TiaCiata_e_a_Pequena_%C3%81frica_no_Rio

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andre.vilaron
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23.02.2013 Views

que aqui se vulgariza passando a denominar genericamente os cultos negros. Em Salvador e no interior baiano essas tradições seriam retraduzidas frente à realidade movediça do negro, principalmente depois da derrota das insurreições, quando as dificuldades ocasionadas pela repressão que se sucedeu passa a se constituir em forte motivo de desagregação. Assim se inicia, à medida que se rompe cada pequena organização de nação, o processo de justaposição de entidades das diversas culturas africanas, e, no momento seguinte, com entidades [pg. 129] nacionais, índias e caboclas, os encantados, e com os santos católicos, convivendo procedimentos místicos de povos diversos, que em cada casa de culto se harmonizariam de forma própria. Mantêm-se os fundamentos dos cultos originais, principalmente a dinâmica do transe e de sua socialização pela possessão das entidades comunais — que de resto é comum às demais religiões das diversas culturas africanas aqui aportadas — , o que nos permite pensar numa grande religião negro-brasileira com versões regionais, encimada pelo panteão dos orixás iorubas. Entretanto se pode imaginar a perda de elementos culturais ocasionada pela violência da vinda forçada para o Brasil, além da inevitável simplificação dos cultos na maioria dos terreiros, reduzidos os rituais que exigiam um tempo longo de reclusão e sacrifícios pecuniários fora das possibilidades dos fiéis. Com o rompimento das linhagens familiares vinculadas ao culto de orixás particulares, seus membros divididos ou mortos pela escravatura, a memória dos cultos se fragmenta, se mantendo fiel ao sentido fundador mas alterando referências cosmogônicas e litúrgicas uniculturais pela pluralidade cultural dos participantes. Assim, de candomblé, seriam chamados em Salvador tanto os terreiros tradicionais que perduram, como os

dos bantos, nações que negociariam misticamente suas relações, sob a liderança, a partir de determinado momento, dos mesmos orixás. Nos candomblés de caboclo, como são chamados, revelando a presença de influências autóctones, a figura do líder ganha grande importância, podendo-se dizer que os terreiros se idiossincratizam, se renovando a tradição a partir da personalidade religiosa de seus chefes, que não só a interpretam como preenchem suas lacunas. Religiões gestadas por povos livres na África, regendo suas vidas através de mitos que definem sazonalmente o fluxo da sociedade e medeiam suas práticas, situação que se transtorna radicalmente ao se tornarem uma casta de escravos no Novo Mundo. Os novos cultos no Brasil ganham um cunho mais assistencial e imediatista, tradições que continuam em processo de perpétua transformação a atender às necessidades do negro, mesmo depois de libertado, mas não integrado à sociedade brasileira, como continua ocorrendo, no contexto diverso do Rio de Janeiro, na macumba carioca. Nas próprias casas tradicionais, como no Ilê Iyá Nassô, onde foi feita Tia Ciata, e nas casas de candomblé baiano instaladas no Rio, geralmente em correspondência direta com um terreiro de Salvador, como no culto de João Alabá na Saúde, já estavam presentes objetos de culto cristão, como já eram associadas cerimônias católicas e o próprio espaço da igreja incorporado à seqüência regular dos ritos da religião negra. No barracão central o altar era composto com santos católicos destacados pelos panos brancos e pela ornamentação de flores de papel colorido. Testemunha Roger Bastide anos mais tarde: Pode-se perguntar qual a função do altar católico na festa. A primeira vista parece que ele não desempenha função alguma; em todas as cerimônias a que assisti não o vi ser utilizado nem no princípio, nem

que aqui se vulgariza passando a de<strong>no</strong>minar genericamente os<br />

cultos negros. Em Salvador e <strong>no</strong> interior baia<strong>no</strong> essas tradições<br />

seriam retraduzidas frente à realidade movediça do negro,<br />

principalmente depois da derrota das insurreições, quando as<br />

dificuldades ocasionadas pela repressão que se sucedeu passa a<br />

se constituir em forte motivo de desagregação. Assim se inicia, à<br />

medida que se rompe cada pequena organização de nação, o<br />

processo de justaposição de entidades das diversas culturas<br />

africanas, e, <strong>no</strong> momento seguinte, com entidades [pg. 129]<br />

nacionais, índias e caboclas, os encantados, e com os santos<br />

católicos, convivendo procedimentos místicos de povos diversos,<br />

que em cada casa de culto se harmonizariam de forma própria.<br />

Mantêm-se os fundamentos dos cultos originais,<br />

principalmente a dinâmica do transe e de sua socialização pela<br />

possessão das entidades comunais — que de resto é comum às<br />

demais religiões das diversas culturas africanas aqui aportadas —<br />

, o que <strong>no</strong>s permite pensar numa grande religião negro-brasileira<br />

com versões regionais, encimada pelo panteão dos orixás iorubas.<br />

Entretanto se pode imaginar a perda de elementos culturais<br />

ocasionada pela violência da vinda forçada para o Brasil, além da<br />

inevitável simplificação dos cultos na maioria dos terreiros,<br />

reduzidos os rituais que exigiam um tempo longo de reclusão e<br />

sacrifícios pecuniários fora das possibilidades dos fiéis.<br />

Com o rompimento das linhagens familiares vinculadas ao<br />

culto de orixás particulares, seus membros divididos ou mortos<br />

pela escravatura, a memória dos cultos se fragmenta, se<br />

mantendo fiel ao sentido fundador mas alterando referências<br />

cosmogônicas e litúrgicas uniculturais pela pluralidade cultural<br />

dos participantes. Assim, de candomblé, seriam chamados em<br />

Salvador tanto os terreiros tradicionais que perduram, como os

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