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Emily Henry - Book Lovers (rev)

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AVISO – BWC

PRÓLOGO

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EPÍLOGO

AGRADECIMENTOS


Essa presente tradução é de autoria pelo grupo Bookworm’s Cafe. Nosso grupo

não possui fins lucrativos, sendo este um trabalho voluntário e não remunerado.

Traduzimos livros com o objetivo de acessibilizar a leitura para aqueles que não

sabem ler em inglês.

Para preservar a nossa identidade e manter o funcionamento dos grupos de

tradução, pedimos que:

• Não publique abertamente sobre essa tradução em quaisquer

redes sociais (por exemplo: não responda a um tweet dizendo que

tem esse livro traduzido);

• Não comente com o autor que leu este livro traduzido;

• Não distribua este livro como se fosse autoria sua;

• Não faça montagens do livro com trechos em português;

• Se necessário, finja que leu em inglês;

• Não poste – em nenhuma rede social – capturas de tela ou trechos

dessa tradução.

Em caso de descumprimento dessas regras, você será banido desse grupo.

Caso esse livro tenha seus direitos adquiridos por uma editora brasileira, iremos

exclui-lo do nosso acervo.

Em caso de denúncias, fecharemos o canal permanentemente.

Aceitamos críticas e sugestões, contanto que estas sejam feitas de forma

construtiva e sem desrespeitar o trabalho da nossa equipe.


Noosha, este livro não é para você. Eu já sei qual será para você, então você tem

que esperar.

Este livro é para Amanda, Dache', Danielle, Jessica, Sareer e Taylor. Este livro

não existiria sem vocês. E se de alguma forma isso acontecesse, então ninguém

estaria lendo. Obrigada, obrigada, obrigada.


QUANDO OS LIVROS SÃO SUA VIDA — ou, no meu caso, seu trabalho — você

fica muito bom em adivinhar para onde uma história está indo. As tropes, os

arquétipos, as reviravoltas comuns começam a se organizar em um catálogo dentro

do seu cérebro, dividido por categoria e gênero.

O marido é o assassino.

A nerd passa por uma transformação e, sem os óculos, ela fica gostosa.

O cara fica com a garota, ou outra garota fica com ela.

Alguém explica um conceito científico complicado, e outra pessoa diz: “Hum, em

inglês, por favor?”

Os detalhes podem mudar de livro para livro, mas não há nada realmente novo

sob o sol.

Tomemos, por exemplo, a história de amor de uma cidade pequena.

O tipo em que um magnata cínico de Nova York ou Los Angeles é enviado para

Smalltown 1 , EUA, para tipo, acabar com uma fazenda de árvores de Natal de

propriedade familiar para abrir espaço para uma corporação sem alma.

Mas enquanto o dito Cara da Cidade está no lugar, as coisas não saem conforme

o planejado. Porque, é claro, a fazenda de árvores de Natal, ou padaria, ou o que quer

que o herói tenha sido enviado para destruir, é de propriedade e operada por alguém

ridiculamente atraente e adequadamente disponível para cortejar.

De volta à cidade, o protagonista tem uma parceira romântica. Alguém implacável

que o encoraja a realizar o que ele se propôs a fazer e arruinar algumas vidas em

troca dessa grande promoção. Ele atende as ligações dela, durante as quais ela o

interrompe, latindo conselhos sem coração do assento de sua bicicleta ergométrica

Peloton.

Você pode dizer que ela é má porque seu cabelo é um loiro não natural, penteado

para trás à la Sharon Stone em Instinto Selvagem, e além disso, ela odeia decorações

de Natal.

À medida que o herói passa mais tempo com a encantadora

padeira/costureira/administradora da fazenda de árvores, as coisas mudam para

ele. Ele aprende o verdadeiro sentido da vida!

1 Smalltown é uma referência a música de Justin Moore, que é inspirada na cidade de Poyen, Arkansas.


Ele volta para casa, transformado pelo amor de uma boa mulher. Lá ele pede a

sua namorada rainha do gelo para dar uma volta com ele. Ela fica boquiaberta, diz

algo como Nestes saltos?

Vai ser divertido, ele diz a ela. Na caminhada, ele pode pedir a ela para olhar para

as estrelas.

Ela dispara, Você sabe que eu não posso olhar para cima agora! Acabei de colocar

Botox!

E então ele percebe: ele não pode voltar para sua antiga vida. Ele não quer! Ele

termina seu relacionamento frio e insatisfatório e pede sua nova paixão em

casamento. (Quem precisa de namoro?)

Neste ponto, você se pega gritando com o livro, você nem a conhece! Qual é o nome

do meio dela, vagabundo? Do outro lado da sala, sua irmã, Libby, te silencia, joga

pipoca em sua cabeça sem tirar o olhar de seu próprio livro da biblioteca.

E é por isso que estou atrasada para o almoço.

Porque essa é a minha vida. A trope que governa meus dias. O arquétipo sobre o

qual meus detalhes se sobrepõem.

Eu sou a pessoa da cidade. Não aquela que conhece o fazendeiro gostoso. A outra.

A agente literária tensa e bem cuidada, lendo manuscritos do alto de sua bicicleta

ergométrica, enquanto um protetor de tela sereno de praia passa, despercebido,

pela tela do computador.

Eu sou a que é leva um fora.

Eu li essa história e a vivi, o suficiente para saber que está acontecendo de novo,

enquanto estou ziguezagueando pelo tráfego de pedestres no final da tarde em

Midtown, com meu telefone agarrado ao meu ouvido.

Ele não disse isso ainda, mas os cabelos da minha nuca estão se arrepiando, o

buraco se abrindo no meu estômago enquanto ele manobra a conversa em direção

a uma queda estilo desenho animado de um penhasco.

Grant deveria estar no Texas apenas por duas semanas, tempo suficiente para

ajudar a fechar um acordo entre sua empresa e o hotel boutique que eles estavam

tentando adquirir nos arredores de San Antonio. Já tendo passado por dois

rompimentos pós-viagem de trabalho, reagi à notícia de sua viagem como se ele

tivesse anunciado que se alistou na marinha e estava embarcando pela manhã.

Libby tentou me convencer de que eu estava exagerando, mas não fiquei surpresa

quando Grant perdeu nosso telefonema noturno três vezes seguidas, ou quando ele

encurtou outras duas vezes. Eu sabia como isso terminaria.

E então, três dias atrás, horas antes de seu voo de volta, aconteceu.

Uma força maior interveio para mantê-lo em San Antonio por mais tempo do que

o planejado. Seu apêndice estourou.

Teoricamente, eu poderia ter reservado um voo naquele momento, me

encontrado com ele no hospital. Mas eu estava no meio de uma grande venda e

precisava estar colada ao meu telefone com acesso Wi-Fi estável. Minha cliente

estava contando comigo. Esta foi uma chance da vida dela. Além disso, Grant

apontou que uma apendicectomia era um procedimento de rotina. Suas palavras

exatas foram “não é grande coisa”.


Então eu fiquei e, no fundo, eu sabia que estava liberando Grant para os deuses

dos romances de cidade pequena fazerem o que eles fazem de melhor.

Agora, três dias depois, enquanto estou praticamente correndo para almoçar

com meus saltos da sorte, meus dedos brancos contra o meu telefone, a

reverberação do prego no caixão do meu relacionamento chocalha através de mim

na forma da voz de Grant.

— Diga isso de novo. — Eu quero dizer isso como uma pergunta. Sai como uma

ordem.

Grant suspira.

— Eu não vou voltar, Nora. As coisas mudaram para mim na semana passada. —

Ele ri. — Eu mudei.

Um baque passa pelo meu coração frio de pessoa da cidade.

— Ela é confeiteira? — Eu pergunto.

Ele fica em silêncio por um instante.

— O que?

— Ela é uma confeiteira? — Eu digo, como se essa fosse uma primeira pergunta

perfeitamente razoável a ser feita quando seu namorado termina com você pelo

telefone. — A mulher por quem você está me deixando.

