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Figurações do <strong>Tejo</strong> na<br />
Literatura Portuguesa<br />
Contemporânea
«<strong>Tejo</strong> (rio), rio da Península Ibérica que<br />
percorre 1038 km (dos quais 275 em ter.<br />
português e 47 em ter. comum a Portugal e<br />
Espanha), sendo o <strong>de</strong> maior extensão na<br />
Península. Nasce em Muela <strong>de</strong> San Juan,<br />
na serra espanhola <strong>de</strong> Albarracín, a 1593<br />
m <strong>de</strong> alt. e banha Toledo, Santarém e<br />
Lisboa, <strong>de</strong>saguando no Atlântico, a O da<br />
cap. Portuguesa. Os seus principais<br />
afluentes em ter. português são: na<br />
margem direita, os rios Erges, Ponsul,<br />
Ocreza, Zêzere, Almonda, Alviela, Maior e<br />
Trancão; na margem esquerda, os rios<br />
Sever, Nisa, Torto, Alpiarça, Muge,<br />
Sorraia, Montijo e Coina. A sua bacia<br />
hidrográfica é <strong>de</strong> 81600 km2, sendo 24913<br />
km2 em Portugal. (…) Nas suas margens,<br />
entre o curso internacional e a foz do<br />
Ocreza, foram <strong>de</strong>scobertas (1971) mais <strong>de</strong><br />
20000 gravuras rupestres.»<br />
(Nova Enciclopédia Larousse, vol. 21, p. 6625; cit. adaptada)
Alexandre O’NEILL<br />
Tu que passas por mim tão indiferente,<br />
no teu correr vazio <strong>de</strong> sentido,<br />
na memória que sobes lentamente,<br />
do mar para a nascente,<br />
és o curso do tempo já vivido.<br />
«O TEJO CORRE NO TEJO»<br />
Por isso, à tua beira se <strong>de</strong>mora<br />
aquele que a sauda<strong>de</strong> ainda trespassa,<br />
repetindo a lição, que não <strong>de</strong>cora,<br />
<strong>de</strong> ser, aqui e agora,<br />
só um homem a olhar para o que passa.<br />
Um voo <strong>de</strong>sferido é uma gaivota,<br />
não é o voo da imaginação;<br />
gritos não são agoiros, são a lota…<br />
Vá, não faças batota,<br />
Deixa ficar as coisas on<strong>de</strong> estão…<br />
<strong>Tejo</strong> <strong>de</strong>sta canção, que o teu correr<br />
não seja o meu pretexto <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>.<br />
Sauda<strong>de</strong> tenho, sim, mas <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r,<br />
sem as po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ter,<br />
as águas vivas da realida<strong>de</strong>!<br />
Não, <strong>Tejo</strong>,<br />
não és tu que em mim te vês,<br />
- sou eu que em ti me vejo!<br />
Não, <strong>Tejo</strong>,<br />
não és tu que em mim te vês,<br />
- sou eu que em ti me vejo!<br />
Não, <strong>Tejo</strong>,<br />
não és tu que em mim te vês,<br />
- sou eu que em ti me vejo!<br />
Não, <strong>Tejo</strong>,<br />
não és tu que em mim te vês,<br />
- sou eu, em mim, que me vejo!<br />
(da obra Feira Cabisbaixa, 1965, In Poesias Completas, Lisboa, Assírio &<br />
Alvim, 2002, 3ª ed., pp. 234-5)
“Três Carneiros do <strong>Tejo</strong>”<br />
Nasce na serra <strong>de</strong> Albarracim, em Espanha,<br />
entra-nos em casa pelo Ródão,<br />
arremeda-nos a sua gala<strong>de</strong>la,<br />
<strong>de</strong>pois acalma, vai <strong>de</strong>itando corpo,<br />
e aqui, já todo ancho, o atravesso<br />
diariamente, eu, o ribeirinho<br />
que traz a mão na estiva <strong>de</strong> palavras<br />
no outro lado e a cabeça algures.<br />
Cada um com sua nuvem rente à boca,<br />
que em alguns é o cúmulo da prosápia,<br />
das leiras do sono nós todos arrancamos<br />
pra Lisboa, a tão estremecida,<br />
e ao barbeirinho opomos catadura<br />
<strong>de</strong> quem está zangado com a vida.<br />
E estamos.<br />
Dragado <strong>de</strong> conversas, <strong>Tejo</strong>, darias mais calado<br />
à nossa companhia,<br />
mas calados só eu e a rapariga<br />
que passou a noite a vadrulhar,<br />
<strong>de</strong>u um pulo à tia e volta prà cida<strong>de</strong><br />
já quase na pele doutra pessoa,<br />
retocado o bâton, aproveitada a olheira,<br />
reposto o seio no lugar, tão sobranceiro!<br />
É <strong>de</strong> dia caixeira, aposto eu.<br />
Não vale que tu viste, digo eu eu.<br />
Ó <strong>Tejo</strong> nunca inaugurado, nesta praça<br />
<strong>de</strong>via haver comércio, esplanadas, mesas<br />
on<strong>de</strong> eu assentaria o cotovelo e, a cafés,<br />
diria, versejando, quem não és.<br />
Com as Dez O<strong>de</strong>s do Dr. Armindo,<br />
que, aliás, são um poema lindo,<br />
ó <strong>Tejo</strong> vaidosão tu transbordaste,<br />
tu não te contiveste, tu não te aguentaste!<br />
Mas eu, <strong>Tejo</strong> continuado, nesta praça<br />
ministr’ial que mais te posso dar,<br />
a ti que vens <strong>de</strong> Albarracim, meu espanhol,<br />
*<br />
*
que passaste Almourol,<br />
que passaste Pereira Gomes e Redol,<br />
senão a frase sim ou não ouvida,<br />
com este meu ouvido, com esta minha vida,<br />
a um rapaz que, sem malícia, veio,<br />
da sombra sei lá <strong>de</strong> que sobreiro,<br />
para dar em alguém, cá na cida<strong>de</strong>:<br />
Ser da polícia,<br />
Dá cantina, barbeiro, autorida<strong>de</strong>.<br />
(da obra Feira Cabisbaixa, 1965, In Poesias Completas, Lisboa, Assírio &<br />
Alvim, 2002, 3ª ed., pp. 213-214)
Era a cida<strong>de</strong>, serena…?<br />
Ou o tempo, <strong>de</strong>solado…?<br />
Era o cansaço? Era o Fado?<br />
Fosse o que fosse! Era a pena<br />
a Vida ter-me <strong>de</strong>ixado<br />
longe <strong>de</strong> ti, na serena<br />
cida<strong>de</strong> triste do fado…<br />
Os cais brumosos, per<strong>de</strong>ndo,<br />
aos poucos, o seu interesse,<br />
como se já não houvesse,<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim, o que entendo<br />
ser fogo que tudo aquece…<br />
Tudo, em mim, ia per<strong>de</strong>ndo,<br />
aos poucos o seu interesse…<br />
