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A Ida do Zé para a Marinha

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A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a marinha – Alguns<br />

apontamentos autobiográficos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong><br />

<strong>para</strong> a marinha – Alguns apontamentos<br />

autobiográficos A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a<br />

marinha – Alguns apontamentos autobiográfi-<br />

cos A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a marinha –<br />

Alguns apontamentos autobiográ A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong><br />

A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

<strong>para</strong> a marinha – Alguns apontamentos<br />

autobiográficos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a<br />

Alguns apontamentos autobiográficos<br />

marinha – Alguns apontamentos autobiográfi-<br />

cos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a marinha –<br />

Alguns apontamentos autobiográficos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a marinha – Alguns apontamen-<br />

tos autobiográficos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a<br />

marinha – Alguns apontamentos autobiográfi-<br />

cos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a marinha –<br />

Alguns apontamentos autobiográficos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a marinha – Alguns apontamen-<br />

1<br />

tos autobiográficos * A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a<br />

marinha – Alguns apontamentos autobiográfi-<br />

2002<br />

José Monteiro Morais


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

2


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Alguns apontamentos autobiográficos<br />

José Monteiro Morais<br />

3


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

4


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

INTRODUÇÃO<br />

Com este trabalho, o <strong>Zé</strong> pretende recrear-se recordan<strong>do</strong> e contan<strong>do</strong><br />

ocorrências, na sua grande maioria, de caracter humorístico, bem de<br />

acor<strong>do</strong> com o mo<strong>do</strong> de estar da marujada.<br />

São peripécias que foram suceden<strong>do</strong> ao longo da caminhada desde<br />

<strong>Zé</strong> que saiu, aos 20 anos de idade, de uma “longínqua” aldeia <strong>do</strong> Alto<br />

Douro – Celeirós <strong>do</strong> Douro - <strong>para</strong> se apresentar numa inspecção, no Alfei-<br />

te, a fim de, eventualmente, ingressar na <strong>Marinha</strong> de Guerra Portuguesa.<br />

Aconteceu que o <strong>Zé</strong> foi apura<strong>do</strong>, correu mun<strong>do</strong>, conheceu e convi-<br />

veu com muita gente desde 1946 a 1950.<br />

Como é natural, sempre há pessoas, entre tanta gente, umas mais<br />

próximas que outras; mas as que o <strong>Zé</strong> aqui vai referir, não é por serem<br />

alguns <strong>do</strong>s amigos mais chega<strong>do</strong>s – também o são em parte - mas sim<br />

porque eles são os protagonistas das histórias aqui referidas. Sem fazer<br />

acepção de pessoas, o <strong>Zé</strong> terá de começar por uma personalidade amiga<br />

sim, mas que se situa num grau da hierarquia militar que nada tem a ver<br />

com o grumete nº.7004, nem de longe nem de perto com a caminhada que<br />

o <strong>Zé</strong> percorreu desde a sua origem, igualmente na <strong>Marinha</strong>. Essa perso-<br />

nalidade é exactamente, o 2º Comandante da Escola da Aviação Naval<br />

Almirante Gago Coutinho de S. Jacinto – Aveiro, ao tempo 1º Tenente –<br />

hoje Almirante – Francisco Ferrer Caeiro. O <strong>Zé</strong> coloca-o desde já neste<br />

trabalho porque, como disse ele é um <strong>do</strong>s intervenientes mais marcantes,<br />

na sequência <strong>do</strong>s acontecimentos.<br />

Os “outros” são: O “Cabo <strong>Zé</strong>” – filho da mesma escola, o <strong>Zé</strong> Rama –<br />

um Grumete de Manobra - <strong>do</strong>is compinxas de grande destaque entre a<br />

marujada, os quais partici<strong>para</strong>m, como o <strong>Zé</strong>, na viagem da SAGRES, em<br />

1948, à América <strong>do</strong> Norte.<br />

5


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Por último, o <strong>Zé</strong> faz referência a um certo Oficial, o senhor Tenente<br />

Fontes, não devi<strong>do</strong> a qualquer proximidade, mas sim pelas invulgares<br />

características enquanto Oficial da <strong>Marinha</strong>. O senhor ten. Fontes mercê<br />

de uma invulgar tolerância, supõe o <strong>Zé</strong>, permitia-se, inclusive, desrespeitar<br />

regulamentos e pessoas, ao sabor <strong>do</strong> seu mo<strong>do</strong> que mais não era que for-<br />

temente grosseiro.<br />

O <strong>Zé</strong> conviveu com ele, em duas alturas, na Escola de Alunos<br />

Marinheiros, e na Escola de Mecânicos, em Vila Franca de Xira.<br />

Outra pessoa aqui referida, o Senhor Capitão Joaquim Nunes Duar-<br />

te, já faleci<strong>do</strong> -, autor da obra intitulada: “ HIDROAVIÕES NOS CÉUS DE<br />

AVEIRO”, faz parte <strong>do</strong> número de pessoas aqui mencionadas, tanto por-<br />

que o <strong>Zé</strong> conviveu com ele na Escola de Aviação nos anos de 1947/48,<br />

mas também porque foi da sua obra que o <strong>Zé</strong> colheu preciosas informa-<br />

ções, relativamente a S. Jacinto.<br />

6<br />

J. Morais<br />

Aveiro, 2002


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

<strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Sai o <strong>Zé</strong> da sua aldeia,<br />

Curioso, par’a cidade.<br />

Tal desejo tem na ideia<br />

Desde muito tenra idade.<br />

Eram quatro de Janeiro<br />

Dum ano já tão distante<br />

Lá vai ele de pé ligeiro,<br />

De chapéu, bem elegante!<br />

Só ele sabe o que passou<br />

A vida que ali viveu<br />

Se o demo lhe amassou,<br />

Muito <strong>do</strong> pão que comeu<br />

Mas grande sonho ele tinha,<br />

Noite e dia sussurra<strong>do</strong><br />

Era ir <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong>,<br />

Se por bem fosse apura<strong>do</strong><br />

De Celeirós ao Pinhão,<br />

Dez quilómetros de distância.<br />

Carrega as cestas à mão,<br />

Mas não lhe dá importância.<br />

Chega o comboio sonante,<br />

A largar negra fumaça,<br />

Aquele fagulho constante<br />

Pôs-lhe o fato uma desgraça.<br />

Corre o comboio, veloz,<br />

Desvaira<strong>do</strong> corre à toa;<br />

Mas, p'ra trás é Celeirós,<br />

E <strong>para</strong> a frente é Lisboa.<br />

7


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Pelo mesmo vai também<br />

Um tal Pires, seu companheiro;<br />

Está mais feliz que ninguém<br />

Já se sente marinheiro.<br />

Outras palavras não tinha<br />

Não mais mudava de assunto;<br />

Só falava da <strong>Marinha</strong><br />

Entre lascas de presunto.<br />

Dissertava sobre o mar...<br />

Quanta largura teria,<br />

E acabou por achar<br />

De fun<strong>do</strong>, quanto media!<br />

Ficara de estar no Porto,<br />

Um tal Zeca à sua espera;<br />

Mas a coisa deu p’ró torto<br />

O tal rapaz não viera<br />

Pasma<strong>do</strong>s de tanta gente,<br />

Lá na estação de S. Bento,<br />

Vai o <strong>Zé</strong> diz de repente<br />

Espera Pires um só momento.<br />

Saiu, logo achou<br />

O tal Zeca ao dar da esquina,<br />

Afinal só se atrasou<br />

Por diferença pequenina.<br />

Reentra<strong>do</strong>s na estação<br />

Lá está o Pires triste sozinho,<br />

Iludin<strong>do</strong> a solidão,<br />

Com mais copo de vinho<br />

Eh pá! Brada o Zeca em alvoroço.<br />

Pensavas que já não vinha?<br />

Venha de lá esse abraço,<br />

Já sei que vais p'rá <strong>Marinha</strong>!<br />

8


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Limpa o Pires ainda a boca<br />

Do tinto que lhe escorria,<br />

Puxa o chapéu <strong>para</strong> a nuca<br />

A transbordar de alegria<br />

Foi o abraço mais torto...<br />

De nunca vista emoção!<br />

Depois, falámos <strong>do</strong> Porto,<br />

Que o Porto é uma nação!<br />

Fala o Zeca <strong>do</strong> seu Porto,<br />

De modesto, tem um toque;<br />

Às tantas diz absorto:<br />

Grande, sim, é Nova York”!<br />

E vejam só... Quem diria,<br />

Nessa noite tão distante,<br />

Que só o <strong>Zé</strong> é que iria<br />

A essa terra gigante! 1<br />

Mas vamos lá, devagar,<br />

Que a razão se respeite<br />

Era preciso passar<br />

Nas inspecções <strong>do</strong> Alfeite.<br />

E lá partiram <strong>do</strong> Porto<br />

Talvez duas da manhã;<br />

Alheios ao desconforto<br />

Na busca dum “talismã”.<br />

Reluziam horizontes<br />

Desde o nascer daquele dia,<br />

Bem longe de Trás-os-Montes<br />

Um novo mun<strong>do</strong> surgia.<br />

Ao chegarem a Lisboa<br />

Deu-se ali a mesma fita;<br />

Pois lá não estava pessoa<br />

Que ficou de estar na dita!<br />

1 Viagem da Sagres América <strong>do</strong> Norte em 1948<br />

9


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Era a Estação <strong>do</strong> Rossio...<br />

Tanta gente a fervilhar<br />

Mas a multidão sumiu<br />

E eles ali a secar.<br />

Mas onde fica a pensão,<br />

“Lá sabemos nós onde é”...<br />

Com tantas cestas na mão...<br />

E agora!?... diz o <strong>Zé</strong>.<br />

Mas o <strong>Zé</strong> o que queria<br />

Era logo ver o Mar<br />

Toma Pires a cestaria<br />

Que eu vou até ali espreitar”.<br />

Bastante tempo passou<br />

Pois chegou ao cais <strong>do</strong> Sodré<br />

Pobre Pires, desesperou<br />

Ficou c’os nervos em pé.<br />

Esse tal tinha apareci<strong>do</strong>,<br />

Logo, mas, enfim, fora de hora;<br />

Lá deram o <strong>Zé</strong> por perdi<strong>do</strong>,<br />

Por essa Lisboa fora.<br />

Depois dum ralha que ralha<br />

Que to<strong>do</strong>s tinham falha<strong>do</strong>,<br />

E lá guardaram a tralha,<br />

Numa tasca ali ao la<strong>do</strong><br />

No dia seis, manhãzinha,<br />

Toma<strong>do</strong> o café com leite<br />

Do arsenal da <strong>Marinha</strong><br />

Lá partiram pró Alfeite<br />

Julga o <strong>Zé</strong> ir sobre o Mar<br />

Se a lógica lhe não falha<br />

Era água de pasmar...<br />

Mas só era o mar da Palha!<br />

Deu-se pois a inspecção,<br />

E chegam os resulta<strong>do</strong>s<br />

Para uns, desilusão<br />

E outros são apura<strong>do</strong>s.<br />

10


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Ninguém sabe o seu destino<br />

Antes de a hora chegar<br />

Pois foi grande o desatino<br />

Que pôs os <strong>do</strong>is a chorar<br />

Por falta de aptidão<br />

O pobre Pires não serviu<br />

Oh cruel desilusão<br />

Dum sonho que assim ruiu<br />

Impossível compreender<br />

Semelhante desventura;<br />

Deixa o <strong>Zé</strong> triste a valer,<br />

Pelas ruas da amargura<br />

Mas por mais que se incomode,<br />

Já nada pode mudar;<br />

É que ali manda quem pode,<br />

Custe isso, a quem custar!<br />

Tornou o Pires <strong>para</strong> a terra<br />

E o <strong>Zé</strong> pra Vila Franca:<br />

Quanta amargura encerra<br />

A lágrima de não se estanca<br />

Viu pois partir o <strong>Zé</strong><br />

E outros no camião<br />

Já farda<strong>do</strong>, de boné.<br />

Pró local da instrução<br />

A Vila Franca chega<strong>do</strong>s<br />

Era já noite cerrada<br />

E ao man<strong>do</strong> de arvora<strong>do</strong>s<br />

Se instala a marujada<br />

Novas formas de lidar,<br />

Algumas vozes troan<strong>do</strong>;<br />

São instrutores a berrar<br />

E a malta via marchan<strong>do</strong>.<br />

Mas há coisas esquisitas<br />

Que podem acontecer<br />

Pois parecem estar previstas<br />

Para nosso padecer.<br />

11


2 Os 8 indivíduos da sua mesa<br />

A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Logo, logo ali chega<strong>do</strong>,<br />

Coube ao <strong>Zé</strong> virar rancheiro;<br />

Para isso foi escala<strong>do</strong>,<br />

Mais um outro companheiro<br />

Entre tachos e panelas<br />

Andava algo confuso<br />

Mal sabia pegar nelas,<br />

Pois disso nunca fez uso.<br />

Um dia, Oh santo Deus<br />

Também já noite cerrada<br />

Tombou o rancho <strong>do</strong>s “seus” 2<br />

Cai-lhe a papa na <strong>para</strong>da<br />

Coita<strong>do</strong>, foi castiga<strong>do</strong>...<br />

“Três privações de saída”<br />

Por derramar o guisa<strong>do</strong>,<br />

Ou lá que era a comida!<br />

Pregou c´os bifes no chão,<br />

O tenente estava a ver<br />

Passou-lhe ali um tal sermão<br />

Deixan<strong>do</strong> o <strong>Zé</strong> a tremer<br />

Quem dera desarvorar<br />

P`ra qualquer la<strong>do</strong>, às cegas<br />

Confuso por estuporar<br />

O jantar <strong>do</strong>s seus colegas<br />

Mas vejam só a fineza<br />

Do porte de tal tenente<br />

Resolve mandar p`rá mesa<br />

Areia e terra aderente<br />

Energúmeno sujeito<br />

Pensa o <strong>Zé</strong>, <strong>do</strong> figurão<br />

Por achar muito bem feito<br />

Comermos os bifes <strong>do</strong> chão<br />

12


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Mais tarde no refeitório<br />

Havia um certo sussurro<br />

E pró <strong>Zé</strong> era notório<br />

Que a coisa cheirava a esturro<br />

Sentia rilhar a areia<br />

Nos dentes <strong>do</strong>s arrancha<strong>do</strong>s<br />

E pensa ir p´rá cadeia<br />

Por danos daí espera<strong>do</strong>s<br />

Não se lhe varre da ideia<br />

Que preso, vai de certeza<br />

Se esta maldita ceia<br />

Provocar a diarreia<br />

Nos oito gajos da mesa<br />

Mas, a sorte já está escrita<br />

“Por quem nos faz os destinos”;<br />

E esta papa maldita<br />

Lá passou nos intestinos.<br />

Tu<strong>do</strong> rolou, passou<br />

E o <strong>Zé</strong> se fez mais forte;<br />

Ginasta se revelou<br />

“Dos melhores, i<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Norte”!<br />

Três meses ali passara<br />

Em trampolins a voar<br />

Até alguém lhe chamara<br />

Um atleta invulgar 3<br />

Depois, adeus Vila Franca,<br />

O <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> Aveiro marchou<br />

Já o comboio arranca;<br />

Já três vezes apitou.<br />

Parte pois o <strong>Zé</strong>, <strong>do</strong> Sul,<br />

Mas agora marinheiro,<br />

Lá vai ele de farda azul,<br />

Senhor <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> inteiro!<br />

3 Palavras de um instrutor de Vila Franca, de nome Gouveia.<br />

13


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Alguns apontamentos Históricos da Aviação Naval 4<br />

É óbvio que muito há que dizer sobre a História da Aviação Naval,<br />

mas essa análise aprofundada, como é devi<strong>do</strong>, não caberia, propriamente,<br />

no âmbito deste modesto trabalho. Transcreverei, entretanto, o seguinte,<br />

sobre os primórdios desta Arma da <strong>Marinha</strong> de Guerra: A Aviação Marí-<br />

tima<br />

“Em 1912, Bento Carqueja, funda<strong>do</strong>r de “O Comércio <strong>do</strong> Porto”<br />

adquiriu um biplano francês. Destinava-se a fazer voos <strong>para</strong> angariação de<br />

fun<strong>do</strong>s <strong>para</strong> a manutenção das creches daquele Diário”.<br />

“Em 1916 foi criada a Escola de Aviação Militar em Vila Nova da<br />

Rainha. Aí surgiu um outro biplano baptiza<strong>do</strong> de “casta Susana”.<br />

“Em 1910 um avia<strong>do</strong>r francês Mamet fazia voos em Belém, a uma<br />

altura de 50 metros”.<br />

“Foi no avião <strong>do</strong> Funda<strong>do</strong>r de O Comércio <strong>do</strong> Porto que Gago Cou-<br />

tinho voou pela primeira vez, a convite de Sacadura Cabral, instrutor em<br />

Vila Nova da Rainha. Este avião acabou despedaça<strong>do</strong> num desastre, mas<br />

Sacadura e o Alferes Pinheiro Correia saíram quase ilesos.”<br />

“Pode dizer-se” – continua a sua narração o Capitão Duarte –, “que<br />

a Aviação Marítima começou a ganhar corpo nas noites tropicais africanas<br />

quan<strong>do</strong> Sacadura Cabral e Gago Coutinho, longe ainda <strong>do</strong> maior feito da<br />

Aviação Portuguesa, se dedicavam à tarefa de medições geodésicas.<br />

Gago Coutinho era, em 1907, o chefe de uma missão em Moçambique<br />

onde ambos se encontraram pela primeira vez, crian<strong>do</strong>-se então profun-<br />

das raízes de amizade.” “...trabalharam juntos de 1907 a 1910”. Sacadura<br />

Cabral “regressou a Lisboa em 1915 e concorreu à Aviação, uma nova<br />

arma que despontava, sen<strong>do</strong> breveta<strong>do</strong> em Chartres, na França”.<br />

4 Segun<strong>do</strong> a Obra <strong>do</strong> Capitão Joaquim Nunes Duarte – Hidroaviões nos Céus de Aveiro.<br />

14


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

A primeira escola de pilotagem no nosso país funcionou em Vila<br />

Nova da Rainha, onde Sacadura Cabral recebeu, em 1916, a visita <strong>do</strong> seu<br />

ilustre amigo Gago Coutinho. Pela primeira vez, voaram juntos, os <strong>do</strong>is<br />

amigos.<br />

Passa<strong>do</strong>s poucos meses foi criada a Aviação Marítima por iniciativa<br />

de Sacadura Cabral com Bases em Lisboa (Bom Sucesso), Aveiro (S.<br />

Jacinto) e Faro (Ilha da Culatra).<br />

Também por iniciativa de Sacadura Cabal e segun<strong>do</strong> um acor<strong>do</strong><br />

com o Governo Francês, foi instalada uma pequena esquadrilha em S.<br />

Jacinto. “A aviação Naval Francesa decidiu-se pelo espelho de água da<br />

Ria de Aveiro”.<br />

No dizer de um Senhor Daniel Constant – com quem o Capitão Joa-<br />

quim Nunes Duarte ainda conversou em Aveiro – “A Ria naquele tempo<br />

era plena de barcos, coalhada de velas, um verdadeiro sonho...”<br />

No ano de 1918 os franceses retiraram-se definitivamente de S.<br />

Jacinto <strong>para</strong> a sua terra natal e, em 8 de Dezembro, procedeu-se à entre-<br />

ga solene <strong>do</strong> Centro de S. Jacinto com to<strong>do</strong>s os aparelhos e equipamento.<br />

Logo de seguida, deu-se a revolta no Porto, a “Traulitânia”. Implan-<br />

tação da Monarquia <strong>do</strong> Norte – que apenas durou 25 dias. Os aviões de S.<br />

Jacinto entraram imediatamente ao serviço. As tropas revoltosas avança-<br />

vam em direcção ao Sul, pelo que as estradas de Aveiro eram atravessa-<br />

das pelos seus veículos. O caminho-de-ferro era também usa<strong>do</strong> pelos<br />

trauliteiros. Os aviões de S. Jacinto entraram na contenda pelo la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

Governo Republicano, lançan<strong>do</strong> primeiramente panfletos sobre a cidade<br />

<strong>do</strong> Porto e, depois, bombardearam a linha <strong>do</strong> C. Ferro ali por alturas de<br />

Espinho.<br />

Sacadura Cabal fez parte na primeira linha, pelo que foi louva<strong>do</strong> por<br />

Portaria de 15-10-1919.<br />

15


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Em 1920 chegaram da Inglaterra os aviões «F-3», construí<strong>do</strong>s e<br />

adapta<strong>do</strong>s a largos voos com vista à I Travessia Aérea <strong>do</strong> Atlântico Sul.<br />

A dada altura Sacadura Cabral pediu a Gago Coutinho que viesse<br />

de Lisboa de comboio <strong>para</strong> saírem de Aveiro <strong>para</strong> Lisboa de avião. To<strong>do</strong>s<br />

estes gestos eram pre<strong>para</strong>tivos <strong>para</strong> a travessia Lisboa- Madeira.<br />

Assim aconteceu e sobre isso, são as seguintes as palavras de<br />

Sacadura Cabal: “Com a violência da nortada que fazia e auxilia<strong>do</strong> pela<br />

mareta que se tinha forma<strong>do</strong> na Ria de Aveiro, o hidroavião descolou<br />

como nunca o vira descolar...”<br />

Como já se disse, o <strong>Zé</strong> veio da recruta de Vila Franca de Xira <strong>para</strong> a<br />