Depois de um breve silêncio, ele cede:

— Ela é filha do casal dono do hotel. Eles decidiram não vender. Eu vou ficar,

ajudá-los a administrar.

Não consigo evitar: eu rio. Essa sempre foi minha reação a más notícias.

Provavelmente foi assim que ganhei o papel de Vilã do Mal em minha própria vida,

mas o que mais devo fazer? Derreter em uma poça chorando nesta calçada lotada?

De que adiantaria isso?

Paro do lado de fora do restaurante e massageio suavemente os olhos.

— Então, para ser clara — eu digo — você está desistindo de seu trabalho

incrível, seu apartamento incrível e de mim, e você está se mudando para o Texas.

Para ficar com alguém cuja carreira pode ser mais bem descrita como a filha do casal

que é dono do hotel?

— Há coisas mais importantes na vida do que dinheiro e uma carreira de luxo,

Nora — ele cospe.

Eu rio novamente.

— Eu não posso dizer se você acha que está falando sério.

Grant é filho de um magnata do ramo de hotéis. “Criado em berço de ouro” nem

sequer é o começo. Ele provavelmente tinha papel higiênico folheado a ouro.

Para Grant, a faculdade era uma formalidade. Os estágios eram uma formalidade.

Inferno, usar calças era uma formalidade! Ele conseguiu seu emprego por puro

nepotismo.

O que é precisamente o que torna seu último comentário tão profundo, tanto

figurativa quanto literalmente.

Devo dizer esta última parte em voz alta, porque ele pergunta.

— O que isso quer dizer?


Eu espio pela janela do restaurante, então verifico a hora no meu telefone. Estou

atrasada, nunca estou atrasada. Não é a primeira impressão que eu queria.

— Grant, você é um herdeiro de trinta e quatro anos. Para a maioria de nós,

nossos empregos estão diretamente ligados à nossa capacidade de comer.

— Viu? — ele diz. — Esse é o tipo de visão de mundo com o qual estou farto. Você

pode ser tão fria às vezes, Nora. Chastity e eu queremos...

Não é intencional, não estou tentando interromper, quando eu gargalhei ao ouvir

o nome dela. É só que, quando coisas comicamente ruins acontecem, eu saio de mim.

Eu os vejo acontecer de fora de mim e penso: Sério? Isto é o que o universo escolheu

fazer? Um pouco óbvio, não é?

Neste caso, ele escolheu guiar meu namorado para os braços de uma mulher com

o nome da capacidade de manter o hímen intacto. Quero dizer, é engraçado.

Ele bufa do outro lado da linha.

— Essas pessoas são boas pessoas, Nora. São honestos. Esse é o tipo de pessoa

que eu quero ser. Olha, Nora, não finja chateada...

— Quem está fingindo?

— Você nunca precisou de mim…

— Claro que não! — Eu trabalhei duro para construir uma vida que é minha, que

ninguém poderia puxar um plugue para me enviar, rodopiando, por um ralo

cósmico.

— Você nunca dormiu na minha casa… — ele diz.

— Meu colchão é objetivamente melhor! — Pesquisei por nove meses e meio

antes de comprá-lo. Claro, também é assim que eu namoro, e ainda assim, acabo

aqui.

— Então não finja que está com o coração partido — diz Grant. — Eu não tenho

certeza se você é capaz de ficar com o coração partido.

Mais uma vez, eu tenho que rir.

Porque nisso, ele está errado. É só que uma vez que você teve seu coração

verdadeiramente despedaçado, um telefonema como este não é nada. Uma pontada

no coração, talvez um ruído. Certamente não é uma ruptura.

Grant está despejando tudo para fora.

— Eu nunca nem vi você chorar.

De nada, eu penso em dizer. Quantas vezes mamãe nos disse, rindo em meio às

lágrimas, que seu último namorado havia dito que ela era muito emotiva?

Essa é a coisa sobre as mulheres. Não há nenhuma boa maneira de ser uma.

Exponha suas emoções, seja vulnerável e você ficará histérica. Mantenha-as

escondidas onde seu namorado não tem que cuidar delas e você é uma vadia sem

coração.

— Eu tenho que ir, Grant — eu digo.

— Claro que tem — ele responde.

Aparentemente, meu cumprimento somado com os comentários anteriores é

apenas mais uma prova de que sou uma robô frígida e malvada que dorme em uma

cama de notas de cem dólares e diamantes brutos. (Queria.)


Desligo sem me despedir e me enfio debaixo do toldo do restaurante. Enquanto

respiro fundo, espero para ver se as lágrimas virão. Elas não vêm. Elas nunca vêm.

Eu estou bem com isso.

Tenho um trabalho a fazer e, ao contrário de Grant, vou fazê-lo, por mim e por

todos na Agência Literária Nguyen.

Eu aliso meu cabelo, endireito meus ombros e entro, a explosão do arcondicionado

esfregando arrepios nos meus braços.

É tarde para o almoço, então a multidão é pequena, e eu localizo Charlie Lastra

perto dos fundos, vestido todo de preto como o próprio vampiro metropolitano da

editora.

Nunca nos encontramos pessoalmente, mas verifiquei novamente o anúncio da

Publishers Weekly sobre sua promoção a editor executivo da Wharton House Books

e guardei sua fotografia na memória: as sobrancelhas severas e escuras; os olhos

castanhos claros; o leve vinco em seu queixo sob seus lábios carnudos. Ele tem o tipo

de sinal escuro em uma bochecha que, se fosse em uma mulher, definitivamente

seria considerado uma marca de beleza.

Ele não pode ter passado dos trinta e tantos anos, com o tipo de rosto que você

pode descrever como de menino, se não fosse por quão cansado ele parece e o cinza

que salpica completamente seu cabelo preto.

Além disso, ele está carrancudo. Ou fazendo beicinho. Sua boca está fazendo

beicinho. Sua testa está carrancuda. Carrancinho.

Ele olha para o relógio.

Não é um bom sinal. Logo antes de eu sair do escritório, minha chefe, Amy, me

avisou que Charlie é notoriamente irritadiço, mas eu não estava preocupada. Sou

sempre pontual.

Exceto quando estou sendo dispensada pelo telefone. Então estou seis minutos e

meio atrasada, aparentemente.

— Oi! — Estico a palma da mão para apertar a dele enquanto me aproximo. —

Nora Stephens. É um prazer conhecê-lo pessoalmente, finalmente.

Ele se levanta, sua cadeira raspando no chão. Suas roupas pretas, feições

sombrias e comportamento têm o efeito aproximado de um buraco negro no

restaurante, sugando toda a luz dele e engolindo-a inteiramente.

A maioria das pessoas usa preto como uma forma de profissionalismo

preguiçoso, mas ele faz com que pareça uma Escolha com E maiúsculo, a combinação

de seu suéter de merino frouxo, calças e sapatos clássicos dão a ele o ar de uma

celebridade flagrada na rua por um paparazzi. Eu me pego calculando quantos

dólares americanos ele está usando. Libby chama isso de meu “truque perturbador

de festa de classe média”, mas na verdade é que eu amo coisas bonitas e muitas vezes

fico olhando vitrines online para me acalmar depois de um dia estressante.

Eu diria que a roupa de Charlie custou entre oitocentos e mil. Bem no meu

alcance, francamente, embora tudo o que estou usando, exceto meus sapatos, tenha

sido comprado de segunda mão.

Ele examina minha palma estendida por dois longos segundos antes de sacudi-la.

— Você está atrasada. — Ele se senta sem se preocupar em encontrar meu olhar.


Existe coisa pior do que um homem que se acha acima das leis do contrato social

só porque nasceu com um rosto decente e uma carteira gorda? Grant queimou

minha tolerância diária para idiotas importantes. Ainda assim, eu tenho que jogar

este jogo, pelo bem dos meus autores.

— Eu sei — eu digo, sorrindo em desculpas, mas não realmente se desculpando.

— Obrigada por esperar por mim. Meu trem parou nos trilhos. Você sabe como é.