Seria do tempo, agreste…?<br />
Ou da cida<strong>de</strong>, serena…?<br />
Fosse o que fosse! Era pena<br />
a Vida <strong>de</strong>ixar-me neste<br />
marasmo <strong>de</strong> vida amena…<br />
Seria do tempo, agreste…?<br />
Ou da cida<strong>de</strong>, serena…?<br />
Ai, tar<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Primavera!<br />
Ai tar<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Verão precoce!<br />
(A voz do vento calou-se…)<br />
O que eu ouvia – não era,<br />
não era o vento… Era o doce<br />
Murmúrio da Primavera<br />
- doçura <strong>de</strong> Verão precoce…<br />
David Mourão-Ferreira<br />
Ai, tar<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Primavera!<br />
Bastava a tua presença:<br />
imagem serena, <strong>de</strong>nsa,<br />
que eu sempre guardar quisera!<br />
(E, afinal, essa imensa<br />
magia – quase a esquecera.<br />
Aon<strong>de</strong>, tua presença?)<br />
Quase a esquecera… e porquê?<br />
Seria do tempo, feio…?<br />
Era conjura: um enleio<br />
«Romance da Beira-<strong>Tejo</strong>»
dos Demos à minha fé…<br />
Uma traição. Era um meio<br />
<strong>de</strong> eu te fugir… Mas pra quê?<br />
- Seria do tempo, feio…?<br />
Fosse o que fosse! Ao presente,<br />
nenhuma sombra do mundo<br />
tolda o mistério fecundo<br />
da luz grácil, nua, quente,<br />
aon<strong>de</strong> inteiro me afundo.<br />
- De novo sinto, ao presente,<br />
que não há sombras no mundo.<br />
Mistério <strong>de</strong>nso da luz<br />
Que tens nos olhos, guardada…<br />
Está nos teus olhos, guardada…<br />
Está nos teus olhos a luz<br />
Que me seduz – enleada,<br />
perfeita graça da luz<br />
que tens nos olhos guardada…<br />
Certa manhã na ribeira<br />
do <strong>Tejo</strong>, com maresia,<br />
fragatas, e o que trazia<br />
do mar a brisa ligeira…<br />
- essa graça, enfim, senti-a,<br />
à beira do <strong>Tejo</strong>, à beira,<br />
com fragatas, maresia…<br />
Bela! a cida<strong>de</strong>, serena…<br />
Longe o tempo, <strong>de</strong>solado…!<br />
Perto, só tu, a meu lado,<br />
lírica barca pequena<br />
que a Vida enfim há <strong>de</strong>ixado<br />
junto <strong>de</strong> mim, na serena<br />
cida<strong>de</strong> bela do fado!<br />
(da obra A Secreta Viagem, 1948-1950, In Obra Poética 1948-1988, Lisboa,<br />
Presença, 1988, pp. 27-29)
José Carlos Ary dos Santos<br />
«O CACILHEIRO»<br />
Lá vai no mar da palha o cacilheiro<br />
Comboio <strong>de</strong> Lisboa sobre a água<br />
<strong>Cacilhas</strong> e Seixal Montijo mais Barreiro<br />
Pouco <strong>Tejo</strong> pouco <strong>Tejo</strong> e muita mágoa.<br />
Na ponte passam carros e turistas<br />
Iguais a todos que há no mundo inteiro<br />
Mas embora mais caras a ponte não tem vistas<br />
Como as dos peitoris do cacilheiro.<br />
Leva namorados<br />
marujos soldados<br />
e trabalhadores<br />
a parte <strong>de</strong> um cais<br />
que cheira a jornais<br />
morangos e flores.<br />
Regressa contente<br />
levou muita gente<br />
e nunca se cansa.<br />
Parece um barquinho<br />
lançado no <strong>Tejo</strong><br />
por uma criança.<br />
Num carreirinho aberto pela espuma<br />
Lá vai o cacilheiro <strong>Tejo</strong> à solta<br />
e as ruas <strong>de</strong> Lisboa sem ter pressa nenhuma<br />
tiraram um bilhete <strong>de</strong> ida e volta.<br />
Alfama Madragoa Bairro Alto<br />
tu cá tu lá num barquinho <strong>de</strong> brincar<br />
meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa à espera no asfalto<br />
e já meia sauda<strong>de</strong> a navegar.<br />
Se um dia o cacilheiro for embora<br />
Fica mais triste o coração da água<br />
e o povo <strong>de</strong> Lisboa dirá como quem chora<br />
pouco <strong>Tejo</strong>, pouco <strong>Tejo</strong> e muita mágoa.
Cesário Ver<strong>de</strong><br />
«O Sentimento dum Oci<strong>de</strong>ntal» (1880)<br />
Nas nossas ruas, ao anoitecer,<br />
Há tal soturnida<strong>de</strong>, há tal melancolia,<br />
Que as sombras, o bulício, o <strong>Tejo</strong>, a maresia<br />
Despertam um <strong>de</strong>sejo absurdo <strong>de</strong> sofrer.<br />
O céu parece baixo e <strong>de</strong> neblina,<br />
O gás extravasado enjoa-nos, perturba;<br />
E os edifícios, com as chaminés, e a turba<br />
Toldam-se duma cor monótona e londrina.<br />
(…)<br />
Vazam-se os arsenais e as oficinas,<br />
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;<br />
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,<br />
Correndo com firmeza, assomam as varinas.<br />
(in Obra Completa, Lisboa, Livros Horizonte, 1999, 7ª ed., pp. 141-2)
José Rodrigues Miguéis<br />
«O sol rutila, escorre como um mel pelos<br />
telhados, polvilha gloriosamente o <strong>Tejo</strong>, um<br />
lago sereno, com velas brancas e vermelhas,<br />
<strong>de</strong> longe indolentes, distantes como a<br />
nostalgia. (…)<br />
O pai sumiu-se há muito, o sol subiu, ele <strong>de</strong>svia<br />
os olhos do <strong>Tejo</strong> hipnótico e observa a<br />
vizinhança. A Maria-dos-gatos dá <strong>de</strong> comer aos<br />
tarecos vadios; lá vai a senhora Zefa, que<br />
costuma trazer dois bolinhos embrulhados num<br />
papel, só dois, um azul para ele, outro cor-<strong>de</strong>rosa<br />
para a irmã, ambos com carinha <strong>de</strong> gente,<br />
um é o Sol, o outro a Lua, macios, dá gosto<br />
uma pessoa ficar a comê-los <strong>de</strong>vagar.»<br />
(in A <strong>Escola</strong> do Paraíso, Lisboa, Estampa, 1989, 9ª ed., pp. 22-24)
Raul Brandão<br />
«Da lazarenta <strong>Cacilhas</strong> à piscosa Sesimbra são<br />
seis léguas por uma estrada atravessada <strong>de</strong><br />
barrancos, que o tráfego do peixe arruinou.<br />
Grupos <strong>de</strong> pinheiros mansos, ramilhetes <strong>de</strong><br />
