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23.02.2013 Views

ancos em condições de relativa igualdade que o crescimento do número das alforrias cria progressivamente até a Abolição, e o número de filhos de pais racialmente diversos dariam características próprias ao caso brasileiro. Mais tarde, a Abolição termina por revelar, com o transcurso dos anos, que a liberdade concedida não significava uma redefinição total na posição do negro, e que muito ainda havia por conquistar. A capoeira é uma arte dos angolas redefinida pela briga brasileira. A roda se armando com berimbau, chocalhos e pandeiros, os pares de lutadores se trocando com a música cantada. A agilidade testada contra marinheiros portugueses, pesados e muito fortes, quando o negócio era se afastar e dançar em volta esperando uma oportunidade. O corta-jaca é tanto um ataque característico da capoeira da cidade de Salvador como um passo de samba, da mesma forma que o batuque é uma variação da capoeira. Das formas tradicionais surgiram suas recriações, formas culturais extremamente relacionadas e duradouras em sua plasticidade, que se vitalizam com as possibilidades de trânsito e autonomia que o negro, apesar de tudo, progressivamente conquista. Muitos dos melhores capoeiristas baianos, considerados como gente turbulenta pelas autoridades, pouco dispostos a se conformar com as normas impostas pelas posturas municipais, são incorporados compulsoriamente pelo Exército para formar batalhões para a guerra contra o Paraguai. Da mesma forma como, em alguns casos, o escravo podia cumprir pena de prisão pelo senhor, era aceitável que se mandasse um escravo para o Exército em lugar do filho convocado. Já na luta de independência na Bahia, alguns batalhões de milícia eram compostos por negros, conhecidos como Legião dos Henriques, em homenagem a

Henrique Dias, que lutara junto aos portugueses contra o domínio holandês em Pernambuco. Aos que lutam na Guerra do Paraguai é dada a alforria. O negro que serve no Exército nacional, lutando ombro a ombro com os brancos, amadurece como cidadão, ganha asas, fica mais intolerante com as limitações de seu trânsito social, enfim, para ele é quase impossível voltar para onde partira. Incompreendido, impaciente, orgulhoso, ele aposta na mudança. Se as famílias e as etnias de origem representavam a ossatura da vida social, religiosa e de trabalho dos negros, no Brasil, os membros de um candomblé se consideram pertencentes a uma mesma família, a família de santo, substituta da linhagem africana desaparecida com a escravatura. Assim, é no candomblé e nas habitações coletivas que se espalham em Salvador, nas juntas de alforria já no século XIX, que o negro exerce sua personalidade profunda, seus ritmos e valores ligados ao inconsciente coletivo africano. Com a virada da metade do século se agravam as condições de vida na capital da Bahia, ocasionando já uma migração sistemática de negros sudaneses para o Rio de Janeiro. Para o negro forro a luta no mercado de trabalho se torna cada vez mais difícil, as casas coletivas superpovoadas. Os vínculos de nação seriam neste momento fundamentais para a manutenção de uma identidade própria, vínculos esses que só começariam a se desgastar depois da Abolição com a reestruturação radical por que passam as novas [pg. 42] “classes populares” brasileiras. Restava viver em dois mundos, ganhar espaços na vida subalterna dos pequenos serviços e nas vendas de rua e de feira, ou na exuberância das festas e na força do santo. Com o olho da polícia sempre voltado para os sudaneses e principalmente para os forros, alguns sentiriam a situação como insustentável. E os búzios mostravam para muitos a viagem.

ancos em condições de relativa igualdade que o crescimento do<br />

número das alforrias cria progressivamente até a Abolição, e o<br />

número de filhos de pais racialmente diversos dariam<br />

características próprias ao caso brasileiro. Mais tarde, a Abolição<br />

termina por revelar, com o transcurso dos a<strong>no</strong>s, que a liberdade<br />

concedida não significava uma redefinição total na posição do<br />

negro, e que muito ainda havia por conquistar.<br />

A capoeira é uma arte dos angolas redefinida pela briga<br />

brasileira. A roda se armando com berimbau, chocalhos e<br />

pandeiros, os pares de lutadores se trocando com a música<br />

cantada. A agilidade testada contra marinheiros portugueses,<br />

pesados e muito fortes, quando o negócio era se afastar e dançar<br />

em volta esperando uma oportunidade. O corta-jaca é tanto um<br />

ataque característico da capoeira da cidade de Salvador como um<br />

passo de samba, da mesma forma que o batuque é uma variação<br />

da capoeira. Das formas tradicionais surgiram suas recriações,<br />

formas culturais extremamente relacionadas e duradouras em sua<br />

plasticidade, que se vitalizam com as possibilidades de trânsito e<br />

auto<strong>no</strong>mia que o negro, apesar de tudo, progressivamente<br />

conquista.<br />

Muitos dos melhores capoeiristas baia<strong>no</strong>s, considerados<br />

como gente turbulenta pelas autoridades, pouco dispostos a se<br />

conformar com as <strong>no</strong>rmas impostas pelas posturas municipais,<br />

são incorporados compulsoriamente pelo Exército para formar<br />

batalhões para a guerra contra o Paraguai. Da mesma forma<br />

como, em alguns casos, o escravo podia cumprir pena de prisão<br />

pelo senhor, era aceitável que se mandasse um escravo para o<br />

Exército em lugar do filho convocado. Já na luta de independência<br />

na Bahia, alguns batalhões de milícia eram compostos por negros,<br />

conhecidos como Legião dos Henriques, em homenagem a

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