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O ENVELHECIMENTO COMO CAESURA

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O <strong>ENVELHECIMENTO</strong> <strong>COMO</strong> <strong>CAESURA</strong><br />

UM PONTO DE VISTA PSICANALÍTICO<br />

Fernanda Marinho<br />

Ney Marinho<br />

(Mar/2012)<br />

1 – UMA CITAÇÃO DE FREUD E O CONCEITO DE BION DE <strong>CAESURA</strong><br />

Apresentaremos um ponto de vista psicanalítico sobre o envelhecimento<br />

a partir de algumas idéias de Freud e o seu desenvolvimento por W.R.Bion.<br />

Descreveremos um fragmento de uma sessão psicanalítica de um homem que<br />

buscou análise aos sessenta anos devido a transtornos psicossomáticos.<br />

Ofereceremos nossa compreensão do tema a partir de duas citações, de<br />

Ésquilo e de Shakespeare.<br />

Durante a terrível desilusão da Primeira Guerra Mundial Freud escreveu<br />

um de seus mais belos trabalhos: Reflexões para os Tempos de Guerra e<br />

Morte (1915). Neste texto discute a atitude do homem em relação à morte.<br />

Mostra nossa contraditória atitude: se por um lado aceitamos a morte como um<br />

necessário desfecho da vida, por outro, comportamo-nos como se tal não<br />

ocorresse.<br />

“De fato, é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos<br />

fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores. Por<br />

isso, a escola psicanalítica pôde aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê em<br />

sua própria morte, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira, que no inconsciente<br />

cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade.” (Freud, S. S.E. vol. XIV:<br />

327)<br />

O preço que pagamos por esta atitude de ignorar nossa morte pessoal é<br />

tornar a vida desinteressante.<br />

Tomemos agora um outro conceito freudiano que julgamos útil para a<br />

compreensão do processo de envelhecimento: a noção de ansiedade como um<br />

sinal de alerta. De acordo com Freud (1926) a ansiedade seria desencadeada<br />

pelo sentimento de um perigo iminente. Tal ameaça seria fundamentalmente a<br />

possibilidade da perda de algum objeto de proteção e afeição, produzindo uma<br />

vivência de desamparo. O modelo do estado de ansiedade seria o nascimento<br />

1


que é a primeira grande separação experimentada por todo ser humano.<br />

Interessante registrar a observação de manifestações respiratórias e<br />

descrições de extremo abandono nos estados de ansiedade em qualquer idade<br />

que remetem à clássica cena do nascimento. Este é o estado do paciente cuja<br />

sessão apresentaremos.<br />

Não por acaso, é em seu texto Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926),<br />

no qual Freud discute a noção de ansiedade que encontramos o importante<br />

enunciado: “citação de Freud sobre caesura”. O próprio termo – caesura – com<br />

sua grafia em latim e referindo-se a uma pausa poética sugere uma idéia tanto<br />

de continuidade quanto de descontinuidade. A partir disto, Bion ([1975] 1977)<br />

propõe o estudo de experiências de vida em que tal característica se mostre<br />

mais relevante. Tais experiências seriam: adolescência, graduação, início de<br />

uma vida profissional, casamento e, o mais importante no momento, o<br />

processo de envelhecimento. A perspectiva da morte pessoal que no<br />

envelhecimento não pode ser ignorada como antes, provoca ansiedade e<br />

evoca situações de ameaças semelhantes àquelas experimentadas no<br />

passado, algumas vezes mesmo um passado remoto.<br />

Vamos observar um caso clínico que poderá mais claremente ilustrar o<br />

que desejamos discutir.<br />

2 – A EXPERIÊNCIA CLÍNICA<br />

Paciente procurou o analista após ter tido alta há vários anos de um<br />

longo e bem sucedido tratamento psicanalítico. Desta vez sua procura ocorreu<br />

por apresentar um quadro alérgico – rinite e laringite – que lhe despertava<br />

muita ansiedade, devido ao acúmulo de secreção nas vias respiratórias. Tinha<br />

crises que o faziam temer morrer sufocado, não conseguir respirar, em<br />

consequência evitava dormir com receio de tais crises ocorrerem durante o<br />

sono (sic). Estava sendo acompanhado por um especialista muito qualificado.<br />