oliveira e, <strong>de</strong> quando em quando, por um<br />
rasgão imprevisto, o esplêndido estuário do<br />
<strong>Tejo</strong> e ao longe Lisboa na moldura <strong>de</strong> terras a<br />
pique cor <strong>de</strong> barro.» (Fevereiro – 1923)<br />
(in Os Pescadores, Porto, Porto Ed., 2003, p. 137)
Em cada esquina te vais<br />
Em cada esquina te vejo<br />
Esta é a cida<strong>de</strong> que tem<br />
Teu nome escrito no cais<br />
A cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>senho<br />
Teu rosto com sol e <strong>Tejo</strong><br />
Caravelas te levaram<br />
Caravelas te per<strong>de</strong>ram<br />
Esta é a cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> chegas<br />
Nas manhãs <strong>de</strong> tua ausência<br />
Tão perto <strong>de</strong> mim tão longe<br />
Tão fora <strong>de</strong> seres presente<br />
Esta é a cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> estás<br />
Como que não volta mais<br />
Tão <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim tão que<br />
Nunca ninguém por ninguém<br />
Em cada dia regressas<br />
Em cada dia te vais<br />
Em cada rua me foges<br />
Em cada rua te vejo<br />
Tão doente da viagem<br />
Teu rosto <strong>de</strong> sol e <strong>Tejo</strong><br />
Esta é a cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> moras<br />
Como quem está <strong>de</strong> passagem<br />
Às vezes pergunto se<br />
Às vezes pergunto quem<br />
Esta é a cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> estás<br />
Com quem nunca mais vem<br />
Tão longe <strong>de</strong> mim tão perto<br />
Ninguém assim por ninguém<br />
Manuel Alegre<br />
«Balada <strong>de</strong> Lisboa»<br />
(In Babilónia [1983], Atlântico, Lisboa, Dom Quixote, 1989, pp. 170-171)
A luz vinha <strong>de</strong>vagar<br />
Através do firmamento…<br />
Vinha e ficava no ar,<br />
Parada por um momento,<br />
A ver a terra passar<br />
No seu térreo movimento.<br />
Miguel Torga<br />
«Lisboa»<br />
Depois caía em toalha<br />
Sobre as dobras da cida<strong>de</strong>;<br />
Caía sobre a mortalha<br />
De ambições e <strong>de</strong> poalha,<br />
Quase com brutalida<strong>de</strong>.<br />
O rio, ao lado, corria<br />
A querer fugir do abraço;<br />
Numa vela que se abria,<br />
E on<strong>de</strong> um sorriso batia,<br />
O mar já era um regaço.<br />
Mas a luz podia mais,<br />
Voava mais do que a vela;<br />
E o <strong>Tejo</strong> e os areais<br />
Tingiam-se dos sinais<br />
De uma doença amarela. (…)<br />
(20 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 1946)<br />
(In Antologia Poética, Lisboa, Dom Quixote, 1999, 5ª ed., p. 278)
José Cardoso Pires<br />
«Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o<br />
<strong>Tejo</strong> como uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> navegar. Não me<br />
admiro: sempre que me sinto em alturas <strong>de</strong><br />
abranger o mundo, no pico dum miradouro ou<br />
sentado numa nuvem, vejo-te em cida<strong>de</strong>-nave,<br />
barca com ruas e jardins por <strong>de</strong>ntro, e até a<br />
brisa que corre me sabe a sal. Há ondas <strong>de</strong><br />
mar aberto <strong>de</strong>senhadas nas tuas calçadas; há<br />
âncoras, há sereias.»<br />
(In Lisboa. Livro <strong>de</strong> Bordo: vozes, olhares, memorações,<br />
Lisboa, Dom Quixote, 1999, 5ª ed., p. 7)
José Saramago<br />
«Alcácer do Sal está implantado on<strong>de</strong> o rio<br />
começa a ganhar forças para abrir os largos<br />
braços com que irá cingir as terras <strong>de</strong> aluvião a<br />
sul da linha férrea <strong>de</strong> Praias Sado, Mourisca,<br />
Algeruz e Águas <strong>de</strong> Moura. É ainda um rio <strong>de</strong><br />
província, mas proclama já a sua ambição<br />
atlântica. Visto aqui, não se lhe adivinhará o<br />
fôlego três léguas adiante. É como o <strong>Tejo</strong> à<br />
saída <strong>de</strong> Alhandra. Os rios, como os homens,<br />
só perto do fim vêm a saber para que<br />
nasceram.»<br />
(Viagem a Portugal, Lisboa, Caminho, 1995, 17.ª edição, p. 205)
Os livros citados nesta exposição<br />
encontram-se disponíveis na tua<br />
Biblioteca <strong>Escola</strong>r-Centro <strong>de</strong><br />
Recursos Educativos
Soeiro Pereira Gomes<br />
«Esteiros. Minúsculos canais,<br />
como <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> mão espalmada,<br />
abertos na margem do <strong>Tejo</strong>.<br />
Dedos das mãos avaras dos<br />
telhais que roubam nateiro às<br />
águas e vigores à malta. Mãos <strong>de</strong><br />
lama que só o rio afaga.»<br />
(Esteiros, Publicações Europa-América, p. 9)
Alves Redol<br />
«A gargalhada parecia <strong>de</strong>sdobrarse<br />
mais longe que a fita do <strong>Tejo</strong>.»<br />
«Os três gaibéus perdiam<br />
naquele momento todo o<br />
passado. Não pertenciam agora<br />
ao rancho do Francisco Descalço,<br />
nem a sua poisada se fechara por<br />
or<strong>de</strong>m do capataz. Já eram<br />
outros, nados e crescidos ali<br />
naquela língua <strong>de</strong> areia, on<strong>de</strong> o<br />
<strong>Tejo</strong> vinha adormecer as marés<br />
brandas ou encabritar-se ao<br />
toque do vento e das cheias.»<br />
(Gaibéus, 18ª ed., in Obras Completas, vol. 1, Lisboa,<br />
Caminho, 1993, pp. 138 e 143)
Sebastião da Gama<br />
«Canção do <strong>Tejo</strong>»<br />
Quem não tem sauda<strong>de</strong>s tuas<br />
não é homem não é nada!<br />
Meu <strong>Tejo</strong>, que eu já não via<br />
vai pr’a lá <strong>de</strong> uma semana<br />
com tuas arcas à vela,<br />
tuas margens com teus prédios<br />
batidos <strong>de</strong> sol em glória,<br />
rever-te foi encontrar-me,<br />
como se andara perdido<br />
por becos <strong>de</strong> almas estrangeiras.