Escola de Aviação Naval de S. Jacinto.<br />

Esteve nesta Unidade <strong>do</strong>is anos como telefonista da Base e, agora,<br />

vê, com curiosidade, que, só muito recentemente, através da Obra <strong>do</strong><br />

Capitão Duarte se apercebeu que, sobre a história da aviação e da história<br />

da própria Unidade, nada se disse.<br />

Ora, um <strong>do</strong>s mais encanta<strong>do</strong>res atributos daquela Unidade e conse-<br />

quentemente da laguna de Aveiro intimamente ligadas, é, exactamente, a<br />

presença <strong>do</strong> glorioso Avia<strong>do</strong>r português, Sacadura Cabral. Isto, obviamen-<br />

te, sem o mínimo desprimor <strong>para</strong> tantos outros obreiros que o próprio <strong>Zé</strong><br />

conheceu, alguns, em pessoa. Mas nem mesmo desses se falou; da sua<br />

carreira, <strong>do</strong> seu contributo.<br />

No que respeita a Sacadura Cabral, mercê de ser um herói destaca-<br />

<strong>do</strong> da nossa História, foi-nos “apresenta<strong>do</strong>” - nessa qualidade -, na Escola<br />

Primária. Foi então que muito mais tarde, agora marinheiro em S. Jacinto,<br />

o <strong>Zé</strong> se apercebeu de como os heróis ficam desprovi<strong>do</strong>s da humanidade<br />

<strong>do</strong> homem vulgar, que teimosa e aturadamente, conseguem atingir os<br />

seus objectivos. Objectivos que, sem dúvida, não são ganharem louros<br />

que, por bem, mais tarde lhes atribuímos.<br />

16


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Por tu<strong>do</strong> isso, é muito gratificante <strong>para</strong> o <strong>Zé</strong> saber agora, que, neste<br />

lugar maravilhoso – Aveiro e a sua Ria – foram feitos todas as experiên-<br />

cias e ultima<strong>do</strong>s os últimos pre<strong>para</strong>tivos, <strong>para</strong> que, os heróis Sacadura<br />

Cabral e Gago Coutinho, se pre<strong>para</strong>ram <strong>para</strong> a travessia <strong>do</strong> Atlântico Sul,<br />

que tão alto bra<strong>do</strong> deu.<br />

Apenas como ilação, desta falta de comunicação, que normalmente<br />

não fazemos, de viva voz, apoia<strong>do</strong>s nas nossas tradições, - seja qual for a<br />

área da vida em que nos inserimos, desenraíza-nos uns <strong>do</strong>s outros, afas-<br />

ta-nos das raízes, que são afinal a razão de ser <strong>do</strong> nosso presente. É<br />

óbvio que esta falta de informação que o <strong>Zé</strong> aqui refere, longe de ser um<br />

reparo a quem orientava os recém-chega<strong>do</strong>s grumetes, é apenas a invo-<br />

cação de um lugar-comum extensivo a áreas da maior importância da vida<br />

<strong>do</strong>s povos, o que, no caso português nos situa numa improvisação cons-<br />

tante, num individualismo sempre crescente.<br />

Contu<strong>do</strong> esta forma de ver as coisas da parte <strong>do</strong> <strong>Zé</strong>, fica, por agora,<br />

compensada com a notícia extra <strong>do</strong> Capitão Duarte, talvez o <strong>Zé</strong> particula-<br />

rize um pouco a questão, porque, de alguma forma partilhou, ainda que<br />

muito modestamente, da realidade <strong>do</strong>s factos enquanto grumete da Uni-<br />

dade de S. Jacinto. Na verdade o <strong>Zé</strong> fez parte da guarnição da Escola e<br />

até teve a sorte de estar presente na visita que o Almirante Gago Coutinho<br />

fez à Unidade, em 1946.<br />

A esse respeito, o Capitão Duarte diz no seu livro:<br />

“Em 1946, o Almirante Gago Coutinho visitou a Escola com o seu<br />

nome. Foi a última vez que o ilustre marinheiro esteve em S. Jacinto, onde<br />

foi recebi<strong>do</strong> pelo Comandante Car<strong>do</strong>so de Oliveira e por toda a guarnição<br />

que o acarinhou de mo<strong>do</strong> especial.<br />

Depois de uma cerimónia no hangar, com o outro herói da Travessia<br />

a tecer elogios a Sacadura Cabral, seu companheiro de viagem, o pessoal<br />

17


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

liga<strong>do</strong> ao voo transportou-o pelo ar, senta<strong>do</strong> numa cadeira, o patrono da<br />

Escola que agradeceu, comovi<strong>do</strong>, a manifestação de carinho e simpatia”.<br />

18


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

MARAVILHOSO CENÁRIO DA NATUREZA<br />

O <strong>Zé</strong> chegou a esta Unidade da <strong>Marinha</strong> no mês de Abril, tempo em<br />

que tu<strong>do</strong> o que há <strong>para</strong> florir, já floriu.<br />

Os espaços verdes da Unidade e, igualmente, a mata que se esten-<br />

de até às praias de S. Jacinto, já se tinham revesti<strong>do</strong> <strong>do</strong> amarelo vivo das<br />

acácias e <strong>do</strong>s variadíssimos verdes <strong>do</strong>s arbustos. Foi interessante de<strong>para</strong>r<br />

com o asseio da Unidade nomeadamente o impacto que causava o<br />

esbranquiça<strong>do</strong> arenoso das ruas, a contrastar, fortemente, com o verde-<br />

escuro das árvores que, cerradamente, as ladeavam.<br />

Além disso, era a novidade da visão que se teve da grande exten-<br />

são da laguna – a Ria de Aveiro –, a beleza <strong>do</strong>s moliceiros sulcan<strong>do</strong> as<br />

águas da ria – vela ao vento –, o movimento <strong>do</strong>s aviões levantan<strong>do</strong> e des-<br />

cen<strong>do</strong> na Ria e no campo, o espectáculo das acrobacias <strong>do</strong>s Tigers em<br />

céu azul, a azáfama nos hangares, tu<strong>do</strong> isso constituía, <strong>para</strong> o <strong>Zé</strong> e <strong>para</strong><br />

os demais recém-chega<strong>do</strong>s, algo novo, encanta<strong>do</strong>r. O <strong>Zé</strong> sentia em tu<strong>do</strong><br />

aquilo, toda uma “promessa de bem-estar”, o que veio a ter o melhor des-<br />

fecho.<br />

19


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Escolha <strong>do</strong>s Recém-chega<strong>do</strong>s<br />

Estamos numa formatura. A formatura <strong>do</strong>s recém-chega<strong>do</strong>s. O<br />

Senhor Comandante escolheu... “pela cara” (!) – palavras suas – os gru-<br />

metes que haveriam de ocupar os diversos lugares, na Unidade.<br />

Pela cara ou não, o grumete 7004/46, foi manda<strong>do</strong> <strong>para</strong> o P.B.X. e,<br />

se sorte tivera, desde logo, em ficar isento de fazer guardas à Unidade,<br />

sorte muitíssimo maior, o esperava na linha telefónica. É que a miraculosa<br />

linha telefónica, haveria de levar a sua voz e, um pouco mais tarde, os<br />

sons da sua guitarra a lugares que, o seu destino, não se poderia imagi-<br />

nar.<br />

Um telefonista-guitarrista na linha!<br />

E foi pela cara, disse o Comandante! Mas como é que se percebe,<br />

por exemplo, que o <strong>Zé</strong> tinha cara <strong>para</strong> telefonista!? Como é que Coman-<br />

dante podia descobrir, pela cara, que o <strong>Zé</strong> era guitarrista!? E como é que<br />

se poderia saber que, só a guitarra poderia atrair – e não as vozes de mal-<br />

afama<strong>do</strong>s marujos – as meninas da rede telefónica de Aveiro!?<br />

E, também, como foi que o Comandante descobriu – pela cara –, na<br />

mesma formatura, um grumete <strong>para</strong> pastor!? Exactamente, um grumete<br />

recém-chega<strong>do</strong> de Vila Franca <strong>para</strong> pastorear um rebanho que, nem sei<br />

porque carga de água, existia na Aviação!?<br />

Mas deve dizer-se que o grupo ali presente não era lá muito <strong>do</strong>ta<strong>do</strong><br />

profissionalmente.<br />

Risada geral foi quan<strong>do</strong> o Senhor Comandante perguntou a um<br />

deles, o 7009/46: Qual é a sua profissão? Este, estranho a tu<strong>do</strong> que ali o<br />

esperava, talvez nervoso, o que nós víamos era uma cara aflita, sobrance-<br />

lhas em jeito de asa delta, acabou por responder: “minha profissão, é pro-<br />

prietário”.<br />

20


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

O Senhor Comandante sorriu e disse:<br />

– Se eu fosse proprietário, não andava aqui, meu amigo.<br />

Mas, interessante foi também aquela abordagem estratégica <strong>do</strong><br />

Comandante inteligentemente guarnecida de regalias que não eram <strong>para</strong><br />

desprezar, tão só <strong>para</strong> desencantar na mesma formatura um qualquer<br />

grumete que, sem dúvida tinha saí<strong>do</strong> de casa <strong>para</strong> ir <strong>para</strong> os mares e que<br />

ali o estavam a aliciar <strong>para</strong> ser um marinheiro pastor!!! Bom. Diga-se que o<br />

convite era tão descabi<strong>do</strong>, como tão descabi<strong>do</strong> e insólito seria um rebanho<br />

de carneiros numa base de aviões! Seja como for, nunca se ouvira falar de<br />

pastores marítimos pelo que só um voluntário poderia fazer tal milagre e<br />

exercer a função. O certo é que o grumete de cara corada e re<strong>do</strong>nda<br />

aprumou-se e disse: “Aceito eu, Senhor Comandante”.<br />

Ao fim e ao cabo, o rapaz não tar<strong>do</strong>u a descobrir que tinha uma<br />

imensa mata <strong>para</strong> descansar à sombra das acácias e <strong>do</strong>s pinheiros, desde<br />

manhã ao sol-pôr; que, com jeitinho poderia até refrescar-se na praia; que<br />

não fazia guardas; que tinha direito a licenças extra. E tu<strong>do</strong> isto <strong>para</strong> pre-<br />

miar a humildade e a solidão <strong>do</strong> “pobre” pastor.<br />

Pois é; o tempo corria normalmente e, a dada altura, o <strong>Zé</strong> prevari-<br />

cou, e o Senhor Comandante castigou. Seis guardas de castigo. Azar.<br />

Pior, ainda, porque o raio <strong>do</strong> castigo logo foi incidir nas festas de S. Jacin-<br />

to, e isso era, <strong>para</strong> o <strong>Zé</strong>, o pior <strong>do</strong>s contratempos.<br />

De facto nunca ninguém soube que o 7004/46 dessas seis guardas,<br />

só fez duas. É óbvio que isso daria um castigo muito maior mas... o <strong>Zé</strong><br />

não faltou à festa. O <strong>Zé</strong> diz agora estas coisas porque as infracções cadu-<br />

cam ao fim de... 50 anos. O <strong>Zé</strong> pede desculpa ao Comandante que estima<br />

e ao Sargento que não topou a jogada.<br />

Costuma dizer-se: “quem tem amigos, não morre na cadeia”. Pelo<br />

que o dita<strong>do</strong> não pode estar melhor aplica<strong>do</strong>.<br />

21


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

O <strong>Zé</strong> tinha uma quantidade de colegas a fazerem o seu serviço,<br />

quan<strong>do</strong> dessa ajuda precisasse. Mas essa ajuda resultava afinal de uma<br />

troca de serviço, mais ou menos, à margem das Ordens de Serviço. O <strong>Zé</strong><br />

é oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong> Alto Douro, longe, portanto, de casa, pelo que passava, nor-<br />

malmente, os fins-de-semana no quartel. Deste mo<strong>do</strong>, nada lhe custava<br />

fazer o serviço que cabia a colegas mora<strong>do</strong>res nas re<strong>do</strong>ndezas. Mas havia<br />

uma outra razão bastante mais preponderante que levava o <strong>Zé</strong> a ficar, de<br />

bom gra<strong>do</strong>, de serviço, no P. B. X, ao fim de semana.<br />

A guitarra e a voz <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> já de há muito eram conhecidas e mesmo<br />

acarinhadas pelas meninas da rede, de mo<strong>do</strong> que aquelas tardes, no<br />

segre<strong>do</strong> que permitiam as desabonadas 5 , eram ouro sobre azul. Assim o<br />

<strong>Zé</strong> descobriu que entre essas telefonistas estava a sua namorada e mais<br />

tarde a sua mulher.<br />

Talvez seja a altura de dizer que o Senhor Comandante não era<br />

pessoa <strong>para</strong> brincadeiras, era extremamente exigente em tu<strong>do</strong> e consigo<br />

mesmo.<br />

Porém, se aplicou um castigo ao <strong>Zé</strong> por o ter encontra<strong>do</strong> a fazer chi-<br />

chi por detrás da Casa da Guarda, foi extremamente benevolente quan<strong>do</strong>,<br />

um dia, vin<strong>do</strong> à Base num fim-de-semana, fez que não viu o <strong>Zé</strong> no P. B.<br />

X., no Edifício <strong>do</strong> Coman<strong>do</strong>, a tocar guitarra <strong>para</strong> Aveiro. Não sabe o <strong>Zé</strong> a<br />

que santo deve esta falta de visão <strong>do</strong> Comandante, pois a irregularidade<br />

<strong>do</strong> <strong>Zé</strong> era grave, se levada em conta.<br />

E se algum dia o Senhor Comandante, hoje Almirante, ler estas<br />

palavras, o <strong>Zé</strong> crê que lhe desculpará to<strong>do</strong> este tom de brincadeira, com<br />

que agora fala destas passagens.<br />

Ainda quanto á situação atrás referida, Senhor Almirante, nem ima-<br />

gina a aflição <strong>do</strong> 1º marinheiro, Senhor Paula, ordenança ao oficial de Ser-<br />

5 Fins-de-semana, de 6ª a 2ª<br />

22


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

viço, quan<strong>do</strong>, de olhos esbugalha<strong>do</strong>s, chegou à porta <strong>do</strong> PBX a dizer ao<br />

alegre toca<strong>do</strong>r: – Ai “4”, você está desgraça<strong>do</strong>!<br />

23


Outra ocorrência<br />

A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Esta talvez mais preponderante na caminhada que o <strong>Zé</strong> percorreu.<br />

A dada altura a marujada de S. Jacinto, deu em falar telefonicamen-<br />

te <strong>para</strong> Aveiro, com grande frequência.<br />

Telefonemas motiva<strong>do</strong>s pelas mais diversas razões, mas, na sua<br />

grande maioria, contariam histórias de estroinices, de rebaldaria, dizíamos<br />

nós, algumas bem conhecidas na praça pública, o que justificava, afinal, a<br />

má fama <strong>do</strong>s marinheiros “Oh Homens de caserna – diziam – cuida<strong>do</strong> com<br />

essa ralé!”<br />

Bom; essa ocupação exagerada <strong>do</strong> telefone mereceu reparo <strong>do</strong><br />

Coman<strong>do</strong> o que levou a determinadas restrições.<br />

Um dia o <strong>Zé</strong> estava a telefonar, e o Senhor Comandante Ferrer viu<br />

e, interferiu dizen<strong>do</strong>:<br />

– Vossemecê foi chama<strong>do</strong> ou chamou?<br />

O <strong>Zé</strong>, já em senti<strong>do</strong>, respondeu:<br />

– Senhor Comandante, por acaso fui chama<strong>do</strong>.<br />

– Sabe – diz ele –, ainda que não referissem o seu nome, disseram-<br />

me que os telefonistas estão sempre a falar <strong>para</strong> o exterior.<br />

Mas o <strong>Zé</strong> disse-lhe com to<strong>do</strong> o à vontade:<br />

– Senhor Comandante, informaram-no mal, porquanto, ninguém, na<br />

Unidade, fala mais que eu. – E continuan<strong>do</strong> – a diferença estará, certa-<br />

mente, em que, os meus telefonemas, não passam da Central Telefónica<br />

de Aveiro.<br />

O Comandante, ao ver tanta clareza, sem ponta de constrangimen-<br />

to, respondeu, da porta entreaberta:<br />

24


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

– Sim senhor; assim é que se fala! Dali vai <strong>para</strong> o seu gabinete e, a<br />

breves momentos, voltan<strong>do</strong>, abre a porta, simplesmente <strong>para</strong> dizer de<br />

novo:<br />

– Sim senhor; assim é que se fala! E sabe que mais... A mim, nem<br />

me aquece nem arrefece.<br />

E com essa se foi.<br />

Escusa<strong>do</strong> será dizer que o sucedi<strong>do</strong> causou, digamos, uma certa<br />

simpatia mútua.<br />

Haveria muitos e varia<strong>do</strong>s episódios ocorri<strong>do</strong>s em S. Jacinto, não só<br />

aqueles em que o <strong>Zé</strong> foi protagonista, mas também muitos outros, que<br />

primam pelo seu impacto humorístico.<br />

Porém, <strong>para</strong> não alargar demasia<strong>do</strong> o rol das suas recordações, o<br />

<strong>Zé</strong>, aponta apenas <strong>do</strong>is desses momentos hilariantes.<br />

Um, que se prende com a amostra de uma refeição, em que, um tal<br />

grumete – o 6937/45 – nos proporcionou uma cena de alta comédia, ainda<br />

que demasiadamente atrevida; outro, uma cena maluca <strong>do</strong> grumete<br />

7018/46 numa visita guiada à Escutaria da Base.<br />

25


A malandrice dum Rancheiro<br />

A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Na <strong>Marinha</strong> nenhuma refeição é servida sem se obter a aprovação<br />

<strong>do</strong> oficial de serviço.<br />

Para o efeito, o cozinheiro pre<strong>para</strong> uma pequenina refeição, incluin-<br />

<strong>do</strong> um pouco de tu<strong>do</strong> que vai <strong>para</strong>r às mesas. Essa amostra é levada ao<br />

oficial de serviço, esteja este onde estiver, sem o que a refeição não é dis-<br />

tribuída.<br />

Mas há uma preocupação de que to<strong>do</strong>s partilham que é fazer che-<br />

gar o comer às mesas, tão rapidamente quanto possível, <strong>para</strong> que chegue<br />

quente.<br />

Ora o que aconteceu naquele dia foi que o oficial de serviço, um<br />

tenente já bastante alquebra<strong>do</strong>, talvez devi<strong>do</strong> à idade, mas não só, pois<br />

dizia-se que o senhor, uma vez por outra, bebia um copo a mais; o caso é<br />

que o oficial tinha já deixa<strong>do</strong> o seu gabinete e recolhi<strong>do</strong> à messe <strong>do</strong>s ofi-<br />

ciais.<br />

A messe <strong>do</strong>s oficiais dista <strong>do</strong>s refeitórios entre os 100 e os 200<br />

metros. Os <strong>do</strong>is edifícios estão situa<strong>do</strong>s praticamente nos topos de uma<br />

avenida ladeada de árvores.<br />

A amostra foi pois levada àquele oficial pelo dito grumete, tal como<br />

mandam os “cânones”, mas o velho tenente, talvez com as ideias muito<br />

pouco claras, disse <strong>para</strong> o grumete: “prova tu”.<br />

engendrou.<br />

É aqui que começa a insólita comédia que o “safa<strong>do</strong>” <strong>do</strong> grumete<br />

26


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Sempre na ideia de que o comer arrefecesse o menos possível, era<br />

costume o rancheiro acenar lá de longe, à saída da messe, com um gesto<br />

convenciona<strong>do</strong> que significava o “pode seguir”; precisamente a frase que<br />

os oficias de serviço dizem, no caso de aprovação.<br />

Mas naquele dia, algo de estranho se passava, dada a atitude <strong>do</strong><br />

safa<strong>do</strong> <strong>do</strong> grumete, que se limitava a percorrer o caminho, na maior das<br />

calmas, sem emitir o mais pequeno sinal.<br />

Na ponta de cá da avenida, o Sargento de dia e os restantes ran-<br />

cheiros interpelavam-se mutuamente e bradavam: “então pá!?<br />

Era já audível a voz <strong>do</strong> descara<strong>do</strong> grumete, e só lhe ouvíamos dizer:<br />

calma meus senhores, calma meus senhores.<br />

entre nós.<br />

O sargento, perplexo, dizia: – então pá, estás maluco ou quê!?<br />

Mas o “pato bravo” só pedia calma e assim lá ia passan<strong>do</strong>, agora,<br />

Perplexos, to<strong>do</strong>s vão atrás dele, à frente o Sargento Gusmão. Toda<br />

a gente entra, finalmente, na cozinha.<br />

Aí o rapaz pousa, ostensivamente, a caixinha da amostra em cima<br />

duma mesa de mármore e, com o maior <strong>do</strong>s desplantes, põe-se a provar e<br />

a saborear, coisa por coisa, enquanto o sargento Gusmão, estupefacto,<br />

desconcerta<strong>do</strong>, fulo, já a dizer que ia participar dele.<br />

Finalmente, o grumete, mal acabou o meio copo de vinho da amos-<br />

tra, dá um forte estali<strong>do</strong>, com a língua, e diz, alto e bom som: PODE<br />

