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o modulador de le corbusier - Fmu

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O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Ennio Possebon<br />

68<br />

68<br />

O MODULOR DE LE CORBUSIER:<br />

FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA NA ARQUITETURA<br />

R A<br />

ESUMO<br />

BSTRACT<br />

Le Corbusier é um dos raros<br />

arquitetos, não só do século XX,<br />

mas <strong>de</strong> toda a História da Arquitetura,<br />

que propôs uma teoria<br />

<strong>de</strong> proporções e forneceu<br />

<strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> como foram aplicadas<br />

em seus projetos. Na sua<br />

obra transparece, além do<br />

olhar atento para a criação <strong>de</strong><br />

uma arquitetura consoante com<br />

as transformações sociais,<br />

trazidas pelas tecnologias<br />

<strong>de</strong>spontantes no século XX, um<br />

pensamento lógico, racional e<br />

disciplinador que encontra sua<br />

p<strong>le</strong>na expressão, em termos <strong>de</strong><br />

proporções, no seu sistema <strong>de</strong>nominado<br />

“Modulor”.<br />

Palavras-chave: arquitetura,<br />

comodulação.<br />

Ennio Possebon *<br />

LE CORBISIER’S<br />

MODULATOR: FORM,<br />

PROPORTION AND<br />

MEASURE IN<br />

ARCHITECTURE<br />

Le Corbusier is one of the few<br />

architects, not only in the 20th<br />

century, but in the who<strong>le</strong> history<br />

of Architecture, to propose a<br />

theory of proportions and to<br />

make <strong>de</strong>scriptions on how they<br />

were applied to his projects. His<br />

work shows, besi<strong>de</strong>s the attentive<br />

look to the creation of an<br />

architecture consonant with social<br />

changes brought by the 20th<br />

century’s emerging technologies,<br />

a logical, rational, and disciplinary<br />

thinking that finds its full<br />

expression, in terms of<br />

proportions, in his system named<br />

“Modulor”.<br />

Keywords: architecture,<br />

comodulation.<br />

* Ennio Possebon é graduado e mestre pela Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Arquitetura e Urbanismo da USP. Trabalha com arquitetura, <strong>de</strong>sign<br />

gráfico e artes visuais. Leciona <strong>de</strong>senho arquitetônico no curso <strong>de</strong> Arquitetura e Urbanismo do UniFIAM-FAAM e <strong>de</strong>senho <strong>de</strong><br />

observação e geometria no curso <strong>de</strong> Educação Artística <strong>de</strong>ssa Instituição.<br />

R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004


O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Ennio Possebon<br />

Le Corbusier é um dos raros<br />

arquitetos, não só do<br />

século XX, mas <strong>de</strong> toda<br />

a História da Arquitetura,<br />

que propôs uma teoria <strong>de</strong> proporções<br />

e forneceu <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> como<br />

foram aplicadas em seus projetos.<br />

Mais ainda, preten<strong>de</strong>u e propôs que<br />

sua teoria fosse utilizada<br />

por outros. Seus<br />

<strong>de</strong>senhos e projetos<br />

são, por esta razão,<br />

um fértil terreno para<br />

o estudo da Geometria<br />

na sua conexão com a<br />

Arquitetura.<br />

O MÓDULO<br />

DE OURO<br />

Segundo John<br />

Summerson, “[...] nos<br />

primeiros anos da Segunda<br />

Guerra Mundial<br />

Le Corbusier criou<br />

o sistema que se chamou<br />

‘Modulor’.<br />

Modulor é uma palavra<br />

composta a partir<br />

<strong>de</strong> modu<strong>le</strong>, ou seja, unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> medida,<br />

e section d´or ou secção <strong>de</strong><br />

ouro: a divisão <strong>de</strong> uma reta <strong>de</strong> tal<br />

modo que o segmento menor está<br />

para o maior assim como o segmento<br />

maior está para o todo. O<br />

Modulor é um sistema <strong>de</strong> proporcionamento<br />

do espaço arquitetônico<br />

baseado neste critério geométrico, e<br />

oferece toda uma gama <strong>de</strong> dimen-<br />

R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004<br />

sões. As dimensões medianas estão<br />

relacionadas com o corpo humano;<br />

as dimensões extremas aplicam-se,<br />

por um lado, aos <strong>de</strong>talhes diminutos<br />

dos instrumentos <strong>de</strong> precisão e,<br />

por outro lado, à escala dos gran<strong>de</strong>s<br />

projetos <strong>de</strong> planejamento.” 2<br />

Na obra <strong>de</strong> Le Corbusier,<br />

transparece, além do olhar atento<br />

para a criação <strong>de</strong> uma arquitetura<br />

consoante com as transformações<br />

sociais, trazidas pelas tecnologias<br />

<strong>de</strong>spontantes no século XX, um<br />

pensamento lógico, racional e<br />

disciplinador, ao buscar um traçado<br />

orientador do projeto, baseado na<br />

proporção áurea. E, aí, e<strong>le</strong> não é<br />

2 SUMMERSON, John. in A linguagem clássica da Arquitetura, p.116.<br />

3 LE CORBUSIER, in Modulor1, p. 69. (Trad. nossa.)<br />

“Estais no país dos números.<br />

Deixai-vos permanecer ne<strong>le</strong>, maravilhados diante <strong>de</strong><br />

tanta luz intensamente espalhada.”<br />

(Le Corbusier)<br />

menos clássico que Palladio ou<br />

Alberti, ao retomar um tipo <strong>de</strong> contro<strong>le</strong><br />

<strong>de</strong> projeto tão essencialmente<br />

pertencente ‘a Renascença.<br />

A PORTA DOS MILAGRES<br />

DE LE CORBUSIER<br />

“A matemática<br />

é o magistral edifício<br />

imaginado pelo<br />

homem para compreen<strong>de</strong>r<br />

o Universo.<br />

Nela encontrase<br />

o absoluto e o infinito,<br />

o apreensível<br />

e o não-apreensível,<br />

e está ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong><br />

altos muros diante<br />

dos quais po<strong>de</strong>-se<br />

passar e <strong>de</strong> novo<br />

passar sem proveito<br />

nenhum. Ne<strong>le</strong>s às<br />

vezes abre-se uma<br />

porta, entra-se e aí<br />

se está no lugar<br />

on<strong>de</strong> se encontram<br />

os <strong>de</strong>uses e as chaves<br />

dos gran<strong>de</strong>s sistemas.<br />

Estas portas são as portas<br />

dos milagres, e, franqueada uma<br />

<strong>de</strong>las, já não é o homem quem atua,<br />

porém o Universo que se manifesta<br />

e diante <strong>de</strong><strong>le</strong> <strong>de</strong>senrolam-se os prodigiosos<br />