Manuel da Fonseca<br />
«<strong>Tejo</strong> que levas as águas»<br />
<strong>Tejo</strong> que levas as águas<br />
Correndo <strong>de</strong> par em par<br />
Lava a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mágoas<br />
Leva as mágoas para o mar<br />
Lava-a <strong>de</strong> crimes espantos<br />
De roubos fomes terror<br />
Lava a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quantos<br />
Do ódio fingem amor<br />
Lava bancos e empresas<br />
Dos comedores <strong>de</strong> dinheiro<br />
Que dos salários <strong>de</strong> tristeza<br />
Arrecadam lucro inteiro<br />
Lava palácios vivendas<br />
Casebres bairros <strong>de</strong> lata<br />
Leva negócios e rendas<br />
Que a uns farta a outros mata
Leva nas águas as gra<strong>de</strong>s<br />
De aço e silêncio forjadas<br />
Deixa soltar-se a verda<strong>de</strong><br />
Das bocas amordaçadas<br />
Lava avenidas <strong>de</strong> vícios<br />
Vielas <strong>de</strong> amores venais<br />
Lava albergues e hospícios<br />
Ca<strong>de</strong>ias e hospitais<br />
Afoga empenhos favores<br />
Vãs glórias ocas palmas<br />
Leva o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> uns senhores<br />
Que compram corpos e almas<br />
Das damas <strong>de</strong> amor comprado<br />
Desata abraços <strong>de</strong> lodo<br />
Rostos corpos <strong>de</strong>stroçados<br />
Lava-os com sal e iodo<br />
<strong>Tejo</strong> que levas as águas<br />
Correndo <strong>de</strong> par em par<br />
Lava a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mágoas<br />
Leva as mágoas para o mar.<br />
(In Poemas Completos, 1975, p. 69)
Natália Correia<br />
«Romance da Paloma»<br />
«(…) E o <strong>Tejo</strong> cão lazarento<br />
do sal azarento mal<br />
<strong>de</strong> guardar do próprio vento<br />
o quintal <strong>de</strong> um avarento<br />
que em seu pus <strong>de</strong> possessivo<br />
pronome <strong>de</strong> Portugal<br />
morto estava porque vivo<br />
<strong>de</strong>ssa preguiça geral<br />
do aparelho digestivo<br />
que é o povo diminuído<br />
por redução estomacal<br />
quando do seu substantivo<br />
os ácidos digere mal,<br />
e o <strong>Tejo</strong> cão colectivo<br />
o <strong>Tejo</strong> sempre a ladrar<br />
as sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse tempo<br />
em que o soltavam no mar<br />
não tanto por orientes<br />
brasis áfricas espalhar<br />
como quem arroz ou farinha<br />
espalha comercial
num balcão que nisso tinha<br />
o comprimento do mar,<br />
esse foi o expediente<br />
dos que com cravo e pimenta<br />
feições quiseram comprar<br />
para ganharem o tempo<br />
que nos painéis <strong>de</strong> S. Vicente<br />
os está quase a apagar,<br />
mas pelo <strong>de</strong>scobrimento<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir sem achar<br />
índias que são aci<strong>de</strong>ntes<br />
<strong>de</strong> outras índias procurar:<br />
aquelas mais consequentes<br />
<strong>de</strong>sse caminho marítimo<br />
tormenta do interno mar<br />
em que a alma se <strong>de</strong>scobre<br />
no que não po<strong>de</strong> encontrar. (…)»<br />
(In A Mosca Iluminada, 1972; Poesia Completa, Lisboa, Dom Quixote, 1999,<br />
pp. 348-9)
António Lobo Antunes<br />
«Não tinha culpa, não queria, usou sempre as<br />
precauções habituais menos a pílula que a<br />
médica não <strong>de</strong>ixava pelo risco das veias<br />
<strong>de</strong>masiado fracas, das hemorragias, das<br />
tromboses, das varizes, nunca chatices <strong>de</strong>stas,<br />
pois não?, sabia lá por que motivo acontecera<br />
agora, e o alferes, por trás <strong>de</strong>la, olhava<br />
também os mendigos e os bêbados da rua, a<br />
dona da capelista que achatava o escadote e<br />
se sumia na penumbra <strong>de</strong> revistas velhas e <strong>de</strong><br />
antigos narizes <strong>de</strong> carnaval, com elástico para<br />
a nuca, da loja, o gesso pintado, imóvel do<br />
<strong>Tejo</strong>, e o céu quase branco pegado às testas<br />
tensas, exasperadas, medrosas, das pessoas:<br />
A cida<strong>de</strong> caçou-nos como ratos, pensou ele, as<br />
camionetas da Câmara recolherão <strong>de</strong><br />
madrugada os nossos inchados, repugnantes,<br />
pútridos corpozinhos cinzentos.»<br />
(Fado Alexandrino, [1983], Lisboa, Dom Quixote, 2000, 9ª ed., p. 177)
António Lobo Antunes<br />
«Na Rua das Amoreiras, ainda sem bêbedos, [Manuel<br />
<strong>de</strong> Sousa <strong>de</strong> Sepúlveda] negociou o preço da corrida até à<br />
Costa da Caparica com a luz <strong>de</strong> um táxi que bailava nas<br />
calhas. E durante a viagem reconheceu sem alegria os<br />
largos e as avenidas quase <strong>de</strong>sertas <strong>de</strong> Lixboa, que se<br />
sucediam numa monotonia <strong>de</strong> tecidos <strong>de</strong>sdobrando-se:<br />
estabelecimentos soturnos, estátuas engastadas nas<br />
trevas, arbustos escanzelados, a Basílica da Estrela aberta<br />
para um velório qualquer, e a seguir, ao longo da ponte, os<br />
galeões <strong>de</strong> especiarias fun<strong>de</strong>ados no rio, uma nau com a<br />
ban<strong>de</strong>ira da cólera, e os pedreiros dos Jerónimos que<br />
tricotavam, à luz <strong>de</strong> apanha<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> malhas das tochas, o<br />
rendilhado do arco principal.<br />
Já na margem oposta, ao ultrapassar as bombas <strong>de</strong><br />
gasolina, Manoel <strong>de</strong> Sousa <strong>de</strong> Sepúlveda espantou-se com<br />
o gigantesco animal adormecido da Costa da Caparica na<br />
distância, a profusão <strong>de</strong> prédios, <strong>de</strong> hotéis, <strong>de</strong> insígnias, do<br />
brilho turvo dos cafés.<br />
(…) se avistava a barra do <strong>Tejo</strong> e as barcaças em que<br />
el-rei D. Fernando trazia a corte <strong>de</strong> Almada a Lixboa, o<br />
farol, dunas sem termo, lumes <strong>de</strong> pescadores ao can<strong>de</strong>io e<br />
o ventoso silêncio do céu.»<br />
(As Naus, Lisboa, Dom Quixote, 1988, pp 79-80, 81.)