Nesta época, tinha completado sessenta anos e estava tomando as<br />

providências para aposentar-se, coisa que ocorreu logo após o reinício da<br />

análise. O paciente não correlacionava seu estado físico com a perspectiva da<br />

aposentadoria. O resumo de uma de suas sessões de análise poderá dar uma<br />

idéia mais viva de como vivia aquele momento de sua vida.<br />

Paciente conta que teve um sonho: entrava num quarto de hospital e via<br />

sua cunhada, em pé e bem vestida, ao lado da cama. Ela dizia que estava<br />

2


muito bem. O paciente se surpreende, pois, sua cunhada falecera há cerca de<br />

um mês. Na outra extremidade da cama, estava também de pé, a mulher do<br />

paciente (irmã da falecida) que chorava muito.<br />

A sessão transcorre, o paciente falando sobre o imprevisível da vida, o<br />

acidente com o avião de uma grande companhia aérea, as possíveis causas,<br />

devido a um excesso de tecnologia, em suma, a morte quando tudo parece<br />

bem. Esta é a interpretação que faço, relacionando-a com o sonho.<br />

O paciente concorda e se recorda de um episódio, no qual sua falecida<br />

cunhada tocara fogo no carro do marido e este não tomou qualquer<br />

providência, exceto a de cuidar dos danos materiais. Acrescenta que o<br />

cunhado é pessoa bruta e incapaz de reconhecer a doença da mulher que era<br />

esquizofrênica. No referido episódio, foi a mulher do paciente quem – notificada<br />

por alguém – se dirigiu à casa da irmã e providenciou sua internação, uma vez<br />

que a mesma se encontrava agitada e fora da realidade. Comenta que sua<br />

mulher gostava muito da irmã que era pessoa muito boa, de bom<br />

relacionamento, quando não estava em períodos de crise psicótica. Falo com o<br />

paciente que da mesma forma que a morte pode não aparecer na fisionomia<br />

dos vivos, assim pode ocorrer com a loucura, segundo a sua estória, com a<br />

morte mental. Lembro-lhe que talvez este seja o imprevisível de que falava,<br />

além da morte trágica. Acrescento que tudo isto me fez lembrar o filme que<br />

contara no qual o personagem principal nascera com as marcas da morte –<br />

nascera velho – e morrera na volta ao estado fetal (trata-se da Curiosa estória<br />

de Benjamin Button). O paciente acrescenta que sua cunhada parecia um bebê<br />

ao final da vida. Continuo a fala do paciente, dizendo que sua mulher no sonho,<br />

me parece, uma parte sua capaz de ver e emocionar-se com a “morte na vida”<br />

e que ele espera que eu o ajude a lidar com esta compreensão que desperta<br />

sentimentos tão fortes e dolorosos, tanto a percepção da morte física como a<br />

mental, a loucura.<br />

O que pretendemos mostrar com este breve fragmento de uma sessão<br />

de psicanálise é a questão do reconhecimento da morte, como da loucura,<br />

como algo sempre presente na vida. Portanto, uma manifestação de caesura,<br />

isto é, continuidade e descontinuidade, sanidade e loucura, vida e morte.<br />

Lembramos que não se trata de uma aproximação teórica, pois, o próprio<br />

3


paciente traz, tanto no sonho, como na recordação da cunhada e suas crises<br />

psicóticas, esta aproximação: morte e loucura, vida e sanidade.<br />

Enfatizamos a importância dos sintomas terem surgido no curso do<br />

processo de aposentadoria. Situação que traz intensas vivências de perda e<br />

incapacidade ligadas à noção de finitude e, em última instância, de morte. Da<br />

mesma forma, os sintomas respiratatórios nos remetem ao trauma do<br />

nascimento, momento de transição entre a oxigenação por via sanguinea –<br />

meio líquido - e a oxigenação por meio gasoso, a vida extra uterina.<br />

3 – PROMETEU E LEAR. ÉSQUILO E SHAKESPEARE<br />

“Coro: Você foi além em suas transgressões do que nos contou?<br />

Prometeu: Livrei os mortais de saber sua maldição 1 .<br />

Coro: Que cura lhes deu para este mal?<br />

Prometeu: Coloquei neles esperanças vãs.<br />

Coro: Esta foi uma grande dádiva que deu aos homens. (Aeschylus.<br />

Prometheus Bound, v. 249-254)<br />

“Bobo: Se tu fosses meu Bobo, titio, ias apanhar muito pra aprender a<br />

não ficar velho antes do tempo.<br />

Lear: Como assim?<br />

Bobo: Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio.<br />

Lear: Não permita que eu fique louco, oh, louco não, céu bendito!<br />

Conserva a minha razão; eu não quero ficar louco!” (Shakespeare, W.<br />

Rei Lear, Cena V, Ato I)<br />

Necessitamos do auxílio de nossos poetas para pensar a verdadeira<br />

aporia que Freud afirma em Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte: em<br />