Seus olhos se levantam para os meus. Eles parecem mais escuros agora, tão

escuros que não tenho certeza se há íris ao redor dessas pupilas. Sua expressão diz

que ele não sabe como é, trens parando nos trilhos por motivos terríveis e

mundanos.

Provavelmente, ele não pega o metrô.

Provavelmente, ele vai a todos os lugares em uma limusine preta brilhante, ou

uma carruagem gótica puxada por uma equipe de cavalos da raça Clydesdales.

Tiro meu blazer (xadrez, Isabel Marant) e me sento na frente dele.

— Você pediu alguma coisa?

— Não — diz ele. Nada mais.

Minhas esperanças diminuem.

Tínhamos agendado esse almoço para nos conhecermos semanas atrás. Mas na

sexta-feira passada, mandei-lhe um novo manuscrito de uma das minhas clientes

mais antigas, Dusty Fielding. Agora estou questionando se poderia submeter um dos

meus autores a este homem.

Pego meu cardápio.

— Eles têm uma salada de queijo de cabra que é fenomenal.

Charlie fecha seu cardápio e me olha.

— Antes de prosseguirmos — ele diz, sobrancelhas grossas e pretas franzidas,

sua voz baixa e naturalmente rouca — eu deveria apenas dizer a você, eu achei o

novo livro de Fielding ilegível.

Meu queixo cai. Não tenho certeza do que dizer. Por um lado, eu não tinha

planejado trazer o livro à tona. Se Charlie quisesse rejeitá-lo, ele poderia ter feito

isso por e-mail. E sem usar a palavra ilegível.

Mas, independentemente disso, qualquer pessoa decente esperaria pelo menos

até que houvesse um pouco de pão na mesa antes de jogar insultos.

Fecho meu próprio cardápio e cruzo as mãos sobre a mesa.

— Acho que é o melhor dela até agora.

Dusty já publicou outros três, todos fantásticos, embora nenhum tenha vendido

bem. Seu último editor não estava disposto a dar outra chance a ela, então ela está

de volta ao mercado, procurando um novo lar para seu próximo romance.

E tudo bem, talvez não seja o meu favorito dela, mas tem imenso apelo comercial.

Com o editor certo, eu sei o que este livro pode ser.

Charlie cruza os braços, a qualidade pesada e perspicaz de seu olhar enviando

um formigamento na minha espinha. Parece que ele está olhando através de mim,

passando pela polidez brilhante até as bordas irregulares por baixo. Seu olhar diz:

Tire esse sorriso congelado do seu rosto. Você não é tão simpática.

Ele vira o copo de água no lugar.


— O melhor dela é A Glória das Pequenas Coisas — diz ele, como se três segundos

de contato visual fossem suficientes para ler meus pensamentos mais íntimos e ele

sabe que está falando por nós dois.

Francamente, Glória foi um dos meus livros favoritos na última década, mas isso

não quer dizer nada.

Eu digo:

— Este livro é tão bom quanto. É apenas diferente, menos subjugado, talvez, mas

isso dá uma vantagem cinematográfica.

— Menos subjugado? — Charlie aperta os olhos. Pelo menos o marrom dourado

voltou para seus olhos, então eu sinto menos que eles vão queimar buracos em mim.

— É como dizer que Charles Manson era um guru do estilo de vida. Pode ser verdade,

mas não é o ponto. Este livro parece que alguém assistiu ao comercial de Sarah

McLachlan para prevenção de crueldade animal e pensou: Mas e se todos os filhotes

morressem diante das câmeras?

Uma risada irritável sai de mim.

— Tudo bem. Não é sua praia. Mas talvez fosse útil — eu me irrito, — se você me

dissesse o que você gostou no livro. Então eu sei o que te enviar no futuro.

Mentirosa, meu cérebro diz. Você não vai mandar mais livros para ele.

Mentirosa, dizem os olhos inquietantes e de coruja de Charlie. Você não me

mandar mais livros.

Este almoço, esta potencial relação de trabalho, foi por água abaixo.

Charlie não quer trabalhar comigo, e eu não quero trabalhar com ele, mas acho

que ele não abandonou totalmente o contrato social, porque considera minha

pergunta.

— É muito sentimental para o meu gosto — ele diz eventualmente. — E o elenco

é caricato...

— Peculiar — discordo. — Poderíamos reduzi-los, mas é um elenco grande, suas

peculiaridades ajudam a distingui-los.

— E o cenário…

— O que há de errado com o cenário? — O cenário em Once in a Lifetime vende o

livro inteiro. — Sunshine Falls é encantadora.

Charlie zomba, literalmente revira os olhos.

— É completamente irreal.

— É um lugar real — eu contraponho. Dusty tinha feito a pequena cidade

montanhosa parecer tão idílica que eu realmente pesquisei no Google. Sunshine

Falls, Carolina do Norte, fica um pouco afastada de Asheville.

Charlie balança a cabeça. Ele parece irritável. Bem, somos dois.

Eu não gosto dele. Se eu sou o arquétipo da Pessoa da Cidade, ele é o Duro,

Inacessível Estraga-Prazeres. Ele é o Growly Misanthrope, Oscar, o Rabugento, o

segundo ato de Heathcliff, as piores partes do Sr. Knightley.

O que é uma pena, porque ele também tem fama de ter um toque mágico. Vários

dos meus amigos agentes o chamam de Midas. Como em “Tudo o que ele toca vira

ouro”. (Embora reconhecidamente, alguns outros se refiram a ele como a Nuvem da

Tempestade. Como em “Ele faz chover dinheiro, mas a que custo?”)


A questão é que Charlie Lastra escolhe os vencedores. E ele não está escolhendo

Once in a Lifetime. Determinada a aumentar minha confiança, se não a dele, cruzo os

braços sobre o peito.

— Estou lhe dizendo, não importa o quão artificial você tenha achado, Sunshine

Falls é real.

— Pode existir — diz Charlie — mas eu estou lhe dizendo que Dusty Fielding

nunca esteve lá.

— Por que isso importa? — Eu pergunto, não mais fingindo polidez.

A boca de Charlie se contorce em reação à minha explosão.

— Você queria saber o que eu não gostei no livro...

— O que você gostou — eu o corrijo.

— E eu não gostei do cenário.

A picada de raiva corre pela minha traqueia, enraizando em meus pulmões.

— Então, que tal você me dizer que tipo de livros você quer, Sr. Lastra?

Ele relaxa até se recostar, lânguido e esparramado como um gato da selva

brincando com sua presa. Ele vira o copo de água novamente. Eu pensei que era um

tique nervoso, mas talvez seja uma tática de tortura de baixo grau. Eu quero

derrubá-lo da mesa.

— Eu quero — diz Charlie — Fielding do começo. De A Glória das Pequenas Coisas.

— Esse livro não vendeu.

— Porque o editor dela não sabia como vendê-lo — diz Charlie. — A Wharton

House poderia. Eu poderia.

Minha sobrancelha arqueia, e eu faço o meu melhor para colocá-la de volta no

lugar.

Nesse momento, a garçonete se aproxima da nossa mesa.

— Quer pedir alguma coisa enquanto você examina o menu? — ela pergunta

docemente.

— Salada de queijo de cabra para mim — diz Charlie, sem olhar para nenhuma

de nós.

Provavelmente ele está ansioso para declarar que minha salada favorita da

cidade não é comestível.

— E para você, senhora? — a garçonete pergunta.

Eu sufoco o arrepio que percorre minha espinha sempre que uma garota de vinte

e poucos anos me chama de senhora. Deve ser assim que os fantasmas se sentem

quando as pessoas caminham sobre seus túmulos.

— Eu vou querer isso também — eu digo, e então, porque este foi um dia infernal

e não há ninguém aqui para impressionar, e porque eu estou presa aqui por pelo

menos mais quarenta minutos com um homem que eu não tenho intenção de

trabalhar, eu digo — E um gin martini. Seco.