António Lobo Antunes<br />
«O homem <strong>de</strong> nome Luís (…) sentou-se na<br />
urna com a água aos seus pés sem lograr<br />
distingui-la, salvo o ofegar do rio que se<br />
distanciava e avançava, e on<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sembocavam os esgotos <strong>de</strong> Lisboa e os<br />
sonetos do poeta Francisco Rodrigues Lobo,<br />
suicida do <strong>Tejo</strong> pescado numa re<strong>de</strong> como um<br />
sável <strong>de</strong> bigo<strong>de</strong>s. (…) Locomotivas em<br />
manobras separavam o homem <strong>de</strong> nome Luís<br />
dos edifícios da margem, obliquamente<br />
assentes no pavimento das calçadas como as<br />
naus do cerco da cida<strong>de</strong> no musgo do <strong>Tejo</strong>.».<br />
(As Naus, Lisboa, Dom Quixote, 1988, p. 22, 23)
Urbano Tavares Rodrigues<br />
«Isto já nem me excita nem me enoja, cheira a<br />
cadáver, é como o riso <strong>de</strong>s<strong>de</strong>ntado da poluição<br />
que inva<strong>de</strong> a cida<strong>de</strong> dia após dia. Porca, venal,<br />
asfixiante. Até o rio é venal, o belo <strong>Tejo</strong> das<br />
velas vermelhas, até o mar-oceano vendido<br />
aos turistas estrangeiros, aos espanhóis, que<br />
não param <strong>de</strong> comprar Lisboa, que hão-<strong>de</strong> ficar<br />
com estes escarros. Ricas gargantas, os berros<br />
que dão. Alimento a minha vida com esta<br />
morte, com esta carne podre. Ou é a morte<br />
pressurosa e falsa que nutre a minha vida, que<br />
joga às escondidas com as minhas noites?»<br />
(O Supremo Interdito, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2000, 2ª ed., pp. 169-170)
Baptista-Bastos<br />
«Anda daí, Dilecta. Vê os cacilheiros fen<strong>de</strong>ndo este lençol <strong>de</strong><br />
água clara e ondulada, que nos avisa ser possível ir mais além,<br />
muito mais além do que permite o horizonte visível. O rio murmuranos<br />
que o sonho é possível, que po<strong>de</strong>mos estar noutros sítios, nas<br />
angolas, nos cabo-ver<strong>de</strong>s, nos brasis, no frio, no tépido, no calor, se<br />
assim <strong>de</strong>sejarmos: basta <strong>de</strong>sejar.<br />
Passear é a gran<strong>de</strong> festa dos tímidos. Passeia-te, pois, e à<br />
tua timi<strong>de</strong>z, por esta praça ampla, a Black Horse Square dos<br />
ingleses, que exprime a crença do equilíbrio e da harmonia, e que<br />
foi o terreiro <strong>de</strong> aplausos e <strong>de</strong> apupos. Assiste, <strong>de</strong> coração<br />
lânguido, à brisa a cavalgar nas ondas, e – ei-la, a enseada amena<br />
dos fenícios, a laçada mágica do cruzado Osberno, que viu ouro<br />
nas areias do <strong>Tejo</strong> e tritões a vogar serenos nas calmarias do rio.<br />
Observa as sirgas puxadas por mãos ru<strong>de</strong>s. Sente o odor a<br />
salsugem e a alcatrão. Segue o voo pesado das gaivotas. Aspira os<br />
perfumes <strong>de</strong> Maio e baila nos bailes dos Santos, nas noites<br />
populares e cívicas <strong>de</strong> Junho, quando o rio muda <strong>de</strong> cor e Lisboa<br />
fica docemente frágil.<br />
E, por falar em Lisboa, ce<strong>de</strong> ao impulso: cais e eternida<strong>de</strong>,<br />
aqui, daqui. Aqui chamo meu a tudo.<br />
Anota, <strong>de</strong>vagar e brando: Lisboa foi sempre a eternida<strong>de</strong> da<br />
partida: aventura, alumbramento, bravura, sonho e flores. Há nisto<br />
uma vaida<strong>de</strong> solene, eu sei. Mas quando Lisboa é o cais da<br />
chegada, a chegada traz consigo o drama e a tragédia: as<br />
caravelas <strong>de</strong>stroçadas, os torna-viagens da miséria, os soldados<br />
estropiados, os corpos dos mortos, o fim do império. Um lenço: o<br />
sudário.<br />
Este rio personifica o que traz e o que leva, mas também o<br />
que separa.»<br />
(Lisboa Contada pelos Dedos – Crónicas, [Lisboa],<br />
Montepio Geral, 2001, pp. 20-21)
Joaquim Pessoa<br />
(…)<br />
A cida<strong>de</strong> a esta hora está a ruir por <strong>de</strong>ntro<br />
mas está tudo bem é óptimo isto tudo<br />
eu sigo embatucado pela margem do <strong>Tejo</strong><br />
sou eu agora quem aposta nas gaivotas contra a nafta<br />
vejo passar um petroleiro grego – o Parténon – será?<br />
por ali fico duas ou três horas a olhar as águas<br />
o <strong>Tejo</strong> é hoje uma maldita avenida e há cada vez menos árvores<br />
o <strong>Tejo</strong> é um esgoto<br />
o <strong>Tejo</strong> é um esgoto<br />
oh por favor salvemos ao menos as gaivotas<br />
por favor salvemos<br />
ao menos<br />
as gaivotas<br />
(…)<br />
(«Poluição» in 125 Poemas. Antologia Poética, Lisboa, Litexa, 1989<br />
p. 129)
Joaquim Pessoa<br />
Canção <strong>de</strong> estar tão vivo<br />
Tivera eu morrido trespassado<br />
E menos me custara do que estar<br />
De pé. E <strong>de</strong> tão vivo, assassinado.<br />
Que a morte é ter vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> cantar.<br />
Tivera eu partido e não voltasse<br />
Às margens quase puras do meu <strong>Tejo</strong>.<br />
Tivesse eu uma rosa e caminhasse.<br />
Que a morte é dar a vida por um beijo.<br />
Pu<strong>de</strong>ra eu dizer, amor, <strong>de</strong> nós<br />
A ternura cobrindo a nossa cama.<br />
Gritar por ti até per<strong>de</strong>r a voz.<br />
Que a morte está mais perto <strong>de</strong> quem ama.<br />
Pu<strong>de</strong>ra então ao menos ficar mudo<br />
E nada mais dizer. Nada cantar.<br />
Como se já tivera eu cantado tudo<br />
E a morte acontecesse <strong>de</strong>vagar.<br />
(«Canção <strong>de</strong> estar tão vivo» in 125 Poemas. Antologia Poética,<br />
Lisboa, Litexa, 1989 p. 73)
Armindo Rodrigues<br />
«(…) Só vadios e poetas te queremos,<br />
meu <strong>Tejo</strong> antigo, eternamente novo.<br />
E, contudo, és as vértebras <strong>de</strong> um povo.<br />
Um bote surge chapinhando os remos,<br />
Enquanto eu com um pé as águas movo.<br />
De repente, a distância, uma voz grave<br />
Canta, e a lua torna-se maior.<br />
Desfolha-se a canção como uma flor.<br />
Rio umas vezes ru<strong>de</strong>, outras suave,<br />
és tu que cantas, ou a nossa dor?<br />
Se o José Gomes não estivesse aqui,<br />
tenho a certeza <strong>de</strong> que choraria,<br />
<strong>de</strong>ste misto <strong>de</strong> raiva e nostalgia<br />
que sinto ao lembrar-me que perdi<br />
o mundo justo em que em menino cria.<br />
A equida<strong>de</strong> a que aspirei secou.<br />
Por isso o <strong>de</strong>salento é-me cruel,<br />
cruel é-me a veemência que o repele,<br />
sai-me cruel até o próprio dó.<br />
