />
Gentes <strong>do</strong> Mar, Que partis de Lisboa ,<br />
Bradai bem alto, “Terra à vista”<br />
Ao vislumbrardes, na bruma, a Ilha de Porto Santo!<br />
Tentai “escutar” e “escutareis”<br />
O Grito alvoroça<strong>do</strong>, que foi da nossa gente,<br />
Ao enxergar primeiramente,<br />
Porto Santo, <strong>do</strong>s navios <strong>do</strong> Infante.<br />
Tentai ouvir, e ouvireis,<br />
Esse bra<strong>do</strong> português,<br />
Estranho, terrível talvez,<br />
Pois os me<strong>do</strong>s se esvaíram, intriga<strong>do</strong>s,<br />
Porque foram confronta<strong>do</strong>s<br />
com uns “ seres “ tão atrevi<strong>do</strong>s!<br />
Que coisa estranha, tal barco !<br />
Serão deuses, Tristão e Zarco !?...<br />
E se deram por venci<strong>do</strong>s,<br />
Queda<strong>do</strong>s bem escondi<strong>do</strong>s,<br />
Por trás as ondas <strong>do</strong> mar!..<br />
Tal fora o bra<strong>do</strong> estridente<br />
Das vozes da estranha gente<br />
Chispan<strong>do</strong> de crista em crista :<br />
“TERRA Á VISTA! TERRA Á VISTA!”<br />
48
ILHA DA MADEIRA (em 1948)<br />
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Se intento é vosso<br />
Ir à Ilha da Madeira<br />
Tentai chegar à noitinha.<br />
E se tiverdes a sorte de encontrar um mar-chão<br />
Um mar-chão que o luar virou prata,<br />
Vereis então<br />
Um espelho estranho<br />
Reflectin<strong>do</strong> luzinhas de cascata,<br />
Olhai <strong>para</strong> o alto <strong>do</strong>s montes<br />
Lá vereis iguais luzinhas<br />
Tão tristonhas tão sozinhas<br />
Irmãs daquelas <strong>do</strong> mar!<br />
Mas, à luz <strong>do</strong> sol nascente,<br />
Dum sonho desperta a gente!<br />
Afinal as tais luzinhas<br />
São janelas das casinhas<br />
Que nos pareceram estrelinhas<br />
49
SÃO VICENTE, CABO VERDE<br />
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Gente <strong>do</strong> mar,<br />
Se rumardes<br />
Proa ao Sul,<br />
Heis-de encontrar, curiosos, Cabo Verde !<br />
Abeirai-vos da amurada.<br />
Ponde as mãos na terra escura<br />
E sentireis a secura<br />
Das terras daquela gente<br />
Da Ilha de S. Vicente.<br />
E <strong>do</strong> Castelo vereis que, Cabo verde,<br />
De verde, não tem nada!...<br />
Lembrar-vos-eis em Lisboa *<br />
Dessa terra já distante<br />
E só então sabereis,<br />
Porque se é emigrante!<br />
50
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
MAR DOS SARGAÇOS, BERMUDAS<br />
Junho/ 24/48 Passagem ao largo das Bermudas<br />
Tão rara recordação<br />
Duma certa ocasião<br />
Lá pelo mar <strong>do</strong>s sargaços.<br />
É noite de S. João.<br />
Uma grande reinação<br />
Sem regras nem embaraços<br />
Fez-se a bor<strong>do</strong> uma fogueira<br />
Como se fora na eira.<br />
E de cerveja na mão<br />
Vão de marcha os foliões.<br />
É uma festa lisboeta<br />
Com arquinhos e balões<br />
Já quinze dias passa<strong>do</strong>s<br />
A partir de S. Vicente<br />
À América estamos chega<strong>do</strong>s<br />
P’ra grande alívio da gente.<br />
51
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
A CHEGADA A BOSTON<br />
O mar, um tanto irrequieto, apresentava uma cor mal definida, diria,<br />
um azul par<strong>do</strong>, difuso, toca<strong>do</strong> por uma centelha de vermelho, bem longe<br />
que estávamos ainda <strong>do</strong>s primeiros alvores da manhã.<br />
A guarnição, já torturada por uma crescente ansiedade a caminho<br />
da América <strong>do</strong> Norte, e agora que estamos prestes a chegar, durmiam<br />
ainda nos seus beliches, nos seus camarotes, ou então de larada ao longo<br />
<strong>do</strong> chão da Coberta.<br />
fazia parte.<br />
Acorda<strong>do</strong> estava, naturalmente, o pessoal <strong>do</strong> quarto, <strong>do</strong> qual o <strong>Zé</strong><br />
No Tombadilho, lá estavam, como sempre, os <strong>do</strong>is grumetes agar-<br />
ra<strong>do</strong>s à roda <strong>do</strong> Leme, um marinheiro atento à “bússola”, e, evidentemen-<br />
te, o oficial de quarto.<br />
Para além <strong>do</strong> marulhar das águas, chapinhan<strong>do</strong> contra o casco <strong>do</strong><br />
navio, pouco mais se ouvia que uma voz calma breve e clara, mas cons-<br />
tante, dizen<strong>do</strong>: – “Uma malagueta <strong>para</strong> bombor<strong>do</strong>, uma ou duas <strong>para</strong> esti-<br />
bor<strong>do</strong>”.<br />
A essa voz, os grumetes <strong>do</strong> leme vão executan<strong>do</strong> as ordens intermi-<br />
tentes – ora <strong>para</strong> bombor<strong>do</strong> ora <strong>para</strong> estibor<strong>do</strong> –, e, porque o mar estava<br />
calmo só lhes era exigida a força <strong>do</strong>s pulsos. Alturas há que o mar exige<br />
ombros e todas as forças, a fim de especar a fúria das ondas contra o<br />
leme.<br />
Ali, um pouco mais pela meia nau, mais ou menos junto ao bailéu,<br />
entre a cozinha e mesa das malaguetas, encosta<strong>do</strong>s às amuradas, pernoi-<br />
tavam, enrola<strong>do</strong>s cada qual em sua manta, os restantes marinheiros de<br />
Quarto.<br />
52
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Sim. Enrola<strong>do</strong>s nas mantas, <strong>do</strong>rmitan<strong>do</strong>, isto se não soar um apito<br />
estridente aflito, “gritan<strong>do</strong>”: “Homem ao Mar!<br />
Quem não experimentou, nem imagina qual o efeito terrível daquele<br />
chamamento. Não só pelo que significa, mas também devi<strong>do</strong> ao entorpe-<br />
cimento <strong>do</strong>s corpos sonolentos, aqueles homens dis<strong>para</strong>m esbafori<strong>do</strong>s em<br />
direcção ao salva-vidas, pronto a ser arria<strong>do</strong> nas águas escuras <strong>do</strong> abis-<br />
mo.<br />
Tal transe sucede com muita frequência, durante a noite, não por-<br />
que tivesse caí<strong>do</strong> alguém ao mar (nunca aconteceu tal), mas tão só por-<br />
que o Oficial de quarto, entende dever fazer esses testes.<br />
Por vezes este tipo de intervenção por parte de alguns oficiais vai<br />
até ao ponto de fazer entrar as pessoas no salva-vidas, e mandar descer<br />
até meio <strong>do</strong> percurso, sem que nada tenha aconteci<strong>do</strong>.<br />
Como já disse, as noites de um mo<strong>do</strong> geral, são escuras, o que,<br />
naturalmente, dificulta as coisas. Mas, mau é, quan<strong>do</strong> a faina é exigida<br />
devi<strong>do</strong> a um temporal, suportan<strong>do</strong> balanços sem fim.<br />
Tentan<strong>do</strong> não perder o fio à meada, pois que a intenção neste<br />
momento é descrever um episódio inespera<strong>do</strong> na chegada a Boston,<br />
importa registar antes uma situação <strong>do</strong>s marujos nos quartos da noite.<br />
quente.<br />
É assim: a meio de cada um desses Quartos é “servi<strong>do</strong>” um cacau<br />
O cenário em que a situação acontece é naturalmente escuro, por<br />
vezes como breu; nesse cenário tem grande impacto uma luz que vem da<br />
porta aberta da cozinha e se projecta na amurada <strong>do</strong> navio.<br />
É ali que aí está um marinheiro a fazer o dito cacau, e a luz da cozi-<br />
nha torna-se numa referência orienta<strong>do</strong>ra <strong>para</strong> a malta de serviço que por<br />
ali pernoitam como se fossem uns sem abrigo, ocultos na escuridão.<br />
53
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
A da<strong>do</strong> momento, soa uma voz, forte, por vezes esganiçada depen-<br />
de da voz <strong>do</strong> marinheiro bradan<strong>do</strong>: – OLHA O BARRO! 8<br />
É então que se processa um momento misterioso carrega<strong>do</strong> de<br />
sombras em movimento, recortadas, á sua passagem na luz da cozinha.<br />
São mantas “recheadas” a deambular no convés, convergin<strong>do</strong>, munidas<br />
de um copo de alumínio, <strong>para</strong> a distribuição <strong>do</strong> cacau à porta da cozinha.<br />
ton. <br />
neiras.<br />
Mas voltemos aquele singular momento, passa<strong>do</strong> às portas de Bos-<br />
Começámos por ver ao longe <strong>do</strong>is barcos de pesca; pareciam trai-<br />
Em princípio, nada de especial, apenas uma curiosidade <strong>para</strong> quem<br />
vem há 15 ou 18 dias sem ver terra nem barcos, e ali vinha um ao longe.<br />
Mas os barcos – eram traineiras – que se foram aproximan<strong>do</strong>, e de<br />
tal mo<strong>do</strong> se aproximavam que, causavam já estranheza, muito especial-<br />
mente ao Oficial de quarto – único responsável pela segurança <strong>do</strong> navio.<br />
A proximidade era já transgressora das leis da navegação, quan<strong>do</strong><br />
aos bra<strong>do</strong>s, gesticulan<strong>do</strong>, começou-se a ouvir as vozes de portugueses,<br />
dizen<strong>do</strong>: “Hei! Hei! Nós somos portugueses!... Nós somos portugueses!<br />
Querem peixe!?...” E com isso, não desistiam de se aproximarem.<br />
Ora o que ali se passava era um transbordar de alegria de tal mo<strong>do</strong><br />
emocionante que aqueles portugueses se tornaram incapazes de respeitar<br />
qualquer lei.<br />
Não deve ser nada fácil, se não impossível, que pessoas, roídas de<br />
saudades, como era o caso, e, ainda mais, de<strong>para</strong>n<strong>do</strong>, em pleno alto mar,<br />
com o característico navio da sua pátria deslizan<strong>do</strong> veloz, velas ao vento,<br />
alvo de neve - fiquem impávidas e serenas.<br />
8 O barro é, nem mais nem menos, o cacau.<br />
54
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Em alvoroço já estavam eles em função da notícia que, naturalmen-<br />
te se havia antecipa<strong>do</strong> à nossa chegada, e já de há muito partilhavam da<br />
euforia de milhares de portugueses que, ansiosamente, nos esperavam.<br />
Havia, pois, mil razões que justificavam o seu descontrolo naquela<br />
inesquecível madrugada <strong>do</strong> mês de Julho de 1948.<br />
Mas, a bor<strong>do</strong>, ninguém estava pre<strong>para</strong><strong>do</strong>, naquele preciso momen-<br />
to, <strong>para</strong> interpretar, devidamente, o insólito encontro. O Oficial de Quarto,<br />
o único, com competência <strong>para</strong> assumir, a responsabilidade da solicitada<br />
atracação, pensou titubeou e, por fim, não admitiu.<br />
Os pesca<strong>do</strong>res eram agora observa<strong>do</strong>s de tão perto, que era possí-<br />
vel ouvi-los perfeitamente, falan<strong>do</strong> em português, continuan<strong>do</strong> a dizer:-<br />
Nós somos portugueses!... Querem peixe fresco!?<br />
E o Oficial, nitidamente confuso, responde-lhes em inglês: – no...<br />
Mas, vejam só. Por debaixo <strong>do</strong> tombadilho – onde se encontrava o<br />
Oficial de Serviço – ficam os camarotes <strong>do</strong>s oficiais; e, através da vigia, o<br />
tenente que se pre<strong>para</strong>va <strong>para</strong> render o colega em fim de Quarto, obser-<br />
vara tu<strong>do</strong> que se estava a passar.<br />
Ao ouvir a nega – <strong>para</strong> ele extremamente desconcertante - <strong>do</strong> cole-<br />
ga, desatou a correr e, chega<strong>do</strong> ofegante junto <strong>do</strong> colega, solicita-lhe a<br />