tecidos das combinações<br />

sem limites. Estais no país dos números.<br />

Deixai-vos permanecer ne<strong>le</strong>,<br />

maravilhados diante <strong>de</strong> tanta luz intensamente<br />

espalhada.” 3<br />

69<br />

69


O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Ennio Possebon<br />

ORIGENS E INTENÇÕES<br />

DO MODULOR<br />

O Modulor1 tinha como subtítulo<br />

“Ensaio sobre uma medida harmônica<br />

à escala humana e aplicável universalmente<br />

à Arquitetura e à Mecânica”.<br />

Sem dúvida, uma grandiloqüente<br />

e pretensiosa aspiração ...<br />

Acompanhar o fio condutor do<br />

seu pensamento ao longo do texto,<br />

tão rico em idéias mas nem sempre<br />

claro e organizado, às vezes até perturbado<br />

por excesso <strong>de</strong> dados, relatos<br />

burocráticos, citações enfadonhas<br />

e até mesmo com algumas imprecisões<br />

geométricas, <strong>de</strong> certa maneira<br />

<strong>de</strong>svenda parte do que foram<br />

seu gran<strong>de</strong> esforço, seus i<strong>de</strong>ais, seus<br />

sonhos, suas conquistas e seu <strong>le</strong>gado:<br />

o que não é pouca coisa. Acompanhemos<br />

alguns fatos narrados nos<br />

livros Modulor 1 e 2.<br />

Pertencente a uma família <strong>de</strong><br />

músicos, embora sem sê-lo, Le<br />

Corbusier sabia muito bem que a<br />

música, assim como a arquitetura, se<br />

<strong>de</strong>senvolvem no espaço e no tempo<br />

e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da medida. Em algumas<br />

consi<strong>de</strong>rações sobre a música e<strong>le</strong> observou<br />

como, historicamente, o<br />

continuum sonoro foi fragmentado,<br />

dividido, mas tornado passível <strong>de</strong> ser<br />

compreendido por meio <strong>de</strong> proporções<br />

estabe<strong>le</strong>cidas entre suas subdivisões.<br />

Com isso teve sua transmissão<br />

possível, através do tempo e do<br />

espaço, por meio da escrita musical,<br />

que finalmente veio a ser codificada<br />

no Oci<strong>de</strong>nte por J. S. Bach, em sua<br />

gama temperada. Este utensílio aperfeiçoado<br />

trouxe imenso impulso à<br />

70<br />

70<br />

composição e pô<strong>de</strong> exprimir o pensamento<br />

musical <strong>de</strong> Mozart,<br />

Beethoven, Debussy, Stravinsky,<br />

Satie, Ravel ... até os dias atuais.<br />

E na busca <strong>de</strong> uma analogia, Le<br />

Corbusier se coloca a questão: um<br />

utensílio correlato, que tratasse <strong>de</strong><br />

medidas visuais, geométricas, não<br />

seria <strong>de</strong>sejável também no âmbito<br />

da construção, não facilitaria também<br />

sua “escrita” e traria um enorme<br />

benefício à composição arquitetônica?<br />

Enten<strong>de</strong> que sim, e assim<br />

conclui o seu raciocínio:<br />

Numa socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna mecanizada,<br />

cujas ferramentas se aperfeiçoam<br />

a cada dia para proporcionar<br />

recursos <strong>de</strong> bem-estar, a aparição<br />

<strong>de</strong> uma gama <strong>de</strong> medidas visuais<br />

é admissível, posto que o primeiro<br />

efeito <strong>de</strong>ste utensílio será unir,<br />

enlaçar, harmonizar o trabalho dos<br />

homens, precisamente <strong>de</strong>sunido<br />

neste momento — até mesmo <strong>de</strong>stroçado<br />

— pelo presença <strong>de</strong> dois<br />

sistemas dificilmente conciliáveis: o<br />

sistema dos anglo-saxões e o sistema<br />

métrico <strong>de</strong>cimal. 4<br />

E<strong>le</strong> compreen<strong>de</strong> também que<br />

os partenons, os templos indianos e<br />

as catedrais <strong>de</strong> todos os tempos<br />

sempre foram constituídos segundo<br />

um código e se fundamentaram num<br />

sistema coerente que afirmava uma<br />

unida<strong>de</strong> essencial. E perguntando-se<br />

sobre <strong>de</strong> que instrumentos dispunham,<br />

encontra sempre a resposta<br />

nas medidas baseadas em proporções<br />

humanas: codo, <strong>de</strong>do, po<strong>le</strong>gada,<br />

pé, braço, palmo etc. .<br />

Com esses instrumentos sutis<br />

participando da matemática que<br />

rege o corpo humano, era possível<br />

sustentar, também na construção, a<br />

mesma harmonia. E como e<strong>le</strong>s estavam<br />

circunscritos a cada cultura<br />

específica, sem ter <strong>de</strong> cruzar distâncias<br />

pelos mares, eram aptos e suficientes<br />

para cumprir seus <strong>de</strong>sígnios,<br />

já que também não havia por que<br />

reclamar <strong>de</strong>ssas medidas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

seus âmbitos operacionais.<br />

Com a Revolução Francesa,<br />

diz Le Corbusier, o pensamento<br />

laico enten<strong>de</strong>u que podia conquistar<br />

o mundo. E além <strong>de</strong> colocar em<br />

jogo razões profundamente humanistas,<br />

apresentou ainda muitas promessas:<br />

ciência e cálculo empreen<strong>de</strong>ram<br />

caminhos sem limites. No<br />

rastro <strong>de</strong>ssa revolução também foram<br />

<strong>de</strong>stronados pés e po<strong>le</strong>gadas,<br />

juntamente com seus complicados<br />

cálculos, e então substituídos por<br />

uma medida <strong>de</strong>spersonalizada e abstrata,<br />

o metro (a décima milionésima<br />

parte do quadrante do meridiano<br />

terrestre), 5 adotado imediatamente<br />

por socieda<strong>de</strong>s mais ávidas <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>s,<br />

porém ainda em gran<strong>de</strong><br />

parte rejeitado em favor dos tradicionais<br />

pés e po<strong>le</strong>gadas. Uma tensão<br />

se estabe<strong>le</strong>ceu entre a nova medida<br />

<strong>de</strong> cálculo mais simp<strong>le</strong>s e a tradicional,<br />

mais comp<strong>le</strong>xa, porém<br />

mais a<strong>de</strong>quada à escala humana.<br />

Le Corbusier enten<strong>de</strong> que existe<br />

uma carência <strong>de</strong> medida ou sistema<br />

proporcionalizador que satisfaça,<br />

sendo válidos para qualquer<br />

parte do mundo estes quesitos:<br />

racionalida<strong>de</strong>, simplicida<strong>de</strong> na or<strong>de</strong>nação<br />

do cálculo e a<strong>de</strong>quação à es-<br />

4 LE CORBUSIER, in Modulor 1, p. 17. (Trad. nossa.)<br />

5 Na atualida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>finido como a distância correspon<strong>de</strong>nte a 1.553.164, 03 longitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> onda da banda vermelha do cádmio<br />

no espectro a ar seco, a 15º <strong>de</strong> temperatura e a 760 mm <strong>de</strong> Hg <strong>de</strong> pressão.<br />