Por isso me é, não raro, a vida fel.<br />
Mudos voltamos ao Rossio on<strong>de</strong><br />
há sempre um vão rumor <strong>de</strong> gente vã.<br />
Torna-se a alegria brusca e sã.<br />
Também <strong>de</strong>pois da noite que nos escon<strong>de</strong><br />
romperá uma lúcida manhã.»<br />
(«O<strong>de</strong> Quarta», in Maria Alberta MENÉRES e E. M. <strong>de</strong> Melo e CASTRO,<br />
Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977, vol. I, Lisboa, Moraes Ed., 1979,<br />
pp. 121-122)
Sophia <strong>de</strong> Mello Breyner Andresen<br />
Aqui e além em Lisboa ─ quando vamos<br />
Com pressa ou distraídos pelas ruas<br />
Ao virar da esquina <strong>de</strong> súbito avistamos<br />
Irisado o <strong>Tejo</strong>:<br />
Então se tornam<br />
Leve o nosso corpo e a alma alada<br />
(«<strong>Tejo</strong>», in Musa, Lisboa, Caminho, 1997, 3ª ed., p. 42)
Alberto Caeiro<br />
O <strong>Tejo</strong> é mais belo que o rio que corre pela minha al<strong>de</strong>ia,<br />
Mas o <strong>Tejo</strong> não é mais belo que o rio que corre pela minha al<strong>de</strong>ia<br />
Porque o <strong>Tejo</strong> não é o rio que corre pela minha al<strong>de</strong>ia.<br />
O <strong>Tejo</strong> tem gran<strong>de</strong>s navios<br />
E navega nele ainda,<br />
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,<br />
A memória das naus.<br />
O <strong>Tejo</strong> <strong>de</strong>sce <strong>de</strong> Espanha<br />
E o <strong>Tejo</strong> entra no mar em Portugal,<br />
Toda a gente sabe isso.<br />
Mas poucos sabem qual é o rio da minha al<strong>de</strong>ia<br />
E para on<strong>de</strong> ele vai<br />
E don<strong>de</strong> ele vem.<br />
E por isso, porque pertence a menos gente,<br />
É mais livre e maior o rio da minha al<strong>de</strong>ia.<br />
Pelo <strong>Tejo</strong> vai-se para o Mundo.<br />
Para além do <strong>Tejo</strong> há a América<br />
E a fortuna daqueles que a encontram.<br />
Ninguém nunca pensou no que há para além<br />
Do rio da minha al<strong>de</strong>ia.<br />
O rio da minha al<strong>de</strong>ia não faz pensar em nada.<br />
Quem está ao pé <strong>de</strong>le está só ao pé <strong>de</strong>le.<br />
(in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong> Adosinda Providência Torgal<br />
e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote, 2000, pp. 69-70)
Adolfo Casais Monteiro<br />
E aqui estou eu,<br />
ausente diante <strong>de</strong>sta mesa ─<br />
e ali fora o <strong>Tejo</strong>.<br />
Entrei sem lhe dar um só olhar.<br />
Passei, e não me lembrei <strong>de</strong> voltar a cabeça,<br />
e saudá-lo <strong>de</strong>ste canto da praça:<br />
«Olá, <strong>Tejo</strong>! Aqui estou eu outra vez!»<br />
Não, não olhei.<br />
Só <strong>de</strong>pois que a sombra <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos se sentou a meu lado<br />
me lembrei que estavas aí, <strong>Tejo</strong>.<br />
Passei e não te vi.<br />
Passei e vim fechar-me <strong>de</strong>ntro das quatro pare<strong>de</strong>s, <strong>Tejo</strong>!<br />
Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa em que Fernando<br />
[Pessoa se sentava,<br />
contigo e os outros invisíveis à sua volta,<br />
inventando vidas que não queria ter.<br />
Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, <strong>Tejo</strong>.<br />
Tudo são <strong>de</strong>sconhecidos, tudo é ausência no mundo,<br />
tudo indiferença e falta <strong>de</strong> resposta.<br />
(…)<br />
Preciso dum gran<strong>de</strong> dia a sós contigo, <strong>Tejo</strong>,<br />
para me lavar do que <strong>de</strong>ve andar <strong>de</strong> impuro <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim,<br />
para os meus olhos beberem a tua força <strong>de</strong> fluxo indomável,<br />
para me lavar do contágio que <strong>de</strong>ve andar a envenenar-me<br />
dos homens que não sabem olhar para ti e sorrir à vida,<br />
para que nunca mais, <strong>Tejo</strong>, os meus olhos possam voltar-se para outro lado<br />
quando tiverem diante <strong>de</strong> si a tua gran<strong>de</strong>za, <strong>Tejo</strong>,<br />
mais bela que qualquer sonho,<br />
porque é real, concreta, e única!<br />
(«O<strong>de</strong> ao <strong>Tejo</strong> e à memória <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos», in Lisboa com Seus<br />
Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong> Adosinda Providência Torgal e Clotil<strong>de</strong> Correia<br />
Botelho, Lisboa, Dom Quixote, 2000, pp. 71 e 73)
Alberto <strong>de</strong> Lacerda<br />
Ó <strong>Tejo</strong> ó das asas largas<br />
Pássaro lindo que se ouve em todas as ruas <strong>de</strong> Lisboa<br />
Ó coroa duma cida<strong>de</strong> maravilhosa<br />
Ó manto célebre nas cortes do mundo inteiro<br />
Faixa antiga duma cida<strong>de</strong> mourisca<br />
Fénix astro caravela líquida<br />
Silêncio marulhante das coisas que vão acontecer<br />
Deslizar sem <strong>de</strong>sastres sem fado sem presságio<br />
Tu ó majestoso ó Rei ó simplicida<strong>de</strong> das coisas belíssimas<br />
Nas tar<strong>de</strong>s em que o sol te queima passo junto <strong>de</strong> ti<br />
E chamo-te numa voz sem palavras marejada <strong>de</strong> lágrimas<br />
Meu irmão mais velho<br />
(«Hino ao <strong>Tejo</strong>», in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong> Adosinda<br />
Providência Torgal e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote, 2000, p.<br />
83)
João Rui <strong>de</strong> Sousa<br />
Sentado à beira-<strong>Tejo</strong>, à porta <strong>de</strong> Lisboa,<br />
eu penso em quantas naus outrora havidas<br />
não estiveram presentes nas chegadas,<br />
na glória <strong>de</strong> contar as glórias idas,<br />
tendo estado nas fainas perfiladas<br />
para o clamor e o assombro das partidas.<br />
(«Restelo», in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong> Adosinda<br />
Providência Torgal e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote, 2000, p.<br />
284)
António Manuel Couto Viana<br />
Frágeis, acenam alvos lenços d’asas<br />
as gaivotas que a brisa, mansa, embala.<br />
O rio azula, emoldurado em casas.<br />
─ Que lindo quadro para pôr na sala!<br />
No lírico perfil fogem veleiros,<br />
On<strong>de</strong> embarquei uns restos <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong>;<br />
e no cais, os guindastes e os cargueiros<br />
são prática e viril realida<strong>de</strong>.<br />
É mentira, talvez,<br />
assinar com meu nome esta poesia:<br />
O <strong>Tejo</strong> foi quem na fez…<br />