SEGUIR.<br />

O sargento, pessoa de trato agradável, mas perplexo, fora de si,<br />

acaba por dizer ao grumete que ia participar dele, etc.<br />

Resposta <strong>do</strong> descara<strong>do</strong>: “Não sei porquê, senhor sargento; eu ape-<br />

nas estou a cumprir uma ordem”.<br />

27


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

O 7018/46 e a Metralha<strong>do</strong>ra Enferrujada<br />

O outro caso<br />

Quan<strong>do</strong> chegamos à Escola de Aviação Naval, coube ao Senhor<br />

tenente Rego – uma pessoa calma e extremamente educada – mostrar<br />

aos recém-chega<strong>do</strong>s a Escutaria da Base.<br />

Para quem não sabe, aí se guardam armas e munições, e, neste<br />

caso, a par <strong>do</strong> armamento operacional, estavam também ali, umas armas<br />

mais ou menos antigas, expostas, digamos, como se de um museu se tra-<br />

tasse.<br />

O tenente ia dan<strong>do</strong> as suas explicações, e o grupo, seguia-o com a<br />

devida atenção.<br />

A da<strong>do</strong> momento, deparámos com uma metralha<strong>do</strong>ra muito antiga<br />

que o tenente passou a descrever: características e história da velha<br />

arma.<br />

No fim, resumin<strong>do</strong>, acabou por dizer que, apesar de haver ali outras<br />

armas, também antigas, aquela metralha<strong>do</strong>ra, era a única peça que não<br />

funcionava; isto não só porque ficara parcialmente destruída, mas, tam-<br />

bém, porque era de to<strong>do</strong> impossível, encontrar as peças que lhe faltavam.<br />

O 7018/46 – que não batia a cem por cento – mal ouvira dizer que a<br />

peça não tinha conserto, vira-se rapidamente <strong>para</strong> o tenente, já com a<br />

mão estendida, como quem quer selar um contrato, dizen<strong>do</strong>: – “Vale uma<br />

aposta, senhor tenente!?”<br />

28


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

O ZÉ NO CORPO DE MARINHEIROS DA ARMADA<br />

O Alfeite é a Unidade da <strong>Marinha</strong> que movimenta mais gente. O <strong>Zé</strong><br />

esteve ali pouco tempo, o que acontece com to<strong>do</strong>s aqueles que desejam<br />

ser destaca<strong>do</strong>s <strong>para</strong> os navios e outras Unidades, existentes por to<strong>do</strong> o<br />

país.<br />

Dessa Unidade, o <strong>Zé</strong> poderia contar complicadíssimas histórias da<br />

marinhagem, que partilhavam a sua vida maruja com faias e brigões,<br />

alguns bastante perigosos, pelos bairros mais prostituí<strong>do</strong>s de Lisboa.<br />

Em jeito de pormenor, diz-se que, é a esta Unidade que chegam e<br />

dela partem, marujos que têm a cumprir castigos mais severos, que aque-<br />

les que, normalmente, são cumpri<strong>do</strong>s nas próprias Unidades. A propósito<br />

da prisão de um desses afama<strong>do</strong>s marinheiros chulos e brigões, o <strong>Zé</strong><br />

assistiu à cena que descreve a seguir.<br />

UM GESTO DE CONFIANÇA EXTREMA<br />

Está ainda nas lembranças <strong>do</strong> <strong>Zé</strong>, uma cena que muito tem a ver<br />

com princípios de honradez, ética e companheirismo, pratica<strong>do</strong>s por um<br />

desses marujos. É facto que existe entre a marujada um espírito de ajuda<br />

mútua mesmo que essa ajuda exija zaragata na rua, ou mesmo, interna-<br />

mente, encobrimento de faltas. É amigo, está dito. Seja grumete ou oficial!<br />

Um dia saiu <strong>do</strong> Alfeite, um desses marinheiros rufias de primeira no<br />

meio lisboeta <strong>para</strong> cumprir uma pena grave que exigia prisão, no Forte de<br />

Elvas.<br />

Nestes casos é nomeada uma escolta armada composta por um<br />

Cabo e um Marinheiro, que acompanha o preso ao destino. Diz-se, e o <strong>Zé</strong><br />

ouviu isso várias vezes, que é da ordem que a escolta seja penalizada se<br />

acontecer uma fuga.<br />

29


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Bom; o certo é que o <strong>Zé</strong> viu partir <strong>do</strong> Alfeite <strong>para</strong> Lisboa os três<br />

homens e, ten<strong>do</strong> vin<strong>do</strong> de licença, <strong>para</strong> a cidade, voltou a encontrá-los –<br />

esteve com eles algum tempo –, na Estação <strong>do</strong> Rossio. Ali aguardavam a<br />

hora de partida.<br />

Foi nesse momento que o <strong>Zé</strong> assistiu à cena mais “desconsertante”,<br />

que se possa imaginar; um gesto de incrível solidariedade e confiança<br />

mútuas, apenas basea<strong>do</strong> na honra e na tal protecção mútua entre mari-<br />

nheiros.<br />

O marinheiro preso conhecia muito bem o grau de responsabilidade<br />

<strong>do</strong>s que foram encarrega<strong>do</strong>s de o levar ao presídio. O cabo e o marinheiro<br />

sabiam que o preso era um <strong>do</strong>s “gabirus” mais credencia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Bairro<br />

Alto.<br />

Pois, não é que o Cabo e o Marinheiro, acreditan<strong>do</strong> que aquele<br />

marinheiro cumpriria rigorosamente o seu dever, acederam ao seu pedi<strong>do</strong><br />

que era deslocar-se livremente ao Bairro Alto <strong>para</strong> se despedir da amante,<br />

com a promessa de que se não atrasaria da hora da partida <strong>do</strong> comboio<br />

<strong>para</strong> o Forte. E foi o que aconteceu.<br />

O <strong>Zé</strong> ainda recorda a recomendação <strong>do</strong> Cabo: Vê lá pá, não me<br />

deixes ficar mal... Vai lá, vai lá. Pois o rufia, habitua<strong>do</strong> a desman<strong>do</strong>s de<br />

toda a ordem, lá estava, certinho, à hora da partida <strong>do</strong> comboio.<br />

30


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Centro da Aviação Naval em Pedrouços<br />

Esta foi uma das bases da Aviação Marítima, criada também sob a<br />

influência de Sacadura Cabral em 1916.<br />

Em 1947, tempo em que o <strong>Zé</strong> aqui prestou serviço, era um Centro<br />

de grande movimento, ainda que muito mais modesto que a Base de S.<br />

Jacinto. Foi extinto, como a própria Aviação Naval, em 1952.<br />

Sen<strong>do</strong> que este trabalho pretende, acima de tu<strong>do</strong>, recordar passa-<br />

gens mais ou menos pitorescas, o <strong>Zé</strong> recorda uma partida – uma malan-<br />

drice, melhor dizen<strong>do</strong>, ocorrida nesta Unidade da <strong>Marinha</strong>.<br />

Certo dia, o rancho era, carneiro estufa<strong>do</strong>, ou coisa assim.<br />

O cozinheiro amanhou o animal e, deitou <strong>para</strong> o bidão <strong>do</strong> lixo, cabe-<br />

ça e olhos, tu<strong>do</strong> esfacela<strong>do</strong>, obviamente.<br />

Ao saberem da existência da cabeça <strong>do</strong> carneiro, os brincalhões<br />

combinaram e decidiram engendrar uma tremenda partida que, por pouco,<br />

ia deixan<strong>do</strong> um Sargento-Ajudante, entre a cruz e a caldeirinha. Combina-<br />

<strong>do</strong>s, uns três ou quatro Cabos, retiraram <strong>do</strong> lixo a cabeça e os olhos e,<br />

com essa amálgama ensanguentada, encenaram um tremen<strong>do</strong> desastre,<br />

por detrás <strong>do</strong>s aviões.<br />

Empurraram uma quantidade de latas e tambores, o que fez as pes-<br />

soas correr <strong>para</strong> o local. Aí o Sargento, induzi<strong>do</strong> a correr à frente, deparou<br />

com a cara <strong>do</strong> mecânico esfacelada e os olhos pendura<strong>do</strong>s!<br />

O homem ficou <strong>do</strong>i<strong>do</strong>. Apavora<strong>do</strong>, fora de si, an<strong>do</strong>u por ali às voltas,<br />

até que deu em correr, na direcção <strong>do</strong> gabinete <strong>do</strong> Oficial de Serviço, em<br />

altos bra<strong>do</strong>s, pedin<strong>do</strong> socorro.<br />

Os mecânicos, ven<strong>do</strong> que tu<strong>do</strong> aquilo foi muito <strong>para</strong> além <strong>do</strong> que<br />

esperavam – pois já o Oficial de Serviço corria, <strong>para</strong> o local <strong>do</strong> “desastre”<br />

31


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

–, decidiram esconder, rapidamente, a cabeça <strong>do</strong> carneiro e porem-se a<br />

trabalhar, tão disfarçadamente quanto possível.<br />

O Oficial chega ao local e, não ven<strong>do</strong> nada fora <strong>do</strong> normal, pergun-<br />

tava o que se tinha passa<strong>do</strong>.<br />

Mas o pobre Sargento, se possível, ainda mais fora de si, confuso,<br />

pois via o “filho da mãe” <strong>do</strong> cabo atingi<strong>do</strong> com a cara limpa e sorridente,<br />

desatou a gritar, de novo, bradan<strong>do</strong>: Milagre! Milagre! Milagre, Senhor<br />

Tenente! Milagre...<br />

O Oficial de Serviço, ven<strong>do</strong>, desde logo, que se tratava de uma<br />

grande maroteira, não terá queri<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, tirar a limpo o sucedi<strong>do</strong>, cer-<br />

tamente <strong>para</strong> não levar as coisas <strong>para</strong> o la<strong>do</strong> disciplinar. Daí que o caso<br />

ficou por isso mesmo, acaban<strong>do</strong> por ser conheci<strong>do</strong>, à socapa, aqui e ali.<br />

32


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

N.R.P. AVISO DE 2ª CLASSE JOAO DE LISBOA<br />

Do Corpo de Marinheiros da Armada, no Alfeite, o <strong>Zé</strong> foi destaca<strong>do</strong><br />

<strong>para</strong> o Aviso de 2ª Classe, João de Lisboa.<br />

Não sen<strong>do</strong> já novidade <strong>para</strong> o <strong>Zé</strong> a normal convivência – alegre e<br />

descontraída – da marujada, o recém-chega<strong>do</strong> achou que na guarnição<br />

deste navio, além da habitual descontracção, havia um certo toque pater-<br />

nal por parte de um bom número de veteranos, que de há muito faziam<br />

parte da tripulação deste navio.<br />

No parecer <strong>do</strong> <strong>Zé</strong>, essa característica “paternal”, é adquirida num<br />

longo perío<strong>do</strong> de tempo <strong>do</strong>s marinheiros em cada uma das Unidades. Por<br />

outro la<strong>do</strong>, há também grande receptividade da parte <strong>do</strong>s mais novos por<br />

esse mesmo ambiente familiar.<br />

O <strong>Zé</strong> tem gratas recordações <strong>do</strong> navio, João de Lisboa.<br />

Assim à distância, quan<strong>do</strong> recorda a passagem por este navio, tem<br />

a sensação de que, em tempos i<strong>do</strong>s, teve uma vivenda em pleno Tejo,<br />

frente ao Terreiro <strong>do</strong> Paço, com um gasolina 6 à “porta”, no qual se deslo-<br />

cava, quase diariamente, à cidade, pelo entardecer, e ali regressava pela<br />

meia-noite.<br />

A propósito <strong>do</strong> regresso, isto é, se por qualquer motivo não chegas-<br />

se a tempo <strong>do</strong> embarque, lá estava uma cama à sua espera – por cinco<br />

escu<strong>do</strong>s – no Arsenal da <strong>Marinha</strong>.<br />

Mas, no dia seguinte de manhã, lá estava, de novo, no cais, o trans-<br />

porte que havíamos perdi<strong>do</strong>, de regresso a “casa”.<br />

A propósito, e porque umas recordações trazem outras, o <strong>Zé</strong> tem<br />

presente o perfil e o ambiente de Lisboa nesse tempo.<br />

6 Uma lancha<br />

33


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Lá estava a Praça da Figueira, os cafés no Rossio, o Cinema Galo,<br />

na Avenida da Liberdade (preço único 2$50 (?)...) enfim, uma Lisboa fami-<br />

liar e pacata tal como é retratada nos filmes portugueses dessa época.<br />

Importa dizer que o <strong>Zé</strong> acabava sen<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong> de muita gente em<br />

várias unidades da <strong>Marinha</strong>, muito mais por tocar guitarra portuguesa -<br />

razão pela qual estava sempre rodea<strong>do</strong> de ouvintes.<br />

Um dia, já noite dentro, o <strong>Zé</strong> deu por si a falar na coberta <strong>do</strong> navio<br />

sobre os valores e os efeitos da <strong>do</strong>utrina cristã.<br />

Isso aconteceu uma única vez.<br />

A da<strong>do</strong> momento, o <strong>Zé</strong> terá dito algo semelhante a isto: o cristianis-<br />

mo pratica<strong>do</strong>, constitui o meio mais seguro de levar uma vida equilibrada,<br />

evitan<strong>do</strong> problemas como, por exemplo, os de alguns filhos da escola, lim-<br />

pos e sadios ao chegarem das suas terras à recruta, em Vila Franca, e<br />

agora mergulha<strong>do</strong>s na prostituição, feitos chulos de infelizes prostitutas,<br />

ou assumi<strong>do</strong>s rufias, <strong>do</strong>s bairros de Lisboa.<br />

Mas o <strong>Zé</strong>, ao referir esses valores, terá dito essa disciplina cristã,<br />

também ele, a não a cumpria.<br />

Houve naturalmente observações, perguntas e respostas, mas <strong>do</strong><br />

que o <strong>Zé</strong> se recorda é de um alentejano, falan<strong>do</strong> alto, entre os presentes<br />

disse: – Ouve lá, ó “4”, então se tu sabes que o cristianismo é assim tão<br />

importante porque não o cumpres tu!?<br />

O <strong>Zé</strong> respondeu: – Olha pá! Quanto ao valor <strong>do</strong> cristianismo de que<br />

falo, ele pode ser o caminho mais perfeito <strong>para</strong> o equilíbrio <strong>do</strong> homem e da<br />

humanidade. Por que o não cumpro, o que te digo é que estou a tentar, e<br />

nisso me sinto fortemente empenha<strong>do</strong>.<br />

resposta.<br />

O alentejano olhou, pensou e disse: – Está bem, “pá”; satisfaz-me a<br />

34


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

O <strong>Zé</strong> achou curiosa esta resposta <strong>do</strong> alentejano. Mas, interessante<br />

foi que na semana seguinte, depois de ter vin<strong>do</strong> de fim-de-semana diz ele:<br />

– “Ó “4”; sabes, tu que fui à missa no Domingo, com a minha irmã!?”<br />

Entre a guarnição havia um velhote pachorrento, protestante, que<br />

gostava de trocar ideias e pontos de vista com o <strong>Zé</strong> e um Sargento-<br />

Ajudante, ateu, um durão, ar grave, que dizia com ênfase: – “se alguém<br />

fizer mal a este indivíduo terá que se haver comigo.”<br />

Bom! O <strong>Zé</strong>, a dada altura, foi destaca<strong>do</strong> <strong>para</strong> o Navio Escola Sagres<br />

<strong>para</strong> se integrar na tripulação que partia <strong>para</strong> a América <strong>do</strong> Norte.<br />

35


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

O NAVIO ESCOLA SAGRES<br />

Ser destaca<strong>do</strong> de uma qualquer Unidade da <strong>Marinha</strong> <strong>para</strong> o Navio<br />

Escola Sagres, nomeadamente com o fim de participar das suas viagens,<br />

torna-se necessário que, <strong>para</strong> além das especialidades fundamentais<br />

como seja, por exemplo o caso <strong>do</strong>s fogueiros, os marinheiros de manobra,<br />

etc., os candidatos terão de possuir determina<strong>do</strong>s atributos, como seja,<br />

por exemplo, ser músico e ser necessário na charanga de bor<strong>do</strong> ou mes-<br />

mo <strong>do</strong> grupo de jazz. Ser, por exemplo, barbeiro, alfaiate, etc.<br />

Mas, porque o número de elementos da tripulação é sempre limita<strong>do</strong><br />

e as eventuais aptidões artísticas são raras, disso resulta que, muitíssimo<br />

poucos marinheiros têm a oportunidade de viajar naquele navio.<br />

Na realidade, a Sagres, e mesmo os outros navios que partem em<br />

viagem mun<strong>do</strong> fora, ficam muito fora das aspirações da quase totalidade<br />

<strong>do</strong>s marinheiros em geral.<br />

No caso <strong>do</strong> <strong>Zé</strong>, tinha aptidão <strong>para</strong> ser destaca<strong>do</strong> <strong>para</strong> a Sagres ao<br />

abrigo da sua veia musical, tal como o fora um acordeonista <strong>do</strong> seu ano. –<br />

36


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Afinal o <strong>Zé</strong> foi desde logo integra<strong>do</strong> no grupo de Jazz de bor<strong>do</strong>. Mas não<br />

foi por essa via que o <strong>Zé</strong> foi <strong>do</strong> João de Lisboa <strong>para</strong> a Sagres.<br />

Estava já havia <strong>do</strong>is anos na <strong>Marinha</strong> sem nunca se lhe ter propor-<br />

ciona<strong>do</strong> uma saída da barra, sequer; pois havia navios patrulha, como S.<br />

Miguel, por exemplo, navegan<strong>do</strong> entre portos ao longo da costa portugue-<br />

sa.<br />

O que aconteceu foi que, num qualquer Domingo <strong>do</strong> ano de 1948, o<br />

<strong>Zé</strong> foi à missa – como era seu hábito – por acaso à Escola Naval <strong>do</strong> Alfei-<br />

te, da<strong>do</strong> que o João de Lisboa estava fundea<strong>do</strong> ali perto, no Mar da Palha.<br />

Terminada a missa e ainda na presença de uns quantos marinhei-<br />

ros, o <strong>Zé</strong> pediu ao capelão que, <strong>para</strong> quem não sabe, é também um oficial,<br />

o Cónego Correia de Sá, que lhe arranjasse forma de ir <strong>para</strong> o mar. Que já<br />

tinha <strong>do</strong>is anos de marinha e ainda não navegara.<br />

A sua resposta foi imediata, dizen<strong>do</strong>: – “Queres ir comigo à Améri-<br />

ca!?... O Capelão tem direito a uma ordenança, por isso posso levar-te.<br />

Pasmámos. Como é bom de ver, <strong>para</strong> o <strong>Zé</strong> foi ouro sobre azul.<br />

Pois bem. A partir dessa viagem o <strong>Zé</strong> ficou porta<strong>do</strong>r de uma história<br />

muito mais rica <strong>para</strong> contar aos netos. Disso se fará relato mais adiante.<br />

Pode dizer-se que quan<strong>do</strong> a Sagres sai a barra, vai, certamente,<br />

<strong>para</strong> uma festa algures no mun<strong>do</strong>. Vai leve, vai ligeira, <strong>do</strong>nairosa como<br />

outro navio não há.<br />

Isso mesmo se viu na Espanha – em Sevilha –, uma festa invulgar,<br />

tanto quanto é invulgar juntarem-se, num festival, marinhas de sete<br />

nações!<br />

Aí se viu o impacto que tinha a elegância da Sagres, mais aquele<br />

toque inconfundível de espiritualidade, que sobressai das vermelhas cru-<br />

zes <strong>do</strong> Gama estampa<strong>do</strong> no pano alvo das velas.<br />

37


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Bom, o <strong>Zé</strong> está a fazer estas referências quan<strong>do</strong> já cerca de cin-<br />

quenta anos passaram sobre os acontecimentos e, acontece até que, essa<br />

mesma Sagres, já há muito deixou os mares, ceden<strong>do</strong> a sua bela imagem<br />

à sua sucessora.<br />

Por isso parece importante deixar aqui, um resumo da sua história<br />

deste navio de eleição.<br />

38


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

NAVIO ESCOLA SAGRES (II)<br />

Construí<strong>do</strong> na Alemanha em1896, de ferro, armou primeiro em gale-<br />

ra e posteriormente em barca. Denominava-se RICKMER RICKMERS e<br />

pertencia à marinha <strong>do</strong> comércio. Em 1912, já na posse de outro arma<strong>do</strong>r,<br />

foi baptiza<strong>do</strong> MAX.<br />

Durante a I Grande Guerra, quan<strong>do</strong> estava na Horta, foi apresa<strong>do</strong><br />

pelo Governo Português ten<strong>do</strong> fica<strong>do</strong> sua propriedade com o nome de<br />

FLORES. Foi incorpora<strong>do</strong> na Armada em 1924 como navio-escola, com a<br />

designação de SAGRES. Em 1962 foi classifica<strong>do</strong> como navio depósito<br />

com o nome de SANTO ANDRÉ.<br />

A Sagres foi entregue à Associação alemã “Windjammer fur Ham-<br />

burg” no dia 28 de Abril de 1983, que entregou como contrapartida o Polar.<br />

Durante os 36 anos que navegou com a bandeira de Portugal, efec-<br />

tuou o equivalente a dez voltas ao mun<strong>do</strong>. As Cruzes de Cristo ostentadas<br />

nas velas re<strong>do</strong>ndas e na mezena tornaram-no célebre e inconfundível em<br />

to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, tradição que se mantém com o seu sucessor, a Sagres III<br />

O velho navio-escola SAGRES é hoje um navio-museu no porto de<br />

Hamburgo com o primeiro nome, RICKMER RICKMERS, no qual se pode<br />

apreciar a história da construção de veleiros, a vida e o trabalho <strong>do</strong>s<br />

homens <strong>do</strong> mar na passagem <strong>do</strong> século, <strong>do</strong>cumentos da história das via-<br />