R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004


O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Ennio Possebon<br />

cala humana — tanto para a Arquitetura<br />

quanto para a Mecânica. Des<strong>de</strong><br />

o início do século XX e<strong>le</strong> vinha<br />

observando em obras <strong>de</strong> arquitetura<br />

aquilo que chamou <strong>de</strong> “o ângulo<br />

reto dirigindo a composição”. Também<br />

encontraram ressonância ne<strong>le</strong><br />

as palavras <strong>de</strong> Choisy com sua História<br />

da Arquitetura (1902), especialmente<br />

quando trata <strong>de</strong> traçados reguladores<br />

ao explicar a organização<br />

<strong>de</strong> composições arquitetônicas.<br />

Na revista L´ Esprit Nouveau,<br />

junto com outros, Le Corbusier produz<br />

artigos teóricos, base doutrinária<br />

para sua ativida<strong>de</strong> projetual posterior.<br />

“A gran<strong>de</strong> indústria <strong>de</strong>ve<br />

ocupar-se com a edificação e estabe<strong>le</strong>cer<br />

em série os e<strong>le</strong>mentos da<br />

casa. Deve ser criado o estado <strong>de</strong><br />

espírito da série: <strong>de</strong> construir casas<br />

em série, <strong>de</strong> habitar casas em série,<br />

<strong>de</strong> conceber casas em série.” 6 E<br />

aqui a normatização se torna questão<br />

fundamental.<br />

Depois que publica o artigo<br />

“Os traçados reguladores” na L´<br />

Esprit Nouveau, em 1921, Le<br />

Corbusier conhece os livros <strong>de</strong><br />

Matila Ghyka, sobre a proporção áurea,<br />

que lhe confirmam e <strong>de</strong>monstram<br />

matematicamente assuntos que<br />

já o ocupavam. E também em suas<br />

pinturas, experimenta a plasticida<strong>de</strong><br />

sobreposta a uma rigorosa geometria.<br />

Posteriormente, por volta dos<br />

anos 1940, as idéias <strong>de</strong>senvolvidas<br />

por Wittkower a respeito do<br />

Renascimento, da proporção e dos<br />

traçados reguladores <strong>de</strong> projetos<br />

também encontrarão ressonância em<br />

Le Corbusier. Embora tenha expres-<br />

R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004<br />

“Nos anos <strong>de</strong> ocupação da<br />

França durante a Segunda<br />

Guerra Mundial, instituiu-se<br />

o AFNOR, um órgão cuja<br />

função era auxiliar a<br />

reconstrução do país.”<br />

sado algumas críticas à arquitetura<br />

renascentista, por ver nas suas construções,<br />

quando rigorosamente orientadas<br />

pela geometria, e por vezes<br />

segundo comp<strong>le</strong>xas estruturas, a<br />

pressuposição <strong>de</strong> um observador<br />

i<strong>de</strong>al que teria <strong>de</strong> se colocar no centro<br />

da obra e perceber como um<br />

todo, simultaneamente, todos os <strong>de</strong>talhes.<br />

Contra essa interpretação e<strong>le</strong><br />

argumenta, então, que o observador<br />

concreto sempre está <strong>de</strong> pé, tem o<br />

foco <strong>de</strong> visão a mais ou menos 1,60<br />

m <strong>de</strong> altura e está em movimento<br />

pelo espaço, apreen<strong>de</strong>ndo, a cada<br />

vez, e no <strong>de</strong>correr do tempo, as suas<br />

várias perspectivas. Tem percepções<br />

diferenciadas a cada momento e,<br />

enfim, uma estatura que <strong>de</strong>ve ser<br />

sempre consi<strong>de</strong>rada.<br />

Nos anos <strong>de</strong> ocupação da França<br />

durante a Segunda Guerra Mundial,<br />

instituiu-se o AFNOR, um órgão<br />

cuja função era auxiliar a reconstrução<br />

do país. Industriais, engenheiros<br />

e arquitetos foram convocados a<br />

6 In “Casas em série”, L´ Esprit Nouveau, 1921, citado em LE CORBUSIER, Modulor 1, p. 31. (Trad. nossa.)<br />

7 LE CORBUSIER, in Modulor 1, p. 34. (Trad. nossa.)<br />

participar do empreendimento. Le<br />

Corbusier foi um <strong>de</strong><strong>le</strong>s.<br />

“O AFNOR propõe normatizar os<br />

objetos da construção e seu método é<br />

simplista: simp<strong>le</strong>s aritmética aplicada<br />

aos usos e utensílios dos arquitetos,<br />

engenheiros e industriais. Parece-me<br />

arbitrário e pobre. As árvores, por<br />

exemplo, com seu tronco, seus ramos,<br />

suas folhas e nervuras, me afirmam<br />

que as <strong>le</strong>is <strong>de</strong> crescimento e combinação<br />

po<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>vem ser mais ricas e<br />