A sobrancelha de Charlie mal se levanta. São três da tarde de uma quinta-feira,

não exatamente um happy hour, mas dado que as editoras fecham no verão e a

maioria das pessoas tira folga na sexta-feira, é praticamente fim de semana.

— Dia ruim — eu digo baixinho enquanto a garçonete desaparece com nosso

pedido.


— Não é tão ruim quanto o meu — Charlie responde. O resto paira no ar, não

dito: li oitenta páginas de Once in a Lifetime, depois me sentei com você.

Eu zombo.

— Você realmente não gostou do cenário?

— Dificilmente posso imaginar qualquer lugar que eu menos goste de gastar

quatrocentas páginas.

— Sabe — eu digo — você é tão agradável quanto me disseram que seria.

— Eu não posso controlar como me sinto — diz ele friamente.

Eu zombo.

— É como Charles Manson dizendo que não foi ele quem cometeu os

assassinatos. Pode ser verdade em um nível técnico, mas não é o ponto.

A garçonete entrega meu martíni, e Charlie resmunga

— Posso pegar um desses também?

Mais tarde naquela noite, meu telefone apita com um e-mail.

Olá, Nora,

Sinta-se à vontade para me manter em mente para os futuros projetos de Dusty.

- Charlie

Não consigo evitar revirar os olhos. Nada de “Prazer em conhecê-la”. Nada de

“Espero que você esteja bem''. Ele não podia nem se incomodar com sutilezas básicas.

Cerrando os dentes, digito de volta, imitando seu estilo.

Charlie,

Se ela escrever algo sobre o guru do estilo de vida Charlie Manson, você será o

primeiro a saber.

- Nora

Enfio meu telefone no bolso da minha calça de moletom e abro a porta do

banheiro para começar minha rotina de dez passos de cuidados com a pele (também

conhecida como os melhores quarenta e cinco minutos do meu dia). Meu telefone

vibra e eu o pego.

N,

A piada está em você: quero muito ler isso.

- C

Determinada a ter a última palavra, escrevo, Noite.


(Boa noite decididamente não é o que quero dizer.)

A melhor, Charlie responde, como se estivesse assinando um e-mail que não

existe.

Se tem uma coisa que eu odeio mais do que sapatos sem salto, é perder. Eu

escrevo de volta, x.

Sem resposta. Xeque-mate. Depois de um dia infernal, essa pequena vitória me

faz sentir que tudo está certo no mundo. Termino minha rotina de cuidados com a

pele. Eu li cinco capítulos felizes de um romance de mistério horrível, e eu adormeço

no meu colchão perfeito, sem pensar em Grant ou em sua nova vida no Texas. Eu

durmo como um bebê.

Ou como uma rainha do gelo.


DOIS ANOS DEPOIS

A CIDADE ESTÁ UM FORNO. O asfalto ferve. O lixo na calçada fede. As famílias

pelas quais passamos carregam picolés que diminuem a cada passo, derretendo nos

seus dedos. A luz do sol reflete nos prédios como um sistema de segurança baseado

em laser de um filme de assalto desatualizado, e me sinto como uma rosquinha

caramelada que foi deixada no calor por quatro dias.

Enquanto isso, mesmo grávida de cinco meses e apesar da temperatura, Libby

parece a estrela de um comercial de xampu.

— Três vezes. — Ela parece impressionada. — Como uma pessoa é largada em

uma troca completa de estilo de vida três vezes?

— Apenas sorte, eu acho — eu digo. Na verdade, são quatro, mas eu nunca

consegui contar a ela toda a história sobre Jakob. Já se passaram anos e eu ainda mal

consigo me contar essa história.

Libby suspira e passa seu braço pelo meu. Minha pele está pegajosa do calor e da

umidade do verão, mas a da minha irmãzinha está milagrosamente seca e sedosa.

Eu puxei a altura de 1,50m da minha mãe, mas o resto de suas feições se

afunilaram para minha irmã, desde o cabelo cobre morango até os grandes olhos

azuis do Mar Mediterrâneo e o toque de sardas em seu nariz. Sua estatura baixa e

curvilínea deve ter vindo da herança genética de papai, não que saibamos; ele foi

embora quando eu tinha três anos e Libby estava a meses de nascer. Quando é

natural, meu cabelo é um loiro acinzentado e opaco, e o tom de azul dos meus olhos

é menos água de férias idílica e mais última coisa que você vê antes que o gelo

congele e você se afogue.

Ela é a Marianne da minha Elinor, a Meg Ryan da minha Parker Posey.

Ela também é minha pessoa favorita absoluta no planeta.


— Ah, Nora. — Libby me aperta contra ela quando chegamos a uma faixa de

pedestres, e me deleito com a proximidade. Não importa o quão agitada a vida e o

trabalho às vezes sejam, sempre senti que havia alguns metrônomos internos nos

mantendo em sincronia. Eu pegava meu telefone para ligar para ela, e já estava

tocando, ou ela me mandava uma mensagem sobre almoçar e percebemos que já

estávamos na mesma parte da cidade. Nos últimos meses, porém, temos sido navios

passando à noite. Na verdade, mais como um submarino e um pedalinho em lagos

totalmente separados.

Eu sinto falta de suas ligações enquanto estou em reuniões, e ela já está dormindo

quando eu ligo de volta. Ela finalmente me convida para jantar em uma noite que

prometi levar um cliente para sair. Pior do que isso é o sentimento fraco e estranho

quando estamos realmente juntas. Como se ela estivesse aqui apenas pela metade.

Como aqueles metrônomos caíram em ritmos diferentes, e mesmo quando estamos

próximas uma da outra, eles nunca conseguem se igualar.

No começo eu pensei que era estresse com o novo bebê, mas com o passar do

tempo, minha irmã parecia mais distante do que próxima. Estamos

fundamentalmente fora de sincronia de uma maneira que não consigo nomear, e

nem mesmo meu colchão dos sonhos e uma nuvem de óleo de lavanda difundido são

suficientes para me impedir de ficar acordada, repassando nossas últimas conversas

como se estivesse procurando rachaduras fracas.

O sinal mudou para ANDE, mas uma série de motoristas passa pelo novo sinal

vermelho. Quando um cara de terno bonito sai pela rua, Libby me puxa atrás dele.

É uma verdade universalmente reconhecida que motoristas de táxi não vão

atropelar pessoas que se parecem com esse cara. Sua roupa diz, eu sou um homem

com um advogado. Ou talvez apenas eu seja um advogado.

— Achei que você e Andrew eram bons juntos — diz Libby, retomando a conversa

sem problemas. Contanto que você esteja disposto a ignorar que o nome do meu ex

era Aaron, não Andrew. — Eu não entendo o que deu errado. Foi coisa de trabalho?

Seus olhos piscam para mim com as palavras coisas do trabalho, e isso

desencadeia outra memória: eu voltando para o apartamento durante a festa de

quatro anos de Bea e Libby me dando um olhar como um cachorrinho ferido da Pixar

enquanto ela adivinhou, Ligação do trabalho?

Quando me desculpei, ela ignorou, mas agora me pego imaginando se aquele foi

o momento em que comecei a perdê-la, o exato segundo em que nossos caminhos

divergentes se afastaram um pouco demais um do outro e as costuras começaram a

se romper.

— O que deu errado — eu digo, recuperando meu lugar na conversa — é que, em

uma vida passada, eu traí uma bruxa muito poderosa, e ela amaldiçoou minha vida

amorosa. Ele está se mudando para a Ilha Prince Edward.

Paramos na próxima rua transversal, esperando o tráfego diminuir. É um sábado

em meados de julho e absolutamente todo mundo está fora de casa, vestindo o

mínimo de roupas legalmente possível, comendo casquinhas de sorvete do Big Gay

ou picolés artesanais cheios de coisas que não têm nada a ver com uma sobremesa.

— Você sabe o que há na Ilha Prince Edward? — Eu pergunto.


— Anne de Green Gables? — Libby diz.