nosso inconsciente nos consideramos imortais, mas precisamos reconhecer<br />

nossa morte pessoal para que a vida possa adquirir significado. Como lidar<br />

com este paradoxo?<br />

Mas, o que os poetas querem dizer com a necessidade de se tornar<br />

sábio antes de velho? Entendemos que faz parte da sabedoria o<br />

reconhecimento da morte pessoal ao mesmo tempo que o seu esquecimento.<br />

Em outros termos: se pudemos reconhecer nossa morte como parte de nossa<br />

vida, esta poderá ser devidamente valorizada e usufruida sem dar-se o fim<br />

antes de seu término.<br />

1 Esta maldição consistia no conhecimento da data própria morte.<br />

4


“Prometeu é sábio e partilha da sabedoria de sua mãe Themis, ou<br />

Terra, e em consequência conhecedor do destino. Isto não é razão. É<br />

conhecimento absoluto. O conhecimento da dia da morte de um homem<br />

partilha desta qualidade, pois está na província do destino. Assim, o<br />

homem no início (dos tempos) tinha um infinitésima partícula da mesma<br />

espécie de conhecimento de que Prometeu gozava em grande medida.<br />

Como animais de hoje em dia parecem ter uma curiosa intuição do<br />

advento de suas mortes e lentamente caminham para longe<br />

escondendo-se para encará-la; da mesma forma o homem primitivo<br />

tinha este conhecimento. E Prometeu fez com que eles cessassem de<br />

prever o dia de suas mortes. Pois dádiva da razão, a suprema aliada da<br />

luta deles contra a natureza, fê-los lutar contra a morte com<br />

“esperanças cegas”, mesmo quanto o dia de sua morte havia chegado.”<br />

(David Grene em sua Introdução a Aeschylus’ Prometheus Bound)<br />

Talvez, a melhor compreensão para “esperanças vãs” seja: FÉ (Bion,<br />

[1970] 2006). Do mesmo modo que a fé só tem lugar onde não há certezas; a<br />

confiança, a segurança que viver o dia a dia de uma forma criativa nos exige só<br />

se dá onde não há garantias. A garantia não comporta confiança, tolhe a<br />

curiosidade, mola propulsora da criatividade humana. O reconhecimento da<br />

finitude, da transitoriedade e, ao mesmo tempo, da imprevisibilidade de nossas<br />

existências, dá lugar, a qualquer tempo, a vivências de abertura para o<br />

possível, dimensão livre do homem.<br />

RESUMO<br />

Os autores apresentam um ponto de vista psicanalítico sobre o envelhecimento<br />

a partir de idéias de Freud e Bion, e de sua própria experiência clínica.<br />

Estudam a natureza da ansiedade no processo de envelhecimento, baseados<br />

no desenvolvimento do conceito de Freud de ansiedade e no de Bion de<br />

caesura (continuidade/descontinuidade). Discutem uma sessão analítica e<br />

sugerem a reflexão sobre o reconhecimento da morte pessoal como fator na<br />

elaboração do envelhecimento. Utilizam referências de Ésquilo (Prometeu<br />

Acorrentado) e Shakespeare (O Rei Lear) sobre o tema para desenvolver uma<br />

conjectura a respeito do papel da Fé neste processo. PALAVRAS CHAVE<br />

5


<strong>ENVELHECIMENTO</strong>. <strong>CAESURA</strong>. FÉ. FREUD. BION. ÉSQUILO.<br />

SHAKESPEARE.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

1 – AESCHYLUS II. Prometheus Bound. Edited by David Grene and Richard<br />

Lattimore. New York: Washington Square Press, 1973.<br />

2 – BION, W.R. Atenção e Interpretação. (1970) Rio de Janeiro: Imago Editora,<br />

2006. (Trad. Paulo Cesar Sandler).<br />

____. Caesura. (1975) In Two Papers: the Grid and Caesura. Rio de Janeiro:<br />

Imago Editora, 1977.<br />

3 – FREUD, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte. S.E. XIV (1915)<br />

____. Inibições, Sintomas e Ansiedade. S.E. XX (1926 [1925])<br />

4 – SHAKESPEARE, W. O Rei Lear. Rio de Janeiro: L&PM Pocket, 2011.<br />

(Trad. Millôr Fernandes).<br />

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