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23.02.2013 Views

local de afirmação do negro onde se desenrolam atividades coletivas tanto de trabalho — uma órbita do permitido apesar da atipicidade de atividades organizadas fora dos modelos da rotina fabril — quanto de candomblé, e se brincava, tocava, dançava, conversava e organizava. Além da venda dos doces, Ciata passa também a alugar roupas de baiana feitas pelas negras com requinte para os teatros, e no Carnaval para as cocotes chiques saírem nos Democráticos, Tenentes e Fenianos, as associações carnavalescas da pequena classe média carioca. Mesmo homens, gente graúda, iam se vestir de baiana, liberdades que se permitiam os másculos rapazes da época nos festejos momescos. Sua neta Lili conta que ela gostava muito do trabalho, era consciente do poder do dinheiro, e da necessidade de viabilizar uma vida que, mesmo devotada ao trabalho, não perdesse sua grandeza. [pg. 100] Hilária perde o marido por volta de 1910. Percebendo sua importância para o número de pessoas que compunham o grupo familiar imediato e suas responsabilidades com toda a baianada carioca, não se deixa abater, sempre vestida de baiana, conhecida por sua autoridade como por seu humor e por sua solidariedade aos que a ela acorriam. Sua neta Lili se lembra dela nesses anos: Quando ela ia nessas festas usava saia de baiana, bata, xales, só pra sair naqueles negócios de festas. Na cabeça, quando ela ia nessas festas, minha mãe é quem penteava ela. Fazia aqueles penteados assim. Ela não botava torso não. Só botava aquelas saias e aqueles xales “de tuquim” que se chamavam. Mas ela acabava na beira do fogão fazendo doces com empregados, ela mesma, quando tinha encomenda na rua da Carioca. As pessoas diziam: “baiana, eu quero um bolo de mandioca puba”. Ela apanhava aquelas coisas pra gente fazer, lavar aquilo. Quando era pagode de são João tinha uma mesa, tinha Alice “Cavalo de Pau”, era uma mulher que morava no Maranguape que ia cantar lá. Era assim, ela era sócia do Tenentes

mas não era cantora, mas era uma mulher muito chique. Porque era assim: o falecido Zuza pegava um prato, um pandeiro, ó, começava, ora, já viu castanhola? Os ensaios para o Carnaval naquela época eram com castanholas. Quando ela dava os pagodes em casa, tinha o coronel Costa que mandava seis figuras. Quer dizer: ficava o baile na frente e o samba lá nos fundos (Depoimento de Lili Jumbeba, ib.). Na praça Onze. Desenho de Mendez. In: Tipos e costumes do negro no Brasil, op. cit., s.n.p. Com o comércio de roupas, muita gente de Botafogo vai até a casa de Ciata. Se torna folclórico para alguns assistir a um pagode na casa da baiana, onde só se entrava através de algum conhecimento. Do mesmo modo, passa a interessar à alta sociedade da época a consulta com os “feiticeiros” africanos, como eram estereotipados aqueles ligados aos cultos negro-brasileiros (vide episódio com o presidente Wenceslau Brás), e mesmo a freqüência aos candomblés, mais fechados a curiosidade de estranhos. A partir dos conhecimentos do marido e de seu prestígio no meio negro, reconhecido mesmo fora dele, Ciata começa a manter relações com gente do outro lado da cidade, a ponto de eventualmente contar até “com os seis soldados do coronel Costa”, que ficam garantindo dubiamente a festa africana, provavelmente alguns deles negros, o que dá maior espanto à situação. Enfim, era necessário aprender a se relacionar de alguma maneira com os brancos, ter aliados, conhecer gente de outras classes, como os jornalistas pioneiros que cobriam nas páginas secundárias dos [pg. 101] jornais os acontecimentos das ruas que ganhavam algum destaque nas proximidades do Carnaval. Os

local de afirmação do negro onde se desenrolam atividades<br />

coletivas tanto de trabalho — uma órbita do permitido apesar da<br />

atipicidade de atividades organizadas fora dos modelos da rotina<br />

fabril — quanto de candomblé, e se brincava, tocava, dançava,<br />

conversava e organizava.<br />

Além da venda dos doces, Ciata passa também a alugar<br />

roupas de baiana feitas pelas negras com requinte para os teatros,<br />

e <strong>no</strong> Carnaval para as cocotes chiques saírem <strong>no</strong>s Democráticos,<br />

Tenentes e Fenia<strong>no</strong>s, as associações carnavalescas da pequena<br />

classe média carioca. Mesmo homens, gente graúda, iam se vestir<br />

de baiana, liberdades que se permitiam os másculos rapazes da<br />

época <strong>no</strong>s festejos momescos. Sua neta Lili conta que ela gostava<br />

muito do trabalho, era consciente do poder do dinheiro, e da<br />

necessidade de viabilizar uma vida que, mesmo devotada ao<br />

trabalho, não perdesse sua grandeza. [pg. 100]<br />

Hilária perde o marido por volta de 1910. Percebendo sua<br />

importância para o número de pessoas que compunham o grupo<br />

familiar imediato e suas responsabilidades com toda a baianada<br />

carioca, não se deixa abater, sempre vestida de baiana, conhecida<br />

por sua autoridade como por seu humor e por sua solidariedade<br />

aos que a ela acorriam. Sua neta Lili se lembra dela nesses a<strong>no</strong>s:<br />

Quando ela ia nessas festas usava saia de baiana, bata, xales, só pra<br />

sair naqueles negócios de festas. Na cabeça, quando ela ia nessas<br />

festas, minha mãe é quem penteava ela. Fazia aqueles penteados<br />

assim. Ela não botava torso não. Só botava aquelas saias e aqueles<br />

xales “de tuquim” que se chamavam. Mas ela acabava na beira do<br />

fogão fazendo doces com empregados, ela mesma, quando tinha<br />

encomenda na rua da Carioca. As pessoas diziam: “baiana, eu quero<br />

um bolo de mandioca puba”. Ela apanhava aquelas coisas pra gente<br />

fazer, lavar aquilo. Quando era pagode de são João tinha uma mesa,<br />

tinha Alice “Cavalo de Pau”, era uma mulher que morava <strong>no</strong><br />

Maranguape que ia cantar lá. Era assim, ela era sócia do Tenentes

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