— Anne de Green Gables já estaria morta — eu digo.

— Uau — ela diz. — Spoiler.

— Como uma pessoa vai de morar aqui para se mudar para um lugar onde o

destino mais badalado é o Museu Canadense da Batata? Eu morreria imediatamente

de tédio.

Libby suspira.

— Não sei. Eu adoraria um pouco de tédio agora.

Eu olho de lado para ela, e meu coração tropeça na próxima batida. Seu cabelo

ainda está perfeito e sua pele está lindamente corada, mas agora novos detalhes

saltam para mim, sinais que eu não percebi no começo.

Os cantos desenhados de sua boca. O sutil afinamento de suas bochechas. Ela

parece cansada, mais velha que o normal.

— Desculpe — diz ela, quase para si mesma. — Eu não quero ser a triste, mãe

cansada, eu só... Eu realmente preciso dormir um pouco.

Minha mente já está girando, procurando por lugares em que eu poderia ajudar.

A preocupação permanente de Brendan e Libby é dinheiro, mas eles recusam ajuda

nesse departamento há anos, então tive que encontrar maneiras criativas de apoiálos.

Na verdade, o telefonema com o qual ela pode ou não estar irritada foi um Cavalo

de Tróia de Presente de Aniversário. Um “cliente” “cancelou” “uma viagem” e “o

quarto no St. Regis” era “não reembolsável” então “só fazia sentido” fazer uma festa

do pijama no meio da semana com as meninas lá.

— Você não é a triste, mãe cansada — eu digo agora, apertando seu braço

novamente. — Você é a Supermãe. Você é a gata de macacão que sempre tá no

Brooklyn Flea, carregando seus quinhentos filhos lindos, um buquê gigante de flores

silvestres e uma cesta cheia de tomates grumosos. Não há problema em se cansar,

Lib.

Ela aperta os olhos para mim.

— Quando foi a última vez que você contou meus filhos, maninha? Porque são

dois.

— Não quero fazer você se sentir uma mãe terrível — eu digo, cutucando sua

barriga, — mas tenho oitenta por cento de certeza de que há outro aqui dentro.

— Tudo bem, dois e meio. — Seus olhos disparam em direção aos meus,

cautelosos. — Então, como você está, realmente? Sobre o término, quero dizer.

— Ficamos juntos apenas quatro meses. Não foi sério.

— Sério é a natureza de como você namora — diz ela. — Se alguém chega a um

terceiro jantar com você, então ele já atendeu a quatrocentos e cinquenta critérios

separados. Não é namoro casual se você conhece o tipo sanguíneo da outra pessoa.

— Eu não sei os tipos sanguíneos dos meus encontros — eu digo. — Tudo que eu

preciso deles é um relatório de crédito completo, uma avaliação psicológica e um

juramento de sangue.

Libby joga a cabeça para trás, gargalhando. Como sempre, fazer minha irmã rir é

uma injeção de serotonina direto no meu coração. Ou cérebro? Provavelmente


cérebro. A serotonina no seu coração provavelmente não é uma coisa boa. A questão

é que a risada de Libby me faz sentir como se o mundo estivesse sob meu controle,

como se eu estivesse no controle total da situação.

Talvez isso me torne uma narcisista, ou talvez apenas me torne uma mulher de

trinta e dois anos que se lembra das semanas inteiras em que não conseguiu

convencer sua irmã de luto a sair da cama.

— Ei — diz Libby, diminuindo a velocidade ao perceber onde estamos, para onde

estamos nos movendo inconscientemente. — Olha.

Se fôssemos vendadas e jogadas na cidade, provavelmente ainda acabaríamos

aqui: olhando melancolicamente para a Freeman Books, a loja de West Village onde

morávamos. O minúsculo apartamento onde mamãe nos rodava pela cozinha, nós

três cantando “Baby Love” das Supremes com utensílios de cozinha. O lugar onde

passamos inúmeras noites juntas em um sofá floral rosa e creme assistindo a filmes

de Katharine Hepburn com uma mistura de besteiras espalhadas pela mesa de

centro que ela encontrou na rua, a perna quebrada substituída por uma pilha de

livros com capas duras.

Em livros e filmes, personagens como eu sempre vivem em lofts com piso de

cimento com arte moderna sombria e vasos de um metro e meio cheios de galhos

pretos desgrenhados, por algum motivo inexplicável.

Mas na vida real, escolhi meu apartamento atual porque se parece muito com

este: pisos de madeira antigos e papel de parede macio, um radiador sibilante em

um canto e estantes embutidas cheias de livros de bolso de segunda mão. Seu friso

de parede foi pintado tantas vezes que perdeu suas bordas nítidas, e o tempo

deformou suas janelas altas e estreitas.

Esta pequena livraria e seu apartamento no andar de cima são meus lugares

favoritos na terra.

Mesmo que seja também onde nossas vidas foram divididas ao meio há doze

anos, eu amo este lugar.

— Oh meu Deus! — Libby agarra meu antebraço, acenando para a vitrine da

livraria: uma pirâmide do sucesso de Dusty Fielding, Once in a Lifetime, com sua nova

capa de filme.

Ela pega o telefone.

— Temos que tirar uma foto!

Não há ninguém que ame o livro de Dusty tanto quanto minha irmã. E isso quer

dizer alguma coisa, já que, em seis meses, já vendeu um milhão de cópias. As pessoas

estão chamando de O livro do ano. Um Homem Chamado Ove encontra Uma Vida

Pequena.

Tome isso, Charlie Lastra, penso, como faço de vez em quando quando me lembro

daquele almoço fatídico. Ou sempre que passo pela porta fechada do seu escritório

(ainda mais doce desde que ele se mudou para trabalhar na editora que lançou Once,

onde agora ele está cercado por constantes lembretes do meu sucesso).

Tudo bem, acho que Tome muito isso, Charlie Lastra. Nunca se esquece da

primeira vez que um colega a levou a extrema falta de profissionalismo.

— Vou ver este filme quinhentas vezes — Libby me diz. — Consecutivamente.


— Use uma fralda — aconselho.

— Não é necessário — diz ela. — Vou chorar muito. Não haverá xixi no meu

corpo.

— Eu não tinha ideia de que você tinha tanta... compreensão abrangente da

ciência — eu digo.

— A última vez que li, chorei tanto que contrai um músculo nas costas.

— Você deveria considerar se exercitar mais.

— Grossa. — Ela acena para sua barriga de grávida, então nos leva em direção ao

bar de sucos novamente. — De qualquer forma, de volta à sua vida amorosa. Você

só precisa voltar para o jogo.

— Libby — eu digo. — Eu entendo que você conheceu o amor da sua vida quando

tinha vinte anos e, portanto, nunca namorou de verdade. Mas imagine por um

momento, se quiser, um mundo em que trinta por cento de seus encontros terminam

com a revelação de que o homem do outro lado da mesa tem um fetiche por pés,

cotovelos ou rótulas.

Foi o choque da minha vida quando minha irmã caprichosa e romântica se

apaixonou por um contador nove anos mais velho que ela que gosta muito de ler

sobre trens, mas Brendan também é o homem mais sólido que já conheci na minha

vida, e há muito tempo aceitei que de alguma forma, contra todas as probabilidades,

ele e minha irmã são almas gêmeas.

— Trinta porcento?! — ela chora. — Que diabos de aplicativos de namoro você

usa, Nora?

— Os normais! — Eu digo.

No interesse da discernimento total, sim, eu pergunto diretamente sobre fetiches

de antemão. Não é que trinta por cento dos homens anunciem seus fetiches vinte

minutos após nos conhecermos, mas esse é o meu ponto. A última vez que minha

chefe, Amy, foi para casa com uma mulher não examinada, ela descobriu que tinha

um quarto só de bonecas. Bonecas de cerâmica do chão ao teto.

Quão inconveniente seria se apaixonar por uma pessoa apenas para descobrir

que ela tinha um quarto de bonecas? A resposta é “muito”.