sutis. Um laço geométrico tem <strong>de</strong> intervir<br />

nestas coisas e sonho instalar<br />

nas obras que mais tar<strong>de</strong> cobrirão o<br />

país, um enredado <strong>de</strong> proporções traçado<br />

sobre o muro ou apoiado ne<strong>le</strong>,<br />

feito com ferros laminados e soldados,<br />

que será a regra da obra, o mo<strong>de</strong>lo<br />

que inicia a série ilimitada das combinações<br />

e das proporções. O pedreiro,<br />

o carpinteiro e o serralheiro irão aí<br />

escolher as medidas para seus trabalhos,<br />

os quais, diversos e diferenciados,<br />

serão testemunhos da harmonia.<br />

Tal é o meu sonho”. 7<br />

71<br />

71


O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Ennio Possebon<br />

TENTATIVA E ERRO NA<br />

INVENÇÃO DO MODULOR<br />

Em 1943, Le Corbusier propõe<br />

a seu assistente Hanning uma tarefa:<br />

“Tome um homem com o braço<br />

<strong>le</strong>vantado com 2,20 m <strong>de</strong> altura,<br />

inscreva-o em dois quadrados<br />

superpostos <strong>de</strong> 1,10 m, coloque-o a<br />

cavalo sobre os dois quadrados e<br />

um terceiro quadrado resultante lhe<br />

dará uma solução. O ‘lugar do ângulo<br />

reto’ <strong>de</strong>ve po<strong>de</strong>r ajudá-lo a colocar<br />

o terceiro quadrado. Com este<br />

enredado, regido por um homem<br />

instalado no seu interior, estou seguro<br />

que chegará a uma série <strong>de</strong><br />

medidas que po<strong>de</strong>rão colocar <strong>de</strong><br />

acordo a estatura humana (o braço<br />

<strong>le</strong>vantado) e a Matemática.” 8<br />

Essa indicação, um tanto enigmática<br />

quando meramente lida, entretanto,<br />

continha o germe do que<br />

viria a ser claramente <strong>de</strong>senvolvido<br />

no traçado final do modulor. Era<br />

ainda uma primeira intuição.<br />

Mas daí surgiu o primeiro traçado,<br />

em 25 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1943,<br />

que sofreria uma retificação realizada<br />

por Elisa Maillard, três meses<br />

<strong>de</strong>pois, em 26 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />

1943. Ambos os traçados têm ainda<br />

incoerências e incorreções geométricas,<br />

que, embora não interfiram<br />

totalmente na praticida<strong>de</strong> e na<br />

aplicabilida<strong>de</strong> da idéia, serão revistos<br />

posteriormente, e mediante várias<br />

tentativas e aproximações, progredirão<br />

até resultar num traçado<br />

rigoroso e preciso em todos os sentidos.<br />

O traçado <strong>de</strong>finitivo contou<br />

com a colaboração <strong>de</strong> dois jovens,<br />

8 I<strong>de</strong>m, op. cit., p. 35. (Trad. nossa.)<br />

9 LE CORBUSIER, in Modulor 1, p. 52. (Trad. nossa.)<br />

10 I<strong>de</strong>m, op. cit., p. 88. (Trad. nossa.)<br />

72<br />

72<br />

o uruguaio Justino Serralta e o francês<br />

Maisonnier, e foi relatado no<br />

Modulor 2. Esse traçado produz<br />

duas séries <strong>de</strong> valores baseados na<br />

proporção áurea, então chamadas<br />

“série vermelha” e “série azul”, esta<br />

última correspon<strong>de</strong>ndo aos valores<br />

referidos ao duplo quadrado.<br />

Essa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> proporções<br />

antropometricamente combinadas,<br />

recebeu <strong>de</strong>pois a <strong>de</strong>nominação<br />

“modulor” (sugerida a Le Corbusier<br />

por Robert Lancrey-Javal, doutor<br />

em Direito). O modulor, na sua primeira<br />

versão, tinha como base um<br />

homem com 1,75 m (a altura média<br />

<strong>de</strong> um francês), <strong>de</strong> on<strong>de</strong> resultavam<br />

suas medidas principais. Tecnicamente<br />

foi <strong>de</strong>finido da seguinte<br />

maneira: “O modulor é um aparato<br />

<strong>de</strong> medida fundamentado na estatura<br />

humana e na matemática. Um<br />

homem com o braço <strong>le</strong>vantado dá<br />

os pontos <strong>de</strong>terminantes <strong>de</strong> ocupação<br />

do espaço: o pé, o p<strong>le</strong>xo solar,<br />

a cabeça e a ponta dos <strong>de</strong>dos com<br />

o braço <strong>le</strong>vantado — três intervalos<br />

que <strong>de</strong>finem uma série <strong>de</strong><br />

secções áureas <strong>de</strong> Fibonacci; e ainda<br />

por outra parte, a matemática,<br />

que oferece a variação mais imediata<br />

e significativa <strong>de</strong> um valor: o<br />

simp<strong>le</strong>s, o dobro e as duas secções<br />

áureas. “ 9 Em síntese, a unida<strong>de</strong>, a<br />

duplicida<strong>de</strong> e a proporção áurea —<br />

o modulor.<br />

Essa régua <strong>de</strong> proporções combina-se,<br />

assim, através do ponto das<br />

duas séries <strong>de</strong> segmentos áureos,<br />

que e<strong>le</strong> chamou <strong>de</strong> “vermelha” e<br />

“azul”, com a estatura humana nos<br />

seus principais pontos <strong>de</strong> ocupação<br />

do espaço. Num momento posterior,<br />

a altura padrão do homem será<br />

retificada para 6 pés ou 182,88 cm.<br />

(altura média <strong>de</strong> um inglês), valor<br />

esse que irá satisfazer mais, em virtu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> os valores em po<strong>le</strong>gadas<br />