39


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

gens marítimas à vela, bem como exposições temporárias sobre temas<br />

relaciona<strong>do</strong>s com assuntos <strong>do</strong> mar.<br />

Tem uma exposição permanente portuguesa com uma vitrina com o<br />

modelo da Sagres, 36 fotos da actividade <strong>do</strong> veleiro e <strong>do</strong>s dez comandan-<br />

tes que por ele passaram e o trofeu da vitória da regata entre Brest e<br />

Tenerife, em 1985.<br />

Características<br />

Deslocamento: 2116 tons.<br />

Comprimento: 96,85 m.<br />

40


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Viagem à América <strong>do</strong> Norte 1948<br />

Rota: Lisboa – Porto Santo – Madeira – Cabo Verde – Boston – Providence<br />

– Provinceton – New Bedeford – Nova York – Lisboa<br />

Ao largo no Rio Tejo<br />

Paira a Sagres ancorada;<br />

Barco mais belo não vejo,<br />

Na frota da nossa Armada!<br />

Se no Tejo é sedução<br />

Encanto da Marujada,<br />

Lá no mar é uma visão,<br />

Pelos céus emoldurada<br />

To<strong>do</strong>s dizem, quem me dera,<br />

Ir na Sagres viajar;<br />

Mas nem toda a gente espera,<br />

Tal sonho realizar<br />

Suas velas enfunadas<br />

Ostentam a cruz <strong>do</strong> Gama<br />

Deixam gentes encantadas<br />

Inda mais que sua fama<br />

Passei já S. Julião,<br />

Para trás deixei Lisboa;<br />

Agora com emoção,<br />

Navego na sua proa<br />

Já ao longe fica a barra,<br />

P’rá frente fica a Madeira;<br />

E o <strong>Zé</strong> tange a guitarra,<br />

Pelos mares, a vez primeira.<br />

41


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Há silêncio... é mar chão.<br />

Um convés enluara<strong>do</strong>,<br />

Nesta cena a guarnição<br />

Repousa escutan<strong>do</strong> o fa<strong>do</strong><br />

Passa lenta a branda aragem<br />

Pelas cordas da guitarra<br />

Vem de Lisboa a mensagem<br />

De certas noites de farra<br />

Voz <strong>do</strong> fa<strong>do</strong> nas vielas,<br />

Nas tasquinhas de Lisboa<br />

Escuta<strong>do</strong> à luz de velas,<br />

Ante um quadro de Malhoa.<br />

Como é de calcular, nessa multidão maruja, oriunda de todas as<br />

regiões <strong>do</strong> país, surgem indivíduos com as características mais diversas<br />

que se possam imaginar. Isso é bem evidente desde logo na recruta em<br />

Vila Franca e mais tarde no dia-a-dia. Assim é no Navio Escola Sagres.<br />

Para não falar de to<strong>do</strong>s os tiques e habilidades de cada um <strong>do</strong>s “engraça-<br />

<strong>do</strong>s” que seguiam nesta viagem, o <strong>Zé</strong> apenas refere aqui, <strong>do</strong>is deles: o <strong>Zé</strong><br />

Rama e o “Cabo <strong>Zé</strong>”.<br />

Este último, o 6969/46 - que nem sequer o <strong>Zé</strong> soube o seu nome, e<br />

isto tão-somente porque o apelidámos, desde logo, em S. Jacinto – Aveiro,<br />

de “cabo <strong>Zé</strong>”, e assim o tratámos toda a vida.<br />

Tal alcunha adveio-lhe <strong>do</strong> facto de ter uma barriga avantajada, mais<br />

ou menos semelhante à barriga <strong>do</strong> verdadeiro cabo <strong>Zé</strong>, um marinheiro já<br />

velhote, fogueiro da Central Eléctrica daquela Unidade.<br />

42


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

O ZÉ RAMA<br />

Mas nem só um triste fa<strong>do</strong><br />

Lhes serve de distracção;<br />

Um grande nome é cita<strong>do</strong><br />

Por muitos da guarnição<br />

Quem não conhece <strong>Zé</strong> Rama,<br />

Pela sua fantasia;<br />

De muito rico tem fama;<br />

Mas nem cheta possuía.<br />

Levantava fardamento,<br />

Parte dele, logo vendia;<br />

“Massa” tinha de momento<br />

Mas, meias ele não trazia!<br />

Nunca a bor<strong>do</strong> se detinha,<br />

Ir p’rá borga era seu fito<br />

E se uns escu<strong>do</strong>s não tinha,<br />

Nem sequer p’ra uma sardinha,<br />

Sempre havia um companheiro,<br />

A pagar-lhe uma ginjinha<br />

Uma isca, ou peixe frito.<br />

As iscas sabiam bem.<br />

Sem elas era um vintém<br />

Quan<strong>do</strong> metia batatas<br />

(que desgraça!)<br />

Trinta reis era um pratinho.<br />

Ai, um tipo nestas casas<br />

Enchia-se sempre de vinho<br />

O próprio <strong>Zé</strong> as comeu, na Rua <strong>do</strong> Arsenal.<br />

Por muito pouco dinheiro...<br />

Dormiria menos mal;<br />

Na Casa <strong>do</strong> Marinheiro.<br />

Na Rua <strong>do</strong> Arsenal.<br />

Mas, cinco escu<strong>do</strong>s não tinha<br />

Para <strong>do</strong>rmir nessa cama<br />

Lá vinha de manhãzinha!<br />

Extenua<strong>do</strong> de Alfama,<br />

43


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Em Cascais diz que esbanjava<br />

Fortunas, lá na má vida<br />

Eram tretas que inventava<br />

Rambóias que imaginava<br />

Ao pernoitar na Avenida<br />

E quan<strong>do</strong> a bor<strong>do</strong> contava<br />

Farras da noite passada<br />

Por salões da burguesia,<br />

A gente muito se ria<br />

Ao ver-lhe a farda cagada<br />

Da caca da passarada<br />

Nos bancos em que <strong>do</strong>rmia!<br />

A propósito de umas “meias” <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> Rama.<br />

Está ainda na lembrança <strong>do</strong> <strong>Zé</strong>, uma das mais engraçadas peripé-<br />

cias deste indivíduo 7 .<br />

Imaginemo-lo nas amuradas de bombor<strong>do</strong> ou estibor<strong>do</strong>, ou estira-<br />

ça<strong>do</strong> no castelo da Sagres, em tardes calmas, a contar façanhas suas, o<br />

que muitas vezes acontecia, perante uma grande parte da guarnição.<br />

“Um dia, dizia ele num desses momentos:- estava eu senta<strong>do</strong> num<br />

<strong>do</strong>s bancos da Avenida da Liberdade, juntamente com umas “gajas”,<br />

algumas delas, eu via pela primeira vez, e vejam o que me aconteceu.<br />

Ainda hoje eu fico vara<strong>do</strong> de vergonha. Agora mesmo, ao contar-vos<br />

esta “barracada”, sinto arrepios na espinha.<br />

Ora oiçam. Oiçam e prestem atenção, se tenho ou não razão!<br />

7 Deve-se dizer que a descrição que aqui faço, <strong>do</strong>s contos <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> Rama, não tem o rigor da letra,<br />

como é óbvio; mas este <strong>Zé</strong> assegura que o espírito e o senti<strong>do</strong> que ele imprimia às suas histórias<br />

e patranhas são exactos.<br />

44


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Ora, talvez porque tanta preambulação já não coubesse na paciên-<br />

cia de um <strong>do</strong>s presentes, diz o gajo lá <strong>do</strong> meio: “Anda lá palerma. Conta lá<br />

isso, e dá volta à conversa”.<br />

urso.<br />

O <strong>Zé</strong> Rama, com curto gesto sugestivo, diz apenas:- Cala a boca,<br />

Um coro: “Vá lá <strong>Zé</strong> Rama, manda-o lixar.<br />

Pois – continua finalmente o <strong>Zé</strong> Rama – estávamos to<strong>do</strong>s mais ou<br />

menos em roda quan<strong>do</strong>, de momento, resolvi sentar-me e traçar a perna,<br />

tu<strong>do</strong> em grande estilo, como quem evita, a to<strong>do</strong> o custo, amarrotar o vinco<br />

<strong>do</strong> seu único fato de cerimónias; percebem?<br />

Sim, claro... – Dizem, alguns.<br />

– Era notório – continuou o <strong>Zé</strong> Rama – que o meu charme havia já<br />

provoca<strong>do</strong> grande impacto principalmente nas recém chegadas ao grupo,<br />

ainda que me olhassem com discreto acanhamento.<br />

patuá!<br />

– Bom. Retraídas talvez, mas, sem dúvida, embevecidas com o meu<br />

– Bem, vocês sabem que nisto de patoá, eu sou o maior.<br />

Algumas risadas, e o <strong>Zé</strong>, retoman<strong>do</strong> o fio da meada, disse, mergu-<br />

lha<strong>do</strong> num profun<strong>do</strong> desalento<br />

– Foi o “chico <strong>do</strong>s pipos”!... Uma bronca!..<br />

Ponto. Mais uma assoreada geral.<br />

– Tu<strong>do</strong> bem – diz o <strong>Zé</strong> Rama – Tenham calma pois, tinha acaba<strong>do</strong><br />

de me sentar e, puxan<strong>do</strong> a calça <strong>para</strong> evitar a joelheira, eis que me vem<br />

junto, agarra<strong>do</strong> à minha mão, o cano da meia, em franja.<br />

Foi o delírio da malta ali presente, pois toda a gente sabia que o <strong>Zé</strong><br />

Rama, pelo facto de vender uma boa parte <strong>do</strong> fardamento que mandava<br />

45


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

vir <strong>do</strong> Casão, nunca trazia umas meias inteiras. Daí os canos estupora<strong>do</strong>s<br />

de que fala.<br />

Acabada a longa risada, o <strong>Zé</strong> continua:<br />

– To<strong>do</strong>s olhavam <strong>para</strong> mim, isto <strong>para</strong> cúmulo da minha desgraça! É<br />

que eu, momentos antes lhes tinha meti<strong>do</strong> o “chaço”, dizen<strong>do</strong>-lhes que, na<br />

noite anterior, teria gasto <strong>para</strong> cima de vinte contos, na borga, em Cascais!<br />

Talvez não acreditam; mas não desejaria semelhante “encravanço”, ao<br />

meu maior inimigo.<br />

– Oh! c´um caraças. – continuou o <strong>Zé</strong> Rama, após terem acaba<strong>do</strong><br />

as risadas – As “putas” das franjas a saírem cá <strong>para</strong> fora das botas e eu,<br />

nem sei se branco se vermelho que nem um peru, suspenso que nem um<br />

actor esqueci<strong>do</strong> da deixa no meio <strong>do</strong> palco, nem, atinava com o que fazer,<br />

mas arrependi<strong>do</strong> de não me levantar imediatamente. Porém, estático,<br />

aparvalha<strong>do</strong>, pus-me a atacar as malditas franjas, <strong>para</strong> dentro das botas,<br />

já com cheiro a chulé, qual estrumeira ao sol.<br />

A marujada apertava as mãos à barriga por tanto rir, enquanto o <strong>Zé</strong><br />

Rama, sério, com um ar de meter dó, esperava poder continuar.<br />

– Fiquei louco – disse – Fiquei louco de raiva. Roguei pragas ao<br />

destino. Parece que foi castigo; talvez por ter dito aquela malta que tinha<br />

gasto “massa” a potes no Casino, e agora descobrirem-me a “careca” de<br />

forma tão violenta.<br />

– Ao ouvir – dizia ele – a risota escancarada daquelas gajas e os<br />

“funfuns” das mais novatas... Oh! Meus amigos, antes a morte!<br />

– Parece que foi castigo – dizia “contrista<strong>do</strong>”.<br />

– É que eu tinha dito àquelas gajas, entre elas aquela “especial” a<br />

quem eu tinha já convenci<strong>do</strong> que era ricaço lá na terra, e que andava na<br />

<strong>Marinha</strong> contra a vontade da família, único herdeiro. Ó que caraças.<br />

46


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

A última vez que o <strong>Zé</strong> viu o <strong>Zé</strong> Rama, terá passa<strong>do</strong> um ano após a<br />

saída da Sagres, em Vila Franca, onde me disse que tinha ganho juízo, e,<br />

tinha casa<strong>do</strong> com uma mulher muito rica, <strong>do</strong>na de nove quintas no Algar-<br />

ve, notem bem!<br />

Entretanto importa dizer que, apesar <strong>do</strong>s seus problemas de carac-<br />

ter financeiro, era um tipo sempre alegre, assea<strong>do</strong>, quanto baste.<br />

Alcache, manta de seda, farda, o boné, calça fortemente vincada,<br />

estavam sempre à altura da vaidade de ser marinheiro.<br />

Além <strong>do</strong> mais esse <strong>Zé</strong> Rama era um bom tipo, ainda que matreiro,<br />

gozão, amigo da reinação e da boémia.<br />

47


ILHA DE PORTO SANTO<br />

A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

O PERCURSO DA SAGRES<br />

Gentes <strong>do</strong> Mar, Que partis de Lisboa ,<br />

Bradai bem alto, “Terra à vista”<br />

Ao vislumbrardes, na bruma, a Ilha de Porto Santo!<br />

Tentai “escutar” e “escutareis”<br />

O Grito alvoroça<strong>do</strong>, que foi da nossa gente,<br />

Ao enxergar primeiramente,<br />

Porto Santo, <strong>do</strong>s navios <strong>do</strong> Infante.<br />

Tentai ouvir, e ouvireis,<br />

Esse bra<strong>do</strong> português,<br />

Estranho, terrível talvez,<br />

Pois os me<strong>do</strong>s se esvaíram, intriga<strong>do</strong>s,<br />

Porque foram confronta<strong>do</strong>s<br />

com uns “ seres “ tão atrevi<strong>do</strong>s!<br />

Que coisa estranha, tal barco !<br />

Serão deuses, Tristão e Zarco !?...<br />

E se deram por venci<strong>do</strong>s,<br />

Queda<strong>do</strong>s bem escondi<strong>do</strong>s,<br />

Por trás as ondas <strong>do</strong> mar!..<br />

Tal fora o bra<strong>do</strong> estridente<br />

Das vozes da estranha gente<br />

Chispan<strong>do</strong> de crista em crista :<br />

“TERRA Á VISTA! TERRA Á VISTA!”<br />

48


ILHA DA MADEIRA (em 1948)<br />

A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Se intento é vosso<br />

Ir à Ilha da Madeira<br />

Tentai chegar à noitinha.<br />

E se tiverdes a sorte de encontrar um mar-chão<br />

Um mar-chão que o luar virou prata,<br />

Vereis então<br />

Um espelho estranho<br />

Reflectin<strong>do</strong> luzinhas de cascata,<br />

Olhai <strong>para</strong> o alto <strong>do</strong>s montes<br />

Lá vereis iguais luzinhas<br />

Tão tristonhas tão sozinhas<br />

Irmãs daquelas <strong>do</strong> mar!<br />

Mas, à luz <strong>do</strong> sol nascente,<br />

Dum sonho desperta a gente!<br />

Afinal as tais luzinhas<br />

São janelas das casinhas<br />

Que nos pareceram estrelinhas<br />

49


SÃO VICENTE, CABO VERDE<br />

A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Gente <strong>do</strong> mar,<br />

Se rumardes<br />

Proa ao Sul,<br />

Heis-de encontrar, curiosos, Cabo Verde !<br />

Abeirai-vos da amurada.<br />

Ponde as mãos na terra escura<br />

E sentireis a secura<br />

Das terras daquela gente<br />

Da Ilha de S. Vicente.<br />

E <strong>do</strong> Castelo vereis que, Cabo verde,<br />

De verde, não tem nada!...<br />

Lembrar-vos-eis em Lisboa *<br />

Dessa terra já distante<br />

E só então sabereis,<br />

Porque se é emigrante!<br />

50


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

MAR DOS SARGAÇOS, BERMUDAS<br />

Junho/ 24/48 Passagem ao largo das Bermudas<br />

Tão rara recordação<br />

Duma certa ocasião<br />

Lá pelo mar <strong>do</strong>s sargaços.<br />

É noite de S. João.<br />

Uma grande reinação<br />

Sem regras nem embaraços<br />

Fez-se a bor<strong>do</strong> uma fogueira<br />

Como se fora na eira.<br />

E de cerveja na mão<br />

Vão de marcha os foliões.<br />

É uma festa lisboeta<br />

Com arquinhos e balões<br />

Já quinze dias passa<strong>do</strong>s<br />

A partir de S. Vicente<br />

À América estamos chega<strong>do</strong>s<br />

P’ra grande alívio da gente.<br />

51


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

A CHEGADA A BOSTON<br />

O mar, um tanto irrequieto, apresentava uma cor mal definida, diria,<br />

um azul par<strong>do</strong>, difuso, toca<strong>do</strong> por uma centelha de vermelho, bem longe<br />

que estávamos ainda <strong>do</strong>s primeiros alvores da manhã.<br />

A guarnição, já torturada por uma crescente ansiedade a caminho<br />

da América <strong>do</strong> Norte, e agora que estamos prestes a chegar, durmiam<br />

ainda nos seus beliches, nos seus camarotes, ou então de larada ao longo<br />

<strong>do</strong> chão da Coberta.<br />

fazia parte.<br />

Acorda<strong>do</strong> estava, naturalmente, o pessoal <strong>do</strong> quarto, <strong>do</strong> qual o <strong>Zé</strong><br />

No Tombadilho, lá estavam, como sempre, os <strong>do</strong>is grumetes agar-<br />

ra<strong>do</strong>s à roda <strong>do</strong> Leme, um marinheiro atento à “bússola”, e, evidentemen-<br />

te, o oficial de quarto.<br />

Para além <strong>do</strong> marulhar das águas, chapinhan<strong>do</strong> contra o casco <strong>do</strong><br />

navio, pouco mais se ouvia que uma voz calma breve e clara, mas cons-<br />

tante, dizen<strong>do</strong>: – “Uma malagueta <strong>para</strong> bombor<strong>do</strong>, uma ou duas <strong>para</strong> esti-<br />

bor<strong>do</strong>”.<br />

A essa voz, os grumetes <strong>do</strong> leme vão executan<strong>do</strong> as ordens intermi-<br />

tentes – ora <strong>para</strong> bombor<strong>do</strong> ora <strong>para</strong> estibor<strong>do</strong> –, e, porque o mar estava<br />

calmo só lhes era exigida a força <strong>do</strong>s pulsos. Alturas há que o mar exige<br />

ombros e todas as forças, a fim de especar a fúria das ondas contra o<br />

leme.<br />

Ali, um pouco mais pela meia nau, mais ou menos junto ao bailéu,<br />

entre a cozinha e mesa das malaguetas, encosta<strong>do</strong>s às amuradas, pernoi-<br />

tavam, enrola<strong>do</strong>s cada qual em sua manta, os restantes marinheiros de<br />

Quarto.<br />

52


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Sim. Enrola<strong>do</strong>s nas mantas, <strong>do</strong>rmitan<strong>do</strong>, isto se não soar um apito<br />

estridente aflito, “gritan<strong>do</strong>”: “Homem ao Mar!<br />

Quem não experimentou, nem imagina qual o efeito terrível daquele<br />

chamamento. Não só pelo que significa, mas também devi<strong>do</strong> ao entorpe-<br />

cimento <strong>do</strong>s corpos sonolentos, aqueles homens dis<strong>para</strong>m esbafori<strong>do</strong>s em<br />

direcção ao salva-vidas, pronto a ser arria<strong>do</strong> nas águas escuras <strong>do</strong> abis-<br />

mo.<br />

Tal transe sucede com muita frequência, durante a noite, não por-<br />

que tivesse caí<strong>do</strong> alguém ao mar (nunca aconteceu tal), mas tão só por-<br />

que o Oficial de quarto, entende dever fazer esses testes.<br />

Por vezes este tipo de intervenção por parte de alguns oficiais vai<br />

até ao ponto de fazer entrar as pessoas no salva-vidas, e mandar descer<br />

até meio <strong>do</strong> percurso, sem que nada tenha aconteci<strong>do</strong>.<br />

Como já disse, as noites de um mo<strong>do</strong> geral, são escuras, o que,<br />

naturalmente, dificulta as coisas. Mas, mau é, quan<strong>do</strong> a faina é exigida<br />

devi<strong>do</strong> a um temporal, suportan<strong>do</strong> balanços sem fim.<br />

Tentan<strong>do</strong> não perder o fio à meada, pois que a intenção neste<br />

momento é descrever um episódio inespera<strong>do</strong> na chegada a Boston,<br />

importa registar antes uma situação <strong>do</strong>s marujos nos quartos da noite.<br />

quente.<br />

É assim: a meio de cada um desses Quartos é “servi<strong>do</strong>” um cacau<br />

O cenário em que a situação acontece é naturalmente escuro, por<br />

vezes como breu; nesse cenário tem grande impacto uma luz que vem da<br />

porta aberta da cozinha e se projecta na amurada <strong>do</strong> navio.<br />

É ali que aí está um marinheiro a fazer o dito cacau, e a luz da cozi-<br />

nha torna-se numa referência orienta<strong>do</strong>ra <strong>para</strong> a malta de serviço que por<br />

ali pernoitam como se fossem uns sem abrigo, ocultos na escuridão.<br />

53


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

A da<strong>do</strong> momento, soa uma voz, forte, por vezes esganiçada depen-<br />

de da voz <strong>do</strong> marinheiro bradan<strong>do</strong>: – OLHA O BARRO! 8<br />