— Podemos nos sentar por um segundo? — Libby pergunta, um pouco sem

fôlego, e nós evitamos um grupo de turistas alemães para se empoleirar na beirada

da janela de um café.

— Você está bem? — Eu pergunto. — Quer alguma coisa? Água?

Ela balança a cabeça, escova o cabelo atrás das orelhas.

— Eu só estou cansada. Eu preciso de um tempo.

— Talvez devêssemos ter um dia de spa — sugiro. — Eu tenho um valepresente…

— Primeiro de tudo — ela diz — você está mentindo, e eu posso dizer. E segundo

de tudo… — Seus dentes se preocupam com o lábio com brilho rosa. — Eu tinha

outra coisa em mente.

— Dois dias de spa? — Eu acho.

Ela abre um sorriso hesitante.


— Você sabe que está sempre reclamando que as editoras praticamente fecham

em agosto e você não tem nada para fazer?

— Eu tenho muito o que fazer — eu argumento.

— Nada que exija que você esteja na cidade — ela emenda. — E daí se formos a

algum lugar? Sairmos por algumas semanas e apenas relaxar? Eu posso passar um

dia sem ter fluidos corporais de mais ninguém em mim, e você pode esquecer o que

aconteceu com Aaron, e nós podemos simplesmente… fazer uma pausa de ser a

supermãe cansada e a moça da carreira chique que temos que ser os outros onze

meses do ano. Talvez você possa até tirar uma página dos livros de seus ex e ter um

romance rápido com um local... caçador de lagostas?

Eu olho para ela, tentando analisar o quão séria ela está.

— Pegador? Pegador de lagosta? — ela diz. — Pescador?

— Mas nós nunca vamos a lugar nenhum — eu aponto.

— Exatamente — diz ela, um tom irregular rastejando em sua voz. Ela agarra

minha mão, e noto a forma como suas unhas estão roídas. Tento engolir, mas é como

se meu esôfago estivesse dentro de um torno. Porque, naquele momento, de repente

tenho certeza de que há mais coisas acontecendo com Libby do que problemas

financeiros comuns, falta de sono ou irritação com meu horário de trabalho.

Seis meses atrás, eu saberia exatamente o que estava acontecendo. Eu nem teria

que perguntar. Ela teria parado no meu apartamento, sem avisar, e se jogado no meu

sofá dramaticamente e dito: “Você sabe o que está me incomodando ultimamente,

mana?” e eu puxaria sua cabeça para o meu colo e brincaria com meus dedos em seu

cabelo enquanto ela derramava suas preocupações sobre um copo de vinho branco

fresco. As coisas são diferentes agora.

— Esta é a nossa chance, Nora — ela diz baixinho, com urgência. — Vamos fazer

uma viagem. Apenas nós duas. A última vez que fizemos isso foi na Califórnia.

Meu estômago despenca, então se recupera. Essa viagem, como meu

relacionamento com Jakob, faz parte do tempo da minha vida que faço o possível

para não revisitar.

Praticamente tudo o que faço, na verdade, é garantir que Libby e eu nunca nos

encontremos de volta naquele lugar escuro em que estávamos depois que mamãe

morreu. Mas a verdade inegável é que eu não a vi assim, como se ela estivesse em

seu ponto de ruptura, desde então.

Eu engulo em seco.

— Você pode fugir agora?

— Os pais de Brendan vão ajudar com as meninas. — Ela aperta minhas mãos,

seus grandes olhos azuis praticamente queimando de esperança. — Quando esse

bebê chegar aqui, eu vou ser uma casca vazia de pessoa por um tempo, e antes que

isso aconteça, eu realmente quero passar um tempo com você, como costumava ser.

E também estou a três noites sem dormir, a ponto de explodir e fazer um Cadê Você,

Bernadette? se não o Garota Exemplar completo. Eu preciso disso.

Meu peito aperta. Uma imagem de um coração em uma gaiola de metal muito

pequena passa pela minha mente. Sempre fui incapaz de dizer não a ela. Não quando

ela tinha cinco anos e queria a última mordida no cheesecake do Junior, ou quando


ela tinha quinze anos e queria pegar emprestado meu jeans favorito (cujo nunca se

recuperou de suas curvas superiores), ou quando ela tinha dezesseis anos e disse

entre lágrimas: Eu só quero não estar aqui, e eu a levei para Los Angeles.

Ela nunca pediu nenhuma dessas coisas, mas ela está pedindo agora, as palmas

das mãos pressionadas e o lábio inferior saliente, e isso me faz ficar em pânico e sem

fôlego, ainda mais fora de controle do que o pensamento de deixar a cidade. "Por

favor."

Sua fadiga a fez parecer insubstancial, desbotada, como se eu tentasse tirar o

cabelo de sua testa, meus dedos poderiam passar por ela. Eu não sabia que era

possível sentir tanta falta de uma pessoa enquanto ela estava sentada bem ao seu

lado, tanto que tudo em você dói.

Ela está bem aqui, digo a mim mesma, e ela está bem. Seja o que for, você vai

consertar.

Eu engulo cada desculpa, reclamação e argumento borbulhando em mim.

— Vamos fazer uma viagem.

Os lábios de Libby se abriram em um sorriso. Ela se mexe no parapeito da janela

para tirar algo do bolso de trás.

— OK, ótimo. Porque eu já comprei e não tenho certeza se são reembolsáveis. —

Ela coloca as passagens de avião impressas no meu colo, e é como se o momento

nunca tivesse acontecido. Como em questão de cinco segundos, eu consegui minha

irmãzinha despreocupada de volta, e eu trocaria qualquer quantidade de órgãos

para nos cimentar neste momento, para viver aqui sempre onde ela está brilhando.

Meu peito relaxa. Minha próxima respiração vem fácil.

— Você não vai nem olhar para onde estamos indo? — Libby pergunta, divertida.

Eu tiro meu olhar dela e leio o bilhete.

— Asheville, Carolina do Norte?

Ela balança a cabeça.

— É o aeroporto mais próximo de Sunshine Falls. Isso vai ser uma... viagem única

na vida.

Eu gemo e ela joga os braços em volta de mim, rindo.

— Nós vamos nos divertir muito, mana! E você vai se apaixonar por um lenhador.

— Se tem uma coisa que me deixa com tesão — eu digo — é o desmatamento.

— Um lenhador ético, sustentável, orgânico e sem glúten — altera Libby.


NO AVIÃO, Libby insiste que peçamos Bloody Marys. Na verdade, ela tenta me

pressionar a tomar shots, mas ela se contenta com um Bloody Mary (e um suco de

tomate simples para ela). Eu não sou uma grande bebedora, e álcool matinal nunca

foi minha praia. Mas estas são minhas primeiras férias em uma década, e estou tão

ansiosa que bebo a bebida nos primeiros vinte minutos do nosso voo.

Não gosto de viajar, não gosto de folga do trabalho e não gosto de deixar meus

clientes na mão. Ou, neste caso, um cliente bastante indispensável: passei as

quarenta e oito horas antes da decolagem alternando entre tentar acalmar Dusty e

estimulá-la.

Já atrasamos o prazo para o próximo livro dela em seis meses, e se ela não

conseguir começar a mandar as páginas para o editor esta semana, todo o

cronograma de publicação será bagunçado.

Ela é tão supersticiosa sobre o processo de rascunho que nós nem sabemos no

que ela está trabalhando, mas eu mando outro e-mail “você-consegue” no meu

telefone de qualquer maneira.

Libby me lança um olhar aguçado, sobrancelha arqueada. Eu desligo meu

telefone e levanto minhas mãos, esperando sinalizar que estou presente.

— Então — ela diz, apaziguada, e arrasta sua bolsa caricaturalmente grande para

a mesa dobrável — Eu acho que agora é uma boa hora para repassar o plano.

Ela pega uma pasta enorme e a abre.

— Ah meu Deus, o que é isso? — Eu digo. — Você está planejando um assalto a

banco?