correspon<strong>de</strong>rem com mais proximida<strong>de</strong><br />

à série Fibonacci que se forma<br />

na série azul: 3, 5, 8, 13, 21, 34 ...<br />

Le Corbusier quer contribuir<br />

para o jogo das normatizações necessárias<br />

a uma produção em série,<br />

racional e eficiente, <strong>de</strong> e<strong>le</strong>mentos<br />

pré-fabricados. Mas quer evitar também<br />

o empobrecimento formal produzido<br />

por normatizações efetuadas<br />

pelo mínimo esforço. Quer colocar<br />

no lugar do trivial, do monótono e<br />

sem graça o harmonioso, o diverso,<br />

o e<strong>le</strong>gante. E remover o obstáculo<br />

que resulta da incompatibilida<strong>de</strong> das<br />

medidas centímetro e po<strong>le</strong>gada.<br />

“O modulor rege as longitu<strong>de</strong>s,<br />

as superfícies e os volumes, mantendo<br />

sempre a escala humana, prestando-se<br />

a infinitas combinações e<br />

assegurando a unida<strong>de</strong> na diversida<strong>de</strong>:<br />

benefício inestimável, milagre<br />

dos números.” 10<br />

Quando e<strong>le</strong>ge a proporção áurea<br />

como princípio estruturador do seu<br />

enredado <strong>de</strong> proporções (modulor),<br />

Le Corbusier preocupa-se em acoplar<br />

ne<strong>le</strong> a estatura humana (estabe<strong>le</strong>cida<br />

no padrão médio <strong>de</strong> 1,82 m ou 6 pés)<br />

e preten<strong>de</strong> com isso criar um dispositivo<br />

proporcionador das medidas <strong>de</strong><br />

sua arquitetura. E neste aspecto parece<br />

se colocar em perfeita sintonia<br />

com o conceito vitruviano <strong>de</strong> simetria,<br />

<strong>de</strong> comodulação. A proporção<br />

áurea é o módulo que engendra as<br />

R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004


O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Ennio Possebon<br />

“Durante as conversações no<br />

processo burocrático <strong>de</strong><br />

requerimento e concessão <strong>de</strong><br />

patentes irão <strong>de</strong>spontar as<br />

várias perspectivas comerciais<br />

e direitos possíveis pela sua<br />

utilização, aos quais Le<br />

Corbusier <strong>de</strong>pois renunciará.”<br />

formas da arquitetura, nas partes e no<br />

todo, e <strong>le</strong>va em conta, todo o tempo,<br />

a escala humana. E aqui, como<br />

Zeizyng o fizera no século XIX, 11 reafirma<br />

a insinuação <strong>de</strong> ser ela a<br />

<strong>le</strong>gismetria 12 do crescimento e do <strong>de</strong>senvolvimento<br />

dos seres orgânicos.<br />

O modulor, dito <strong>de</strong> uma outra<br />

maneira ainda, é a combinação <strong>de</strong><br />

duas séries coor<strong>de</strong>nadas <strong>de</strong> segmentos<br />

áureos que estabe<strong>le</strong>cem um sistema<br />

proporcional e relacionado com<br />

a estatura humana — evi<strong>de</strong>ntemente,<br />

com um padrão médio escolhido:<br />

uma gran<strong>de</strong>za referencial que <strong>de</strong>termina<br />

as dimensões e proporções criadas<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ste criterium <strong>de</strong>finido<br />

pela proporção áurea.<br />

Nota-se que existe, <strong>de</strong> certa<br />

maneira, uma obsessão em eliminar<br />

a incompatibilida<strong>de</strong> entre os sistemas<br />

métrico e <strong>de</strong> po<strong>le</strong>gadas. Isso é<br />

resolvido, ou contornado, em parte,<br />

R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004<br />

mas na verda<strong>de</strong> não é o que tem<br />

mais importância. Parece-nos mais<br />

importante a tentativa <strong>de</strong> Le<br />

Corbusier <strong>de</strong> buscar coerência na<br />

disposição das proporções <strong>de</strong> suas<br />

obras, guiando-se por <strong>de</strong>terminações<br />

sugeridas pelos processos<br />

construtivos da Geometria, combinados<br />

com todas as outras disposições<br />

e <strong>de</strong>terminações necessárias ao<br />

dimensionamento da Arquitetura. E<br />

nesse sentido e<strong>le</strong> age, antes <strong>de</strong> tudo,<br />

como um geômetra.<br />

O modulor é patenteado por Le<br />

Corbusier. Durante as conversações<br />

no processo burocrático <strong>de</strong> requerimento<br />

e concessão <strong>de</strong> patentes irão<br />

<strong>de</strong>spontar as várias perspectivas comerciais<br />

e direitos possíveis pela<br />

sua utilização, aos quais Le<br />

Corbusier <strong>de</strong>pois renunciará. Como<br />

um produto a ser lançado no mercado<br />

foi, na época, pensado e composto<br />

das seguintes peças: uma fita<br />

com 89 po<strong>le</strong>gadas contendo as duas<br />

escalas, um quadro numérico com<br />

as medidas das duas séries e um<br />

manual <strong>de</strong> instruções. John Da<strong>le</strong><br />

editou, então, um bo<strong>le</strong>tim mundial<br />

contendo notícias e discussões<br />

entre os usuários do modulor. Isso<br />

foi cogitado em 1947. Houve perspectivas<br />

<strong>de</strong> que empresários americanos<br />

se interessassem pela sua<br />

fabricação e comercialização, mas<br />

o produto modulor nunca chegou<br />

ao mercado.<br />

A partir da edição do livro<br />

Modulor 1 (1948) há uma intensa<br />

troca <strong>de</strong> correspondência entre Le<br />

Corbusier e inúmeros estudiosos e<br />

usuários interessados no modulor.<br />

Correções, retificações e ampliações<br />

da idéia são dirigidas a e<strong>le</strong>, e<br />

interagindo com essas respostas o<br />

projeto se re<strong>de</strong>fine, torna-se mais<br />

preciso e se esclarece. E<strong>le</strong> mesmo,<br />

por iniciativa própria, estará sempre<br />

interessado em dialogar com matemáticos,<br />

engenheiros e outros profissionais,<br />

buscando e aceitando o<br />

aperfeiçoamento do projeto quando<br />

lhe é proposto por outros. O próprio<br />

nome “modulor” foi proposto por<br />

Lancrey-Javal. A princípio, Le<br />

Corbusier não o consi<strong>de</strong>rou a<strong>de</strong>quado<br />

e o rejeitou. Toda troca <strong>de</strong> informações,<br />

idéias, sugestões e advertências,<br />

e as respectivas respostas e<br />

consi<strong>de</strong>rações, se encontram exaustivamente<br />

<strong>de</strong>scritas no Modulor 2<br />

(1950), juntamente com as <strong>de</strong>finições<br />

finais do sistema, além da <strong>de</strong>scrição<br />

<strong>de</strong> inúmeros casos do sistema<br />

aplicado por e<strong>le</strong> mesmo ou por<br />

outros arquitetos.<br />

11 ZEISING, Adolf. in Neue Lehre von <strong>de</strong>n Proportionen <strong>de</strong>s menschlichen Korpers, aus einem bisher unerkannt gebliebenen, die<br />

ganze Natur und Kunst durchdringen<strong>de</strong>n morphologischen Grundgesetz entwicklt. (“Nova teoria das proporções do corpo humano<br />

<strong>de</strong>senvolvida <strong>de</strong> uma <strong>le</strong>i morfológica básica, até então <strong>de</strong>sconhecida, que impregna a inteira Natureza e a Arte.”)<br />

(Trad. nossa.)<br />

12 Legismetria . Neologismo criado por F. Mul<strong>le</strong>r para a tradução do vocábulo “Gezetzmassigkeit’, do a<strong>le</strong>mão.<br />

