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23.02.2013 Views

multiplicidade de iniciativas que não nos autoriza ir mais longe do que perceber líderes de rua, de ponto, de bando, que, multiplicados, enfrentam a polícia municipal e depois o Corpo de Bombeiros e batalhões de Exército chamados às pressas. A luta sangrenta, não registrada nos livros de uma história voltada para o mito nacional da harmonia e da passividade popular frente aos governantes, termina em muitas mortes e prisões, como um episódio relevante, cruento, no processo de reestruturação da cidade, que se valeria do tijolo à pólvora para impor sua racionalidade civilizatória. Em novembro de 1910, durante as festividades que marcavam a subida à presidência de Hermes da Fonseca, estoura outra rebelião de caráter popular, desta vez, uma revolta na armada de guerra, quando os marinheiros, sob o comando do negro João Cândido, tomam três cruzadores fundeados na baía de Guanabara e, voltando seus canhões sobre a capital federal, exigem uma nova abolição, rebelando-se contra os castigos corporais impostos pela Marinha. Oswald de Andrade, surpreendido pelos acontecimentos em meio a um namoro com uma atriz da companhia Grasso, mais tarde evocaria os acontecimentos num livro de memórias: No Rio de Janeiro assisti à primeira revolução política que o Brasil teve nesse século — a do marinheiro João Cândido. O marechal Hermes da Fonseca tinha assumido a presidência da República num ambiente de grande hostilidade. Era um joguete mais ou menos cretino nas mãos do caudilho sulista Pinheiro Machado. Foi quando se esboçou a luta civilista encabeçada pela figura de Rui Barbosa. Uma noite, tendo-se demorado numa pensão do Centro, em visita aos artistas de Giovanni Grasso, senti, à madrugada que começava, um movimento desusado na rua, onde passou a trote um piquete de cavalaria. A estranheza do fato cresceu quando ouvi falar a palavra revolução entre gente que juntava nas esquinas. Revolução? Coisa assombrosa para a sede de

emoção e conhecimento de minha mocidade. Indaguei como se passava o caso e apontaram-me o mar. Apressei-me em alcançar o começo da avenida Central, hoje Rio Branco, no local onde se abre a praça Paris. Aproximei-me do cais, entre sinais verdes e vermelhos, escutei um prolongado soluço de [pg. 141] sereia. Aquele grito lúgubre no mar escuro me dava exata medida da subversão. Que seria? (Oswald de Andrade, em Um homem sem profissão). A mais aristocrática de nossas armas, a Marinha, na Primeira República recrutava seus oficiais entre a antiga nobreza do Império, entre os filhos da aristocracia rural e na nova burguesia urbana. Já a marujada que sempre faltava, tal era a fama da vida de marinheiro, era arrebanhada à força para preencher os quadros, de forma autoritária, contrária às leis estabelecidas na “democracia” brasileira, aferrados os rapazes a engajamentos nunca menores que dez anos. Marinheiros principalmente negros e mestiços, responsáveis pelas manobras braçais nos enormes navios importados pelas compras faraônicas da Marinha, autorizadas pelo Congresso de Rodrigues Alves, ou como criados dos elegantes oficiais em sua elaborada rotina, muitos dos engajados meninos de menos de quinze anos. As grandes verbas obtidas pela Marinha — que, juntamente com três grandes couraçados, compra dos estaleiros ingleses mais outras 24 naves, sendo três submarinos — não repercute nos salários dos marinheiros nem nas suas condições de trabalho. A dureza do trabalho e a rigidez da disciplina militar mantida por um regime penal apoiado em castigos corporais, um resíduo direto da escravatura, como afirmavam os comunicados dos marinheiros à Presidência e ao Congresso, ao longo dos acontecimentos. Mas um bárbaro chibatamento de um marinheiro faz surgir a revolta há muito armada nas conversas entre a marujada, a luta se precipitando com a visão insuportável do corpo do companheiro

multiplicidade de iniciativas que não <strong>no</strong>s autoriza ir mais longe do<br />

que perceber líderes de rua, de ponto, de bando, que,<br />

multiplicados, enfrentam a polícia municipal e depois o Corpo de<br />

Bombeiros e batalhões de Exército chamados às pressas. A luta<br />

sangrenta, não registrada <strong>no</strong>s livros de uma história voltada para<br />

o mito nacional da harmonia e da passividade popular frente aos<br />

governantes, termina em muitas mortes e prisões, como um<br />

episódio relevante, cruento, <strong>no</strong> processo de reestruturação da<br />

cidade, que se valeria do tijolo à pólvora para impor sua<br />

racionalidade civilizatória.<br />

Em <strong>no</strong>vembro de 1910, durante as festividades que<br />

marcavam a subida à presidência de Hermes da Fonseca, estoura<br />

outra rebelião de caráter popular, desta vez, uma revolta na<br />

armada de guerra, quando os marinheiros, sob o comando do<br />

negro João Cândido, tomam três cruzadores fundeados na baía de<br />

Guanabara e, voltando seus canhões sobre a capital federal,<br />

exigem uma <strong>no</strong>va abolição, rebelando-se contra os castigos<br />

corporais impostos pela Marinha. Oswald de Andrade,<br />

surpreendido pelos acontecimentos em meio a um namoro com<br />

uma atriz da companhia Grasso, mais tarde evocaria os<br />

acontecimentos num livro de memórias:<br />

No <strong>Rio</strong> de Janeiro assisti à primeira revolução política que o Brasil teve<br />

nesse século — a do marinheiro João Cândido. O marechal Hermes da<br />

Fonseca tinha assumido a presidência da República num ambiente de<br />

grande hostilidade. Era um joguete mais ou me<strong>no</strong>s creti<strong>no</strong> nas mãos<br />

do caudilho sulista Pinheiro Machado. Foi quando se esboçou a luta<br />

civilista encabeçada pela figura de Rui Barbosa. Uma <strong>no</strong>ite, tendo-se<br />

demorado numa pensão do Centro, em visita aos artistas de Giovanni<br />

Grasso, senti, à madrugada que começava, um movimento desusado<br />

na rua, onde passou a trote um piquete de cavalaria. A estranheza do<br />

fato cresceu quando ouvi falar a palavra revolução entre gente que<br />

juntava nas esquinas. Revolução? Coisa assombrosa para a sede de

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