É então que se processa um momento misterioso carrega<strong>do</strong> de<br />

sombras em movimento, recortadas, á sua passagem na luz da cozinha.<br />

São mantas “recheadas” a deambular no convés, convergin<strong>do</strong>, munidas<br />

de um copo de alumínio, <strong>para</strong> a distribuição <strong>do</strong> cacau à porta da cozinha.<br />

ton. <br />

neiras.<br />

Mas voltemos aquele singular momento, passa<strong>do</strong> às portas de Bos-<br />

Começámos por ver ao longe <strong>do</strong>is barcos de pesca; pareciam trai-<br />

Em princípio, nada de especial, apenas uma curiosidade <strong>para</strong> quem<br />

vem há 15 ou 18 dias sem ver terra nem barcos, e ali vinha um ao longe.<br />

Mas os barcos – eram traineiras – que se foram aproximan<strong>do</strong>, e de<br />

tal mo<strong>do</strong> se aproximavam que, causavam já estranheza, muito especial-<br />

mente ao Oficial de quarto – único responsável pela segurança <strong>do</strong> navio.<br />

A proximidade era já transgressora das leis da navegação, quan<strong>do</strong><br />

aos bra<strong>do</strong>s, gesticulan<strong>do</strong>, começou-se a ouvir as vozes de portugueses,<br />

dizen<strong>do</strong>: “Hei! Hei! Nós somos portugueses!... Nós somos portugueses!<br />

Querem peixe!?...” E com isso, não desistiam de se aproximarem.<br />

Ora o que ali se passava era um transbordar de alegria de tal mo<strong>do</strong><br />

emocionante que aqueles portugueses se tornaram incapazes de respeitar<br />

qualquer lei.<br />

Não deve ser nada fácil, se não impossível, que pessoas, roídas de<br />

saudades, como era o caso, e, ainda mais, de<strong>para</strong>n<strong>do</strong>, em pleno alto mar,<br />

com o característico navio da sua pátria deslizan<strong>do</strong> veloz, velas ao vento,<br />

alvo de neve - fiquem impávidas e serenas.<br />

8 O barro é, nem mais nem menos, o cacau.<br />

54


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Em alvoroço já estavam eles em função da notícia que, naturalmen-<br />

te se havia antecipa<strong>do</strong> à nossa chegada, e já de há muito partilhavam da<br />

euforia de milhares de portugueses que, ansiosamente, nos esperavam.<br />

Havia, pois, mil razões que justificavam o seu descontrolo naquela<br />

inesquecível madrugada <strong>do</strong> mês de Julho de 1948.<br />

Mas, a bor<strong>do</strong>, ninguém estava pre<strong>para</strong><strong>do</strong>, naquele preciso momen-<br />

to, <strong>para</strong> interpretar, devidamente, o insólito encontro. O Oficial de Quarto,<br />

o único, com competência <strong>para</strong> assumir, a responsabilidade da solicitada<br />

atracação, pensou titubeou e, por fim, não admitiu.<br />

Os pesca<strong>do</strong>res eram agora observa<strong>do</strong>s de tão perto, que era possí-<br />

vel ouvi-los perfeitamente, falan<strong>do</strong> em português, continuan<strong>do</strong> a dizer:-<br />

Nós somos portugueses!... Querem peixe fresco!?<br />

E o Oficial, nitidamente confuso, responde-lhes em inglês: – no...<br />

Mas, vejam só. Por debaixo <strong>do</strong> tombadilho – onde se encontrava o<br />

Oficial de Serviço – ficam os camarotes <strong>do</strong>s oficiais; e, através da vigia, o<br />

tenente que se pre<strong>para</strong>va <strong>para</strong> render o colega em fim de Quarto, obser-<br />

vara tu<strong>do</strong> que se estava a passar.<br />

Ao ouvir a nega – <strong>para</strong> ele extremamente desconcertante - <strong>do</strong> cole-<br />

ga, desatou a correr e, chega<strong>do</strong> ofegante junto <strong>do</strong> colega, solicita-lhe a<br />

entrega <strong>do</strong> serviço. Acto contínuo, ainda o oficial rendi<strong>do</strong> estava presente,<br />

faz um largo gesto aos homens, dizen<strong>do</strong>: – Hei!.. PODEM ATRACAR...<br />

PODEM ATRACAR!<br />

Não foi propriamente uma desautorização, pois que a responsabili-<br />

dade <strong>do</strong> posto já tinha si<strong>do</strong> transferida; contu<strong>do</strong> a coisa não foi assim tão<br />

eticamente correcta.<br />

Não se soube o que se passara depois entre eles; mas o que acon-<br />

teceu foi que aqueles portugueses, maravilha<strong>do</strong>s com semelhante visão e<br />

55


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

agora por serem os primeiros portugueses a verem e a contactarem com a<br />

Sagres, não tardaram a atracar felizes da vida.<br />

Como não podia deixar de ser tu<strong>do</strong> aconteceu em pouco tempo<br />

da<strong>do</strong> que as condições de atracação e o movimento <strong>do</strong> mar, mais não<br />

permitiam. Transferiram, <strong>do</strong>s seus barcos <strong>para</strong> bor<strong>do</strong> da Sagres, uma<br />

grande quantidade de peixe, não <strong>para</strong>n<strong>do</strong> de repetir que iriam estar con-<br />

nosco, em to<strong>do</strong>s os festejos que nos esperavam na América.<br />

56


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

ESTADIA NA AMÉRICA DO NORTE<br />

Chega<strong>do</strong>s a Boston, verificou-se que os residentes portugueses<br />

tinham organiza<strong>do</strong> Comissões de Recepção, ao longo <strong>do</strong>s diversos portos<br />

de mar, desde esta localidade até Nova Iorque e Fall River. Cada qual<br />

competia com o seu melhor, e, <strong>para</strong> a marujada, era um regalo chegar, a<br />

cada porto, ouvir uma banda de música, enquanto, impacientes, a maruja-<br />

da vestia as suas fardas <strong>para</strong> sair. Desde logo eram absorvi<strong>do</strong>s pela mul-<br />

tidão em festa, beben<strong>do</strong>, nomeadamente, refrigerantes e gela<strong>do</strong>s. Era um<br />

delírio incrível.<br />

Porém nessas movimentações, tinham, por trás de si, as ditas<br />

Comissões de Recepção, em cada porto, em cada lugar, animadas <strong>do</strong><br />

espírito de competição entre si. Essa competição levou a casos curiosos<br />

de maior ou menor importância, mas, o mais relevante, foi o sucedi<strong>do</strong> na<br />

comunidade de Fall River.<br />

Esta Comissão teve a ideia de tentar cortar os mastros da Sagres de<br />

forma a ser possível passar por debaixo de uma ponte próxima <strong>do</strong> seu<br />

cais! Tu<strong>do</strong> por que – diziam –, haviam ali pre<strong>para</strong><strong>do</strong> a maior das recep-<br />

ções em honra de Portugal e da Sagres.<br />

O que se passou foi que, a Comissão de Fall River, não se tinha<br />

apercebi<strong>do</strong> <strong>do</strong> obstáculo que era a altura <strong>do</strong>s mastros da Sagres – 45<br />

metros – em relação à ponte por que teria de passar, <strong>para</strong> finalmente<br />

poder atracar, festivamente, no cais da sua localidade.<br />

Assim, ao aperceberem-se de tão incómo<strong>do</strong> contratempo, decidi-<br />

ram-se por uma proposta dirigida ao Coman<strong>do</strong> da Sagres, em que se pro-<br />

punham cortar os mastros e repô-los, tal e qual como estavam, após a<br />

realização da festa. De notar que eles tinham consciência de que os mas-<br />

tros da Sagres eram e são, de ferro.<br />

57


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Como foram desfavoráveis as respostas <strong>do</strong> Comandante <strong>do</strong> navio e<br />

<strong>do</strong> Embaixa<strong>do</strong>r, gerou-se um movimento organiza<strong>do</strong> <strong>para</strong> dialogar com o<br />

Governo Português.<br />

Nada conseguiram, mas o <strong>Zé</strong> ficou a pensar lá <strong>para</strong> consigo: “e<br />

digam lá se não é a falta de recursos económicos, que inibe os portugue-<br />

ses de serem as pessoas mais desenrascadas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>!”<br />

Outra situação, também, de algum impacto, foi quan<strong>do</strong> uma das<br />

Comissões de Recepção, neste caso de New Bedford, ofereceu às entida-<br />

des oficiais da Sagres, um almoço, através de um convite, extensivo a<br />

toda a tripulação.<br />

O convite foi mal interpreta<strong>do</strong>, pelo que, no dito jantar, só aparece-<br />

ram, em vez da totalidade da tripulação, só apareceram nove grumetes,<br />

estes escolhi<strong>do</strong>s em formatura, feitos deste mo<strong>do</strong>, representantes de toda<br />

a marujada.<br />

Foi um enorme fiasco. É pois fácil imaginar uma situação em que<br />

uma comissão, espantada e triste, vê chegar “meia dúzia de gatos-<br />

pinga<strong>do</strong>s”.<br />

Em face <strong>do</strong> sucedi<strong>do</strong>, decidiram andar pela cidade a pedir aos mari-<br />

nheiros que encontrassem <strong>para</strong> irem comer, ao que estes respondiam que<br />

não, isto por duas razões: por não terem si<strong>do</strong> considera<strong>do</strong>s na formatura<br />

geral <strong>para</strong> o efeito e, depois, porque toda a marujada não chegou <strong>para</strong> as<br />

encomendas. Isto é, cada família ansiava albergar em sua casa um mari-<br />

nheiro.<br />

Ao <strong>Zé</strong>, como já se disse, foi-lhe ofereci<strong>do</strong> um piano por uma dessas<br />

famílias, oferta invulgar, muitíssimo badalada pela imprensa local, talvez<br />

não tanto pelo piano, mas sim pelo a<strong>para</strong>to festivo que a oferta acarretou.<br />

Aconteceu uma enorme festa no cais, mais uma, enquanto o pes-<br />

soal da manobra procedia ao espectacular carregamento.<br />

58


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Nos dias seguintes o <strong>Zé</strong> recebia cartas que lhe eram dirigidas de<br />

diversos la<strong>do</strong>s, com manifestações, as mais diversas.<br />

Interessante foi também o caso de um baile de gala, ofereci<strong>do</strong> a<br />

bor<strong>do</strong> da Sagres.<br />

59


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Um baile célebre<br />

A Sagres, além de linda como é, estava ataviada como nunca o <strong>Zé</strong> a<br />

vira. Por to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong> se viam passadeiras aveludadas e reposteiros verme-<br />

lhos, orla<strong>do</strong>s e enfeita<strong>do</strong>s, de vistosos amarelos.<br />

Quanto à orquestra, bom. Quanto à orquestra, a ninguém iria passar<br />

pela cabeça que este evento tão pomposo, pudesse ser “abrilhanta<strong>do</strong> “<br />

pelo grupo de Jazz da própria Sagres, <strong>do</strong> qual, aliás, o <strong>Zé</strong>, fazia parte.<br />

Mas veio uma orquestra americana, bem ao sabor daquele país;<br />

mas o que mais impressionou o <strong>Zé</strong>, foram aqueles belíssimos instrumen-<br />

tos da cor <strong>do</strong> ouro, brilhantes como sol. Depois os maravilhosos sons,<br />

ecoan<strong>do</strong>, fortemente, entre o tombadilho e um cais de New Bedford.<br />

Diga-se de passagem que nessa mesma localidade houve um outro<br />

baile, em que partici<strong>para</strong>m largas centenas de portugueses e seus familia-<br />

res femininos, baile este organiza<strong>do</strong> por uma das comissões. Aí, sim.<br />

Actuou e fez sucesso, o nosso grupo de Jazz. Disse atrás familiares femi-<br />

ninos, porque, uma enorme casa de espectáculos e festas, a associação<br />

determinou que naquele baile só entrariam as mulheres e as filhas <strong>do</strong>s<br />

sócios e outras. Eis como resolveram fazer a sua homenagem à tripulação<br />

da Sagres.<br />

Mas voltemos ao caso <strong>do</strong> baile da Sagres.<br />

Era já ao cair da tarde, perto da noite, e o <strong>Zé</strong>, encontrava-se na<br />

coberta, diria, um tanto só. De repente chegou à sua beira um outro gru-<br />

mete a quem chamávamos “o Setúbal”, acordeonista, dizen<strong>do</strong>: ó “4”<br />

vamos tocar ali pró cais? – Nem penses – diz o <strong>Zé</strong> admira<strong>do</strong> – não vês<br />

que íamos dar-lhes cabo <strong>do</strong> baile! Nem penses!<br />

Mas, o “Setúbal” insistia dizen<strong>do</strong>: – Eh pá, nós temos licença até à<br />

meia noite e podemos estar onde quisermos; ninguém nos pode pegar.<br />

60


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Ao fim e ao cabo o <strong>Zé</strong> aderiu, e lá se sentaram no cais , tocan<strong>do</strong>.<br />

Diga-se que juntos, faziam um interessante conjunto de acordeão e viola.<br />

Bom; o que aconteceu foi que estavam estaciona<strong>do</strong>s, talvez, uns<br />

400 carros numa zona <strong>do</strong> cais, pertencentes a pessoas que vinham, em<br />

massa, ver e visitar a Sagres.<br />

Ao ouvirem a nossa música, acenderam, pelo menos a maioria<br />

deles, os faróis e, sain<strong>do</strong> <strong>do</strong>s carros, vieram <strong>para</strong> junto de nós.<br />

Apareceram de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s, provocan<strong>do</strong> um movimento tal, mais<br />

que suficiente <strong>para</strong> pôr o baile em risco. Não sabíamos se aquilo iria fazer<br />

correr tinta vermelha, mas o caso é que tu<strong>do</strong> aquilo deu num grande<br />

arraial.<br />

Porém, o <strong>Zé</strong> ficou pasma<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> começou a ver passar entre a<br />

multidão dançante vários oficiais da Sagres, parte <strong>do</strong>s convivas da festa,<br />

dançan<strong>do</strong> agora no meio da multidão, bem à moda <strong>do</strong>s arraiais portugue-<br />

ses.<br />

Na verdade, ninguém nos podia “pegar”. Porém o atrevimento pro-<br />

duzira efeito no espírito <strong>do</strong> senhor Imediato, pois que, um pouco a roçar o<br />

caricato, chegou à nossa beira, mal soou a meia noite e ainda com muita<br />

gente no Cais, disse secamente:- Vá meninos, é hora de recolher. O <strong>Zé</strong><br />

também acha que o gesto, apesar <strong>do</strong> êxito que teve enquanto arraial, não<br />

deixou de ser uma malandrice minha e <strong>do</strong> “Setúbal”.<br />

Mas, diz-se que tu<strong>do</strong> está bem, quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> acaba bem. Aquilo foi<br />

um arraial muito oportuno.<br />

Cada marinheiro era rodea<strong>do</strong> <strong>do</strong> maior carinho. Houve até quem<br />

oferecesse um carro a um <strong>do</strong>s marujos, coisa que, afinal, não pode trazer<br />

<strong>para</strong> Portugal.<br />

<strong>Zé</strong> trouxe.<br />

Mas o mesmo não aconteceu, como já se disse, com o piano que o<br />

61


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Para além disto, gravámos discos de fa<strong>do</strong>s e canções portuguesas<br />

e, em dada altura, fomos convida<strong>do</strong>s pelo Comandante da Sagres <strong>para</strong><br />

fazermos uma serenata a bor<strong>do</strong>, à maneira de Coimbra, na presença de<br />

um ilustre convida<strong>do</strong> que, naquela noite pernoitaria a bor<strong>do</strong>; o Senhor<br />

Embaixa<strong>do</strong>r de Portugal; na altura, Dr. Teotónio Pereira.<br />

Muitas outras histórias ficam por contar desta estadia da marujada<br />

da Sagres na América. Mas deixemos to<strong>do</strong>s estes divertimentos, e regres-<br />

semos, ao mar, a Portugal.<br />

62


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

EPISÓDIOS VÁRIOS A CAMINHO DE LISBOA<br />

Como já disse, o <strong>Zé</strong> Rama gastava, em menos de um fósforo, tu<strong>do</strong> o<br />

que tinha e, <strong>para</strong> não fugir à regra, foi o que sucedeu, mais uma vez, lá na<br />

América.<br />

Não obstante todas as festas decorrerem por conta das associações<br />

de portugueses em cada localidade, o perdulário <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> Rama sempre<br />

arranjou maneira, de gastar tu<strong>do</strong>, até ao último cêntimo.<br />

O <strong>Zé</strong>, pelo que viu e sentiu, supôs que tais festas só poderiam ter<br />

si<strong>do</strong> as maiores <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, feitas a marujos portugueses.<br />

Era o dia 3 de Agosto de 1948. A Sagres partia, deixan<strong>do</strong> num <strong>do</strong>s<br />

cais de Nova Iorque – <strong>do</strong>ca n.º 26 – uma multidão de portugueses cheios<br />

de comoção e saudade. Como sempre nestes momentos lá estavam as<br />

vergas cheias de marujos em pé, a 40 metros de altura, dizen<strong>do</strong> adeus<br />

acenan<strong>do</strong> com os seus panamás. Nesse dia fez o <strong>Zé</strong>, 23 anos de idade.<br />

63


Sagres<br />

A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Como tu, estou na reforma<br />

No mun<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> acaba<br />

Mas apesar desta norma,<br />

Há em nós consolação<br />

Por termos si<strong>do</strong> visão<br />

Em muitos portos de mar!<br />

Nós fomos a estrela-d’alva,<br />

Por esse mun<strong>do</strong> além.<br />

Escutámos corações,<br />

A sofrer de saudade,<br />

Comovi<strong>do</strong>s de verdade!<br />

Nos quatro cantos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />

Portugueses, há milhões.<br />

Ante a bandeira das Quinas...<br />

Nós vimos chorar “meninas”<br />

Pensan<strong>do</strong> nas terras delas!<br />

Foi a bandeira das Quinas,<br />

Que lhes causou esta pena.<br />

Mas também a cruz <strong>do</strong> Gama<br />

Os corações inflama<br />

Tremeluzin<strong>do</strong> nas velas,<br />

Desde o Traquete à Mezena<br />

Partiram pois de Nova Iorque <strong>para</strong> Lisboa. Foi uma viagem que<br />

durou vinte e oito penosos dias, e que o <strong>Zé</strong> não foi lá grande “praça”.<br />

Pode dizer-se que o enjoo constante, o prostrou como nunca estivera.<br />

64


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Pintura <strong>do</strong> Navio<br />

Entre os mais diversos trabalhos de bor<strong>do</strong>, há um que é, pode dizer-<br />

se, constante: é a pintura <strong>do</strong> navio.<br />

Há que remover tintas velhas e ferrugem de to<strong>do</strong>s os cantinhos e<br />

pintar de novo. É assim garantida uma maior durabilidade, pois que de fer-<br />

ro se trata, sujeito ao contacto com as águas e à salinidade <strong>do</strong> mar. Note-<br />

se que esse trabalho é feito, não só no interior, mas também na parte<br />

exterior, to<strong>do</strong> o costa<strong>do</strong> até à linha de água, trabalho que se faz a navegar.<br />

O importante é que, a Sagres - a bela Sagres - surja, alva de neve,<br />

em cada porto.<br />

Para levar a cabo esse tratamento da parte de fora <strong>do</strong> navio, o pes-<br />

soal da Manobra suspende pranchas de madeira, presas por <strong>do</strong>is cabos,<br />

um em cada extremidade da prancha. Estes cabos servem pois <strong>para</strong> sus-<br />

pender as pranchas, mas também são absolutamente indispensáveis a<br />

<strong>do</strong>is marinheiros que trabalham em cada uma delas<br />

Quan<strong>do</strong> o mar se apresenta demasia<strong>do</strong> perigoso, é ainda coloca<strong>do</strong><br />

um outro cabo, mais ou menos à altura da cinta, conheci<strong>do</strong> por guarda-<br />

mancebos. Porém, diga-se de passagem; ali o que vale, é a destreza e a<br />

genica da marujada, <strong>para</strong> se esquivar trepan<strong>do</strong> “a cem à hora”, quan<strong>do</strong> for<br />

caso disso. As ondas longas, que esbarram, com grande sobranceria, con-<br />

tra o casco <strong>do</strong> navio, são, obviamente, traiçoeiras. Mas não há problemas.<br />

Quan<strong>do</strong> vêm essas massas de água ainda que lisas à superfície, as pran-<br />

chas ficam submersas mas a marujada, num ápice se guin<strong>do</strong>u <strong>para</strong> a<br />

amurada.<br />

A propósito deste sobe e desce, a-propósito deste trabalho por fora<br />

<strong>do</strong> navio, vale a pena contar uma cena passada numa dessas pranchas,<br />

sobre um mar relativamente traiçoeiro.<br />

65


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

A bor<strong>do</strong> da Sagres havia, e há certamente, um Sargento-ajudante<br />

de Manobra e um Sargento que se designa por Mestre.<br />

Eles são os responsáveis pela manutenção <strong>do</strong> navio e, digamos, de<br />

alguma forma são considera<strong>do</strong>s responsáveis, pela segurança <strong>do</strong> pessoal.<br />

Naquele dia, depois de uns restos de ciclone, o mar mostrava-se<br />

como disse, um tanto agressivo. Contu<strong>do</strong>, as ondas longas, apesar de<br />

muito volumosas, permitem um certo controlo <strong>do</strong> risco.<br />

Decorria pois uma dessas situações e, em da<strong>do</strong> momento, a Sagres<br />

estava cheia de marinheiros nas pranchas desde a proa à popa, raspan<strong>do</strong><br />

e pintan<strong>do</strong>, com uma mão no cabo, outra no pincel e olho vivo.<br />