Cheira a limos, a sal, a maresia.<br />
(«Miradouro», in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong> Adosinda<br />
Providência Torgal e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote, 2000, p.<br />
75)
O <strong>Tejo</strong> em Junho<br />
Gastão Cruz<br />
O mês <strong>de</strong> junho altera a qualida<strong>de</strong><br />
variável do tempo o mês <strong>de</strong>screve<br />
a solução do tempo sobre as águas<br />
O mês <strong>de</strong> junho altera o ar convulso<br />
Não é fácil findar quando as exaustas<br />
sementes se avolumam sob as casas<br />
(in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong> Adosinda Providência Torgal<br />
e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote, 2000, p. 87)
António Botto<br />
(…) Olho agora o <strong>Tejo</strong> e os montes,<br />
E os barcos… Saindo a barra,<br />
Alcanço, ainda, um navio<br />
Per<strong>de</strong>ndo-se, lentamente,<br />
Longe, na distância, além…<br />
Chega-me a voz <strong>de</strong> um clarim.<br />
Uma formatura passa,<br />
E os soldados vão risonhos<br />
Nas suas fardas <strong>de</strong> cotim.<br />
Saio, e <strong>de</strong>sço uma calçada<br />
Com prédios <strong>de</strong> arquitectura<br />
Nem má nem boa; ─ pequenas<br />
E toscas habitações…<br />
A luz do Sol é mais clara,<br />
Mais cintilante, maior…<br />
Chora <strong>de</strong>ntro do meu peito<br />
Uma lembrança <strong>de</strong> amor.<br />
(«No Castelo <strong>de</strong> S. Jorge», in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong><br />
Adosinda Providência Torgal e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote,<br />
2000, pp. 27-28)
Eugénio <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Esta névoa sobre a cida<strong>de</strong>, o rio,<br />
as gaivotas doutros dias, barcos, gente<br />
apressada ou com o tempo todo para per<strong>de</strong>r,<br />
esta névoa on<strong>de</strong> começa a luz <strong>de</strong> Lisboa,<br />
rosa e limão sobre o <strong>Tejo</strong>, esta luz <strong>de</strong> água,<br />
nada mais quero <strong>de</strong> <strong>de</strong>grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>grau.<br />
(«Lisboa», in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong> Adosinda Providência<br />
Torgal e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote, 2000, p. 37)
António Ramos Rosa<br />
Vemos através da luz o que a luz faz aparecer<br />
e que sem ela seria opaca sombra<br />
Mas a luz <strong>de</strong> que maneira a vemos se estamos nela imersos<br />
e é tão transparente o seu fulgor<br />
que é nas coisas on<strong>de</strong> pousa que melhor a vemos<br />
Mais do que a visão que cinge e <strong>de</strong>limita quanto vemos<br />
a luz respira-se como algo que nos é dado em imediata oferenda<br />
e se nela reparamos não é com a atenção fixa com que vemos as coisas<br />
mas com um olhar que se espraia na sua in<strong>de</strong>finida e fulgurante evidência<br />
em que se consuma e renova continuamente aberta e absorta<br />
e não se <strong>de</strong>tém porque é o movimento <strong>de</strong> uma percepção evanescente<br />
Como qualificar a luz <strong>de</strong> Lisboa que no entanto sentimos tão peculiar<br />
se a <strong>de</strong>spojarmos das casas e dos muros das praças e dos pátios<br />
das ruas e dos passeios <strong>de</strong> pedras <strong>de</strong>senhadas<br />
ou do largo esplendor do <strong>Tejo</strong>? (…)<br />
(in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong> Adosinda Providência Torgal<br />
e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote, 2000, p. 38)
Vasco Graça Moura<br />
po<strong>de</strong>s caber à larga e não à justa no elevador <strong>de</strong> santa justa,<br />
não te leva a parte nenhuma no sentido utilitário normal,<br />
mas é a nossa torre eiffel. faz a experiência. por sinal<br />
é um caso em que não custa apren<strong>de</strong>r à nossa custa:<br />
variamente na vida e na ascese se flibusta,<br />
e apren<strong>de</strong>r à nossa custa é muito mais ascensional.<br />
po<strong>de</strong>s subir até ao miradouro se a altura não te assusta:<br />
lisboa é cor <strong>de</strong> rosa e branco, o céu azul ferrete é tridimensional,<br />
po<strong>de</strong>s subir sozinho, há muito espaço experimental.<br />
noutros elevadores há sempre alguém que barafusta,<br />
mas não aqui: não fica muito longe a rua augusta,<br />
e em lisboa é o único a subir na vertical.<br />
no tejo há a barcaça, a caravela, a nau, o cacilheiro, a fusta,<br />
luzindo à noite numa memória intensa e <strong>de</strong>sigual.<br />
com o cesário dorme a última varina, a mais robusta.<br />
não é para <strong>de</strong>soras o elevador <strong>de</strong> santa justa,<br />
arrefece-lhe o esqueleto <strong>de</strong> metal.<br />
mas tens o dia todo à luz do dia. não faz luz.<br />
(«O Elevador <strong>de</strong> Santa Justa»,in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong><br />
Adosinda Providência Torgal e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote,<br />
2000, pp. 113-114)
Café glacé… Vida boa…<br />
Tempo plano, claro, quieto…<br />
Rodar suave do eléctrico…<br />
Última tar<strong>de</strong> em Lisboa…<br />
Há um quadrante doirado,<br />
Rosa-chá por <strong>de</strong>sfolhar,<br />
Naquela casa <strong>de</strong> esquina<br />
Com alecrim no telhado…<br />
Café glacé… vida amiga…<br />
Âncora na água do rio…<br />
Grão <strong>de</strong> areia, remo esguio…<br />
Minha infância reavida…<br />
Tão sossegada à janela<br />
Prostitutinha <strong>de</strong> branco…<br />
E a brisa fresca do <strong>Tejo</strong><br />
Não <strong>de</strong>sfaz a aguarela…<br />
Cristovam Pavia<br />
(«Outra Canção Gratuita»,in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong><br />
Adosinda Providência Torgal e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote,<br />
2000, p. 139)
Entre a poeira<br />
do dia surdo,<br />
negro garoto<br />
lambe o gelado.<br />
É um polícia<br />
que vem saber<br />
porque é que dói<br />
a solidão?<br />
O <strong>Tejo</strong> bate<br />
como que à porta,<br />
calam pessoas<br />
sua chamada.<br />
Os automóveis<br />
têm sentido<br />
<strong>de</strong> não saberem<br />
para on<strong>de</strong> vão.<br />
A mãe sorriu<br />
e o filho está<br />
<strong>de</strong>sfeito em sangue<br />
no ventre escuro…<br />
Não foi para isto…<br />
Em vão, em vão<br />
nas algibeiras<br />
dão pelo engano…<br />
Na clareira<br />
da praça aberta<br />
não há quem faça<br />
outra pergunta:<br />