73<br />

73


O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Ennio Possebon<br />

Sobre o modulor, o rigoroso<br />

Ernst Neufert, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> algumas<br />

críticas com relação às aproximações<br />

e arredondamentos <strong>de</strong> medidas estabe<strong>le</strong>cidos<br />

nas séries vermelha e azul,<br />

comentou em seu livro A industrialização<br />

das construções:<br />

“[...] é importante que um arquiteto<br />

<strong>de</strong> tanta popularida<strong>de</strong> como<br />

Le Corbusier tenha <strong>de</strong>dicado sua<br />

atenção ao prob<strong>le</strong>ma das medidas<br />

na construção e que tenha colocado<br />

em primeiro plano necessida<strong>de</strong>s<br />

arquitetônicas que haviam sido <strong>de</strong>ixadas<br />

<strong>de</strong> lado, como pouco acertadas,<br />

substituídas por normatizadores<br />

mecânicos e exclusivistas.<br />

Não menos importante é o fato<br />

<strong>de</strong> que para <strong>de</strong>senvolver as construções<br />

se possa jogar com proporções<br />

baseadas na secção áurea. 13 ”<br />

E Wittkower comenta em Sobre<br />

a arquitetura na ida<strong>de</strong> do<br />

humanismo, em tom um tanto exagerado<br />

e claramente apologético:<br />

“[...] Todos sabemos que quando<br />

a geometria não-euclidiana passou<br />

a ser a base da visão mo<strong>de</strong>rna<br />

do universo no final do século XIX e<br />

início do XX, produziu-se uma ruptura<br />

básica com o passado, mais profunda<br />

até que aquela entre o universo<br />

hierarquizado e escolástico da<br />

Ida<strong>de</strong> Média e o matemático e<br />

euclidiano <strong>de</strong> Leonardo, Copérnico e<br />

Newton. Que repercussões teve e terá<br />

sobre a proporção nas artes e a substituição<br />

das medidas absolutas do<br />

espaço e do tempo por uma nova relação<br />

dinâmica espaço-tempo?<br />

74<br />

74<br />

O modulor <strong>de</strong> Le Corbusier<br />

constitui uma resposta preliminar. À<br />

luz da História aparece com a intenção<br />

fascinante <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nar a tradição<br />

com o nosso mundo nãoeuclidiano.<br />

Em primeiro lugar porque<br />

toma como ponto <strong>de</strong> partida o<br />

homem e seu entorno, e não um<br />

conjunto <strong>de</strong> universálias. Com isto<br />

Le Corbusier acerta o passo das normas<br />

absolutas com o das relativas.<br />

Porém, tenta uma nova consolidação<br />

neste nível. Os velhos sistemas<br />

<strong>de</strong> proporções eram o que po<strong>de</strong>ríamos<br />

chamar <strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong><br />

mão única, por constituírem <strong>de</strong>senvolvimentos<br />

coerentes <strong>de</strong> conceitos<br />

básicos, geométricos ou numéricos<br />

(mais aritméticos). Outro tanto<br />

ocorre com o modulor <strong>de</strong> Le<br />

Corbusier. Seus e<strong>le</strong>mentos são extremamente<br />

simp<strong>le</strong>s: quadrado, duplo<br />

quadrado e as secções áureas.<br />

Estes e<strong>le</strong>mentos se fun<strong>de</strong>m num sistema<br />

<strong>de</strong> razões geométricas e numéricas:<br />

o princípio básico da simetria<br />

se combina com as duas séries divergentes<br />

<strong>de</strong> números irracionais<br />

<strong>de</strong>rivados da secção áurea.<br />

A <strong>de</strong>speito do que esta opinião<br />

possa suscitar, se trata, sem dúvida,<br />

da primeira síntese coerente <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

a <strong>de</strong>composição dos velhos sistemas,<br />

síntese que ref<strong>le</strong>te a natureza<br />

da nossa própria civilização e é, ao<br />

mesmo tempo, um testemunho <strong>de</strong><br />

nossa tradição cultural. E, igualmente<br />

como as proporções da geometria<br />

plana utilizadas na Ida<strong>de</strong><br />

Média e as proporções musicais e<br />

aritméticas do Renascimento, o sistema<br />

dual <strong>de</strong> magnitu<strong>de</strong>s irracio-<br />

13 NEUFERT, Ernst. in Industrializacion <strong>de</strong> las construciones, p. 35. (Trad. nossa.)<br />

14 WITTKOWER, Rudolf. in Architectural princip<strong>le</strong>s in the age of humanism, p. 537-538. (Trad. nossa.)<br />

15 LE CORBUSIER, in Modulor1, p. 55. (Trad. nossa.)<br />

nais <strong>de</strong> Le Corbusier segue <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo<br />

dos conceitos que o pensamento<br />

pitagórico-platônico <strong>le</strong>gou à<br />

humanida<strong>de</strong> do Oci<strong>de</strong>nte.” 14<br />

Num encontro com Albert<br />

Einstein, Le Corbusier relata que,<br />

após ouvir suas explicações e comentários,<br />

e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter verificado<br />

matematicamente os esquemas<br />

do modulor, teria assim resumido<br />

seu parecer a respeito: “Uma escala<br />

<strong>de</strong> proporções que torna o mau<br />

difícil e o bom fácil”. 15 Essa boa<br />

receptivida<strong>de</strong> e<strong>le</strong> encontrou também<br />

entre numerosos matemáticos, engenheiros<br />

e arquitetos. O modulor realmente<br />

<strong>de</strong>spertou, na época, um<br />

significativo interesse no ambiente<br />

profissional e acadêmico.<br />

Com o passar dos anos o interesse<br />

se esmaeceu e o próprio Le<br />

Corbusier acabou pondo <strong>de</strong> lado sua<br />

obsessão inicial e o uso persistente<br />

e sistemático do sistema. E, <strong>de</strong>safortunadamente,<br />

também <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser<br />

estudado com a profundida<strong>de</strong> que<br />

merece o que representou esse importante<br />

processo surgido <strong>de</strong>ntro da<br />

obra <strong>de</strong> um dos mais representativos<br />

arquitetos do século XX.<br />

O PRODUTO MODULOR<br />

John Summerson também afirma:<br />

“Le Corbusier <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u intensamente<br />