— Invasão, mana. Assalto soa tão sem classe, e vamos usar ternos de três peças o

tempo todo — diz ela, sem perder o ritmo enquanto pega duas folhas laminadas

idênticas com o título datilografado LISTA DE FÉRIAS DE MUDANÇA DE VIDA.

— Quem é você e onde enterrou minha irmã? — Eu pergunto.

— Eu sei o quanto você ama uma checklist — diz ela brilhantemente. — Então

tomei a liberdade de elaborar um para criar nossa aventura perfeita em uma cidade

pequena.

Eu alcanço um dos papéis.


— Espero que o número um seja 'dançar em cima de um bar Coyote Ugly'.

Embora eu não tenha certeza de que qualquer gerente que se preze permitirá isso

em sua condição.

Ela finge ofensa.

— Está muito aparente?

— Nããão — eu murmuro. — De jeito nenhum.

— Você é tão ruim em mentir. Parece que os músculos do seu rosto estão sendo

controlados por meia dúzia de marionetistas amadores. Agora, de volta à lista de

desejos.

— Lista de desejos? Qual de nós está morrendo?

Ela olha para cima, os olhos brilhando. Eu diria que é um brilho de travessura,

mas seus olhos são quase sempre brilhantes.

— O nascimento é uma espécie de morte — diz ela, esfregando a barriga. —

Minha morte. Morte do sono. Morte de sua capacidade de não fazer xixi um pouco

quando você ri. Mas acho que é mais como uma lista de experiências de romance de

cidade pequena do que uma lista de desejos. É como nós duas vamos ser

transformadas através da magia de uma cidade pequena em versões mais relaxadas

de nós mesmas.

Eu olho a lista novamente. Antes de Libby engravidar pela primeira vez, ela

trabalhou brevemente para um planejador de eventos de primeira linha (entre

muitas, muitas, muitas outras coisas), então apesar de sua tendência natural para a

espontaneidade (leia-se: caos), ela fez alguns avanços na organização, mesmo prématernidade.

Mas este nível de planejamento é tão extremamente…. eu, e estou

estranhamente tocada por ela ter pensado tanto nisso.

Também chocada ao descobrir que o primeiro item da lista é Usar uma camisa de

flanela.

— Eu não tenho uma camisa de flanela — eu digo.

Libby dá de ombros.

— Nem eu. Teremos que pechinchar um pouco, talvez possamos encontrar

algumas botas de vaqueira também.

Quando éramos adolescentes, passávamos horas vasculhando velharias em

busca de preciosidades em nosso brechó favorito. Eu ia para as peças de grife

elegantes e ela ia direto para qualquer coisa com cor, franja ou strass.

Mais uma vez, sinto aquela sensação de aperto no coração, como se estivesse

sentindo falta dela, como se todos os nossos melhores momentos tivessem ficado

para trás. Isso, eu me lembro, é por isso que estou fazendo isso. Quando voltarmos

para a cidade, quaisquer pequenas lacunas que tenham surgido entre nós serão

costuradas novamente.

— Flanela — eu digo. — Entendi.

O segundo item da lista é Assar algo. Continuando a tendência de sermos opostos

polares, minha irmã adora cozinhar, mas como ela geralmente está em dívida com

as papilas gustativas de uma criança de quatro e três anos, ela sempre guarda suas

receitas mais aventureiras para nossas noites juntas. Meus olhos percorrem a lista.

3. Reforma geral (deixar o cabelo solto/fazer franja?)


4. Construir algo (literal, não figurativo)

Os primeiros quatro itens se correlacionam quase diretamente com o Cemitério

de Carreiras Potenciais Abandonadas de Libby. Antes de seu trabalho de

planejamento de eventos, ela administrou brevemente uma loja vintage online que

fazia curadoria de achados de brechós; e antes disso, ela queria ser padeira; e antes

disso, uma cabeleireira; e por um verão muito breve, ela decidiu que queria ser

carpinteira porque não havia “mulheres suficientes nesse ramo”. Ela tinha oito anos.

Então tudo até agora faz sentido, pelo menos tanto quanto essa coisa toda faz

sentido (o que quer dizer, apenas no cérebro de Libby) mas então meu olhar pega o

número cinco.

— Ummm, o que é isso?

— Vá a pelo menos dois encontros com os moradores locais — ela lê,

visivelmente animada. — Esse não é para mim.

Ela levanta sua cópia da lista, na qual o número cinco está riscado.

— Bem, isso não parece justo — eu digo.

— Você deve se lembrar de que sou casada — diz ela — e grávida de cinco

trilhões de semanas.

— E eu sou uma mulher de negócios com um serviço de limpeza semanal, um

quarto vago que transformei em um armário de sapatos e um cartão de crédito da

Sephora. Não imagino que o homem dos meus sonhos seja um caçador de lagostas.

Libby se acende e se inclina para frente em seu assento.

— Exatamente! — ela diz. — Olha, Nora, você sabe que eu amo seu lindo cérebro

organizado pelo Sistema Decimal de Dewey 2 , mas você namora como se estivesse

comprando carros.

— Obrigada — eu digo.

— E sempre acaba mal.

— Oh! Graças a deus. — Eu aperto meu peito. — Eu estava preocupada que isso

não acontecesse em breve.

Ela tenta se virar em seu assento e agarra minhas mãos no apoio de braço entre

nós.

— Só estou dizendo que você continua namorando esses caras que são

exatamente como você, com as mesmas prioridades.

— Você pode realmente encurtar essa frase se você apenas disser 'homens com

os quais eu sou compatível'.

— Às vezes, os opostos se atraem — diz ela. — Pense em todos os seus ex. Pense

em Jakob e sua esposa vaqueira!

Algo frio passa por mim com a menção dele; Libby não percebe.

— O objetivo desta viagem é sair de nossas zonas de conforto — ela insiste. —

Para ter uma chance de... ser alguém diferente! Além disso, quem sabe? Talvez se

você se ramificar um pouco, você encontrará sua própria história de amor de

mudança de vida em vez de um namorado que é mais como uma lista de verificação.

2

É um sistema de organização de documentos, considerado o sistema de classificação bibliográfica mais

utilizado no mundo.


— Eu gosto de listas de verificação, muito obrigada — eu digo. — Listas de

verificação mantêm as coisas simples. Quero dizer, pense na mamãe, Lib. Ela estava

constantemente se apaixonando, e nunca por homens que fizessem sentido para ela.

Sempre desmoronava espetacularmente, geralmente deixando-a tão quebrada que

faltava ao trabalho ou às audições, ou se saía tão mal que seria demitida ou cortada.

— Você não é nada como a mamãe. — Ela diz isso levianamente, mas ainda dói.

Estou bem ciente de quão pouco eu me pareço com nossa mãe. Senti essas

deficiências a cada segundo de cada dia depois que a perdemos, quando estava

tentando garantir nossa sobrevivência.

E eu sei que não é isso que Libby está dizendo, mas ainda assim não parece muito

diferente de todos os términos de que me lembro: um monólogo prolixo terminando

com algo como POR TUDO QUE EU SEI, VOCÊ NEM TEM SENTIMENTOS.

— Quero dizer, com que frequência você consegue se soltar e não se preocupar

em como isso se encaixa no seu pequeno plano perfeito? — Libby continua. — Você

merece se divertir com pouca pressão e, francamente, eu mereço viver

indiretamente através de você. Logo, os encontros.

— Então, posso tirar a escuta depois do jantar, ou...

Libby levanta as mãos.

— Quer saber, tudo bem, esqueça o número cinco! Mesmo que seja bom para

você. Mesmo que eu basicamente tenha projetado toda essa viagem para você ter

sua experiência de romance de cidade pequena, eu acho...

— Está bem, está bem! — Eu choro. — Vou fazer os encontros dos lenhadores,

mas é melhor eles se parecerem com Robert Redford.

Ela grita animadamente.

— Jovem ou velho?

Eu a encaro.

— Certo — ela diz. — Entendi. Então, seguindo em frente. Número seis:

Mergulhar pelada em uma lagoa de água natural.