─ On<strong>de</strong> está ele?<br />
Respon<strong>de</strong> a mãe<br />
Pedro Tamen<br />
(in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong> Adosinda Providência Torgal<br />
e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote, 2000, pp. 140-141)
Mário Dionísio<br />
Ó quarteirões <strong>de</strong> casas escuras<br />
sem cortinados nas janelas<br />
O dia é como a noite a noite é como o dia<br />
e o <strong>Tejo</strong> aqui ao lado traz nas águas<br />
pedaços <strong>de</strong> óleo e restos da cida<strong>de</strong><br />
Ó quarteirões <strong>de</strong> casas escuras<br />
por trás <strong>de</strong> montes <strong>de</strong> carvão<br />
que sabeis vós das nuvens dos poetas?<br />
As vossas nuvens são <strong>de</strong> fumo<br />
do fumo negro dos navios <strong>de</strong> cargo<br />
e <strong>de</strong> outros fumos negros da cida<strong>de</strong><br />
Ruas sem nomes Iguais iguais<br />
como estas mãos e essas mãos<br />
como estes pés e esses pés<br />
que a vida <strong>de</strong>formou<br />
Ó quarteirões <strong>de</strong> casas escuras<br />
o que enche aqui o ar é este grito repetido<br />
dos guindastes no cais<br />
e a matraca repetida dos comboios<br />
<strong>de</strong> mercadorias<br />
Ó quarteirões <strong>de</strong> casas escuras<br />
os barracões engolem homens<br />
os barracões vomitam homens<br />
Rio<br />
foste tu que inspiraste as ninfas ao Poeta?<br />
Rio<br />
és tu que inspiras os poetas?<br />
(…)<br />
(«No Cais», in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong> Adosinda<br />
Providência Torgal e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote, 2000, pp.<br />
206-207)
O lugar <strong>de</strong> repouso<br />
está por inventar<br />
A cida<strong>de</strong> é morna<br />
o rio vazio<br />
nem o mar é filho do mundo<br />
nem o mundo é mar<br />
nem o meu corpo<br />
um chapéu <strong>de</strong> ilusionar<br />
A cida<strong>de</strong> é morna<br />
o espaço baço<br />
nem caem da face os olhos<br />
nem se per<strong>de</strong> o braço<br />
Na cida<strong>de</strong><br />
on<strong>de</strong> há a mais<br />
a água e a se<strong>de</strong><br />
como animais<br />
Os sinais chegam<br />
pelo mesmo aqueduto<br />
Se água é limpa<br />
o sangue é bruto<br />
Exacerbadamente<br />
vejo que on<strong>de</strong><br />
estamos teremos<br />
Já temos <strong>Tejo</strong><br />
(…)<br />
Luiza Neto Jorge<br />
*<br />
*<br />
(«Esta Cida<strong>de</strong>», in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong> Adosinda<br />
Providência Torgal e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote, 2000, pp.<br />
216-217)
Fernando Pinto do Amaral<br />
«Nas nossas ruas, ao anoitecer»,<br />
abre-se num olhar a pena errante<br />
<strong>de</strong> quem se ilu<strong>de</strong> em passos vagarosos,<br />
em mais um jogo incerto <strong>de</strong> cem luzes<br />
sob este céu tão baço. Como sempre<br />
os mudos automóveis sobem, <strong>de</strong>sce<br />
ruas e ruas rumo a outras ruas<br />
polvilhadas <strong>de</strong> gente que regressa<br />
sem ter partido ─ insectos ondulando<br />
ao som das lentas horas fatigadas,<br />
rostos esfarrapados <strong>de</strong> trabalhos<br />
inúteis como a tar<strong>de</strong> que se entrega<br />
às doces mãos secretas do crepúsculo<br />
vibrante no <strong>de</strong>clive dos telhados<br />
em <strong>de</strong>graus sobre o <strong>Tejo</strong>. (…)<br />
(«Elegia <strong>de</strong> Lisboa», in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong> Adosinda<br />
Providência Torgal e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote, 2000, p. 241)
Pedro da Silveira<br />
Primeiro, a água era azul:<br />
puro espelho celeste.<br />
Depois, tornou-se ver<strong>de</strong>:<br />
opaco ver<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sgosto.<br />
Agora é barro dissolvido:<br />
terra<br />
<strong>de</strong> Portugal que o <strong>Tejo</strong> incita<br />
a <strong>de</strong>scobrir as Índias<br />
e Américas ainda<br />
por encanto encobertas.<br />
─ De quem o lenço que acena,<br />
acolá,<br />
do cais?<br />
(«(Duas da Tar<strong>de</strong>: Lisboa à vista)», in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea,<br />
org. <strong>de</strong> Adosinda Providência Torgal e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom<br />
Quixote, 2000, p. 283)
Fernando Assis Pacheco<br />
Como as or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> Sebastião José<br />
<strong>de</strong> Carvalho e Melo no terramoto,<br />
«cuidar dos vivos, enterrar os mortos»,<br />
digo <strong>de</strong>ste amor que tive<br />
pior que terra sacudindo-se,<br />
em que morri, matei, enchi a noite<br />
<strong>de</strong> gemidos agudos sob as pedras<br />
(on<strong>de</strong> era a rua, gente, Alfama, pombos),<br />
este amor que espera o arquitecto<br />
Eugénio dos Santos para riscar Lisboa.<br />
Porque é preciso cuidar dos vivos,<br />
pôr os mortos no seu lugar:<br />
que não tomem o lugar dos vivos.<br />
Abril janelas ao sol <strong>de</strong> Maio,<br />
beber o sol, beber Maio e a vida.<br />
Moveu-se a terra, caíram casas, largou-se<br />
o rio <strong>Tejo</strong> por Lisboa <strong>de</strong>ntro.<br />
Ó amor sepultei-te, quero um amor<br />
mais firme do que a terra, mais veloz que o vento,<br />
uma cida<strong>de</strong> nova nos meus olhos.<br />
(«Cuidar dos vivos», in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong> Adosinda<br />
Providência Torgal e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote, 2000, p. 291)
João Camilo<br />
A violência gelada do cair da chuva e <strong>de</strong>pois<br />
a água <strong>de</strong> lama correndo nas valetas <strong>de</strong> Lisboa,<br />
cida<strong>de</strong> mais abandonada e triste do Inverno.<br />
Nostalgia ferida <strong>de</strong> outra vida.<br />
Aquele que somos e não soube<br />
surpreen<strong>de</strong>r o <strong>Tejo</strong> na nascente, no mar escuta<br />
os ruídos <strong>de</strong> comboios percorrendo os carris.<br />
Ser português e não ir nem ter ficado longe,<br />
junto <strong>de</strong> planícies imensas, ver<strong>de</strong>s,<br />
em que colinas apenas têm o instinto breve<br />
<strong>de</strong> se elevarem e repousam. Como ondas<br />
altas e redondas, como o olhar imaturo<br />
da aventura alarga-se o remorso.<br />
Porque voltámos?<br />
(«Como o olhar imaturo», in Lisboa com Seus Poetas: Colectânea, org. <strong>de</strong> Adosinda<br />
Providência Torgal e Clotil<strong>de</strong> Correia Botelho, Lisboa, Dom Quixote, 2000, p. 314)