o Modulor como um sistema<br />

que, se amplamente adotado,<br />

po<strong>de</strong>ria solucionar muitos dos prob<strong>le</strong>mas<br />

<strong>de</strong> padronização na indústria<br />

e, ainda, dar harmonia ao conjunto<br />

do meio físico. Talvez isso pu<strong>de</strong>sse<br />

ter acontecido. Porém <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004


O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Ennio Possebon<br />

a sua publicação, em 1950, o interesse<br />

por esse sistema vem diminuindo.<br />

Estou inclinado a pensar que,<br />

como em outras situações semelhantes,<br />

a importância real do<br />

Modulor está em que e<strong>le</strong> é parte da<br />

aparelhagem mental <strong>de</strong> seu autor e<br />

lhe permite realizar projetos tão<br />

originais como a capela <strong>de</strong><br />

Ronchamp — um edifício <strong>de</strong> forma<br />

tão livre que chega a ser quase uma<br />

escultura abstrata —, seguro <strong>de</strong> seu<br />

comp<strong>le</strong>to domínio dos procedimentos<br />

racionais.” 16<br />

Summerson parece ter alguma<br />

razão quando afirma que a racionalida<strong>de</strong><br />

conquistada por Le Corbusier,<br />

ao aprofundar-se na pesquisa<br />

da proporção áurea e sua expressão<br />

sistematizada, que é o Modulor, tem<br />

um valor relativo, isto é, va<strong>le</strong> como<br />

ferramental <strong>de</strong> projeto <strong>de</strong> seu autor,<br />

porém não po<strong>de</strong> como tal servir a<br />

mais ninguém.<br />

Mas também essa afirmação<br />

tem valor relativo. Pois ao esforço<br />

<strong>de</strong> Le Corbusier para chegar até este<br />

pretendido produto final, o Modulor,<br />

subjaz todo um processo <strong>de</strong><br />

pensamento organizacional <strong>de</strong><br />

projeto que tem a proporção áurea<br />

como célula-mãe e se <strong>de</strong>sdobra em<br />

harmonias <strong>de</strong>rivadas <strong>de</strong>la. E o que<br />

tem valor maior, finalmente, é a<br />

compreensão que hoje temos <strong>de</strong>sses<br />

<strong>de</strong>sdobramentos que e<strong>le</strong> pô<strong>de</strong> executar,<br />

operando com este paradigma,<br />

e não aquilo que e<strong>le</strong> bemintencionadamente,<br />

mas talvez equivocadamente,<br />

tenha sonhado em<br />

oferecer à cultura do século XX<br />

como produto. O resgate e o<br />

aprofundamento no estudo <strong>de</strong>sse<br />

processo <strong>de</strong> busca <strong>de</strong> uma comodu-<br />

R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004<br />

lação, que estão contidos no seu trabalho,<br />

é que po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong> imenso<br />

valor.<br />

Ou seja, se o Modulor não<br />

pô<strong>de</strong> servir como produto final,<br />

pronto e acabado para ser usado<br />

por outros é, no mínimo, um imenso<br />

manancial <strong>de</strong> pesquisa para uma<br />

profunda imersão no significado<br />

real e mais profícuo do que po<strong>de</strong> a<br />

Geometria, quando bem compreendida,<br />

significar para o trabalho do<br />

arquiteto. Mas mesmo arquitetos e<br />

teorizadores que tiveram o velho<br />

mestre como a gran<strong>de</strong> figura<br />

inspiradora <strong>de</strong> uma arquitetura racional,<br />

liberta das formas do passado,<br />

criativa e inovadora, parecem<br />

ter <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> lado esse aspecto <strong>de</strong><br />

sua obra.<br />

Mas a carência dos tempos<br />

sempre acaba por <strong>de</strong>spertar<br />

potencialida<strong>de</strong>s latentes. Klaus-<br />

Peter Gast, por exemplo, é uma<br />

bem-vinda alteração <strong>de</strong>ssa situação<br />

com seu livro Le Corbusier. Paris-<br />

Chandigarh, recentemente publicado<br />

(2000).<br />

Po<strong>de</strong>ríamos discutir a estética<br />

<strong>de</strong> suas obras, questionar até que<br />

ponto Le Corbusier conseguiu, por<br />

esse seu geometrizar, resultados significativos<br />

e expressivos. Mas, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />

disso, sua atuação como<br />

arquiteto-geômetra, que é inegável,<br />

está longe <strong>de</strong> ser entendida e<br />

divulgada tanto quanto o são tantos<br />

outros aspectos exemplares e conhecidos<br />

<strong>de</strong> sua obra. E <strong>de</strong>ntro do âmbito<br />

<strong>de</strong>sta pesquisa, nossa ênfase é<br />

justamente no processo geometrizador<br />

por meio do qual eram gerados<br />

seus projetos.<br />

16 SUMMERSON, John.in A linguagem clássica da Arquitetura, p.117.<br />

CRÍTICAS UNILATERAIS<br />

Recentemente, Frings, num artigo<br />

sobre a ocorrência e o papel<br />

que a proporção áurea <strong>de</strong>sempenhou<br />

na teoria da Arquitetura, escreve<br />

duras e unilaterais críticas ao trabalho<br />

<strong>de</strong> Le Corbusier, embora, em<br />

exame <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes, também possam<br />

ser justificadas em parte. E como<br />

contraponto ao que já foi exposto<br />

até agora, cabe aqui também a sua<br />

apresentação:<br />

“O Modulor, na proposta <strong>de</strong> Le<br />

Corbusier, combina quadrado e<br />

secção áurea, mas como resultado<br />

não oferece nada além <strong>de</strong> um sistema<br />

modular. Da série azul <strong>de</strong> números<br />

(secção áurea da altura total) e<br />

da série vermelha (altura do umbigo)<br />

resulta uma seqüência <strong>de</strong> medidas<br />

<strong>de</strong> 27 a 226 cm (e mais além)<br />

em <strong>de</strong>graus <strong>de</strong> 27 e 16 cm. Na função<br />

<strong>de</strong>sempenhada pelo umbigo<br />

como origem da série vermelha, Le<br />

Corbusier alu<strong>de</strong> à tradição do<br />

homo vitruvianus e às especulações<br />

relacionadas com as harmonias<br />

num cosmos antropocêntrico, bem<br />

mostrados numa figura emb<strong>le</strong>mática<br />

no livro Modulor 2.”<br />

O Modulor tem, entretanto, algumas<br />

<strong>de</strong>ficiências. Primeiro, embora<br />

Le Corbusier pretenda que<br />

seja usado para todas as dimensões,<br />

verticais e horizontais, e<strong>le</strong> prioriza<br />

a dimensão vertical. Além disso, é<br />

baseado em aproximações aos números<br />

da série Fibonacci. E <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que as séries azul e vermelha po<strong>de</strong>m<br />

ser combinadas ao sistema, e<strong>le</strong> se<br />

torna tão elástico que a secção áurea<br />

acaba sendo difícil <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar.<br />