Segun<strong>do</strong> o parecer <strong>do</strong> Mestre, o esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar exigia, pelo sim e<br />

pelo não, que fosse aplica<strong>do</strong> em todas as pranchas esse tal cabo chama-<br />

<strong>do</strong> guarda-mancebos. Assim foi, e era ele próprio que vinha de prancha e<br />

prancha passan<strong>do</strong> o cabo.<br />

Ora, na prancha anterior à <strong>do</strong> <strong>Zé</strong>, <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> e de mais um Grumete de<br />

Manobra, acabaram-se os cabos ao Mestre.<br />

Mas mesmo assim o homem saltou <strong>para</strong> a nossa prancha e, acto<br />

contínuo, berrou lá <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> <strong>para</strong> o Cabo Manobra que aguardava ordens,<br />

espreitan<strong>do</strong> lá de cima da amurada: – Ó “fulano”, vai buscar mais um<br />

guarda-mancebos.<br />

E lá foi o “sorna” no seu vagar. O Mestre, já farto de vociferar, contra<br />

o Cabo, contra o mar, contra tu<strong>do</strong>, muito mal agarra<strong>do</strong> a um <strong>do</strong>s cabos,<br />

“era só raiva e desespero”.<br />

Foi então que, se formou bruscamente uma onda descomunal,<br />

banhan<strong>do</strong> o casco de ponta a ponta.<br />

O alentejano e o <strong>Zé</strong>, como era normal, apareceram, em três tempos,<br />

pendura<strong>do</strong>s na “corda” de mo<strong>do</strong> que a água nem os pés lhes tocasse.<br />

66


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

O sargento, porém, tinha tu<strong>do</strong> contra ele. Era pessoa aí <strong>para</strong> os<br />

seus cinquenta anos. Não tinha, um cabo tanto à mão como os grumetes<br />

e, muito menos a necessária destreza. Como tal, a situação teve sabor a<br />

um gesto de “salve-se quem puder”.<br />

A água começou a subir, enquanto o sargento enchia já, o peito de<br />

ar, como quem entra força<strong>do</strong> num tanque de água gelada.<br />

Nesse momento apareceu o cabo manobra lá na amurada a dizer: Ó<br />

senhor Mestre, já não há mais guarda-mancebos no paiol.<br />

A cena terminava com o sargento a escorrer água, furioso, e a<br />

subir, muito a custo, <strong>para</strong> o convés.<br />

Tu<strong>do</strong> voltou à normalidade e o <strong>Zé</strong>, mais o alentejano desceram <strong>para</strong><br />

continuar o trabalho, mesmo sem a tal protecção. Já na prancha, diz o<br />

alentejano: “Que pena este cabrão não ter i<strong>do</strong> ao fun<strong>do</strong>…”<br />

O <strong>Zé</strong> achou que aquilo era um enorme dis<strong>para</strong>te, mas ele continuou:<br />

“Eh pá! Ele é um sacana!.... Um engraxa<strong>do</strong>r! Eu é que sei o que passo por<br />

causa dele. Na manobra ninguém o pode ver, o filho dum cabrão...<br />

Pois bem. Toda a gente anda envolvida nos trabalhos de manuten-<br />

ção e, obviamente, o <strong>Zé</strong> Rama também. Vamos à sua procura.<br />

Decorria uma bela tarde de Agosto e lá estava o nosso amigo a<br />

picar tinta velha na área <strong>do</strong> tombadilho, mais ou menos por cima <strong>do</strong> cama-<br />

rote <strong>do</strong> Sr. Imediato.<br />

Deve dizer-se que, na <strong>Marinha</strong>, sen<strong>do</strong>, embora, uma instituição mili-<br />

tar, nada há de rígi<strong>do</strong> nas relações humanas, o que, de mo<strong>do</strong> algum, põe<br />

em causa uma saudável disciplina.<br />

Mas, por mais tolerância que haja, o princípio é que os regulamen-<br />

tos são <strong>para</strong> cumprir. Uma das regras é, por exemplo, “proibi<strong>do</strong> cantar nas<br />

horas de serviço”.<br />

67


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

O <strong>Zé</strong> Rama, de sempre teve grande dificuldade em encaixar-se em<br />

regulamentos.<br />

Bom. Longe de ser um valdevinos, um sorna invetera<strong>do</strong>, o certo é<br />

que também não se descobria nele, um modelo de virtudes, no que diz<br />

respeito a “espírito militar”.<br />

Tanto assim que, naquela tarde, deu ao rapaz <strong>para</strong> se pôr a trautear<br />

uma das suas mais humorísticas cantilenas, marcan<strong>do</strong> o compasso, com a<br />

própria pica contra, o casco <strong>do</strong> navio.<br />

Ora, se o sítio onde picava tinta velha fosse mais discreto, vá que<br />

não vá; talvez a coisa não desse “raia”, como deu. Mas o caso é que esta<br />

“praça”, talvez se tivesse esqueci<strong>do</strong> que picava e cantava, a escasso meio<br />

metro da escotilha <strong>do</strong> camarote <strong>do</strong> Sr. Imediato.<br />

O Sr. Imediato, ao ouvir a insólita cantoria, decerto empolgada por<br />

um entusiasmo em crescimento, veio por aí acima e, lá estava o <strong>Zé</strong> Rama,<br />

senta<strong>do</strong>, atacan<strong>do</strong>, decidi<strong>do</strong>, uma mancha de ferrugem que tanto teimava<br />

em não sair <strong>do</strong> sítio. Batia, batia, mas “o raio” da mancha ferrugenta, ali<br />

permanecia entre as suas pernas, estendidas, bem ao jeito da marcação<br />

ritmada da pica.<br />

O meu pai é José Caco<br />

Minha mãe Caco Maria<br />

Lá em casa tu<strong>do</strong> é caco<br />

Sou filho da cacaria<br />

Depois era o refrão, ainda mais vigoroso:<br />

Raparigas novas<br />

Vamos ó vira<br />

Ao dar da meia volta<br />

Ó pis tó tira, Ó pis tó tira.<br />

68


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

O Sr. Imediato aparecera sem que o <strong>Zé</strong> Rama desse por isso, tão<br />

entregue estava ao seu trabalho. O Imediato, após uns momentos de<br />

apreciação, mãos atrás das costas, acaba por dizer, alto e bom som:<br />

– Sim senhor, <strong>Zé</strong> Rama; mas que grande cantor tu me saíste!<br />

O <strong>Zé</strong> Rama põe-se em pé num instante, assusta<strong>do</strong>, com o coração<br />

aos pulos, e, coçan<strong>do</strong> a cabeça, diz:<br />

– Senhor Imediato, desculpe... sei que é proibi<strong>do</strong> cantar nas horas<br />

de serviço, mas... distraí-me, Senhor Imediato. Enfim, estava aqui a pen-<br />

sar na vida... Sabe Senhor Imediato, a vida é difícil.<br />

Além disso, Senhor Imediato, só mar... tanto mar... a gente fica<br />

maluco, Senhor Imediato!<br />

– Muito bem, diz o Imediato. Pois é! A vida está difícil e, “Quem can-<br />

ta seu mal espanta”. Mas, ó <strong>Zé</strong> Rama, o dita<strong>do</strong> nem sempre se pode<br />

seguir à risca, não achas !?... Agora, por exemplo, em vez de espantar as<br />

penas, ainda as aumentas.<br />

– O quê... o Senhor Imediato; está a pensar em castigar-me!? – diz<br />

o <strong>Zé</strong> Rama muito espanta<strong>do</strong>.<br />

O Imediato, de mão no queixo, olhan<strong>do</strong> lá <strong>para</strong> o alto <strong>do</strong>s mastros<br />

com ar pensativo, como que avalian<strong>do</strong> a infracção e qual o tipo de castigo<br />

a aplicar, respondeu, com uma pergunta:<br />

– Que tal uma privação de saída, quan<strong>do</strong> chegarmos a Lisboa!?<br />

Do ponto de vista <strong>do</strong> <strong>Zé</strong>, não seria um castigo assim tão leve, <strong>para</strong><br />

quem navegava há cerca de 25 dias sem ver terra.<br />

Mas o <strong>Zé</strong> Rama, com um tími<strong>do</strong> sorriso, e ainda a dar um jeito ao<br />

panamá, desalinha<strong>do</strong>, devi<strong>do</strong> à precipitação com que se levantou, respon-<br />

de-lhe:<br />

69


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

– Enfim, Senhor Imediato, <strong>do</strong> mal o menos... Até, vistas as coisas,<br />

que vou eu fazer <strong>para</strong> terra sem um tostão no bolso... gastei tu<strong>do</strong>, lá<br />

“naquela” América!...<br />

O queixume <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> Rama, não podia ser mais compungente, ao<br />

dizer: “gastei tu<strong>do</strong> lá, naquela América”.<br />

O Imediato disfarçan<strong>do</strong> um sorriso, disse<br />

– Pois é, <strong>Zé</strong> Rama, o dinheiro, hoje em dia, não vale nada.<br />

– É verdade – diz imediatamente o <strong>Zé</strong> Rama – A quem o diz... a<br />

quem o diz... O senhor Imediato não reparou como é caríssima a vida na<br />

América!?...<br />

– Sim, sim – diz o Imediato, sorrin<strong>do</strong> – mas, ouve lá; afinal que cas-<br />

tigo te hei-de aplicar!?... Como se tivesse acha<strong>do</strong>, de repente, a medida<br />

correcta disse:<br />

– Exactamente. Que dizes a três guardas de castigo ao portaló, logo<br />

à chegada a Lisboa. Parece-te bem?<br />

O <strong>Zé</strong> Rama, contrain<strong>do</strong> o queixo como quem está a tentar levar a<br />

melhor numa negociata na feira da ladra, diz:<br />

– Enfim, Senhor Imediato, convenhamos que é duro... um boca<strong>do</strong><br />

duro, mesmo! Então, um indivíduo há tanto tempo fora de Lisboa, e ficar<br />

logo de guarda; é duro, Senhor Imediato.<br />

Cabisbaixo, longe, sem dúvida, de estar pesaroso como parecia,<br />

termina dizen<strong>do</strong>:<br />

– Pronto, Senhor Imediato, paciência; resta-me confiar na sua bene-<br />

volência; fará o que for de sua justiça.<br />

Importa dizer que, de mo<strong>do</strong> algum, este tipo de infracções eram<br />

registadas na caderneta militar, pelo que, em nada afectavam a carreira<br />

70


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

militar de qualquer indivíduo. Mesmo este diálogo é apenas uma brincadei-<br />

ra num da<strong>do</strong> momento.<br />

Mas o gozo da malta foi grande, quan<strong>do</strong> se viu o <strong>Zé</strong> Rama, perfila<strong>do</strong><br />

no portaló, de franquelete aperrea<strong>do</strong> ao queixo, enquanto a marujada,<br />

sussurran<strong>do</strong> graçolas, saía de licença.<br />

Ainda, lembra ao <strong>Zé</strong>, ele ter correspondi<strong>do</strong>, entre dentes, à sua pro-<br />

vocação: “Vai, vai, senão prego-te já uma coronhada”.<br />

Ao saírem da Sagres aqueles marujos que fizeram parte da guarni-<br />

ção, apenas <strong>para</strong> irem na viagem, e agora destaca<strong>do</strong>s <strong>para</strong> o Alfeite, o <strong>Zé</strong><br />

Rama dedicou-lhes um empolgante discurso de despedida, ao almoço na<br />

Coberta. Mas o caloroso discurso, terminou <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> mais burlesco que se<br />

possa imaginar. É que o impagável <strong>Zé</strong> Rama terminou com a mais insólita<br />

informação: “E agora, meus amigos, termino, informan<strong>do</strong>-vos que tenho,<br />

no meu cacifo, uma dentadura, em segunda mão, <strong>para</strong> vender!”<br />

Lembra<strong>do</strong> desta interessante personagem, o <strong>Zé</strong> deixa, neste registo,<br />

um enorme abraço ao <strong>Zé</strong> Rama. Um grande abraço, <strong>do</strong> grumete n.º<br />

7004/46.<br />

71


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

CABO ZÉ<br />

Dos papafigos ao sobro,<br />

Eu subo que nem um gato.<br />

E não temo o desacato<br />

Dos ventos mais tempestivos!<br />

Nem tenho quaisquer motivos,<br />

Que me inibam das alturas;<br />

Até mesmo às escuras,<br />

Percorro to<strong>do</strong> o velame,<br />

Qual artista no arame!<br />

Por mais que troam os astros,<br />

Por mais que ranjam os mastros:<br />

O traquete o grande ou a mezena...<br />

Não fujo de qualquer cena!<br />

Andar nas vergas, é obra<br />

Em noites de tempestade<br />

Mas tenho unhas de sobra,<br />

Quero meças na Manobra,<br />

Na minha especialidade,<br />

Eu aí sou a “verdade”.<br />

Pode dizer-se que estas palavras postas ao vento, são a definição<br />

exacta das capacidades <strong>do</strong> “cabo <strong>Zé</strong>” em movimento a bor<strong>do</strong> da Sagres.<br />

E, quem olhasse <strong>para</strong> ele, calmo e pachorrento não adivinhava tanta<br />

destreza e garra, naquele grumete de manobra.<br />

Uma das medidas de segurança a bor<strong>do</strong> da Sagres a navegar, é a<br />

inspecção diária que se faz ao velame, ao fim <strong>do</strong> dia. Essa inspecção é<br />

obrigatória seja qual for a “cara” <strong>do</strong>s astros e a soada <strong>do</strong>s ventos.<br />

Ora, numa dessas tardes cinzentas, <strong>para</strong> não dizer pretas, e vento<br />

forte, diz o “Cabo <strong>Zé</strong>” ao <strong>Zé</strong>, nessa hora da inspecção:- “Ó quatro; hoje<br />

vou lá acima na tua vez. Sabes bem que eu percebo mais disto, <strong>do</strong> que<br />

tu”.<br />

Tinha toda a razão; ele era especializa<strong>do</strong> na manobra; o <strong>Zé</strong> não.<br />

Além disso era <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de uma destreza invulgar, e, diga-se, não é nada<br />

fácil a aventura lá por cima, <strong>para</strong> além <strong>do</strong> cesto de gávea.<br />

72


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

De facto, mal temos a que nos agarrar, ao longo das vergas com os<br />

pés nos estribos, apoio que não é mais que um cabo de aço, bambo, colo-<br />

ca<strong>do</strong> um pouco abaixo da verga.<br />

Já que estamos a falar das alturas, um <strong>do</strong>s momentos mais arre-<br />

piantes é quan<strong>do</strong> a marujada abre a partir <strong>do</strong> cesto de gávea, andan<strong>do</strong> em<br />

pé sobre as próprias vergas, passan<strong>do</strong> apenas a mão por um cabo, pre-<br />

viamente coloca<strong>do</strong> à altura da cintura.<br />

Trata-se de um exercício praticamente de puro equilíbrio, que tem<br />

lugar a cerca de 40 metros de altura – a altura máxima é de 48 metros.<br />

Mas tu<strong>do</strong> aquilo se torna mais difícil ainda, quan<strong>do</strong>, o cabo pelo qual pas-<br />

samos a mão fica mais bambo, devi<strong>do</strong> aos puxões desencontra<strong>do</strong>s de<br />

cada marujo, em busca <strong>do</strong> seu próprio equilíbrio.<br />

A principal finalidade deste a<strong>para</strong>toso gesto é, como já se disse,<br />

acenar, com o Panamá, às multidões, que vêm aos cais ver a Sagres,<br />

principalmente em ocasiões de festa.<br />

Para o efeito cada marujo tem o seu lugar na verga, previamente<br />

atribuí<strong>do</strong> e o <strong>Zé</strong>, era o segun<strong>do</strong>, a partir <strong>do</strong> cesto de gávea <strong>do</strong> traquete,<br />

velacho-alto, <strong>para</strong> o la<strong>do</strong> de bombor<strong>do</strong>.<br />

73


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Vós marujos da Sagres, que passais<br />

Vós, marujos que passais<br />

Procurai ouvir talvez ouçais,<br />

Sons esbati<strong>do</strong>s duma guitarra.<br />

E se tal escutardes ainda,<br />

Dizei lá <strong>para</strong> convosco<br />

Que coisa linda!<br />

São gemi<strong>do</strong>s<br />

Da guitarra <strong>do</strong> Morais.<br />

Marujo de tempos i<strong>do</strong>s<br />

Que por esses mares an<strong>do</strong>u<br />

Com seus duzentos irmãos<br />

Lá de Lisboa largou.<br />

Porém, se nada escutardes<br />

Tentai ver, talvez vereis<br />

Inda a esteira rarefeita dum navio.<br />

Que em tempo se chamou<br />

“FLORES” e “SANTO ANDRÉ”.<br />

E se virdes o que eu vejo,<br />

Desde o Castelo à Ré<br />

Vereis a SAGRES passar<br />

Pelo mar a navegar<br />

Linda, branca a dealbar<br />

74


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

“O CAPITÃO DA SAGRES”<br />

Um dia chegou ao Portaló <strong>do</strong> Navio Escola Sagres, na altura atraca-<br />

<strong>do</strong> numa das <strong>do</strong>cas de Alcântara, uma senhora emproada, procuran<strong>do</strong><br />

conter um certo nervosismo, mas tentan<strong>do</strong> parecer calma e segura.<br />

Dirigin<strong>do</strong>-se à sentinela, diz-lhe resoluta:<br />

– Quero falar com o capitão.<br />

A sentinela ven<strong>do</strong> o mo<strong>do</strong> arrogante da senhora e também a igno-<br />

rância que revelava – na <strong>Marinha</strong> não existe esse posto –, chamou imedia-<br />

tamente a Ordenança ao Oficial de Serviço, e disse-lhe simplesmente:<br />

– Oh... ordenança; vai chamar o capitão; diz-lhe que está aqui, no<br />

portaló, uma senhora à sua procura.<br />

A ordenança, medin<strong>do</strong> a senhora de alto a baixo, e ven<strong>do</strong> logo que<br />

ali “ havia gato”, na sua se foi e, desde logo, encontrou o solicita<strong>do</strong> capi-<br />

tão, no Castelo, junto a uma arrecadação.<br />

– Ó capitão – diz a ordenança – vai ao Portaló; está lá uma senhora<br />

que te quer falar.<br />

Mas, desde logo, acrescenta:<br />

– Talvez seja bom ires depressinha; a sujeita está com cara de pou-<br />

cos amigos. Unh... há moiro na costa!...<br />

O capitão sentin<strong>do</strong>-se inseguro, disse:<br />

– Que senhora, pá!?...<br />

Sem obter qualquer resposta por parte da Ordenança foi, desde logo<br />

suspenden<strong>do</strong> o que estava a fazer, enfim, arrumar os utensílios de limpe-<br />

za tais como baldes, vassouras, trissodina, sabão amarelo, lixívia, solari-<br />

ne, desperdícios, etc., etc., mas, muito intriga<strong>do</strong>, até receoso, tanto mais<br />

que não tinha a certeza <strong>do</strong> que acontecera na noite anterior: O caso é que<br />

75


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

o noctívago capitão tinha chega<strong>do</strong> a bor<strong>do</strong> por volta das três da manhã,<br />

entran<strong>do</strong> a bor<strong>do</strong>, naturalmente ao abrigo <strong>do</strong>s olhares tolerantes da senti-<br />

nela, ainda mais porque porta<strong>do</strong>r de uma grande carraspana.<br />

E lá vem o valdevinos sem imaginar sequer, que tipo de problema<br />

teria <strong>para</strong> resolver, ali bem perto, no Portaló.<br />

Hesitou aqui e ali, espreitou sem ser visto, e lá estava uma senhora<br />

que ele juraria, a pé firme, que jamais a vira, em parte alguma.<br />

Espreitou, olhou, olhou, e, concluía lá <strong>para</strong> consigo: - mas quem raio<br />

é a mulher!?... Eu nunca vi esta gaja em la<strong>do</strong> nenhum!...<br />

Mas, fossem quais fossem os motivos de tão insólita “visita” não<br />

tinha outro remédio senão abeirar-se da entrada <strong>do</strong> navio.<br />

Já junto <strong>do</strong> Portaló, mirava a senhora de alto a baixo, e ela, nada!<br />

Em vez de lhe dirigir qualquer palavra, o capitão via que a senhora<br />

se limitava a olhar de soslaio <strong>para</strong> ele, mas nada mais que isso.<br />

Ali estava, mesmo na sua frente, com o fato de trabalho já de há<br />

muito a precisar de uma barrela, com cara de parvo, olhan<strong>do</strong> a senhora.<br />

Num momento a senhora perde o resto de compostura que ainda<br />

lhe restava e lhe diz:<br />

– Ouça lá; você nunca me viu !?<br />

E o capitão já nem saben<strong>do</strong> como havia de pôr as mãos, explode:<br />