entrega <strong>do</strong> serviço. Acto contínuo, ainda o oficial rendi<strong>do</strong> estava presente,<br />
faz um largo gesto aos homens, dizen<strong>do</strong>: – Hei!.. PODEM ATRACAR...<br />
PODEM ATRACAR!<br />
Não foi propriamente uma desautorização, pois que a responsabili-<br />
dade <strong>do</strong> posto já tinha si<strong>do</strong> transferida; contu<strong>do</strong> a coisa não foi assim tão<br />
eticamente correcta.<br />
Não se soube o que se passara depois entre eles; mas o que acon-<br />
teceu foi que aqueles portugueses, maravilha<strong>do</strong>s com semelhante visão e<br />
55
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
agora por serem os primeiros portugueses a verem e a contactarem com a<br />
Sagres, não tardaram a atracar felizes da vida.<br />
Como não podia deixar de ser tu<strong>do</strong> aconteceu em pouco tempo<br />
da<strong>do</strong> que as condições de atracação e o movimento <strong>do</strong> mar, mais não<br />
permitiam. Transferiram, <strong>do</strong>s seus barcos <strong>para</strong> bor<strong>do</strong> da Sagres, uma<br />
grande quantidade de peixe, não <strong>para</strong>n<strong>do</strong> de repetir que iriam estar con-<br />
nosco, em to<strong>do</strong>s os festejos que nos esperavam na América.<br />
56
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
ESTADIA NA AMÉRICA DO NORTE<br />
Chega<strong>do</strong>s a Boston, verificou-se que os residentes portugueses<br />
tinham organiza<strong>do</strong> Comissões de Recepção, ao longo <strong>do</strong>s diversos portos<br />
de mar, desde esta localidade até Nova Iorque e Fall River. Cada qual<br />
competia com o seu melhor, e, <strong>para</strong> a marujada, era um regalo chegar, a<br />
cada porto, ouvir uma banda de música, enquanto, impacientes, a maruja-<br />
da vestia as suas fardas <strong>para</strong> sair. Desde logo eram absorvi<strong>do</strong>s pela mul-<br />
tidão em festa, beben<strong>do</strong>, nomeadamente, refrigerantes e gela<strong>do</strong>s. Era um<br />
delírio incrível.<br />
Porém nessas movimentações, tinham, por trás de si, as ditas<br />
Comissões de Recepção, em cada porto, em cada lugar, animadas <strong>do</strong><br />
espírito de competição entre si. Essa competição levou a casos curiosos<br />
de maior ou menor importância, mas, o mais relevante, foi o sucedi<strong>do</strong> na<br />
comunidade de Fall River.<br />
Esta Comissão teve a ideia de tentar cortar os mastros da Sagres de<br />
forma a ser possível passar por debaixo de uma ponte próxima <strong>do</strong> seu<br />
cais! Tu<strong>do</strong> por que – diziam –, haviam ali pre<strong>para</strong><strong>do</strong> a maior das recep-<br />
ções em honra de Portugal e da Sagres.<br />
O que se passou foi que, a Comissão de Fall River, não se tinha<br />
apercebi<strong>do</strong> <strong>do</strong> obstáculo que era a altura <strong>do</strong>s mastros da Sagres – 45<br />
metros – em relação à ponte por que teria de passar, <strong>para</strong> finalmente<br />
poder atracar, festivamente, no cais da sua localidade.<br />
Assim, ao aperceberem-se de tão incómo<strong>do</strong> contratempo, decidi-<br />
ram-se por uma proposta dirigida ao Coman<strong>do</strong> da Sagres, em que se pro-<br />
punham cortar os mastros e repô-los, tal e qual como estavam, após a<br />
realização da festa. De notar que eles tinham consciência de que os mas-<br />
tros da Sagres eram e são, de ferro.<br />
57
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Como foram desfavoráveis as respostas <strong>do</strong> Comandante <strong>do</strong> navio e<br />
<strong>do</strong> Embaixa<strong>do</strong>r, gerou-se um movimento organiza<strong>do</strong> <strong>para</strong> dialogar com o<br />
Governo Português.<br />
Nada conseguiram, mas o <strong>Zé</strong> ficou a pensar lá <strong>para</strong> consigo: “e<br />
digam lá se não é a falta de recursos económicos, que inibe os portugue-<br />
ses de serem as pessoas mais desenrascadas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>!”<br />
Outra situação, também, de algum impacto, foi quan<strong>do</strong> uma das<br />
Comissões de Recepção, neste caso de New Bedford, ofereceu às entida-<br />
des oficiais da Sagres, um almoço, através de um convite, extensivo a<br />
toda a tripulação.<br />
O convite foi mal interpreta<strong>do</strong>, pelo que, no dito jantar, só aparece-<br />
ram, em vez da totalidade da tripulação, só apareceram nove grumetes,<br />
estes escolhi<strong>do</strong>s em formatura, feitos deste mo<strong>do</strong>, representantes de toda<br />
a marujada.<br />
Foi um enorme fiasco. É pois fácil imaginar uma situação em que<br />
uma comissão, espantada e triste, vê chegar “meia dúzia de gatos-<br />
pinga<strong>do</strong>s”.<br />
Em face <strong>do</strong> sucedi<strong>do</strong>, decidiram andar pela cidade a pedir aos mari-<br />
nheiros que encontrassem <strong>para</strong> irem comer, ao que estes respondiam que<br />
não, isto por duas razões: por não terem si<strong>do</strong> considera<strong>do</strong>s na formatura<br />
geral <strong>para</strong> o efeito e, depois, porque toda a marujada não chegou <strong>para</strong> as<br />
encomendas. Isto é, cada família ansiava albergar em sua casa um mari-<br />
nheiro.<br />
Ao <strong>Zé</strong>, como já se disse, foi-lhe ofereci<strong>do</strong> um piano por uma dessas<br />
famílias, oferta invulgar, muitíssimo badalada pela imprensa local, talvez<br />
não tanto pelo piano, mas sim pelo a<strong>para</strong>to festivo que a oferta acarretou.<br />
Aconteceu uma enorme festa no cais, mais uma, enquanto o pes-<br />
soal da manobra procedia ao espectacular carregamento.<br />
58
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Nos dias seguintes o <strong>Zé</strong> recebia cartas que lhe eram dirigidas de<br />
diversos la<strong>do</strong>s, com manifestações, as mais diversas.<br />
Interessante foi também o caso de um baile de gala, ofereci<strong>do</strong> a<br />
bor<strong>do</strong> da Sagres.<br />
59
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Um baile célebre<br />
A Sagres, além de linda como é, estava ataviada como nunca o <strong>Zé</strong> a<br />
vira. Por to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong> se viam passadeiras aveludadas e reposteiros verme-<br />
lhos, orla<strong>do</strong>s e enfeita<strong>do</strong>s, de vistosos amarelos.<br />
Quanto à orquestra, bom. Quanto à orquestra, a ninguém iria passar<br />
pela cabeça que este evento tão pomposo, pudesse ser “abrilhanta<strong>do</strong> “<br />
pelo grupo de Jazz da própria Sagres, <strong>do</strong> qual, aliás, o <strong>Zé</strong>, fazia parte.<br />
Mas veio uma orquestra americana, bem ao sabor daquele país;<br />
mas o que mais impressionou o <strong>Zé</strong>, foram aqueles belíssimos instrumen-<br />
tos da cor <strong>do</strong> ouro, brilhantes como sol. Depois os maravilhosos sons,<br />
ecoan<strong>do</strong>, fortemente, entre o tombadilho e um cais de New Bedford.<br />
Diga-se de passagem que nessa mesma localidade houve um outro<br />
baile, em que partici<strong>para</strong>m largas centenas de portugueses e seus familia-<br />
res femininos, baile este organiza<strong>do</strong> por uma das comissões. Aí, sim.<br />
Actuou e fez sucesso, o nosso grupo de Jazz. Disse atrás familiares femi-<br />
ninos, porque, uma enorme casa de espectáculos e festas, a associação<br />
determinou que naquele baile só entrariam as mulheres e as filhas <strong>do</strong>s<br />
sócios e outras. Eis como resolveram fazer a sua homenagem à tripulação<br />
da Sagres.<br />
Mas voltemos ao caso <strong>do</strong> baile da Sagres.<br />
Era já ao cair da tarde, perto da noite, e o <strong>Zé</strong>, encontrava-se na<br />
coberta, diria, um tanto só. De repente chegou à sua beira um outro gru-<br />
mete a quem chamávamos “o Setúbal”, acordeonista, dizen<strong>do</strong>: ó “4”<br />
vamos tocar ali pró cais? – Nem penses – diz o <strong>Zé</strong> admira<strong>do</strong> – não vês<br />
que íamos dar-lhes cabo <strong>do</strong> baile! Nem penses!<br />
Mas, o “Setúbal” insistia dizen<strong>do</strong>: – Eh pá, nós temos licença até à<br />
meia noite e podemos estar onde quisermos; ninguém nos pode pegar.<br />
60
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Ao fim e ao cabo o <strong>Zé</strong> aderiu, e lá se sentaram no cais , tocan<strong>do</strong>.<br />
Diga-se que juntos, faziam um interessante conjunto de acordeão e viola.<br />
Bom; o que aconteceu foi que estavam estaciona<strong>do</strong>s, talvez, uns<br />
400 carros numa zona <strong>do</strong> cais, pertencentes a pessoas que vinham, em<br />
massa, ver e visitar a Sagres.<br />
Ao ouvirem a nossa música, acenderam, pelo menos a maioria<br />
deles, os faróis e, sain<strong>do</strong> <strong>do</strong>s carros, vieram <strong>para</strong> junto de nós.<br />
Apareceram de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s, provocan<strong>do</strong> um movimento tal, mais<br />
que suficiente <strong>para</strong> pôr o baile em risco. Não sabíamos se aquilo iria fazer<br />
correr tinta vermelha, mas o caso é que tu<strong>do</strong> aquilo deu num grande<br />
arraial.<br />
Porém, o <strong>Zé</strong> ficou pasma<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> começou a ver passar entre a<br />
multidão dançante vários oficiais da Sagres, parte <strong>do</strong>s convivas da festa,<br />
dançan<strong>do</strong> agora no meio da multidão, bem à moda <strong>do</strong>s arraiais portugue-<br />
ses.<br />
Na verdade, ninguém nos podia “pegar”. Porém o atrevimento pro-<br />
duzira efeito no espírito <strong>do</strong> senhor Imediato, pois que, um pouco a roçar o<br />
caricato, chegou à nossa beira, mal soou a meia noite e ainda com muita<br />
gente no Cais, disse secamente:- Vá meninos, é hora de recolher. O <strong>Zé</strong><br />
também acha que o gesto, apesar <strong>do</strong> êxito que teve enquanto arraial, não<br />
deixou de ser uma malandrice minha e <strong>do</strong> “Setúbal”.<br />
Mas, diz-se que tu<strong>do</strong> está bem, quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> acaba bem. Aquilo foi<br />
um arraial muito oportuno.<br />
Cada marinheiro era rodea<strong>do</strong> <strong>do</strong> maior carinho. Houve até quem<br />
oferecesse um carro a um <strong>do</strong>s marujos, coisa que, afinal, não pode trazer<br />
<strong>para</strong> Portugal.<br />
<strong>Zé</strong> trouxe.<br />
Mas o mesmo não aconteceu, como já se disse, com o piano que o<br />
61
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Para além disto, gravámos discos de fa<strong>do</strong>s e canções portuguesas<br />
e, em dada altura, fomos convida<strong>do</strong>s pelo Comandante da Sagres <strong>para</strong><br />
fazermos uma serenata a bor<strong>do</strong>, à maneira de Coimbra, na presença de<br />
um ilustre convida<strong>do</strong> que, naquela noite pernoitaria a bor<strong>do</strong>; o Senhor<br />
Embaixa<strong>do</strong>r de Portugal; na altura, Dr. Teotónio Pereira.<br />
