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As Ironias da Fortuna - UC Digitalis - Universidade de Coimbra

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58 Delfim Ferreira Leão<br />

<strong>da</strong> actuali<strong>da</strong><strong>de</strong> ia ser duro, <strong>de</strong>scansam numa pequena pousa<strong>da</strong> e só ao<br />

outro dia afrontam a turba dos heredipetae. Estes caem sobre o grupo<br />

como amigos, mas as suas intenções são malévolas. Contudo, os caçadores<br />

<strong>de</strong> heranças não sabem que, <strong>de</strong>sta feita, as possíveis vítimas<br />

estão arma<strong>da</strong>s com a manha rapace dos pre<strong>da</strong>dores.<br />

Há ain<strong>da</strong> um outro factor que po<strong>de</strong> favorecer a interpretação <strong>da</strong><strong>da</strong><br />

ao final do poema e à chega<strong>da</strong> a Crotona. Eumolpo parece necessitar<br />

dos versos como do ar que respira. É com razão que Encólpio lhe diz<br />

(90.3):<br />

Rogo, [ .... ] quid tibi uis cum isto morbo? Minus quam duabus<br />

horis mecum moraris, et saepius poetice quam humane locutus es.<br />

Explica-me lá: [ .... ] on<strong>de</strong> preten<strong>de</strong>s tu chegar com essa tua<br />

mania? An<strong>da</strong>s comigo há menos <strong>de</strong> duas horas e já mais vezes falaste à<br />

maneira dos poetas que dos humanos.<br />

Embora Eumolpo leve uma existência mais <strong>de</strong> acordo com as<br />

histórias do que com a sua poesia moralizante,63 o certo é que ela é<br />

muito importante na sua vi<strong>da</strong>. Analise-se um último passo, precisamente<br />

aquele em que Encólpio e Gíton assistem à génese <strong>de</strong> uma parte<br />

do Bellum ciuile (115.4):<br />

At ille interpellatus excanduit et «Sinite me» inquit «sententiam<br />

explere; laborat carmen in fine.»<br />

Mas ele, ao ver-se interrompido, entrou em fúria e gritou: «Deixem-me<br />

acabar esta frase; está encravado o poema na parte final.»<br />

A interpretação mais óbvia é que Eumolpo está com problemas<br />

<strong>de</strong> inspiração no último momento. Acontece aos melhores, mas a<br />

loquaci<strong>da</strong><strong>de</strong> poética do Bom Cantor <strong>de</strong>ixava prever o contrário. Por<br />

isso será possível outra visão: a sua vi<strong>da</strong>, como um carme, está a chegar<br />

ao fim. Eumolpo prepara-se, sem o saber, para compor o episódio<br />

mais elaborado <strong>da</strong> sua existência. Exactamente o que vai pôr em prática<br />

em Crotona e lhe vai permitir um po<strong>de</strong>r e uma populari<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />

nunca lhe <strong>de</strong>ram versos nem histórias. Integrado nestas reflexões, o<br />

último verso do poema ganha, também, um renovado alcance (v. 295):<br />

Factwn est in terris, quicquid Discordia iussit. 64<br />

63 Cf. Beck, "Eumolpus poeta ... ", 253.<br />

64 'Cumpriu-se à face <strong>da</strong> terra tudo quanto a Discórdia <strong>de</strong>terminou.' Estas palavras<br />

dirigem-se primeiro às consequências imediatas <strong>da</strong> guerra civil, que a Discórdia<br />

antevê; po<strong>de</strong>m, por extensão, referir a <strong>de</strong>cadência <strong>da</strong> Roma imperial, <strong>de</strong> que<br />

Crotona é imagem, e a batalha tácita que Eumolpo e os amigos vão travar com os<br />

he redipe tae.<br />

Obra protegi<strong>da</strong> por direitos <strong>de</strong> autor

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