– Ouça lá, Oh minha senhora; o que é que se passa!?... O que é<br />

que a senhora quer de mim!?<br />

A senhora, branca de raiva, limitou-se a olhar de alto a baixo, <strong>para</strong> o<br />

desconsertante e enseba<strong>do</strong> capitão e, também, <strong>para</strong> a sentinela que sor-<br />

ria, ainda que perfila<strong>do</strong> no seu posto.<br />

Apesar de tu<strong>do</strong>, aperceben<strong>do</strong>-se já que estava a ser ”gozada”, ainda<br />

disse de novo:<br />

76


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

– “Eu quero falar com o capitão <strong>do</strong> navio!...”<br />

Prontamente diz o capitão:<br />

– Oh minha senhora, o capitão, aqui da Sagres, sou eu!...<br />

Foi então que a senhora, encarniçada, apertou os dentes, olhou<br />

<strong>para</strong> tu<strong>do</strong> aquilo com rancor e, sem dizer mais uma palavra, virou as costa<br />

e partiu, esbaforida cais além.<br />

Pelo que conhecemos das malandrices que se cometem na socie-<br />

dade igualmente por parte <strong>do</strong>s marinheiros, admitimos que a senhora teria<br />

boas razões <strong>para</strong> ir ali, em busca de algo; porém, o descaramento <strong>do</strong> ofi-<br />

cial mandar chamar o capitão; mais o erro da senhora dizen<strong>do</strong> que queria<br />

falar com o capitão <strong>do</strong> navio, resultou no que se viu.<br />

Na verdade a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong>s navios da <strong>Marinha</strong>, na Sagres também, não<br />

existe o posto de capitão; o único capitão que há a bor<strong>do</strong> é, normalmente,<br />

um grumete encarrega<strong>do</strong> da limpeza e que se designa por capitão <strong>do</strong> lixo.<br />

Esta história era contada, como verídica, a bor<strong>do</strong> da Sagres, no meu<br />

tempo. Não a testemunhei portanto; mas isso não me impede de a ver<br />

estampada na pessoa <strong>do</strong> meu filho da escola, nessa altura o titular desse<br />

“posto”.<br />

Poderia ser ele, muito bem, o valdevinos da história contada, indiví-<br />

duo bastante patusco, aparentemente um pouco “chanfra<strong>do</strong>”.<br />

Um dia, disse ele em conversa:<br />

– Bom, vou ver em que deu a minha sabonária; se der resulta<strong>do</strong> –<br />

dizia – nunca mais terei trabalho a lavar as minhas fardas.<br />

E continuan<strong>do</strong>, explicou-se:<br />

– Ontem à noite fiz uma sabonária de trissodina bem fortezinha e<br />

meti lá uma calças muito encardidas. Espero que fiquem um brinco.<br />

77


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Acho que já disse que o gajo andava quase sempre com o fato<br />

conspurca<strong>do</strong>; daí a ideia da barrela de trissodina que o indivíduo preparou,<br />

segun<strong>do</strong> parece, com um certo cariz científico, <strong>para</strong> desencardir, sem tra-<br />

balho, as calças emporcalhadas.<br />

Mas, o palerma, que to<strong>do</strong>s os dias lidava com aquele produto de<br />

limpeza, ou não andasse ele connosco to<strong>do</strong>s o dias de manhã, na baldea-<br />

ção <strong>do</strong> convés, achou que o pano se aguentava com aquele produto bas-<br />

tante corrosivo muito mais que lixívia concentrada!<br />

Pois dirigiu-se ao balde em que depositara, confiante, o seu fato<br />

cheio de esterco; ao puxar, apenas traz, na mão, farrapos queima<strong>do</strong>s.<br />

78


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

CERTOS CENÁRIOS<br />

Quan<strong>do</strong> algumas das forças da Natureza se conjugam entre si, sur-<br />

gem no mar cenários, me<strong>do</strong>nhos e belos, nomeadamente quan<strong>do</strong> apre-<br />

cia<strong>do</strong>s e senti<strong>do</strong>s, lá nas alturas.<br />

Efectivamente certos cenários têm tanto de belos como de tenebro-<br />

sos, só faltan<strong>do</strong>, diria, descortinar em algum buraco negro, o famoso<br />

Gigante <strong>do</strong> Adamastor, ainda que, talvez um tanto mais modesto, <strong>do</strong> que o<br />

que “viu” Luiz de Camões.<br />

Mesmo quem não passa por essas aventuras, não lhe será difícil<br />

imaginar um marinheiro, a cerca de 48 metros de altura, tentan<strong>do</strong> mover-<br />

se no espaço instável e ar de mistério, entre vergas e velas enfunadas,<br />

passan<strong>do</strong> por situações como a <strong>do</strong> “ Camarinha, que teve necessidade de<br />

usar os dentes, <strong>para</strong> se agarrar, por momentos, lá na mesena. A Sagres,<br />

com vento de feição, sulcava mares e varava ventos enfureci<strong>do</strong>s, à veloci-<br />

dade de 10 ou 12 nós. A pouco mais que esta velocidade, partir-se-iam os<br />

mastros.<br />

É de grande impacto ao olhar lá <strong>do</strong> alto e ver as pessoas e as coisas<br />

no convés, bastante mais pequenas incluin<strong>do</strong> o to<strong>do</strong> <strong>do</strong> navio, baloiçan<strong>do</strong><br />

proa/popa, bombor<strong>do</strong>/estibor<strong>do</strong>, ladea<strong>do</strong> de vagas brancas, num fun<strong>do</strong> por<br />

vezes verde-escuro, ou então num constrange<strong>do</strong>r azul vivíssimo<br />

Se quisesse sintetizar o ambiente de certos momentos lá nas altu-<br />

ras, diria que se tem a sensação de nos encontrarmos, num qualquer<br />

lugar, fora da nossa realidade.<br />

Mas atenção; em face de tu<strong>do</strong> isso, o que vale é o ânimo e a genica<br />

da marujada. E se os veteranos não têm a genica <strong>do</strong>s mais novos, não<br />

ficam no convés, graças à sua grande experiência.<br />

79


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

A-propósito o <strong>Zé</strong> recorda uma cena em que o cozinheiro de bor<strong>do</strong>, já<br />

bastante entra<strong>do</strong> na idade e gor<strong>do</strong>, que nada tinha a ver com a manobra,<br />

ganhou um garrafão de vinho, por aposta, subin<strong>do</strong> em escassos minutos<br />

até ao Sobro, em pleno mar! Mas nem to<strong>do</strong>s.<br />

O <strong>Zé</strong> recorda um filho da sua escola que teve de ser amarra<strong>do</strong> no<br />

Balso e iça<strong>do</strong> até ao cesto de gávea <strong>do</strong>s Papa-Figos. (as vergas mais bai-<br />

xas). Daí teve de descer, sem qualquer ajuda. Mas, na sua grande maio-<br />

ria, são tão lestos e trepa<strong>do</strong>res como macacos.<br />

Pois bem. O “cabo <strong>Zé</strong>” era, como se disse, um desses especialis-<br />

tas, mas, não é sobre essa faceta que o <strong>Zé</strong> pretende falar dele.<br />

O Cabo <strong>Zé</strong> era, também, um grande cómico, tanto quanto o era o <strong>Zé</strong><br />

Rama, embora com características, completamente diferentes.<br />

Para começar, o <strong>Zé</strong> que escreve estas coisas, supõe que o Cabo<br />

<strong>Zé</strong>, terá si<strong>do</strong> bastante pobre, antes de entrar na <strong>Marinha</strong>. Aliás, pobre<br />

como era to<strong>do</strong> o operaria<strong>do</strong> daquele tempo.<br />

Mas refiro este aspecto mais <strong>para</strong> referir uma das suas histórias.<br />

Contava ele:<br />

“Eu tinha, lá na terra, uma namorada, mas, por mais que falásse-<br />

mos, nunca conseguíamos entender-nos”.<br />

E <strong>para</strong> justificar essa falta de entendimento, dizia:<br />

– Um dia, ela chegou à minha beira e disse:<br />

– Se conseguires juntar 250$00, casamo-nos.<br />

Claro que estas coisas eram contadas em grupo, pelo que, ocasio-<br />

navam grandes gargalhadas. Com isso mesmo contava o “Cabo <strong>Zé</strong> e, rin-<br />

<strong>do</strong> também, mais uma vez exibia a sua enorme dentuça 9<br />

9 O “Cabo <strong>Zé</strong> tinha uma dentuça muito grande, bastante semelhante à daquele cómico francês, o<br />

Fernandel.<br />

80


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

– Mas, continuan<strong>do</strong>, dissemos nós:<br />

– Ó “cabo <strong>Zé</strong>! <strong>para</strong> que queria ela duzentos e cinquenta escu<strong>do</strong>s, se<br />

nem sequer daria <strong>para</strong> comprar um baú!?<br />

– Sei lá... – Diz ele rin<strong>do</strong> de si próprio. – Ela nunca me disse... e eu,<br />

também, nunca fui capaz de juntar tal quantia...<br />

O “cabo <strong>Zé</strong>” foi um <strong>do</strong>s grumetes que, após a recruta, transitou de<br />

Vila Franca <strong>para</strong> a Escola de Aviação Naval Almirante Gago Coutinho, em<br />

Aveiro e, daqui foi destaca<strong>do</strong> <strong>para</strong> o Navio Escola Sagres, onde o <strong>Zé</strong> vol-<br />

tou a encontrá-lo, já com o seu curso de Marinheiro de Manobra.<br />

Daí a nossa viagem juntos, à América <strong>do</strong> Norte.<br />

Sortilégio à volta de umas meias de vidro<br />

Enquanto navegávamos rumo a Boston, a “malta” pronunciava, aqui<br />

e ali, “mal e porcamente”, uma ou outra palavra em inglês, construin<strong>do</strong> fra-<br />

ses, longe de fazerem nexo algum.<br />

Só dis<strong>para</strong>tes e, o “cabo <strong>Zé</strong>” era um desses poliglotas.<br />

Faltavam ainda uns dias <strong>para</strong> chegar à América, quan<strong>do</strong> cabo <strong>Zé</strong>,<br />

começou a imaginar-se, sozinho, na 5ª Avenida, em Nova York, falan<strong>do</strong><br />

fluentemente o inglês, “tu cá tu lá”, com um elegante caixeiro de uma<br />

luxuosa casa de modas da famosa avenida.<br />

O objectivo era, “comprar umas meias de vidro, <strong>para</strong> oferecer à sua<br />

amada; esta era uma rapariga da Gafanha da Cale da Vila, Ílhavo, Aveiro”.<br />

Assim, ele, Cabo <strong>Zé</strong>, sairia de licença e, depois de admirar as gran-<br />

dezas da América que nunca vira, acabaria por entrar, muito descontrai-<br />

damente, numa luxuosa casa de modas. Sorridente, diria ao caixeiro:<br />

– Gude morningue, mister caixeiro. Estás tanquiu!?<br />

81


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

– Oh Yes! – Dir-lhe-ia o americano – How <strong>do</strong> you <strong>do</strong>? Can I help<br />

you? Como ter passa<strong>do</strong>!?<br />

veruel!...<br />

americano.<br />

– Ai ame gude – terá dito o Cabo <strong>Zé</strong> – muito veri gud, mesmo, muito<br />

– Então que o trazer aqui por Nova Iorque, sinor marinero? – disse o<br />

Aí, o Cabo <strong>Zé</strong>, mostran<strong>do</strong> um leve sorriso ao canto da boca <strong>para</strong><br />

não se lhe verem os dentes, diria:<br />

– Eu ser um seilor portchuguise. Não saber se já percebeu – apon-<br />

tan<strong>do</strong> <strong>para</strong> o boné – e querer comprar umas meias de vidro, um vidro bom,<br />

é claro.<br />

E, segredan<strong>do</strong> levemente inclina<strong>do</strong> sobre o ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> caixeiro, con-<br />

tinuaria, dizen<strong>do</strong>: – são <strong>para</strong> oferecer à minha namorada, está a perceber?<br />

– Very well, very well – dirá o vermelhusco muito prestável, talvez a<br />

pensar que está a falar com um gajo cheio de massa: – eu ter aqui um<br />

artigo finíssimo, confecciona<strong>do</strong> com vidro importa<strong>do</strong>. E, pon<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o<br />

empenho na venda, conclui dizen<strong>do</strong>: – Isto ser um artigo da mais alta qua-<br />

lidade. Insistin<strong>do</strong> mais ainda, disse com presteza: – Olhe que ser um vidro<br />

famoso da... ai!... da... Ah! Já saber. É vidro da Marina Grrande!... Ye, Yes;<br />

Marina Grrande, Portuguisa; lá junto a Espaina. Decerto o sailor portchu-<br />

guise, conhecer, not !?<br />

– Oh! Iece, Iece – dirá o Cabo <strong>Zé</strong>, sorrin<strong>do</strong> mais uma vez. – pois<br />

quem não conhecer a <strong>Marinha</strong> Grande!... Bom. Vidro, sim senhor. Muito<br />

bom vidro.<br />

Mas, o cabo <strong>Zé</strong>, lá na sua ideia, aquilo era um grande dis<strong>para</strong>te, e o<br />

contrário seria, <strong>para</strong> si, uma grande surpresa. Perguntou:<br />

– Mas, ó mister, como é que foi que disse, essa coisa da <strong>Marinha</strong><br />

Grande !? Que me conste, eles lá, não fazem meias!<br />

82


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

– Pois não, – dirá o americano admira<strong>do</strong>, ou chatea<strong>do</strong> – sei lá – mas<br />

com cara de quem me está a chamar palerma – Eles lá, fazerem a matéria<br />

prima e nós, aqui, fazer o milagre das meias inquebráveis, percebeu?<br />

confusão 10 .<br />

– Bom, bom, está bem; mister – dirá o cabo <strong>Zé</strong>, <strong>para</strong> evitar mais<br />

O cabo <strong>Zé</strong> pensou lá <strong>para</strong> consigo:<br />

– Quero lá saber... afinal, o que eu quero é adquirir o mais requinta-<br />

<strong>do</strong> presente <strong>do</strong> século, <strong>para</strong> oferecer, com to<strong>do</strong> o meu amor, à minha<br />

amada.<br />

– Sim – continuava o “Cabo <strong>Zé</strong>”, ali no convés – <strong>para</strong> mim, umas<br />

meias de vidro escondem um quê de intrigante; eu nunca fui capaz de<br />

“encaixar” que vidro, <strong>para</strong> além de servir <strong>para</strong> vidraças, garrafas, pratos,<br />

clarabóias, óculos, vitrais ou o caraças, e já agora independentemente de<br />

ser ou não feito na <strong>Marinha</strong> Grande, viesse a servir também <strong>para</strong> fazer<br />

meias! Meias de senhora; olha que caraças! Mas o mais intrigante – dizia<br />

ainda – E como é que o raio da vidraça, não se espatifa nas pernas das<br />

gajas!?...<br />

Mas, o Cabo <strong>Zé</strong>, continuan<strong>do</strong> a dar largas à sua imaginação, louva-<br />

va calorosamente este milagre da técnica; acima de tu<strong>do</strong>, o que lhe inte-<br />

ressava era oferecer à sua amada, tão chique “souvenir“!<br />

Um “Souvenir” estranho, lá isso é; mas de tão fino gosto não há.<br />

Oh! Como é gostoso pensar nas pernas da namorada, assim envol-<br />

tas numa espécie de re<strong>do</strong>ma, leve, transparente, sensual!<br />

Depois vinha-lhe à ideia, como essas meias iriam causar furor entre<br />

as amigas, roídas de inveja, lá na Cale da Vila.<br />

10 De notar que em 1948, as meias de vidro (meias de nylon) eram uma novidade rara, que muito<br />

poucas mulheres usavam, pelo menos em Portugal. Naturalmente devi<strong>do</strong> ao seu eleva<strong>do</strong> preço.<br />

83


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Enquanto dissertava apaixonadamente, anteven<strong>do</strong> o invulgar pre-<br />

sente, nas mãos cândidas da sua namorada, o seu olhar espraiava-se<br />

sobre o mar, de lés-a-lés, ansian<strong>do</strong> por descobrir, algures, e finalmente,<br />

terras da América.<br />

Bom! Mais conversa menos conversa, o “Cabo <strong>Zé</strong>” trará as meias da<br />

América, e o seu gesto de amor só ficará completo ao fim de uma serena-<br />

ta à luz da Lua.<br />

É exactamente nisto da serenata que passa <strong>para</strong> o imaginário <strong>do</strong><br />

apaixona<strong>do</strong> “Cabo <strong>Zé</strong>”, a colaboração <strong>do</strong> “7004”. O “4” que, tangen<strong>do</strong> a<br />

sua guitarra, fará despertar de um sono profun<strong>do</strong>, a sua i<strong>do</strong>latrada Maria-<br />

na. Mariana!... Doce nome. Mais <strong>do</strong>ce que açúcar mascava<strong>do</strong>... Todavia, o<br />

<strong>Zé</strong>, com a sua guitarra, ficará escondi<strong>do</strong> entre os arbustos, pois que, quem<br />

tira aqueles sons pungentes, é o próprio “Cabo <strong>Zé</strong>”, “que toca e canta<br />

sozinho”, em frente da rústica casinha, numa guitarra de papelão.<br />

Será de madrugada, a Lua já esbatida, declina sobre o mar. As<br />

Gafanhas <strong>do</strong>rmem e ressonam. O Cabo <strong>Zé</strong> e o 7004/46, esses esperam o<br />

momento oportuno, mu<strong>do</strong>s e que<strong>do</strong>s junto à Ria, no Cais da Cal da Vila.<br />

Que nem o marulhar de remos se oiçam, e muito menos a voz rouca<br />

de um qualquer pesca<strong>do</strong>r que por ali passasse. Então, sim. A voz <strong>do</strong><br />

“Cabo <strong>Zé</strong>” se ouvirá na estreita rua, logo de seguida a duas puxadas em lá<br />

maior, conforme o combina<strong>do</strong>.<br />

A canção escolhida é aquela canção <strong>do</strong> filme “Capas Negras”:<br />

Oh! meu amor,<br />

Minha linda feiticeira<br />

Eu daria a vida inteira<br />

Por um só beijo <strong>do</strong>s teus...<br />

Por teu amor eu morria de desejo<br />

Deste-me a vida num beijo<br />

E eu vivi pra te beijar!<br />

84


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Ela acorda, e, estremunhada, pensa que é apenas um lin<strong>do</strong> sonho,<br />

voan<strong>do</strong>, talvez, sobre a Sagres, no alto mar! Porém vai despertan<strong>do</strong> e,<br />

aquela voz, a voz inconfundível <strong>do</strong> seu amor marinheiro, se torna cada vez<br />

mais real. Está ali, eu oiço... Eu oiço a voz <strong>do</strong> meu ama<strong>do</strong>!...<br />

É então que, ainda cambaleante, perturbada, apressa-se a acender<br />

o seu candeeiro de petróleo e a colocá-lo no postigo <strong>do</strong> seu quarto. Se for<br />

verdade – pensava – se tu<strong>do</strong> isto não for um sonho, ele saberá que esta<br />

luzinha petrolífera se acendeu <strong>para</strong> ele. Para lhe dizer: “Aqui estou meu<br />

amor; a to<strong>do</strong> o momento esperava o teu regresso!”<br />

Mas, as coisas não ficam por aqui. Segun<strong>do</strong> a fantasia <strong>do</strong> “Cabo<br />

<strong>Zé</strong>”, a moça, roída de saudade, apaixonada em último grau, não pode limi-<br />

tar-se ao sinal da bruxuleante luzinha. Para o “Cabo <strong>Zé</strong>”, ela sairá dispa-<br />

rada, vin<strong>do</strong> cair-lhe nos braços, em pleno voo!<br />

Bom! Chega, finalmente, o <strong>do</strong>ce momento. A guitarra emudecerá.<br />

Se a deusa <strong>do</strong> Amor estiver por ali perto, suspenderá a própria res-<br />

piração, <strong>para</strong> melhor escutar as <strong>do</strong>ces palavras <strong>do</strong> “Cabo <strong>Zé</strong>”:<br />

Aqui tens ó meu amor<br />

Um presente americano.<br />

Comprei-o em Nova Iorque<br />

E não aí, num cigano.<br />

Oh que prazer tenho eu<br />

Em oferecer-te estas meias.<br />

São de vidro, tem cuida<strong>do</strong>,<br />

Não te vão ferir nas veias<br />

Nesta altura, o Cabo <strong>Zé</strong> mostran<strong>do</strong> a sua dentuça, sorrin<strong>do</strong>, diz <strong>para</strong><br />

a malta que o ouvia:<br />

– Bom! O Quarto está a terminar e a história já vai longa. Good Bye!<br />

85


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

De facto, ele a acabar de falar e a soarem as quatro badaladas da<br />

meia-noite, a bor<strong>do</strong> da Sagres. Estávamos prestes a chegar a Boston.<br />

86


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

REGRESSO A VILA FRANCA DE XIRA<br />

Após a chegada da América, o <strong>Zé</strong> passou pelo Corpo de Marinhei-<br />

ros e de seguida, foi destaca<strong>do</strong> <strong>para</strong> Vila Franca de Xira.<br />

Havia cumpri<strong>do</strong> <strong>do</strong>is anos de marinha (metade <strong>do</strong> tempo obrigató-<br />

rio), circunstância que lhe conferia direitos de antiguidade relativamente<br />

aos grumetes que estavam naquela Escola – a antiguidade é um posto.<br />

Por tal motivo, desempenhava funções de Cabo de Quarto, quan<strong>do</strong> esca-<br />

la<strong>do</strong> <strong>para</strong> o efeito. Mas, desta vez recorreu a uma das suas habilitações<br />

profissionais e, porque era mais antigo, fizeram-no chefe da oficina de<br />

alfaiate. Alfaiate foi uma das suas profissões na sua terra natal.<br />

Estes <strong>do</strong>is anos foram, fortemente marca<strong>do</strong>s, por acontecimentos de<br />

caracter sociológico, muito graves, não só em terras de Vila Franca, mas<br />

também por to<strong>do</strong> o nosso país. Foi também neste perío<strong>do</strong> que o <strong>Zé</strong> fez um<br />

curso de guarda-livros por correspondência, <strong>para</strong> juntar ao curso de dacti-<br />

lografia que, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> Navio João de Lisboa, fizera na Rua Eugénio <strong>do</strong><br />