Muitas outras histórias ficam por contar desta estadia da marujada<br />
da Sagres na América. Mas deixemos to<strong>do</strong>s estes divertimentos, e regres-<br />
semos, ao mar, a Portugal.<br />
62
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
EPISÓDIOS VÁRIOS A CAMINHO DE LISBOA<br />
Como já disse, o <strong>Zé</strong> Rama gastava, em menos de um fósforo, tu<strong>do</strong> o<br />
que tinha e, <strong>para</strong> não fugir à regra, foi o que sucedeu, mais uma vez, lá na<br />
América.<br />
Não obstante todas as festas decorrerem por conta das associações<br />
de portugueses em cada localidade, o perdulário <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> Rama sempre<br />
arranjou maneira, de gastar tu<strong>do</strong>, até ao último cêntimo.<br />
O <strong>Zé</strong>, pelo que viu e sentiu, supôs que tais festas só poderiam ter<br />
si<strong>do</strong> as maiores <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, feitas a marujos portugueses.<br />
Era o dia 3 de Agosto de 1948. A Sagres partia, deixan<strong>do</strong> num <strong>do</strong>s<br />
cais de Nova Iorque – <strong>do</strong>ca n.º 26 – uma multidão de portugueses cheios<br />
de comoção e saudade. Como sempre nestes momentos lá estavam as<br />
vergas cheias de marujos em pé, a 40 metros de altura, dizen<strong>do</strong> adeus<br />
acenan<strong>do</strong> com os seus panamás. Nesse dia fez o <strong>Zé</strong>, 23 anos de idade.<br />
63
Sagres<br />
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Como tu, estou na reforma<br />
No mun<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> acaba<br />
Mas apesar desta norma,<br />
Há em nós consolação<br />
Por termos si<strong>do</strong> visão<br />
Em muitos portos de mar!<br />
Nós fomos a estrela-d’alva,<br />
Por esse mun<strong>do</strong> além.<br />
Escutámos corações,<br />
A sofrer de saudade,<br />
Comovi<strong>do</strong>s de verdade!<br />
Nos quatro cantos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />
Portugueses, há milhões.<br />
Ante a bandeira das Quinas...<br />
Nós vimos chorar “meninas”<br />
Pensan<strong>do</strong> nas terras delas!<br />
Foi a bandeira das Quinas,<br />
Que lhes causou esta pena.<br />
Mas também a cruz <strong>do</strong> Gama<br />
Os corações inflama<br />
Tremeluzin<strong>do</strong> nas velas,<br />
Desde o Traquete à Mezena<br />
Partiram pois de Nova Iorque <strong>para</strong> Lisboa. Foi uma viagem que<br />
durou vinte e oito penosos dias, e que o <strong>Zé</strong> não foi lá grande “praça”.<br />
Pode dizer-se que o enjoo constante, o prostrou como nunca estivera.<br />
64
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Pintura <strong>do</strong> Navio<br />
Entre os mais diversos trabalhos de bor<strong>do</strong>, há um que é, pode dizer-<br />
se, constante: é a pintura <strong>do</strong> navio.<br />
Há que remover tintas velhas e ferrugem de to<strong>do</strong>s os cantinhos e<br />
pintar de novo. É assim garantida uma maior durabilidade, pois que de fer-<br />
ro se trata, sujeito ao contacto com as águas e à salinidade <strong>do</strong> mar. Note-<br />
se que esse trabalho é feito, não só no interior, mas também na parte<br />
exterior, to<strong>do</strong> o costa<strong>do</strong> até à linha de água, trabalho que se faz a navegar.<br />
O importante é que, a Sagres - a bela Sagres - surja, alva de neve,<br />
em cada porto.<br />
Para levar a cabo esse tratamento da parte de fora <strong>do</strong> navio, o pes-<br />
soal da Manobra suspende pranchas de madeira, presas por <strong>do</strong>is cabos,<br />
um em cada extremidade da prancha. Estes cabos servem pois <strong>para</strong> sus-<br />
pender as pranchas, mas também são absolutamente indispensáveis a<br />
<strong>do</strong>is marinheiros que trabalham em cada uma delas<br />
Quan<strong>do</strong> o mar se apresenta demasia<strong>do</strong> perigoso, é ainda coloca<strong>do</strong><br />
um outro cabo, mais ou menos à altura da cinta, conheci<strong>do</strong> por guarda-<br />
mancebos. Porém, diga-se de passagem; ali o que vale, é a destreza e a<br />
genica da marujada, <strong>para</strong> se esquivar trepan<strong>do</strong> “a cem à hora”, quan<strong>do</strong> for<br />
caso disso. As ondas longas, que esbarram, com grande sobranceria, con-<br />
tra o casco <strong>do</strong> navio, são, obviamente, traiçoeiras. Mas não há problemas.<br />
Quan<strong>do</strong> vêm essas massas de água ainda que lisas à superfície, as pran-<br />
chas ficam submersas mas a marujada, num ápice se guin<strong>do</strong>u <strong>para</strong> a<br />
amurada.<br />
A propósito deste sobe e desce, a-propósito deste trabalho por fora<br />
<strong>do</strong> navio, vale a pena contar uma cena passada numa dessas pranchas,<br />
sobre um mar relativamente traiçoeiro.<br />
65
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
A bor<strong>do</strong> da Sagres havia, e há certamente, um Sargento-ajudante<br />
de Manobra e um Sargento que se designa por Mestre.<br />
Eles são os responsáveis pela manutenção <strong>do</strong> navio e, digamos, de<br />
alguma forma são considera<strong>do</strong>s responsáveis, pela segurança <strong>do</strong> pessoal.<br />
Naquele dia, depois de uns restos de ciclone, o mar mostrava-se<br />
como disse, um tanto agressivo. Contu<strong>do</strong>, as ondas longas, apesar de<br />
muito volumosas, permitem um certo controlo <strong>do</strong> risco.<br />
Decorria pois uma dessas situações e, em da<strong>do</strong> momento, a Sagres<br />
estava cheia de marinheiros nas pranchas desde a proa à popa, raspan<strong>do</strong><br />
e pintan<strong>do</strong>, com uma mão no cabo, outra no pincel e olho vivo.<br />
Segun<strong>do</strong> o parecer <strong>do</strong> Mestre, o esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar exigia, pelo sim e<br />
pelo não, que fosse aplica<strong>do</strong> em todas as pranchas esse tal cabo chama-<br />
<strong>do</strong> guarda-mancebos. Assim foi, e era ele próprio que vinha de prancha e<br />
prancha passan<strong>do</strong> o cabo.<br />
Ora, na prancha anterior à <strong>do</strong> <strong>Zé</strong>, <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> e de mais um Grumete de<br />
Manobra, acabaram-se os cabos ao Mestre.<br />
Mas mesmo assim o homem saltou <strong>para</strong> a nossa prancha e, acto<br />
contínuo, berrou lá <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> <strong>para</strong> o Cabo Manobra que aguardava ordens,<br />
espreitan<strong>do</strong> lá de cima da amurada: – Ó “fulano”, vai buscar mais um<br />
guarda-mancebos.<br />
E lá foi o “sorna” no seu vagar. O Mestre, já farto de vociferar, contra<br />
o Cabo, contra o mar, contra tu<strong>do</strong>, muito mal agarra<strong>do</strong> a um <strong>do</strong>s cabos,<br />
“era só raiva e desespero”.<br />
Foi então que, se formou bruscamente uma onda descomunal,<br />
banhan<strong>do</strong> o casco de ponta a ponta.<br />
O alentejano e o <strong>Zé</strong>, como era normal, apareceram, em três tempos,<br />
pendura<strong>do</strong>s na “corda” de mo<strong>do</strong> que a água nem os pés lhes tocasse.<br />
66
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
O sargento, porém, tinha tu<strong>do</strong> contra ele. Era pessoa aí <strong>para</strong> os<br />
seus cinquenta anos. Não tinha, um cabo tanto à mão como os grumetes<br />
e, muito menos a necessária destreza. Como tal, a situação teve sabor a<br />
um gesto de “salve-se quem puder”.<br />
A água começou a subir, enquanto o sargento enchia já, o peito de<br />
ar, como quem entra força<strong>do</strong> num tanque de água gelada.<br />
Nesse momento apareceu o cabo manobra lá na amurada a dizer: Ó<br />
senhor Mestre, já não há mais guarda-mancebos no paiol.<br />
A cena terminava com o sargento a escorrer água, furioso, e a<br />
subir, muito a custo, <strong>para</strong> o convés.<br />
Tu<strong>do</strong> voltou à normalidade e o <strong>Zé</strong>, mais o alentejano desceram <strong>para</strong><br />
continuar o trabalho, mesmo sem a tal protecção. Já na prancha, diz o<br />
alentejano: “Que pena este cabrão não ter i<strong>do</strong> ao fun<strong>do</strong>…”<br />
O <strong>Zé</strong> achou que aquilo era um enorme dis<strong>para</strong>te, mas ele continuou:<br />
“Eh pá! Ele é um sacana!.... Um engraxa<strong>do</strong>r! Eu é que sei o que passo por<br />
causa dele. Na manobra ninguém o pode ver, o filho dum cabrão...<br />
Pois bem. Toda a gente anda envolvida nos trabalhos de manuten-<br />
ção e, obviamente, o <strong>Zé</strong> Rama também. Vamos à sua procura.<br />
Decorria uma bela tarde de Agosto e lá estava o nosso amigo a<br />
picar tinta velha na área <strong>do</strong> tombadilho, mais ou menos por cima <strong>do</strong> cama-<br />
rote <strong>do</strong> Sr. Imediato.<br />
Deve dizer-se que, na <strong>Marinha</strong>, sen<strong>do</strong>, embora, uma instituição mili-<br />
tar, nada há de rígi<strong>do</strong> nas relações humanas, o que, de mo<strong>do</strong> algum, põe<br />
em causa uma saudável disciplina.<br />
Mas, por mais tolerância que haja, o princípio é que os regulamen-<br />
tos são <strong>para</strong> cumprir. Uma das regras é, por exemplo, “proibi<strong>do</strong> cantar nas<br />
horas de serviço”.<br />
67
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
O <strong>Zé</strong> Rama, de sempre teve grande dificuldade em encaixar-se em<br />
regulamentos.<br />
Bom. Longe de ser um valdevinos, um sorna invetera<strong>do</strong>, o certo é<br />
que também não se descobria nele, um modelo de virtudes, no que diz<br />
respeito a “espírito militar”.<br />
Tanto assim que, naquela tarde, deu ao rapaz <strong>para</strong> se pôr a trautear<br />
uma das suas mais humorísticas cantilenas, marcan<strong>do</strong> o compasso, com a<br />
própria pica contra, o casco <strong>do</strong> navio.<br />
Ora, se o sítio onde picava tinta velha fosse mais discreto, vá que<br />
não vá; talvez a coisa não desse “raia”, como deu. Mas o caso é que esta<br />
“praça”, talvez se tivesse esqueci<strong>do</strong> que picava e cantava, a escasso meio<br />
metro da escotilha <strong>do</strong> camarote <strong>do</strong> Sr. Imediato.<br />
O Sr. Imediato, ao ouvir a insólita cantoria, decerto empolgada por<br />
um entusiasmo em crescimento, veio por aí acima e, lá estava o <strong>Zé</strong> Rama,<br />
senta<strong>do</strong>, atacan<strong>do</strong>, decidi<strong>do</strong>, uma mancha de ferrugem que tanto teimava<br />
em não sair <strong>do</strong> sítio. Batia, batia, mas “o raio” da mancha ferrugenta, ali<br />
permanecia entre as suas pernas, estendidas, bem ao jeito da marcação<br />
ritmada da pica.<br />
O meu pai é José Caco<br />
Minha mãe Caco Maria<br />
Lá em casa tu<strong>do</strong> é caco<br />
Sou filho da cacaria<br />
Depois era o refrão, ainda mais vigoroso:<br />
Raparigas novas<br />
Vamos ó vira<br />
Ao dar da meia volta<br />
Ó pis tó tira, Ó pis tó tira.<br />
68
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
