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23.02.2013 Views

galinhas — às vezes com reminiscências de velhos cultos fálicos ou totêmicos. Arrumado por cima de folhinhas frescas de banana e dentro de tabuleiros enormes, quase litúrgicos, forrados de toalhas alvas como pano de missa. [pg. 33] Com o esfacelamento da família africana pela escravatura, é geralmente em torno da mulher que começa a se formar uma nova família negra entre os forros, assim como são principalmente elas que mantêm o culto. As precárias condições de moradia e de trabalho a que fica exposta a maior parte dos libertos fazem com que a prole fique, na maior parte das situações, sob a responsabilidade única da mulher, que, com a precariedade das ligações, tem geralmente filhos de diferentes pais. O descompasso psicológico ocasionado pela libertação depois de uma vida de cativeiro, a incerteza frente às ambiguidades da nova situação forçam o negro liberto a se amoldar a expedientes para sobreviver, vivendo aqui e ali, trocando de quarto nas casas de cômodos de nação, ou se instalando em casebres erguidos longe do Centro da cidade. As mulheres respondem com bravura à situação: uma vez forras, e entre estes são maioria, procuram trabalho ligado à cozinha ou à venda nas ruas de pratos e doces de origem africana, alguns do ritual religioso, a comida de santo, e recriações profanas propiciadas pela ecologia brasileira. Algumas trabalham ligadas às casas aristocráticas, onde recebem sua cidadania de segunda classe; outras preferem se manter trabalhando em grupo, geralmente como pequenas empresárias independentes, cooperativadas, produzindo e vendendo sua criações. Verger fala do espírito ao mesmo tempo empreendedor e dominador da mulher: o homem se enfraquece no abandono do filho e com a perda da liderança que a mulher assume na vida religiosa. É dela que dependerá muito o destino e a continuidade do grupo, o poder

edefinido entre os sexos, a poligamia africana dos machos senhores superada pelo matriarcalismo que se desenha nos bairros afastados de Salvador, como depois aconteceria no Rio de Janeiro. Na escravatura, quando o escravo era integrado à família do senhor como “criado”, o número menor de homens e a instabilidade da sua vida, sempre à mercê de ser vendido e então enviado para outro lugar, não importando a duração ou significado das relações que mantivesse com o grupo ou com indivíduos do grupo em torno de seu antigo dono, torna as relações amorosas preferencialmente provisórias. Mesmo o casamento formal entre escravos, que era eventualmente autorizado pelos senhores, não impedia a separação dos cônjuges, acaso aqueles o decidissem. Era também comum casais formados arbitrariamente, a partir dos interesses na reprodução dos escravos por parte dos senhores. A criança geralmente só tinha mãe, integrando-se à comunidade de senhores e escravos, com seus “aposentos” comuns ou rigorosamente separados, se sobrepondo à vida familiar do negro, praticamente inexistente. As irmandades para leigos floresceriam na Igreja durante a Colônia, como um expediente regulador do comportamento e das relações sociais entre grupos racial e socialmente diversos, amortecendo os choques, fazendo com que cada um se sentisse igual entre “os seus”, estes cuidadosamente definidos pela organização eclesiástica. Já os dominicanos haviam enviado seus missionários à África apoiados pelo Estado português, difundindo o culto de santos e virgens negras num catolicismo separado. Este, ao incorporar elementos culturais do novo grupo abordado, redefinia-os de acordo com os princípios da cristandade, e mais especificamente, de acordo com as necessidades de manutenção

galinhas — às vezes com reminiscências de velhos cultos fálicos ou<br />

totêmicos. Arrumado por cima de folhinhas frescas de banana e dentro<br />

de tabuleiros e<strong>no</strong>rmes, quase litúrgicos, forrados de toalhas alvas<br />

como pa<strong>no</strong> de missa. [pg. 33]<br />

Com o esfacelamento da família africana pela escravatura, é<br />

geralmente em tor<strong>no</strong> da mulher que começa a se formar uma <strong>no</strong>va<br />

família negra entre os forros, assim como são principalmente elas<br />

que mantêm o culto. As precárias condições de moradia e de<br />

trabalho a que fica exposta a maior parte dos libertos fazem com<br />

que a prole fique, na maior parte das situações, sob a<br />

responsabilidade única da mulher, que, com a precariedade das<br />

ligações, tem geralmente filhos de diferentes pais. O descompasso<br />

psicológico ocasionado pela libertação depois de uma vida de<br />

cativeiro, a incerteza frente às ambiguidades da <strong>no</strong>va situação<br />

forçam o negro liberto a se amoldar a expedientes para sobreviver,<br />

vivendo aqui e ali, trocando de quarto nas casas de cômodos de<br />

nação, ou se instalando em casebres erguidos longe do Centro da<br />

cidade.<br />

As mulheres respondem com bravura à situação: uma vez<br />

forras, e entre estes são maioria, procuram trabalho ligado à<br />

cozinha ou à venda nas ruas de pratos e doces de origem africana,<br />

alguns do ritual religioso, a comida de santo, e recriações profanas<br />

propiciadas pela ecologia brasileira. Algumas trabalham ligadas às<br />

casas aristocráticas, onde recebem sua cidadania de segunda<br />

classe; outras preferem se manter trabalhando em grupo,<br />

geralmente como pequenas empresárias independentes,<br />

cooperativadas, produzindo e vendendo sua criações. Verger fala<br />

do espírito ao mesmo tempo empreendedor e dominador da<br />

mulher: o homem se enfraquece <strong>no</strong> abando<strong>no</strong> do filho e com a<br />

perda da liderança que a mulher assume na vida religiosa. É dela<br />

que dependerá muito o desti<strong>no</strong> e a continuidade do grupo, o poder

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