Santos, em Lisboa.<br />

87


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

VILA FRANCA DE XIRA NAQUELE TEMPO<br />

Para que se tenha a noção <strong>do</strong> desespero das gentes que ali afluíam,<br />

na esperança de encontrar um trabalho na construção da ponte de Vila<br />

Franca, o <strong>Zé</strong> faz referência a alguns casos que ali aconteceram. Decorria<br />

o ano de 1950.<br />

Se muitos portugueses partiam de Portugal – a monte – <strong>para</strong> Fran-<br />

ça, outros deambulavam por esse país fora, fustiga<strong>do</strong>s pela sua própria<br />

fome e a <strong>do</strong>s seus, que na terra ficaram à míngua de alguma caridade.<br />

Não há, nestas palavras, exagero algum. O <strong>Zé</strong>, não só os viu chegar a Vila<br />

Franca, como os vira partir até <strong>do</strong>is anos antes, da sua própria terra. O <strong>Zé</strong>,<br />

como já se disse, é da Região de Trás-os-Montes.<br />

O chamariz que no momento soava mais longe, era, a construção<br />

de uma ponte em Vila Franca. Rumores que trouxeram àquele lugar muita<br />

criatura desesperada, alguns <strong>do</strong>s quais encontraram ali o fim <strong>do</strong>s seus<br />

dias. Uma notícia local, dava conta de que três homens se enforcaram jun-<br />

tos, na mesma árvore.<br />

Mas, também, o próprio <strong>Zé</strong>, num dia chuvoso e gela<strong>do</strong> de Janeiro,<br />

saltou as grades <strong>do</strong> Quartel <strong>para</strong> tirar da linha <strong>do</strong> Caminho de Ferro um<br />

pobre homem, ali deita<strong>do</strong>, com o pescoço no carril, à espera <strong>do</strong> comboio<br />

que lá vinha.<br />

Havia famílias, cujas casas de habitação eram lorgas cavadas a<br />

meia altura, nos barrancos de Vila Franca. Lama. Só lama.<br />

Poderia fazer-se um relato extenso <strong>do</strong>s muitos episódios ocorri<strong>do</strong>s<br />

dentro e fora <strong>do</strong> Quartel, bem como das dificuldades que houve em tornar-<br />

se possível o dar entrada, pela Porta de Armas, a uma multidão de famin-<br />

tos que, com as cabeças metidas nas grades da Unidade, clamavam por<br />

um pouco de pão. Mas não foi fácil ao Comandante da Escola de Mecâni-<br />

88


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

cos e Escola de Alunos Marinheiros permitir-se dar tal autorização, obvia-<br />

mente contrária aos regulamentos da ordem da <strong>Marinha</strong>.<br />

A este respeito muito fica por dizer. Diz-se apenas que, diariamente,<br />

um bom número de recrutas daqueles anos arrebanhavam, entusiasma-<br />

<strong>do</strong>s, grandes quantidades de sobras, servin<strong>do</strong> assim, uma extensa fila de<br />

famintos.<br />

89


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

O SENHOR TENENTE FONTES<br />

Das figuras principais que o <strong>Zé</strong> foca nas suas histórias, falta ainda<br />

incluir o Senhor Tenente Fontes.<br />

Este velho marinheiro era detentor das mais altas condecorações,<br />

como sejam as medalhas de Torre e Espada e a Cruz de Guerra, etc., por<br />

feitos heróicos, pratica<strong>do</strong>s nas campanhas de África.<br />

E, <strong>para</strong> quem não sabe, essas condecorações dão direito às mais<br />

altas honras militares, onde quer que elas sejam exibidas.<br />

Era uma pessoa de humor grosseiro, irreverente, pouco ou nada<br />

respeita<strong>do</strong>r da ética militar; mas, por qualquer razão, gozava de tolerância,<br />

diria, absoluta, de to<strong>do</strong>s, incluin<strong>do</strong> qualquer oficial, pelo menos na Unida-<br />

de, onde o <strong>Zé</strong> conviveu com ele: Escola de Alunos em Vila Franca.<br />

Usava permanentemente um pingalim e não se ensaiava <strong>para</strong> “cas-<br />

car” num qualquer recruta ou grumete, uma atitude parva e estranhamente<br />

ignorada, apesar de que, na <strong>Marinha</strong>, é expressamente proibi<strong>do</strong> tal gesto.<br />

O <strong>Zé</strong> recorda, por exemplo, uma cena passada na carreira de tiro<br />

em Santarém.<br />

Um grumete estendi<strong>do</strong> no chão a fazer tiro ao alvo, o qual já tinha<br />

dis<strong>para</strong><strong>do</strong> sessenta tiros sem que tivesse acerta<strong>do</strong> no alvo – de facto nun-<br />

ca se vira um indivíduo mais tacanho –, e o tenente Fontes, não esteve<br />

com meias medidas. Num repente, levanta de alto o pingalim e aí vai<br />

semelhante bor<strong>do</strong>ada, <strong>para</strong> logo virar costas, sem dizer uma palavra.<br />

Um dia estava o senhor Tenente Fontes, rodea<strong>do</strong> de grumetes e<br />

marinheiros, contan<strong>do</strong>-lhes os grandes feitos nas campanhas de África.<br />

Tu<strong>do</strong> muito bem, até certo ponto. Mas, em da<strong>do</strong> momento, um gru-<br />

mete, resolveu levantar-se e, já pronto <strong>para</strong> fugir à vergastada, diz ao<br />

tenente, alto e bom som:<br />

90


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

– O senhor Tenente… O senhor afinal ganhou as suas medalhas,<br />

mas foi a matar pretos.<br />

Dito isto, fugiu e o senhor Tenente Fontes disparou a correr atrás<br />

dele, sem que jamais o apanhasse. Claro que tu<strong>do</strong> ficou por isso mesmo.<br />

O <strong>Zé</strong> nunca percebeu a razão da existência de uma figura assim,<br />

exercen<strong>do</strong> a função em igualdade de serviço com os outros oficiais da<br />

Escola.<br />

Mas um outro momento, muito mais a<strong>para</strong>toso e complica<strong>do</strong>, coisa<br />

contada pelo próprio clarim de serviço mostra bem as características, mui-<br />

tos especiais, deste homem, e, já agora, mostra também, o grau da tole-<br />

rância atrás referida. Esta história é contada pelo próprio clarim que, no<br />

momento, estava de serviço.<br />

Em Vila Franca há, ou havia ao tempo, a Escola de Mecânicos e a<br />

Escola de Alunos Marinheiros, estas se<strong>para</strong>das por um corre<strong>do</strong>r interno,<br />

ladea<strong>do</strong> por sebes de jardim.<br />

Quem se dirigisse <strong>para</strong> a Escola de Alunos Marinheiros, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

apeadeiro <strong>do</strong> Caminho de Ferro da Linha <strong>do</strong> Norte, tinha de entrar primei-<br />

ramente na Escola de Mecânicos e, daí, percorrer o dito corre<strong>do</strong>r, <strong>para</strong><br />

entrar, finalmente, na Parada da Escola de Alunos Marinheiros. A distância<br />

poderá rondar os 200 m.<br />

Na circunstância ia realizar-se o juramento de bandeira <strong>do</strong>s recrutas<br />

daquele ano, e isso constitui uma verdadeira festa, a que assistem, nor-<br />

malmente, muitas das altas individualidades incluin<strong>do</strong> o Ministro da Mari-<br />

nha. Como eles, vinham também, como de costume, as respectivas espo-<br />

sas.<br />

Ainda que a Porta de Armas da Escola de Alunos, onde tinha lugar o<br />

juramento de bandeira, seja a entrada principal e por ela passe a grande<br />

maioria <strong>do</strong>s oficiais, a verdade é que também vêm de comboio e, por isso,<br />

91


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

é coloca<strong>do</strong> um clarim na Porta de Armas, e, um outro, situa<strong>do</strong> no tal corre-<br />

<strong>do</strong>r, <strong>para</strong> anunciar os que por ali chegam de comboio, segun<strong>do</strong> as suas<br />

patentes, com direito a honras militares.<br />

Outro esclarecimento é que as instalações <strong>do</strong>s oficiais daquelas<br />

unidades conjuntas, ficavam <strong>do</strong> la<strong>do</strong> da Escola de Mecânicos isto é, <strong>do</strong><br />

la<strong>do</strong> daqueles que chegam de comboio. Portanto, em qualquer circunstân-<br />

cia, to<strong>do</strong>s daquele la<strong>do</strong>, teriam de passar pelo clarim, tal como aconteceu<br />

com o Senhor Tenente, quan<strong>do</strong> se levantou da cama e se dirigiu <strong>para</strong> a<br />

Parada, onde já decorria a cerimónia <strong>do</strong> Juramento de Bandeira.<br />

Lá vinha ele, conta o clarim, sozinho, cara virada ao chão, sisuda,<br />

como era seu costume, sobrancelha carregada, baten<strong>do</strong> com o pingalim<br />

na perna, a cada passo que dava.<br />

– Olá, seu Tenente – diz o clarim, naquele jeito de quem fala com<br />

uma pessoa da casa.<br />

O Tenente, olhan<strong>do</strong> de esguelha, sobrancelha levantada, com cara<br />

de poucos amigos, diz:<br />

– Olá cavalo.<br />

– Então, vai até à <strong>para</strong>da, não? – Diz o clarim sorridente.<br />

Sim porque, esse “olá cavalo”, nada tinha, <strong>para</strong> ele, de ofensivo. O<br />

Senhor Tenente chamava “cavalo” a toda a gente.<br />

Mas, da parte <strong>do</strong> tenente, o clarim não ouviu, nem uma palavra.<br />

Aí vai ele, passo lento, nitidamente desinteressa<strong>do</strong> da festa , como,<br />

aliás, o denotava a “humildade” <strong>do</strong> fato de cotim que vestia, enquanto<br />

to<strong>do</strong>s os outros oficiais haviam vesti<strong>do</strong> as suas vistosas fardas de gala.<br />

A festa decorria e o clarim via que o tenente voltava <strong>para</strong> trás; já<br />

próximo, meteu-se de novo com ele:<br />

92


de?<br />

A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

– Então “Sr” Tenente... Está farto de ver estas coisas, não é verda-<br />

– Não. Nada disso – diz o Tenente Fontes, com voz rancorosa. –<br />

Eles vão ver quem é que tem direito a sentar-se na Tribuna!<br />

Mais um passo à frente, diz ainda:<br />

– Então, o cavalo <strong>do</strong> Fontes an<strong>do</strong>u com o coirão ao sol mais de um<br />

mês, a montar a tribuna e agora não tem nela uma nesga <strong>para</strong> se sentar!?<br />

E resmungan<strong>do</strong> ameaças, continuou o caminho em direcção aos<br />

seus aposentos.<br />

O clarim encolhen<strong>do</strong> os ombros, ficou a pensar no que dissera o<br />

Tenente, mas, sem perceber bem, o que se teria passa<strong>do</strong>.<br />

Como já tinha começa<strong>do</strong> a cerimónia <strong>do</strong> Juramento de Bandeira e<br />

não haven<strong>do</strong> o menor sinal de que por ali viesse mais viva alma, pelo<br />

menos com direito a toque de clarim, pensou lá <strong>para</strong> consigo: “Bom, já não<br />

vem mais ninguém”. E com essa ideia, tratou de descontrair, ainda que<br />

não pudesse ausentar-se <strong>do</strong> local.<br />

Passa<strong>do</strong>s alguns momentos, o clarim viu aparecer, lá adiante, um<br />

oficial solitário. À medida que se aproximava, melhor distinguia – era o<br />

Tenente Fontes.<br />

O clarim, confuso, pois que o velho tenente, tornou-se, de um<br />

momento <strong>para</strong> o outro, a pessoa mais importante, de to<strong>do</strong>s quantos esta-<br />

vam dentro <strong>do</strong> Quartel, ficou aturdi<strong>do</strong>, sem saber o que havia de fazer.<br />

Olhava agora embasbaca<strong>do</strong> <strong>para</strong> as altas condecorações que o<br />

Tenente Fontes exibia no peito e, sabia, obviamente, que, nem uma pala-<br />

vra poderia dirigir ao tenente. Sabia, também, que tais condecorações exi-<br />

giam, sem pestanejar, a obrigatoriedade de tocar a senti<strong>do</strong>.<br />

93


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

Coisa mais insólita e dis<strong>para</strong>tada, pensava. Era apenas o tenente<br />

Fontes. O “Fontes” que, momentos antes, andava por ali a passear, de<br />

fato de cotim e agora lhe aparece naquele esta<strong>do</strong>.<br />

O dilema era então: se tocasse a senti<strong>do</strong> – coisa mais insólita –<br />

Interrompia a cerimónia. Não tocar a senti<strong>do</strong>, perante tais decorações, era<br />

algo inconcebível.<br />

Por sua vez o tenente, com um desplante inacreditável, nem por um<br />

momento se detinha. Pensou: “Bom, eu tenho que tocar a senti<strong>do</strong>, custe a<br />

quem custar”.<br />

Como é óbvio, o inespera<strong>do</strong> toque a senti<strong>do</strong>, deixou to<strong>do</strong> o Quartel<br />

em suspenso.<br />

Uma Parada repleta de gente, vozes de coman<strong>do</strong> ecoan<strong>do</strong> no espa-<br />

ço, tu<strong>do</strong> isso, bruscamente interrompi<strong>do</strong>.<br />

É fácil imaginar toda gente, estática, como os marinheiros perfila<strong>do</strong>s<br />

na Parada, ou então levantada, circunspecta, a olhar <strong>para</strong> um só ponto,<br />

perguntan<strong>do</strong>-se o que estava a acontecer.<br />

Intrigante foi, depois daquele compasso de espera, nomeadamente<br />

<strong>para</strong> as personalidades instaladas na tribuna, enquanto o tenente Fontes,<br />

percorria, vagarosamente e semi-encoberto pelos arbustos, o “infindável”<br />

corre<strong>do</strong>r, até chegar, com a sua cara de lata, em frente da Tribuna repleta<br />

de personalidades.<br />

Boquiabertos, olhavam <strong>para</strong> ele, limitan<strong>do</strong>-se a levantar-se e abrir<br />

caminho, até ao lugar a que o condecora<strong>do</strong> tinha direito. Isto é, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

Senhor Ministro da <strong>Marinha</strong>.<br />

Este senhor tenente Fontes, homem i<strong>do</strong>so, bochechas maceradas e<br />

descaídas, comportamento rude, sempre apruma<strong>do</strong>, robusto, ainda porta-<br />

<strong>do</strong>r de uma saúde de ferro, era uma criatura mesmo muito especial. Fosse<br />

94


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

pelo que fosse, o velho tenente “vassoureiro” 11 , era simplesmente tolera-<br />

<strong>do</strong>. Provavelmente esse seu “estatuto” poderá, talvez, ter a ver com feitos<br />

exara<strong>do</strong>s no seu curriculum, e daí ser superiormente considera<strong>do</strong> como<br />

excepção.<br />

11 É um oficial que inicia a carreira como grumete ou aluno sem passar pelo curso superior da<br />

Escola Naval.<br />

95


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

DESPEDIDA<br />

Quatro anos de <strong>Marinha</strong> e o <strong>Zé</strong> regressou, naturalmente, à vida civil.<br />

Ainda hoje considera que a <strong>Marinha</strong> foi um <strong>do</strong>s maiores bens que aconte-<br />

ceram na sua vida.<br />

Sem que tu<strong>do</strong> tenha, necessariamente, uma explicação, a <strong>Marinha</strong><br />

constituiu, <strong>para</strong> o <strong>Zé</strong>, desde criança, um vislumbre de esperança no meio<br />

de reais atribulações próprias <strong>do</strong> tempo e da uma Região, onde deambu-<br />

lou – pode dizer-se –, até aos 20 anos de idade.<br />

A <strong>Marinha</strong> foi o veículo que o levou a percorrer um caminho, até cer-<br />

to ponto inespera<strong>do</strong>; um sonho apenas, no qual contactou com gente das<br />

mais variadas origens e formas de estar na vida. Foi a partir da <strong>Marinha</strong><br />

que se lhe proporcionou a oportunidade de estudar algo, adquirir conheci-<br />

mentos que o haveriam de fazer vingar no futuro.<br />

Com a <strong>Marinha</strong> viajou até lugares que jamais teria visita<strong>do</strong>, ainda<br />

mais em ambiente de alegria e camaradagem de tanta malta como ele – a<br />

marujada em geral –, o extraordinário contacto que teve com portugueses<br />

em terras distantes, e finalmente, talvez a este “bem” se possa chamar de<br />

providencial que é A DESCOBERTA DE AVEIRO.<br />

E assim volta o <strong>Zé</strong> quase ao princípio desta longa história; isto é, foi<br />

através das linhas telefónicas desde o P.B.X da Aviação Naval Almirante<br />

Gago Coutinho, em S. Jacinto – onde o <strong>Zé</strong> foi coloca<strong>do</strong> pelo Almirante<br />

Francisco Ferrer Caeiro – e a Rede Telefónica de Aveiro, que o <strong>Zé</strong> encon-<br />

trou a namorada com quem casou. Daí uma família relativamente grande e<br />

feliz.<br />

96


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

FIM<br />

97


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

ANOTAÇÕES DIVERSAS<br />

98


Há Gente no Convés<br />

VELHA SAGRES<br />

A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

No convés<br />

andam mil pés<br />

Na manobra, na labuta.<br />

Sempre alerta,<br />

Sempre à escuta,<br />

Noite e dia, a marinhar.<br />

Pois se ventos os açoitam,<br />

De bombor<strong>do</strong>,<br />

De estibor<strong>do</strong>,<br />

Da proa à popa,<br />

Pode-se ouvir apitar:<br />

“Homem ao mar”!<br />

Relíquia da velha guarda;<br />

Teu pendão<br />

Foi ilusão,<br />

Dos meus vinte anos de idade<br />

Te recor<strong>do</strong> <strong>do</strong>utra Era<br />

Qual fugidia quimera<br />

Carregada de lembranças.<br />

Daqui te man<strong>do</strong> um reca<strong>do</strong><br />

Cinquenta anos passa<strong>do</strong>s!<br />

Sabe aí, que esses céus<br />

Que me viram nos teus mastros, pendura<strong>do</strong>,<br />

Eles me deram,<br />

Me trouxeram<br />

Um futuro bem fada<strong>do</strong>.<br />

99


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

100


Índice<br />

A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 5<br />

<strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong> ................................................................................................................. 7<br />

Alguns apontamentos Históricos da Aviação Naval ....................................................................... 14<br />

MARAVILHOSO CENÁRIO DA NATUREZA ................................................................................. 19<br />

Escolha <strong>do</strong>s Recém-chega<strong>do</strong>s ....................................................................................................... 20<br />

Outra ocorrência ......................................................................................................................... 24<br />

A malandrice dum Rancheiro ...................................................................................................... 26<br />

O 7018/46 e a Metralha<strong>do</strong>ra Enferrujada ................................................................................... 28<br />

O ZÉ NO CORPO DE MARINHEIROS DA ARMADA .................................................................... 29<br />

UM GESTO DE CONFIANÇA EXTREMA .................................................................................. 29<br />

Centro da Aviação Naval em Pedrouços ....................................................................................... 31<br />

N.R.P. AVISO DE 2ª CLASSE JOAO DE LISBOA ........................................................................ 33<br />

O NAVIO ESCOLA SAGRES ......................................................................................................... 36<br />

NAVIO ESCOLA SAGRES (II) ....................................................................................................... 39<br />

Viagem à América <strong>do</strong> Norte 1948 .................................................................................................. 41<br />

O ZÉ RAMA .................................................................................................................................... 43<br />

A propósito de umas “meias” <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> Rama. ................................................................................ 44<br />

O PERCURSO DA SAGRES ......................................................................................................... 48<br />

ILHA DE PORTO SANTO ........................................................................................................... 48<br />

ILHA DA MADEIRA (em 1948) ................................................................................................... 49<br />

SÃO VICENTE, CABO VERDE .................................................................................................. 50<br />

MAR DOS SARGAÇOS, BERMUDAS ....................................................................................... 51<br />

A CHEGADA A BOSTON ............................................................................................................... 52<br />

ESTADIA NA AMÉRICA DO NORTE ............................................................................................. 57<br />

Um baile célebre ............................................................................................................................. 60<br />

EPISÓDIOS VÁRIOS A CAMINHO DE LISBOA ............................................................................ 63<br />

Sagres ......................................................................................................................................... 64<br />

Pintura <strong>do</strong> Navio ............................................................................................................................. 65<br />

CABO ZÉ ........................................................................................................................................ 72<br />

Vós marujos da Sagres, que passais ............................................................................................. 74<br />

“O CAPITÃO DA SAGRES” ............................................................................................................ 75<br />

CERTOS CENÁRIOS ..................................................................................................................... 79<br />

Sortilégio à volta de umas meias de vidro .................................................................................. 81<br />

REGRESSO A VILA FRANCA DE XIRA ........................................................................................ 87<br />

VILA FRANCA DE XIRA NAQUELE TEMPO ................................................................................ 88<br />

O SENHOR TENENTE FONTES ................................................................................................... 90<br />

DESPEDIDA ................................................................................................................................... 96<br />

ANOTAÇÕES DIVERSAS .............................................................................................................. 98<br />

Há Gente no Convés .................................................................................................................. 99<br />

VELHA SAGRES ........................................................................................................................ 99<br />

101


A <strong>Ida</strong> <strong>do</strong> <strong>Zé</strong> <strong>para</strong> a <strong>Marinha</strong><br />

102

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