O Sr. Imediato aparecera sem que o <strong>Zé</strong> Rama desse por isso, tão<br />
entregue estava ao seu trabalho. O Imediato, após uns momentos de<br />
apreciação, mãos atrás das costas, acaba por dizer, alto e bom som:<br />
– Sim senhor, <strong>Zé</strong> Rama; mas que grande cantor tu me saíste!<br />
O <strong>Zé</strong> Rama põe-se em pé num instante, assusta<strong>do</strong>, com o coração<br />
aos pulos, e, coçan<strong>do</strong> a cabeça, diz:<br />
– Senhor Imediato, desculpe... sei que é proibi<strong>do</strong> cantar nas horas<br />
de serviço, mas... distraí-me, Senhor Imediato. Enfim, estava aqui a pen-<br />
sar na vida... Sabe Senhor Imediato, a vida é difícil.<br />
Além disso, Senhor Imediato, só mar... tanto mar... a gente fica<br />
maluco, Senhor Imediato!<br />
– Muito bem, diz o Imediato. Pois é! A vida está difícil e, “Quem can-<br />
ta seu mal espanta”. Mas, ó <strong>Zé</strong> Rama, o dita<strong>do</strong> nem sempre se pode<br />
seguir à risca, não achas !?... Agora, por exemplo, em vez de espantar as<br />
penas, ainda as aumentas.<br />
– O quê... o Senhor Imediato; está a pensar em castigar-me!? – diz<br />
o <strong>Zé</strong> Rama muito espanta<strong>do</strong>.<br />
O Imediato, de mão no queixo, olhan<strong>do</strong> lá <strong>para</strong> o alto <strong>do</strong>s mastros<br />
com ar pensativo, como que avalian<strong>do</strong> a infracção e qual o tipo de castigo<br />
a aplicar, respondeu, com uma pergunta:<br />
– Que tal uma privação de saída, quan<strong>do</strong> chegarmos a Lisboa!?<br />
Do ponto de vista <strong>do</strong> <strong>Zé</strong>, não seria um castigo assim tão leve, <strong>para</strong><br />
quem navegava há cerca de 25 dias sem ver terra.<br />
Mas o <strong>Zé</strong> Rama, com um tími<strong>do</strong> sorriso, e ainda a dar um jeito ao<br />
panamá, desalinha<strong>do</strong>, devi<strong>do</strong> à precipitação com que se levantou, respon-<br />
de-lhe:<br />
69
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
– Enfim, Senhor Imediato, <strong>do</strong> mal o menos... Até, vistas as coisas,<br />
que vou eu fazer <strong>para</strong> terra sem um tostão no bolso... gastei tu<strong>do</strong>, lá<br />
“naquela” América!...<br />
O queixume <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> Rama, não podia ser mais compungente, ao<br />
dizer: “gastei tu<strong>do</strong> lá, naquela América”.<br />
O Imediato disfarçan<strong>do</strong> um sorriso, disse<br />
– Pois é, <strong>Zé</strong> Rama, o dinheiro, hoje em dia, não vale nada.<br />
– É verdade – diz imediatamente o <strong>Zé</strong> Rama – A quem o diz... a<br />
quem o diz... O senhor Imediato não reparou como é caríssima a vida na<br />
América!?...<br />
– Sim, sim – diz o Imediato, sorrin<strong>do</strong> – mas, ouve lá; afinal que cas-<br />
tigo te hei-de aplicar!?... Como se tivesse acha<strong>do</strong>, de repente, a medida<br />
correcta disse:<br />
– Exactamente. Que dizes a três guardas de castigo ao portaló, logo<br />
à chegada a Lisboa. Parece-te bem?<br />
O <strong>Zé</strong> Rama, contrain<strong>do</strong> o queixo como quem está a tentar levar a<br />
melhor numa negociata na feira da ladra, diz:<br />
– Enfim, Senhor Imediato, convenhamos que é duro... um boca<strong>do</strong><br />
duro, mesmo! Então, um indivíduo há tanto tempo fora de Lisboa, e ficar<br />
logo de guarda; é duro, Senhor Imediato.<br />
Cabisbaixo, longe, sem dúvida, de estar pesaroso como parecia,<br />
termina dizen<strong>do</strong>:<br />
– Pronto, Senhor Imediato, paciência; resta-me confiar na sua bene-<br />
volência; fará o que for de sua justiça.<br />
Importa dizer que, de mo<strong>do</strong> algum, este tipo de infracções eram<br />
registadas na caderneta militar, pelo que, em nada afectavam a carreira<br />
70
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
militar de qualquer indivíduo. Mesmo este diálogo é apenas uma brincadei-<br />
ra num da<strong>do</strong> momento.<br />
Mas o gozo da malta foi grande, quan<strong>do</strong> se viu o <strong>Zé</strong> Rama, perfila<strong>do</strong><br />
no portaló, de franquelete aperrea<strong>do</strong> ao queixo, enquanto a marujada,<br />
sussurran<strong>do</strong> graçolas, saía de licença.<br />
Ainda, lembra ao <strong>Zé</strong>, ele ter correspondi<strong>do</strong>, entre dentes, à sua pro-<br />
vocação: “Vai, vai, senão prego-te já uma coronhada”.<br />
Ao saírem da Sagres aqueles marujos que fizeram parte da guarni-<br />
ção, apenas <strong>para</strong> irem na viagem, e agora destaca<strong>do</strong>s <strong>para</strong> o Alfeite, o <strong>Zé</strong><br />
Rama dedicou-lhes um empolgante discurso de despedida, ao almoço na<br />
Coberta. Mas o caloroso discurso, terminou <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> mais burlesco que se<br />
possa imaginar. É que o impagável <strong>Zé</strong> Rama terminou com a mais insólita<br />
informação: “E agora, meus amigos, termino, informan<strong>do</strong>-vos que tenho,<br />
no meu cacifo, uma dentadura, em segunda mão, <strong>para</strong> vender!”<br />
Lembra<strong>do</strong> desta interessante personagem, o <strong>Zé</strong> deixa, neste registo,<br />
um enorme abraço ao <strong>Zé</strong> Rama. Um grande abraço, <strong>do</strong> grumete n.º<br />
7004/46.<br />
71
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
CABO ZÉ<br />
Dos papafigos ao sobro,<br />
Eu subo que nem um gato.<br />
E não temo o desacato<br />
Dos ventos mais tempestivos!<br />
Nem tenho quaisquer motivos,<br />
Que me inibam das alturas;<br />
Até mesmo às escuras,<br />
Percorro to<strong>do</strong> o velame,<br />
Qual artista no arame!<br />
Por mais que troam os astros,<br />
Por mais que ranjam os mastros:<br />
O traquete o grande ou a mezena...<br />
Não fujo de qualquer cena!<br />
Andar nas vergas, é obra<br />
Em noites de tempestade<br />
Mas tenho unhas de sobra,<br />
Quero meças na Manobra,<br />
Na minha especialidade,<br />
Eu aí sou a “verdade”.<br />
Pode dizer-se que estas palavras postas ao vento, são a definição<br />
exacta das capacidades <strong>do</strong> “cabo <strong>Zé</strong>” em movimento a bor<strong>do</strong> da Sagres.<br />
E, quem olhasse <strong>para</strong> ele, calmo e pachorrento não adivinhava tanta<br />
destreza e garra, naquele grumete de manobra.<br />
Uma das medidas de segurança a bor<strong>do</strong> da Sagres a navegar, é a<br />
inspecção diária que se faz ao velame, ao fim <strong>do</strong> dia. Essa inspecção é<br />
obrigatória seja qual for a “cara” <strong>do</strong>s astros e a soada <strong>do</strong>s ventos.<br />
Ora, numa dessas tardes cinzentas, <strong>para</strong> não dizer pretas, e vento<br />
forte, diz o “Cabo <strong>Zé</strong>” ao <strong>Zé</strong>, nessa hora da inspecção:- “Ó quatro; hoje<br />
vou lá acima na tua vez. Sabes bem que eu percebo mais disto, <strong>do</strong> que<br />
tu”.<br />
Tinha toda a razão; ele era especializa<strong>do</strong> na manobra; o <strong>Zé</strong> não.<br />
Além disso era <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de uma destreza invulgar, e, diga-se, não é nada<br />
fácil a aventura lá por cima, <strong>para</strong> além <strong>do</strong> cesto de gávea.<br />
72
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
De facto, mal temos a que nos agarrar, ao longo das vergas com os<br />
pés nos estribos, apoio que não é mais que um cabo de aço, bambo, colo-<br />
ca<strong>do</strong> um pouco abaixo da verga.<br />
Já que estamos a falar das alturas, um <strong>do</strong>s momentos mais arre-<br />
piantes é quan<strong>do</strong> a marujada abre a partir <strong>do</strong> cesto de gávea, andan<strong>do</strong> em<br />
pé sobre as próprias vergas, passan<strong>do</strong> apenas a mão por um cabo, pre-<br />
viamente coloca<strong>do</strong> à altura da cintura.<br />
Trata-se de um exercício praticamente de puro equilíbrio, que tem<br />
lugar a cerca de 40 metros de altura – a altura máxima é de 48 metros.<br />
Mas tu<strong>do</strong> aquilo se torna mais difícil ainda, quan<strong>do</strong>, o cabo pelo qual pas-<br />
samos a mão fica mais bambo, devi<strong>do</strong> aos puxões desencontra<strong>do</strong>s de<br />
cada marujo, em busca <strong>do</strong> seu próprio equilíbrio.<br />
A principal finalidade deste a<strong>para</strong>toso gesto é, como já se disse,<br />
acenar, com o Panamá, às multidões, que vêm aos cais ver a Sagres,<br />
principalmente em ocasiões de festa.<br />
Para o efeito cada marujo tem o seu lugar na verga, previamente<br />
atribuí<strong>do</strong> e o <strong>Zé</strong>, era o segun<strong>do</strong>, a partir <strong>do</strong> cesto de gávea <strong>do</strong> traquete,<br />
velacho-alto, <strong>para</strong> o la<strong>do</strong> de bombor<strong>do</strong>.<br />
73
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Vós marujos da Sagres, que passais<br />
Vós, marujos que passais<br />
Procurai ouvir talvez ouçais,<br />
Sons esbati<strong>do</strong>s duma guitarra.<br />
E se tal escutardes ainda,<br />
Dizei lá <strong>para</strong> convosco<br />
Que coisa linda!<br />
São gemi<strong>do</strong>s<br />
Da guitarra <strong>do</strong> Morais.<br />
Marujo de tempos i<strong>do</strong>s<br />
Que por esses mares an<strong>do</strong>u<br />
Com seus duzentos irmãos<br />
Lá de Lisboa largou.<br />
Porém, se nada escutardes<br />
Tentai ver, talvez vereis<br />
Inda a esteira rarefeita dum navio.<br />
Que em tempo se chamou<br />
“FLORES” e “SANTO ANDRÉ”.<br />
E se virdes o que eu vejo,<br />
Desde o Castelo à Ré<br />
Vereis a SAGRES passar<br />
Pelo mar a navegar<br />
Linda, branca a dealbar<br />
74
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
“O CAPITÃO DA SAGRES”<br />
Um dia chegou ao Portaló <strong>do</strong> Navio Escola Sagres, na altura atraca-<br />
<strong>do</strong> numa das <strong>do</strong>cas de Alcântara, uma senhora emproada, procuran<strong>do</strong><br />
conter um certo nervosismo, mas tentan<strong>do</strong> parecer calma e segura.<br />
Dirigin<strong>do</strong>-se à sentinela, diz-lhe resoluta:<br />
– Quero falar com o capitão.<br />
A sentinela ven<strong>do</strong> o mo<strong>do</strong> arrogante da senhora e também a igno-<br />
rância que revelava – na <strong>Marinha</strong> não existe esse posto –, chamou imedia-<br />
tamente a Ordenança ao Oficial de Serviço, e disse-lhe simplesmente:<br />
– Oh... ordenança; vai chamar o capitão; diz-lhe que está aqui, no<br />
portaló, uma senhora à sua procura.<br />
A ordenança, medin<strong>do</strong> a senhora de alto a baixo, e ven<strong>do</strong> logo que<br />
ali “ havia gato”, na sua se foi e, desde logo, encontrou o solicita<strong>do</strong> capi-<br />
tão, no Castelo, junto a uma arrecadação.<br />
– Ó capitão – diz a ordenança – vai ao Portaló; está lá uma senhora<br />
que te quer falar.<br />
Mas, desde logo, acrescenta:<br />
– Talvez seja bom ires depressinha; a sujeita está com cara de pou-<br />
cos amigos. Unh... há moiro na costa!...<br />
O capitão sentin<strong>do</strong>-se inseguro, disse:<br />
– Que senhora, pá!?...<br />