Neufert critica, numa edição mais<br />

75<br />

75


O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Ennio Possebon<br />

recente do ‘Bauordnungs<strong>le</strong>hre’,<br />

ambas as in<strong>de</strong>finidas práticas: <strong>de</strong> arredondar<br />

números, <strong>de</strong> tal modo que<br />

as adições passam a ser incorretas<br />

e mais ainda nas imprecisões ao<br />

transcrever medidas mé-<br />

tricas para o sistema britânico<br />

das po<strong>le</strong>gadas. E finalmente,<br />

o Modulor não<br />

está <strong>de</strong> fato longe do próprio<br />

sistema <strong>de</strong> Neufert, o<br />

‘Sistema Octamétrico’<br />

(Neufert, 1941). Por esta<br />

razão o Modulor não <strong>de</strong>ve<br />

ser consi<strong>de</strong>rado um sistema<br />

<strong>de</strong> proporções, mas<br />

sim um catálogo <strong>de</strong> medidas<br />

irregulares [...]<br />

“Durante um longo<br />

período a secção áurea<br />

não foi mencionada na teoria da<br />

arquitetura. Ela primeiramente<br />

aparece no século XIX, através <strong>de</strong><br />

Zeising e Fechner, e então surge<br />

novamente com um certo fascínio<br />

na terceira e quarta décadas do século<br />

XX, quando Neufert e Le<br />

Corbusier vêm a conhecê-la.<br />

Neufert alimenta gran<strong>de</strong>s esperanças<br />

para uma renovação da arquitetura<br />

através da secção áurea, mas<br />

logo cai em si. Não obstante e<strong>le</strong> a<br />

apresenta in extenso. Depois dos<br />

17 FRINGS. Marcus, in “The Gol<strong>de</strong>n Section in Architectural Theory”, Nexus Network Journal, vol. 4, no 1, 2002,<br />

http://www.nexusjournal.com/Frings.html<br />

Referências bibliográficas:<br />

GAST, Klaus-Peter. Le Corbusier: Paris – Chandigarh. Basel: Birkhauser, 2000.<br />

LE CORBUSIER. El Modulor. Buenos Ayres: Poseidon, l953.<br />

LE CORBUSIER. El Modulor 2. Buenos Ayres: Poseidon, 1962.<br />

LE CORBUSIER. The Marseil<strong>le</strong>´s block. London: The Harvill Press, 1953.<br />

LE CORBUSIER. “L´Architecture et l´esprit mathématique”, in Les grand courants <strong>de</strong> la pensée mathématique, presentée par F. <strong>de</strong><br />

Lionnais. S. l.: Cahiers du Sud, 1958.<br />

LE CORBUSIER. “L´ Unité d´ habitation <strong>de</strong> Marseil<strong>le</strong>”. Le Point, nº 38. S.l.: Souillac (Lot) Mulhouse, nov. 1950.<br />

NEUFERT, Ernst. Industrializacion <strong>de</strong> las construciones. Barcelon: Gustavo Gili, 1969.<br />

SUMMERSON, John. A linguagem clássica da arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.<br />

ZEISING, Adolf. Neue Lehre von <strong>de</strong>n Proportionen <strong>de</strong> menschlichen Korpers, aus einem bisher unerkannt gebliebenen, die ganze<br />

Natur und Kunst durchdringen<strong>de</strong>n morphologischen Grundgesetz entwicklt. Leipzig: s.e., 1854.<br />

WITTKOWER, Rudolf. Architectural princip<strong>le</strong>s in the age of humanism. London: Tiranti, 1952.<br />

76<br />

76<br />

primeiros experimentos on<strong>de</strong> Le<br />

Corbusier usa a secção áurea para<br />

<strong>de</strong>senvolver seu catálogo <strong>de</strong> medidas,<br />

o qual não tinha — <strong>de</strong>vido aos<br />

arredondamentos e combinações —<br />

“Mas isso não invalida<br />

nem <strong>de</strong>squalifica o<br />

processo geometrizador<br />

<strong>de</strong> seu criador, nem a<br />

riqueza formal e<br />

funcional <strong>de</strong> sua<br />

arquitetura.”<br />

muito mais em comum com a<br />

secção áurea ou a série Fibonacci.<br />

De fato, Neufert e Le Corbusier parecem<br />

utilizar a secção áurea <strong>de</strong><br />

modo a glamourizar sua própria<br />

criação artística subjetiva com teoria<br />

e razão. Em todo caso, a<br />

secção áurea certamente <strong>de</strong>sempenha<br />

um papel nos escritos <strong>de</strong>stes<br />

teoristas da Arquitetura. Antes do<br />

século XIX, todavia, a secção áurea<br />

está simp<strong>le</strong>smente ausente da teoria<br />

da arquitetura escrita até então”. 17<br />

O LEGADO DE LE CORBUSIER<br />

O modulor parece representar<br />

um curioso ponto <strong>de</strong> virada na História<br />

da Arquitetura. Num sentido,<br />

foi um corajoso, persisten-<br />

te e pretensioso esforço<br />

para criar uma regra<br />

unificadora para toda a Arquitetura;<br />

e noutro, mostrou<br />

a falência e as limitações<br />

<strong>de</strong> tal tentativa. Mas<br />

isso não invalida nem<br />

<strong>de</strong>squalifica o processo<br />

geometrizador do seu criador,<br />

nem a riqueza formal<br />

e funcional <strong>de</strong> sua arquitetura;<br />

ao contrário, confere<br />

a esse <strong>le</strong>gado <strong>de</strong> «Corbu»<br />

um imenso valor. O esforço<br />

<strong>de</strong>spendido por Le Corbusier, até<br />

on<strong>de</strong> e<strong>le</strong> po<strong>de</strong> ser compreendido<br />

como intenção consciente, evi<strong>de</strong>nciou<br />

uma busca intensa por<br />

<strong>de</strong>terminantes e alvos que foram<br />

também aque<strong>le</strong>s mesmos anteriormente<br />

pertencentes à Arquitetura<br />

clássica, conforme <strong>de</strong>scritos por<br />

Vitrúvio e expressos na Renascença<br />

por seus arquitetos e teóricos. Ou<br />

seja, a proporção, a simetria ou comodulação,<br />

a harmonia e a euritmia<br />

do edifício. A be<strong>le</strong>za, enfim.<br />

R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004

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