Sem obter qualquer resposta por parte da Ordenança foi, desde logo<br />
suspenden<strong>do</strong> o que estava a fazer, enfim, arrumar os utensílios de limpe-<br />
za tais como baldes, vassouras, trissodina, sabão amarelo, lixívia, solari-<br />
ne, desperdícios, etc., etc., mas, muito intriga<strong>do</strong>, até receoso, tanto mais<br />
que não tinha a certeza <strong>do</strong> que acontecera na noite anterior: O caso é que<br />
75
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
o noctívago capitão tinha chega<strong>do</strong> a bor<strong>do</strong> por volta das três da manhã,<br />
entran<strong>do</strong> a bor<strong>do</strong>, naturalmente ao abrigo <strong>do</strong>s olhares tolerantes da senti-<br />
nela, ainda mais porque porta<strong>do</strong>r de uma grande carraspana.<br />
E lá vem o valdevinos sem imaginar sequer, que tipo de problema<br />
teria <strong>para</strong> resolver, ali bem perto, no Portaló.<br />
Hesitou aqui e ali, espreitou sem ser visto, e lá estava uma senhora<br />
que ele juraria, a pé firme, que jamais a vira, em parte alguma.<br />
Espreitou, olhou, olhou, e, concluía lá <strong>para</strong> consigo: - mas quem raio<br />
é a mulher!?... Eu nunca vi esta gaja em la<strong>do</strong> nenhum!...<br />
Mas, fossem quais fossem os motivos de tão insólita “visita” não<br />
tinha outro remédio senão abeirar-se da entrada <strong>do</strong> navio.<br />
Já junto <strong>do</strong> Portaló, mirava a senhora de alto a baixo, e ela, nada!<br />
Em vez de lhe dirigir qualquer palavra, o capitão via que a senhora<br />
se limitava a olhar de soslaio <strong>para</strong> ele, mas nada mais que isso.<br />
Ali estava, mesmo na sua frente, com o fato de trabalho já de há<br />
muito a precisar de uma barrela, com cara de parvo, olhan<strong>do</strong> a senhora.<br />
Num momento a senhora perde o resto de compostura que ainda<br />
lhe restava e lhe diz:<br />
– Ouça lá; você nunca me viu !?<br />
E o capitão já nem saben<strong>do</strong> como havia de pôr as mãos, explode:<br />
– Ouça lá, Oh minha senhora; o que é que se passa!?... O que é<br />
que a senhora quer de mim!?<br />
A senhora, branca de raiva, limitou-se a olhar de alto a baixo, <strong>para</strong> o<br />
desconsertante e enseba<strong>do</strong> capitão e, também, <strong>para</strong> a sentinela que sor-<br />
ria, ainda que perfila<strong>do</strong> no seu posto.<br />
Apesar de tu<strong>do</strong>, aperceben<strong>do</strong>-se já que estava a ser ”gozada”, ainda<br />
disse de novo:<br />
76
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
– “Eu quero falar com o capitão <strong>do</strong> navio!...”<br />
Prontamente diz o capitão:<br />
– Oh minha senhora, o capitão, aqui da Sagres, sou eu!...<br />
Foi então que a senhora, encarniçada, apertou os dentes, olhou<br />
<strong>para</strong> tu<strong>do</strong> aquilo com rancor e, sem dizer mais uma palavra, virou as costa<br />
e partiu, esbaforida cais além.<br />
Pelo que conhecemos das malandrices que se cometem na socie-<br />
dade igualmente por parte <strong>do</strong>s marinheiros, admitimos que a senhora teria<br />
boas razões <strong>para</strong> ir ali, em busca de algo; porém, o descaramento <strong>do</strong> ofi-<br />
cial mandar chamar o capitão; mais o erro da senhora dizen<strong>do</strong> que queria<br />
falar com o capitão <strong>do</strong> navio, resultou no que se viu.<br />
Na verdade a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong>s navios da <strong>Marinha</strong>, na Sagres também, não<br />
existe o posto de capitão; o único capitão que há a bor<strong>do</strong> é, normalmente,<br />
um grumete encarrega<strong>do</strong> da limpeza e que se designa por capitão <strong>do</strong> lixo.<br />
Esta história era contada, como verídica, a bor<strong>do</strong> da Sagres, no meu<br />
tempo. Não a testemunhei portanto; mas isso não me impede de a ver<br />
estampada na pessoa <strong>do</strong> meu filho da escola, nessa altura o titular desse<br />
“posto”.<br />
Poderia ser ele, muito bem, o valdevinos da história contada, indiví-<br />
duo bastante patusco, aparentemente um pouco “chanfra<strong>do</strong>”.<br />
Um dia, disse ele em conversa:<br />
– Bom, vou ver em que deu a minha sabonária; se der resulta<strong>do</strong> –<br />
dizia – nunca mais terei trabalho a lavar as minhas fardas.<br />
E continuan<strong>do</strong>, explicou-se:<br />
– Ontem à noite fiz uma sabonária de trissodina bem fortezinha e<br />
meti lá uma calças muito encardidas. Espero que fiquem um brinco.<br />
77
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Acho que já disse que o gajo andava quase sempre com o fato<br />
conspurca<strong>do</strong>; daí a ideia da barrela de trissodina que o indivíduo preparou,<br />
segun<strong>do</strong> parece, com um certo cariz científico, <strong>para</strong> desencardir, sem tra-<br />
balho, as calças emporcalhadas.<br />
Mas, o palerma, que to<strong>do</strong>s os dias lidava com aquele produto de<br />
limpeza, ou não andasse ele connosco to<strong>do</strong>s o dias de manhã, na baldea-<br />
ção <strong>do</strong> convés, achou que o pano se aguentava com aquele produto bas-<br />
tante corrosivo muito mais que lixívia concentrada!<br />
Pois dirigiu-se ao balde em que depositara, confiante, o seu fato<br />
cheio de esterco; ao puxar, apenas traz, na mão, farrapos queima<strong>do</strong>s.<br />
78
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
CERTOS CENÁRIOS<br />
Quan<strong>do</strong> algumas das forças da Natureza se conjugam entre si, sur-<br />
gem no mar cenários, me<strong>do</strong>nhos e belos, nomeadamente quan<strong>do</strong> apre-<br />
cia<strong>do</strong>s e senti<strong>do</strong>s, lá nas alturas.<br />
Efectivamente certos cenários têm tanto de belos como de tenebro-<br />
sos, só faltan<strong>do</strong>, diria, descortinar em algum buraco negro, o famoso<br />
Gigante <strong>do</strong> Adamastor, ainda que, talvez um tanto mais modesto, <strong>do</strong> que o<br />
que “viu” Luiz de Camões.<br />
Mesmo quem não passa por essas aventuras, não lhe será difícil<br />
imaginar um marinheiro, a cerca de 48 metros de altura, tentan<strong>do</strong> mover-<br />
se no espaço instável e ar de mistério, entre vergas e velas enfunadas,<br />
passan<strong>do</strong> por situações como a <strong>do</strong> “ Camarinha, que teve necessidade de<br />
usar os dentes, <strong>para</strong> se agarrar, por momentos, lá na mesena. A Sagres,<br />
com vento de feição, sulcava mares e varava ventos enfureci<strong>do</strong>s, à veloci-<br />
dade de 10 ou 12 nós. A pouco mais que esta velocidade, partir-se-iam os<br />
mastros.<br />
É de grande impacto ao olhar lá <strong>do</strong> alto e ver as pessoas e as coisas<br />
no convés, bastante mais pequenas incluin<strong>do</strong> o to<strong>do</strong> <strong>do</strong> navio, baloiçan<strong>do</strong><br />
proa/popa, bombor<strong>do</strong>/estibor<strong>do</strong>, ladea<strong>do</strong> de vagas brancas, num fun<strong>do</strong> por<br />
vezes verde-escuro, ou então num constrange<strong>do</strong>r azul vivíssimo<br />
Se quisesse sintetizar o ambiente de certos momentos lá nas altu-<br />
ras, diria que se tem a sensação de nos encontrarmos, num qualquer<br />
lugar, fora da nossa realidade.<br />
Mas atenção; em face de tu<strong>do</strong> isso, o que vale é o ânimo e a genica<br />
da marujada. E se os veteranos não têm a genica <strong>do</strong>s mais novos, não<br />
ficam no convés, graças à sua grande experiência.<br />
79
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
A-propósito o <strong>Zé</strong> recorda uma cena em que o cozinheiro de bor<strong>do</strong>, já<br />
bastante entra<strong>do</strong> na idade e gor<strong>do</strong>, que nada tinha a ver com a manobra,<br />
ganhou um garrafão de vinho, por aposta, subin<strong>do</strong> em escassos minutos<br />
até ao Sobro, em pleno mar! Mas nem to<strong>do</strong>s.<br />
O <strong>Zé</strong> recorda um filho da sua escola que teve de ser amarra<strong>do</strong> no<br />
Balso e iça<strong>do</strong> até ao cesto de gávea <strong>do</strong>s Papa-Figos. (as vergas mais bai-<br />
xas). Daí teve de descer, sem qualquer ajuda. Mas, na sua grande maio-<br />
ria, são tão lestos e trepa<strong>do</strong>res como macacos.<br />
Pois bem. O “cabo <strong>Zé</strong>” era, como se disse, um desses especialis-<br />
tas, mas, não é sobre essa faceta que o <strong>Zé</strong> pretende falar dele.<br />
O Cabo <strong>Zé</strong> era, também, um grande cómico, tanto quanto o era o <strong>Zé</strong><br />
Rama, embora com características, completamente diferentes.<br />
Para começar, o <strong>Zé</strong> que escreve estas coisas, supõe que o Cabo<br />
<strong>Zé</strong>, terá si<strong>do</strong> bastante pobre, antes de entrar na <strong>Marinha</strong>. Aliás, pobre<br />
como era to<strong>do</strong> o operaria<strong>do</strong> daquele tempo.<br />
Mas refiro este aspecto mais <strong>para</strong> referir uma das suas histórias.<br />
Contava ele:<br />
“Eu tinha, lá na terra, uma namorada, mas, por mais que falásse-<br />
mos, nunca conseguíamos entender-nos”.<br />
E <strong>para</strong> justificar essa falta de entendimento, dizia:<br />
– Um dia, ela chegou à minha beira e disse:<br />
– Se conseguires juntar 250$00, casamo-nos.<br />
Claro que estas coisas eram contadas em grupo, pelo que, ocasio-<br />
navam grandes gargalhadas. Com isso mesmo contava o “Cabo <strong>Zé</strong> e, rin-<br />
<strong>do</strong> também, mais uma vez exibia a sua enorme dentuça 9<br />
9 O “Cabo <strong>Zé</strong> tinha uma dentuça muito grande, bastante semelhante à daquele cómico francês, o<br />
Fernandel.<br />
80
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
– Mas, continuan<strong>do</strong>, dissemos nós:<br />
– Ó “cabo <strong>Zé</strong>! <strong>para</strong> que queria ela duzentos e cinquenta escu<strong>do</strong>s, se<br />
nem sequer daria <strong>para</strong> comprar um baú!?<br />
– Sei lá... – Diz ele rin<strong>do</strong> de si próprio. – Ela nunca me disse... e eu,<br />
também, nunca fui capaz de juntar tal quantia...<br />
O “cabo <strong>Zé</strong>” foi um <strong>do</strong>s grumetes que, após a recruta, transitou de<br />
Vila Franca <strong>para</strong> a Escola de Aviação Naval Almirante Gago Coutinho, em<br />
Aveiro e, daqui foi destaca<strong>do</strong> <strong>para</strong> o Navio Escola Sagres, onde o <strong>Zé</strong> vol-<br />
tou a encontrá-lo, já com o seu curso de Marinheiro de Manobra.<br />
Daí a nossa viagem juntos, à América <strong>do</strong> Norte.<br />
Sortilégio à volta de umas meias de vidro<br />
Enquanto navegávamos rumo a Boston, a “malta” pronunciava, aqui<br />
e ali, “mal e porcamente”, uma ou outra palavra em inglês, construin<strong>do</strong> fra-<br />
ses, longe de fazerem nexo algum.<br />
Só dis<strong>para</strong>tes e, o “cabo <strong>Zé</strong>” era um desses poliglotas.<br />
Faltavam ainda uns dias <strong>para</strong> chegar à América, quan<strong>do</strong> cabo <strong>Zé</strong>,<br />
começou a imaginar-se, sozinho, na 5ª Avenida, em Nova York, falan<strong>do</strong><br />
fluentemente o inglês, “tu cá tu lá”, com um elegante caixeiro de uma<br />
luxuosa casa de modas da famosa avenida.<br />
O objectivo era, “comprar umas meias de vidro, <strong>para</strong> oferecer à sua<br />
amada; esta era uma rapariga da Gafanha da Cale da Vila, Ílhavo, Aveiro”.<br />
Assim, ele, Cabo <strong>Zé</strong>, sairia de licença e, depois de admirar as gran-<br />
dezas da América que nunca vira, acabaria por entrar, muito descontrai-<br />
damente, numa luxuosa casa de modas. Sorridente, diria ao caixeiro:<br />
– Gude morningue, mister caixeiro. Estás tanquiu!?<br />
81
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
– Oh Yes! – Dir-lhe-ia o americano – How <strong>do</strong> you <strong>do</strong>? Can I help<br />
you? Como ter passa<strong>do</strong>!?<br />
veruel!...<br />
americano.<br />
– Ai ame gude – terá dito o Cabo <strong>Zé</strong> – muito veri gud, mesmo, muito<br />
– Então que o trazer aqui por Nova Iorque, sinor marinero? – disse o<br />
Aí, o Cabo <strong>Zé</strong>, mostran<strong>do</strong> um leve sorriso ao canto da boca <strong>para</strong><br />
não se lhe verem os dentes, diria:<br />
– Eu ser um seilor portchuguise. Não saber se já percebeu – apon-<br />
tan<strong>do</strong> <strong>para</strong> o boné – e querer comprar umas meias de vidro, um vidro bom,<br />
é claro.<br />
E, segredan<strong>do</strong> levemente inclina<strong>do</strong> sobre o ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> caixeiro, con-<br />
tinuaria, dizen<strong>do</strong>: – são <strong>para</strong> oferecer à minha namorada, está a perceber?<br />
– Very well, very well – dirá o vermelhusco muito prestável, talvez a<br />
pensar que está a falar com um gajo cheio de massa: – eu ter aqui um<br />
artigo finíssimo, confecciona<strong>do</strong> com vidro importa<strong>do</strong>. E, pon<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o<br />
empenho na venda, conclui dizen<strong>do</strong>: – Isto ser um artigo da mais alta qua-<br />
lidade. Insistin<strong>do</strong> mais ainda, disse com presteza: – Olhe que ser um vidro<br />
famoso da... ai!... da... Ah! Já saber. É vidro da Marina Grrande!... Ye, Yes;<br />
Marina Grrande, Portuguisa; lá junto a Espaina. Decerto o sailor portchu-<br />
guise, conhecer, not !?<br />
– Oh! Iece, Iece – dirá o Cabo <strong>Zé</strong>, sorrin<strong>do</strong> mais uma vez. – pois<br />
quem não conhecer a <strong>Marinha</strong> Grande!... Bom. Vidro, sim senhor. Muito<br />
bom vidro.<br />
Mas, o cabo <strong>Zé</strong>, lá na sua ideia, aquilo era um grande dis<strong>para</strong>te, e o<br />
contrário seria, <strong>para</strong> si, uma grande surpresa. Perguntou:<br />
– Mas, ó mister, como é que foi que disse, essa coisa da <strong>Marinha</strong><br />
Grande !? Que me conste, eles lá, não fazem meias!<br />
82
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
– Pois não, – dirá o americano admira<strong>do</strong>, ou chatea<strong>do</strong> – sei lá – mas<br />
com cara de quem me está a chamar palerma – Eles lá, fazerem a matéria<br />
prima e nós, aqui, fazer o milagre das meias inquebráveis, percebeu?<br />
confusão 10 .<br />
– Bom, bom, está bem; mister – dirá o cabo <strong>Zé</strong>, <strong>para</strong> evitar mais<br />
O cabo <strong>Zé</strong> pensou lá <strong>para</strong> consigo:<br />
– Quero lá saber... afinal, o que eu quero é adquirir o mais requinta-<br />
<strong>do</strong> presente <strong>do</strong> século, <strong>para</strong> oferecer, com to<strong>do</strong> o meu amor, à minha<br />
amada.<br />
– Sim – continuava o “Cabo <strong>Zé</strong>”, ali no convés – <strong>para</strong> mim, umas<br />
meias de vidro escondem um quê de intrigante; eu nunca fui capaz de<br />
“encaixar” que vidro, <strong>para</strong> além de servir <strong>para</strong> vidraças, garrafas, pratos,<br />
clarabóias, óculos, vitrais ou o caraças, e já agora independentemente de<br />
ser ou não feito na <strong>Marinha</strong> Grande, viesse a servir também <strong>para</strong> fazer<br />
meias! Meias de senhora; olha que caraças! Mas o mais intrigante – dizia<br />
ainda – E como é que o raio da vidraça, não se espatifa nas pernas das<br />
gajas!?...<br />
Mas, o Cabo <strong>Zé</strong>, continuan<strong>do</strong> a dar largas à sua imaginação, louva-<br />
va calorosamente este milagre da técnica; acima de tu<strong>do</strong>, o que lhe inte-<br />
ressava era oferecer à sua amada, tão chique “souvenir“!<br />
Um “Souvenir” estranho, lá isso é; mas de tão fino gosto não há.<br />
Oh! Como é gostoso pensar nas pernas da namorada, assim envol-<br />
tas numa espécie de re<strong>do</strong>ma, leve, transparente, sensual!<br />
Depois vinha-lhe à ideia, como essas meias iriam causar furor entre<br />
as amigas, roídas de inveja, lá na Cale da Vila.<br />
10 De notar que em 1948, as meias de vidro (meias de nylon) eram uma novidade rara, que muito<br />
poucas mulheres usavam, pelo menos em Portugal. Naturalmente devi<strong>do</strong> ao seu eleva<strong>do</strong> preço.<br />
83
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Enquanto dissertava apaixonadamente, anteven<strong>do</strong> o invulgar pre-<br />
sente, nas mãos cândidas da sua namorada, o seu olhar espraiava-se<br />
sobre o mar, de lés-a-lés, ansian<strong>do</strong> por descobrir, algures, e finalmente,<br />
terras da América.<br />
Bom! Mais conversa menos conversa, o “Cabo <strong>Zé</strong>” trará as meias da<br />
América, e o seu gesto de amor só ficará completo ao fim de uma serena-<br />
ta à luz da Lua.<br />
É exactamente nisto da serenata que passa <strong>para</strong> o imaginário <strong>do</strong><br />
apaixona<strong>do</strong> “Cabo <strong>Zé</strong>”, a colaboração <strong>do</strong> “7004”. O “4” que, tangen<strong>do</strong> a<br />
sua guitarra, fará despertar de um sono profun<strong>do</strong>, a sua i<strong>do</strong>latrada Maria-<br />
na. Mariana!... Doce nome. Mais <strong>do</strong>ce que açúcar mascava<strong>do</strong>... Todavia, o<br />
<strong>Zé</strong>, com a sua guitarra, ficará escondi<strong>do</strong> entre os arbustos, pois que, quem<br />
tira aqueles sons pungentes, é o próprio “Cabo <strong>Zé</strong>”, “que toca e canta<br />
sozinho”, em frente da rústica casinha, numa guitarra de papelão.<br />
Será de madrugada, a Lua já esbatida, declina sobre o mar. As<br />
Gafanhas <strong>do</strong>rmem e ressonam. O Cabo <strong>Zé</strong> e o 7004/46, esses esperam o<br />
momento oportuno, mu<strong>do</strong>s e que<strong>do</strong>s junto à Ria, no Cais da Cal da Vila.<br />
Que nem o marulhar de remos se oiçam, e muito menos a voz rouca<br />
de um qualquer pesca<strong>do</strong>r que por ali passasse. Então, sim. A voz <strong>do</strong><br />
“Cabo <strong>Zé</strong>” se ouvirá na estreita rua, logo de seguida a duas puxadas em lá<br />
maior, conforme o combina<strong>do</strong>.<br />
A canção escolhida é aquela canção <strong>do</strong> filme “Capas Negras”:<br />
Oh! meu amor,<br />
Minha linda feiticeira<br />
Eu daria a vida inteira<br />
Por um só beijo <strong>do</strong>s teus...<br />
Por teu amor eu morria de desejo<br />
Deste-me a vida num beijo<br />
E eu vivi pra te beijar!<br />
84
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Ela acorda, e, estremunhada, pensa que é apenas um lin<strong>do</strong> sonho,<br />
voan<strong>do</strong>, talvez, sobre a Sagres, no alto mar! Porém vai despertan<strong>do</strong> e,<br />
aquela voz, a voz inconfundível <strong>do</strong> seu amor marinheiro, se torna cada vez<br />
mais real. Está ali, eu oiço... Eu oiço a voz <strong>do</strong> meu ama<strong>do</strong>!...<br />
É então que, ainda cambaleante, perturbada, apressa-se a acender<br />
o seu candeeiro de petróleo e a colocá-lo no postigo <strong>do</strong> seu quarto. Se for<br />
verdade – pensava – se tu<strong>do</strong> isto não for um sonho, ele saberá que esta<br />
luzinha petrolífera se acendeu <strong>para</strong> ele. Para lhe dizer: “Aqui estou meu<br />
amor; a to<strong>do</strong> o momento esperava o teu regresso!”<br />
Mas, as coisas não ficam por aqui. Segun<strong>do</strong> a fantasia <strong>do</strong> “Cabo<br />
<strong>Zé</strong>”, a moça, roída de saudade, apaixonada em último grau, não pode limi-<br />
tar-se ao sinal da bruxuleante luzinha. Para o “Cabo <strong>Zé</strong>”, ela sairá dispa-<br />
rada, vin<strong>do</strong> cair-lhe nos braços, em pleno voo!<br />
Bom! Chega, finalmente, o <strong>do</strong>ce momento. A guitarra emudecerá.<br />
Se a deusa <strong>do</strong> Amor estiver por ali perto, suspenderá a própria res-<br />
piração, <strong>para</strong> melhor escutar as <strong>do</strong>ces palavras <strong>do</strong> “Cabo <strong>Zé</strong>”:<br />
Aqui tens ó meu amor<br />
Um presente americano.<br />
Comprei-o em Nova Iorque<br />
E não aí, num cigano.<br />
Oh que prazer tenho eu<br />
Em oferecer-te estas meias.<br />
São de vidro, tem cuida<strong>do</strong>,<br />
Não te vão ferir nas veias<br />
Nesta altura, o Cabo <strong>Zé</strong> mostran<strong>do</strong> a sua dentuça, sorrin<strong>do</strong>, diz <strong>para</strong><br />
a malta que o ouvia:<br />
– Bom! O Quarto está a terminar e a história já vai longa. Good Bye!<br />
85
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
De facto, ele a acabar de falar e a soarem as quatro badaladas da<br />
meia-noite, a bor<strong>do</strong> da Sagres. Estávamos prestes a chegar a Boston.<br />
86
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
REGRESSO A VILA FRANCA DE XIRA<br />
Após a chegada da América, o <strong>Zé</strong> passou pelo Corpo de Marinhei-<br />
ros e de seguida, foi destaca<strong>do</strong> <strong>para</strong> Vila Franca de Xira.<br />
Havia cumpri<strong>do</strong> <strong>do</strong>is anos de marinha (metade <strong>do</strong> tempo obrigató-<br />
rio), circunstância que lhe conferia direitos de antiguidade relativamente<br />
aos grumetes que estavam naquela Escola – a antiguidade é um posto.<br />
Por tal motivo, desempenhava funções de Cabo de Quarto, quan<strong>do</strong> esca-<br />
la<strong>do</strong> <strong>para</strong> o efeito. Mas, desta vez recorreu a uma das suas habilitações<br />
profissionais e, porque era mais antigo, fizeram-no chefe da oficina de<br />
alfaiate. Alfaiate foi uma das suas profissões na sua terra natal.<br />
Estes <strong>do</strong>is anos foram, fortemente marca<strong>do</strong>s, por acontecimentos de<br />
caracter sociológico, muito graves, não só em terras de Vila Franca, mas<br />
também por to<strong>do</strong> o nosso país. Foi também neste perío<strong>do</strong> que o <strong>Zé</strong> fez um<br />
curso de guarda-livros por correspondência, <strong>para</strong> juntar ao curso de dacti-<br />
lografia que, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> Navio João de Lisboa, fizera na Rua Eugénio <strong>do</strong><br />
Santos, em Lisboa.<br />
87
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
VILA FRANCA DE XIRA NAQUELE TEMPO<br />
Para que se tenha a noção <strong>do</strong> desespero das gentes que ali afluíam,<br />
na esperança de encontrar um trabalho na construção da ponte de Vila<br />
Franca, o <strong>Zé</strong> faz referência a alguns casos que ali aconteceram. Decorria<br />
o ano de 1950.<br />
Se muitos portugueses partiam de Portugal – a monte – <strong>para</strong> Fran-<br />
ça, outros deambulavam por esse país fora, fustiga<strong>do</strong>s pela sua própria<br />
fome e a <strong>do</strong>s seus, que na terra ficaram à míngua de alguma caridade.<br />
Não há, nestas palavras, exagero algum. O <strong>Zé</strong>, não só os viu chegar a Vila<br />
Franca, como os vira partir até <strong>do</strong>is anos antes, da sua própria terra. O <strong>Zé</strong>,<br />
como já se disse, é da Região de Trás-os-Montes.<br />
O chamariz que no momento soava mais longe, era, a construção<br />
de uma ponte em Vila Franca. Rumores que trouxeram àquele lugar muita<br />
criatura desesperada, alguns <strong>do</strong>s quais encontraram ali o fim <strong>do</strong>s seus<br />
dias. Uma notícia local, dava conta de que três homens se enforcaram jun-<br />
tos, na mesma árvore.<br />
Mas, também, o próprio <strong>Zé</strong>, num dia chuvoso e gela<strong>do</strong> de Janeiro,<br />
saltou as grades <strong>do</strong> Quartel <strong>para</strong> tirar da linha <strong>do</strong> Caminho de Ferro um<br />
pobre homem, ali deita<strong>do</strong>, com o pescoço no carril, à espera <strong>do</strong> comboio<br />
que lá vinha.<br />
Havia famílias, cujas casas de habitação eram lorgas cavadas a<br />
meia altura, nos barrancos de Vila Franca. Lama. Só lama.<br />
Poderia fazer-se um relato extenso <strong>do</strong>s muitos episódios ocorri<strong>do</strong>s<br />
dentro e fora <strong>do</strong> Quartel, bem como das dificuldades que houve em tornar-<br />
se possível o dar entrada, pela Porta de Armas, a uma multidão de famin-<br />
tos que, com as cabeças metidas nas grades da Unidade, clamavam por<br />
um pouco de pão. Mas não foi fácil ao Comandante da Escola de Mecâni-<br />
88
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
cos e Escola de Alunos Marinheiros permitir-se dar tal autorização, obvia-<br />
mente contrária aos regulamentos da ordem da <strong>Marinha</strong>.<br />
A este respeito muito fica por dizer. Diz-se apenas que, diariamente,<br />
um bom número de recrutas daqueles anos arrebanhavam, entusiasma-<br />
<strong>do</strong>s, grandes quantidades de sobras, servin<strong>do</strong> assim, uma extensa fila de<br />
famintos.<br />
89
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
O SENHOR TENENTE FONTES<br />
Das figuras principais que o <strong>Zé</strong> foca nas suas histórias, falta ainda<br />
incluir o Senhor Tenente Fontes.<br />
Este velho marinheiro era detentor das mais altas condecorações,<br />
como sejam as medalhas de Torre e Espada e a Cruz de Guerra, etc., por<br />
feitos heróicos, pratica<strong>do</strong>s nas campanhas de África.<br />
E, <strong>para</strong> quem não sabe, essas condecorações dão direito às mais<br />
altas honras militares, onde quer que elas sejam exibidas.<br />
Era uma pessoa de humor grosseiro, irreverente, pouco ou nada<br />
respeita<strong>do</strong>r da ética militar; mas, por qualquer razão, gozava de tolerância,<br />
diria, absoluta, de to<strong>do</strong>s, incluin<strong>do</strong> qualquer oficial, pelo menos na Unida-<br />
de, onde o <strong>Zé</strong> conviveu com ele: Escola de Alunos em Vila Franca.<br />
Usava permanentemente um pingalim e não se ensaiava <strong>para</strong> “cas-<br />
car” num qualquer recruta ou grumete, uma atitude parva e estranhamente<br />
ignorada, apesar de que, na <strong>Marinha</strong>, é expressamente proibi<strong>do</strong> tal gesto.<br />
O <strong>Zé</strong> recorda, por exemplo, uma cena passada na carreira de tiro<br />
em Santarém.<br />
Um grumete estendi<strong>do</strong> no chão a fazer tiro ao alvo, o qual já tinha<br />
dis<strong>para</strong><strong>do</strong> sessenta tiros sem que tivesse acerta<strong>do</strong> no alvo – de facto nun-<br />
ca se vira um indivíduo mais tacanho –, e o tenente Fontes, não esteve<br />
com meias medidas. Num repente, levanta de alto o pingalim e aí vai<br />
semelhante bor<strong>do</strong>ada, <strong>para</strong> logo virar costas, sem dizer uma palavra.<br />
Um dia estava o senhor Tenente Fontes, rodea<strong>do</strong> de grumetes e<br />
marinheiros, contan<strong>do</strong>-lhes os grandes feitos nas campanhas de África.<br />
Tu<strong>do</strong> muito bem, até certo ponto. Mas, em da<strong>do</strong> momento, um gru-<br />
mete, resolveu levantar-se e, já pronto <strong>para</strong> fugir à vergastada, diz ao<br />
tenente, alto e bom som:<br />
90
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
– O senhor Tenente… O senhor afinal ganhou as suas medalhas,<br />
mas foi a matar pretos.<br />
Dito isto, fugiu e o senhor Tenente Fontes disparou a correr atrás<br />
dele, sem que jamais o apanhasse. Claro que tu<strong>do</strong> ficou por isso mesmo.<br />
O <strong>Zé</strong> nunca percebeu a razão da existência de uma figura assim,<br />
exercen<strong>do</strong> a função em igualdade de serviço com os outros oficiais da<br />
Escola.<br />
Mas um outro momento, muito mais a<strong>para</strong>toso e complica<strong>do</strong>, coisa<br />
contada pelo próprio clarim de serviço mostra bem as características, mui-<br />
tos especiais, deste homem, e, já agora, mostra também, o grau da tole-<br />
rância atrás referida. Esta história é contada pelo próprio clarim que, no<br />
momento, estava de serviço.<br />
Em Vila Franca há, ou havia ao tempo, a Escola de Mecânicos e a<br />
Escola de Alunos Marinheiros, estas se<strong>para</strong>das por um corre<strong>do</strong>r interno,<br />
ladea<strong>do</strong> por sebes de jardim.<br />
Quem se dirigisse <strong>para</strong> a Escola de Alunos Marinheiros, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
apeadeiro <strong>do</strong> Caminho de Ferro da Linha <strong>do</strong> Norte, tinha de entrar primei-<br />
ramente na Escola de Mecânicos e, daí, percorrer o dito corre<strong>do</strong>r, <strong>para</strong><br />
entrar, finalmente, na Parada da Escola de Alunos Marinheiros. A distância<br />
poderá rondar os 200 m.<br />
Na circunstância ia realizar-se o juramento de bandeira <strong>do</strong>s recrutas<br />
daquele ano, e isso constitui uma verdadeira festa, a que assistem, nor-<br />
malmente, muitas das altas individualidades incluin<strong>do</strong> o Ministro da Mari-<br />
nha. Como eles, vinham também, como de costume, as respectivas espo-<br />
sas.<br />
Ainda que a Porta de Armas da Escola de Alunos, onde tinha lugar o<br />
juramento de bandeira, seja a entrada principal e por ela passe a grande<br />
maioria <strong>do</strong>s oficiais, a verdade é que também vêm de comboio e, por isso,<br />
91
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
é coloca<strong>do</strong> um clarim na Porta de Armas, e, um outro, situa<strong>do</strong> no tal corre-<br />
<strong>do</strong>r, <strong>para</strong> anunciar os que por ali chegam de comboio, segun<strong>do</strong> as suas<br />
patentes, com direito a honras militares.<br />
Outro esclarecimento é que as instalações <strong>do</strong>s oficiais daquelas<br />
unidades conjuntas, ficavam <strong>do</strong> la<strong>do</strong> da Escola de Mecânicos isto é, <strong>do</strong><br />
la<strong>do</strong> daqueles que chegam de comboio. Portanto, em qualquer circunstân-<br />
cia, to<strong>do</strong>s daquele la<strong>do</strong>, teriam de passar pelo clarim, tal como aconteceu<br />
com o Senhor Tenente, quan<strong>do</strong> se levantou da cama e se dirigiu <strong>para</strong> a<br />
Parada, onde já decorria a cerimónia <strong>do</strong> Juramento de Bandeira.<br />
Lá vinha ele, conta o clarim, sozinho, cara virada ao chão, sisuda,<br />
como era seu costume, sobrancelha carregada, baten<strong>do</strong> com o pingalim<br />
na perna, a cada passo que dava.<br />
– Olá, seu Tenente – diz o clarim, naquele jeito de quem fala com<br />
uma pessoa da casa.<br />
O Tenente, olhan<strong>do</strong> de esguelha, sobrancelha levantada, com cara<br />
de poucos amigos, diz:<br />
– Olá cavalo.<br />
– Então, vai até à <strong>para</strong>da, não? – Diz o clarim sorridente.<br />
Sim porque, esse “olá cavalo”, nada tinha, <strong>para</strong> ele, de ofensivo. O<br />
Senhor Tenente chamava “cavalo” a toda a gente.<br />
Mas, da parte <strong>do</strong> tenente, o clarim não ouviu, nem uma palavra.<br />
Aí vai ele, passo lento, nitidamente desinteressa<strong>do</strong> da festa , como,<br />
aliás, o denotava a “humildade” <strong>do</strong> fato de cotim que vestia, enquanto<br />
to<strong>do</strong>s os outros oficiais haviam vesti<strong>do</strong> as suas vistosas fardas de gala.<br />
A festa decorria e o clarim via que o tenente voltava <strong>para</strong> trás; já<br />
próximo, meteu-se de novo com ele:<br />
92
de?<br />
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
– Então “Sr” Tenente... Está farto de ver estas coisas, não é verda-<br />
– Não. Nada disso – diz o Tenente Fontes, com voz rancorosa. –<br />
Eles vão ver quem é que tem direito a sentar-se na Tribuna!<br />
Mais um passo à frente, diz ainda:<br />
– Então, o cavalo <strong>do</strong> Fontes an<strong>do</strong>u com o coirão ao sol mais de um<br />
mês, a montar a tribuna e agora não tem nela uma nesga <strong>para</strong> se sentar!?<br />
E resmungan<strong>do</strong> ameaças, continuou o caminho em direcção aos<br />
seus aposentos.<br />
O clarim encolhen<strong>do</strong> os ombros, ficou a pensar no que dissera o<br />
Tenente, mas, sem perceber bem, o que se teria passa<strong>do</strong>.<br />
Como já tinha começa<strong>do</strong> a cerimónia <strong>do</strong> Juramento de Bandeira e<br />
não haven<strong>do</strong> o menor sinal de que por ali viesse mais viva alma, pelo<br />
menos com direito a toque de clarim, pensou lá <strong>para</strong> consigo: “Bom, já não<br />
vem mais ninguém”. E com essa ideia, tratou de descontrair, ainda que<br />
não pudesse ausentar-se <strong>do</strong> local.<br />
Passa<strong>do</strong>s alguns momentos, o clarim viu aparecer, lá adiante, um<br />
oficial solitário. À medida que se aproximava, melhor distinguia – era o<br />
Tenente Fontes.<br />
O clarim, confuso, pois que o velho tenente, tornou-se, de um<br />
momento <strong>para</strong> o outro, a pessoa mais importante, de to<strong>do</strong>s quantos esta-<br />
vam dentro <strong>do</strong> Quartel, ficou aturdi<strong>do</strong>, sem saber o que havia de fazer.<br />
Olhava agora embasbaca<strong>do</strong> <strong>para</strong> as altas condecorações que o<br />
Tenente Fontes exibia no peito e, sabia, obviamente, que, nem uma pala-<br />
vra poderia dirigir ao tenente. Sabia, também, que tais condecorações exi-<br />
giam, sem pestanejar, a obrigatoriedade de tocar a senti<strong>do</strong>.<br />
93
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
Coisa mais insólita e dis<strong>para</strong>tada, pensava. Era apenas o tenente<br />
Fontes. O “Fontes” que, momentos antes, andava por ali a passear, de<br />
fato de cotim e agora lhe aparece naquele esta<strong>do</strong>.<br />
O dilema era então: se tocasse a senti<strong>do</strong> – coisa mais insólita –<br />
Interrompia a cerimónia. Não tocar a senti<strong>do</strong>, perante tais decorações, era<br />
algo inconcebível.<br />
Por sua vez o tenente, com um desplante inacreditável, nem por um<br />
momento se detinha. Pensou: “Bom, eu tenho que tocar a senti<strong>do</strong>, custe a<br />
quem custar”.<br />
Como é óbvio, o inespera<strong>do</strong> toque a senti<strong>do</strong>, deixou to<strong>do</strong> o Quartel<br />
em suspenso.<br />
Uma Parada repleta de gente, vozes de coman<strong>do</strong> ecoan<strong>do</strong> no espa-<br />
ço, tu<strong>do</strong> isso, bruscamente interrompi<strong>do</strong>.<br />
É fácil imaginar toda gente, estática, como os marinheiros perfila<strong>do</strong>s<br />
na Parada, ou então levantada, circunspecta, a olhar <strong>para</strong> um só ponto,<br />
perguntan<strong>do</strong>-se o que estava a acontecer.<br />
Intrigante foi, depois daquele compasso de espera, nomeadamente<br />
<strong>para</strong> as personalidades instaladas na tribuna, enquanto o tenente Fontes,<br />
percorria, vagarosamente e semi-encoberto pelos arbustos, o “infindável”<br />
corre<strong>do</strong>r, até chegar, com a sua cara de lata, em frente da Tribuna repleta<br />
de personalidades.<br />
Boquiabertos, olhavam <strong>para</strong> ele, limitan<strong>do</strong>-se a levantar-se e abrir<br />
caminho, até ao lugar a que o condecora<strong>do</strong> tinha direito. Isto é, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
Senhor Ministro da <strong>Marinha</strong>.<br />
Este senhor tenente Fontes, homem i<strong>do</strong>so, bochechas maceradas e<br />
descaídas, comportamento rude, sempre apruma<strong>do</strong>, robusto, ainda porta-<br />
<strong>do</strong>r de uma saúde de ferro, era uma criatura mesmo muito especial. Fosse<br />
94
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
pelo que fosse, o velho tenente “vassoureiro” 11 , era simplesmente tolera-<br />
<strong>do</strong>. Provavelmente esse seu “estatuto” poderá, talvez, ter a ver com feitos<br />
exara<strong>do</strong>s no seu curriculum, e daí ser superiormente considera<strong>do</strong> como<br />
excepção.<br />
11 É um oficial que inicia a carreira como grumete ou aluno sem passar pelo curso superior da<br />
Escola Naval.<br />
95
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
DESPEDIDA<br />
Quatro anos de <strong>Marinha</strong> e o <strong>Zé</strong> regressou, naturalmente, à vida civil.<br />
Ainda hoje considera que a <strong>Marinha</strong> foi um <strong>do</strong>s maiores bens que aconte-<br />
ceram na sua vida.<br />
Sem que tu<strong>do</strong> tenha, necessariamente, uma explicação, a <strong>Marinha</strong><br />
constituiu, <strong>para</strong> o <strong>Zé</strong>, desde criança, um vislumbre de esperança no meio<br />
de reais atribulações próprias <strong>do</strong> tempo e da uma Região, onde deambu-<br />
lou – pode dizer-se –, até aos 20 anos de idade.<br />
A <strong>Marinha</strong> foi o veículo que o levou a percorrer um caminho, até cer-<br />
to ponto inespera<strong>do</strong>; um sonho apenas, no qual contactou com gente das<br />
mais variadas origens e formas de estar na vida. Foi a partir da <strong>Marinha</strong><br />
que se lhe proporcionou a oportunidade de estudar algo, adquirir conheci-<br />
mentos que o haveriam de fazer vingar no futuro.<br />
Com a <strong>Marinha</strong> viajou até lugares que jamais teria visita<strong>do</strong>, ainda<br />
mais em ambiente de alegria e camaradagem de tanta malta como ele – a<br />
marujada em geral –, o extraordinário contacto que teve com portugueses<br />
em terras distantes, e finalmente, talvez a este “bem” se possa chamar de<br />
providencial que é A DESCOBERTA DE AVEIRO.<br />
E assim volta o <strong>Zé</strong> quase ao princípio desta longa história; isto é, foi<br />
através das linhas telefónicas desde o P.B.X da Aviação Naval Almirante<br />
Gago Coutinho, em S. Jacinto – onde o <strong>Zé</strong> foi coloca<strong>do</strong> pelo Almirante<br />
Francisco Ferrer Caeiro – e a Rede Telefónica de Aveiro, que o <strong>Zé</strong> encon-<br />
trou a namorada com quem casou. Daí uma família relativamente grande e<br />
feliz.<br />
96
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
FIM<br />
97
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
ANOTAÇÕES DIVERSAS<br />
98
Há Gente no Convés<br />
VELHA SAGRES<br />
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
No convés<br />
andam mil pés<br />
Na manobra, na labuta.<br />
Sempre alerta,<br />
Sempre à escuta,<br />
Noite e dia, a marinhar.<br />
Pois se ventos os açoitam,<br />
De bombor<strong>do</strong>,<br />
De estibor<strong>do</strong>,<br />
Da proa à popa,<br />
Pode-se ouvir apitar:<br />
“Homem ao mar”!<br />
Relíquia da velha guarda;<br />
Teu pendão<br />
Foi ilusão,<br />
Dos meus vinte anos de idade<br />
Te recor<strong>do</strong> <strong>do</strong>utra Era<br />
Qual fugidia quimera<br />
Carregada de lembranças.<br />
Daqui te man<strong>do</strong> um reca<strong>do</strong><br />
Cinquenta anos passa<strong>do</strong>s!<br />
Sabe aí, que esses céus<br />
Que me viram nos teus mastros, pendura<strong>do</strong>,<br />
Eles me deram,<br />
Me trouxeram<br />
Um futuro bem fada<strong>do</strong>.<br />
99
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
100
Índice<br />
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 5<br />
<strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong> ................................................................................................................. 7<br />
Alguns apontamentos Históricos da Aviação Naval ....................................................................... 14<br />
MARAVILHOSO CENÁRIO DA NATUREZA ................................................................................. 19<br />
Escolha <strong>do</strong>s Recém-chega<strong>do</strong>s ....................................................................................................... 20<br />
Outra ocorrência ......................................................................................................................... 24<br />
A malandrice dum Rancheiro ...................................................................................................... 26<br />
O 7018/46 e a Metralha<strong>do</strong>ra Enferrujada ................................................................................... 28<br />
O ZÉ NO CORPO DE MARINHEIROS DA ARMADA .................................................................... 29<br />
UM GESTO DE CONFIANÇA EXTREMA .................................................................................. 29<br />
Centro da Aviação Naval em Pedrouços ....................................................................................... 31<br />
N.R.P. AVISO DE 2ª CLASSE JOAO DE LISBOA ........................................................................ 33<br />
O NAVIO ESCOLA SAGRES ......................................................................................................... 36<br />
NAVIO ESCOLA SAGRES (II) ....................................................................................................... 39<br />
Viagem à América <strong>do</strong> Norte 1948 .................................................................................................. 41<br />
O ZÉ RAMA .................................................................................................................................... 43<br />
A propósito de umas “meias” <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> Rama. ................................................................................ 44<br />
O PERCURSO DA SAGRES ......................................................................................................... 48<br />
ILHA DE PORTO SANTO ........................................................................................................... 48<br />
ILHA DA MADEIRA (em 1948) ................................................................................................... 49<br />
SÃO VICENTE, CABO VERDE .................................................................................................. 50<br />
MAR DOS SARGAÇOS, BERMUDAS ....................................................................................... 51<br />
A CHEGADA A BOSTON ............................................................................................................... 52<br />
ESTADIA NA AMÉRICA DO NORTE ............................................................................................. 57<br />
Um baile célebre ............................................................................................................................. 60<br />
EPISÓDIOS VÁRIOS A CAMINHO DE LISBOA ............................................................................ 63<br />
Sagres ......................................................................................................................................... 64<br />
Pintura <strong>do</strong> Navio ............................................................................................................................. 65<br />
CABO ZÉ ........................................................................................................................................ 72<br />
Vós marujos da Sagres, que passais ............................................................................................. 74<br />
“O CAPITÃO DA SAGRES” ............................................................................................................ 75<br />
CERTOS CENÁRIOS ..................................................................................................................... 79<br />
Sortilégio à volta de umas meias de vidro .................................................................................. 81<br />
REGRESSO A VILA FRANCA DE XIRA ........................................................................................ 87<br />
VILA FRANCA DE XIRA NAQUELE TEMPO ................................................................................ 88<br />
O SENHOR TENENTE FONTES ................................................................................................... 90<br />
DESPEDIDA ................................................................................................................................... 96<br />
ANOTAÇÕES DIVERSAS .............................................................................................................. 98<br />
Há Gente no Convés .................................................................................................................. 99<br />
VELHA SAGRES ........................................................................................................................ 99<br />
101
A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />
102