— E se houver bactérias que afetam o bebê ou algo assim? — Eu pergunto.

— Droga — ela resmunga, franzindo a testa. — Eu realmente não pensei em tudo

isso tão bem quanto eu pensava.

— Bobagem — eu digo. — É uma lista incrível.

— Você vai ter que mergulhar pelada sem mim — ela diz, distraída.

— Uma mulher solitária de trinta e dois anos, nua na lagoa local. Parece uma boa

maneira de ser presa.

— Sete — ela lê. — Dormir sob as estrelas. Oito: Participar de uma função da

cidade, ou seja, casamento local ou festival de algum tipo.

Eu encontro uma caneta na minha bolsa e acrescento funeral, circuncisão, noite

das mulheres na pista de patinação local.

— Tentando conhecer um médico gostoso do pronto-socorro, né? — Libby diz, e

eu rabisco a parte sobre a pista de patinação. Então eu noto o número nove.

Montar um cavalo.

— Novamente. — Eu aceno vagamente em direção ao estômago de Libby. Risco

o montar e mudo para acariciar, e ela dá um suspiro resignado.


10. Iniciar um incêndio (controlado)

11. Fazer uma trilha???? (Vale a pena???)

Quando ela tinha dezesseis anos, Libby anunciou que seguiria seu namorado para

trabalhar em Yellowstone no verão, e mamãe e eu choramos de tanto rir. Se havia

uma coisa que todas as garotas Stephens tinham em comum, além de nosso amor

por livros, soros de vitamina C e roupas bonitas, era nossa esquiva de atividades ao

ar livre. O mais próximo que chegamos de uma trilha foi uma caminhada rápida no

Ramble do Central Park e, mesmo assim, geralmente havia tigelas de papel cheias de

waffles de foodtrucks e sorvetes envolvidos. Não exatamente difícil.

Desnecessário dizer que Libby largou aquele cara duas semanas antes de sair.

Toco na linha final da lista: Salve uma empresa local.

— Você percebe que estamos aqui apenas por um mês. — Três semanas só nós

duas, e então Brendan e as meninas vão se juntar a nós. Conseguimos um grande

desconto por ficar tanto tempo, embora não tenha ideia de como vou passar da

primeira semana.

A última vez que viajei, voltei para casa depois de dois dias. Até mesmo deixar

minha mente vagar por aquela viagem com Jakob é um erro. Eu puxo meu foco de

volta para o presente. Isso não vai ser assim. Eu não vou deixar. Eu posso fazer isso,

por Libby.

— Eles sempre salvam um negócio local em romances de cidade pequena — ela

está dizendo. — Nós literalmente não temos escolha. Estou esperando por uma

fazenda de cabras com pouca sorte.

— Ooh — eu digo. — Talvez possamos fazer com que a comunidade ritualística

de sacrifícios se una de forma dramática para salvar as cabras. Por enquanto, quero

dizer. Eventualmente, eles terão que morrer no altar.

— Bem, claro. — Libby toma um gole de suco de tomate. — São negócios, baby.

Nosso motorista de táxi parece o Papai Noel, até a camiseta vermelha e os

suspensórios segurando seu jeans desbotado. Mas ele dirige como o taxista fumante

de charuto de Os Fantasmas Contra-Atacam de Bill Murray.

Pequenos guinchos continuam escapando de Libby quando ele faz uma curva

muito rápido, e em um ponto, eu a pego sussurrando promessas de segurança para

sua barriga.

— Sunshine Falls, hein? — o motorista pergunta. Ele tem que gritar, porque

tomou a decisão unilateral de abrir as quatro janelas. Meu cabelo está batendo tão

violentamente em meu rosto que mal posso ver seus olhos lacrimejantes no espelho

retrovisor quando olho por cima do meu telefone.

No tempo em que estávamos desembarcando e pegando nossa bagagem – uma

hora inteira, apesar do nosso vôo ser o único desembarque no aeroporto minúsculo

– o número de mensagens na minha caixa de entrada dobrou. Parece que acabei de

voltar de um encalhe de oito semanas em uma ilha deserta.

Nada torna um círculo de autores já neuróticos tão neurótico quanto a lenta

temporada anual de publicações. Cada resposta atrasada que eles recebem parece


desencadear uma avalanche de MEU EDITOR ME ODEIA?????? VOCÊ ME ODEIA??

TODOS ME ODEIAM???

— Sim! — Eu grito de volta para o nosso motorista. Libby está com a cabeça entre

os joelhos agora.

— Você deve ter família na cidade — ele grita sobre o vento.

Talvez seja a nova-iorquina em mim, ou talvez seja a mulher, mas não estou

prestes a anunciar que não conhecemos ninguém aqui, então apenas digo

— O que faz você dizer isso?

— Por que mais você viria aqui? — Ele ri, virando uma esquina.

Quando paramos alguns minutos depois, é tudo o que posso fazer para não

explodir em aplausos como alguém cujo avião acabou de fazer um pouso de

emergência.

Libby se senta tonta, alisando seu cabelo brilhante (milagrosamente

desembaraçado).

— Onde... Onde estamos? — Eu pergunto, olhando ao redor.

Não há nada além de grama desgrenhada e branqueada pelo sol em ambos os

lados da estreita estrada de terra. À frente, a estrada termina abruptamente, e um

prado se inclina para cima, repleto de ramos de flores silvestres amarelas e roxas.

Um beco sem saída.

O que levanta a questão: estamos prestes a ser assassinadas?

O motorista abaixa a cabeça para espiar a encosta.

— Goode's Lily Cottage, logo acima daquela colina.

Libby e eu também abaixamos a cabeça, tentando dar uma olhada melhor. No

meio da colina, uma escada aparece do nada. Talvez escada seja uma palavra muito

generosa. As ripas de madeira abrem um caminho na encosta gramada, como uma

série de pequenos muros de contenção.

Libby faz uma careta.

— O anúncio falou que não era acessível a cadeiras de rodas.

— Também mencionou que precisaríamos de um teleférico?

Papai Noel já saiu do carro para tirar nossa bagagem do porta-malas. Eu saio

atrás dele para a luz do sol brilhante, o calor instantaneamente fazendo meu

uniforme de viagem todo preto parecer sufocantemente grosso. Onde a estrada de

terra termina, há uma caixa de correio preta, Lily Cottage de Goode pintada em

branco encaracolado nela.

— Não há outra maneira? — Eu pergunto. — Uma estrada que vai até o fim?

Minha irmã...

Eu juro que Libby se encolhe, tentando parecer o menos grávida possível.

— Estou bem — ela insiste.

Considero brevemente acenar para meus saltos de camurça de dez centímetros,

mas não quero dar ao universo a satisfação de me inclinar para o clichê.

— Receio que eu não possa chegar mais perto de você — ele responde enquanto

volta para o carro. — Um acre ou dois atrás é o lugar de Sally. Essa é a segunda

estrada mais próxima, mas ainda está muito longe. — Ele segura seu cartão de visita

pela janela. — Se você precisar de outra corrida, use este número.


Libby aceita o pedaço de papel e, por cima do ombro, leio: Hardy Weatherbee,

Serviços de táxi e Guia Não-Oficial de Tours de Once in a Lifetime. Sua gargalhada se

perde sob o rugido do carro de Hardy Weatherbee dando ré na estrada como um

morcego do inferno.

— Bom. — Ela estremece, encolhendo os ombros. — Talvez você devesse tirar os

sapatos?

Com toda a nossa bagagem, vai levar mais de uma viagem, especialmente porque

Libby não está carregando nada mais pesado do que meus saltos.

A subida é íngreme, o calor sufocante, mas quando subimos a colina e a vemos, é

perfeita: um caminho sinuoso através de jardins desgrenhados e cobertos de mato

até uma pequena cabana branca, seu telhado pontiagudo em uma cor linda de siena

queimada. Suas janelas são antigas, de painéis únicos e sem venezianas, e o único

destaque na parede visível para nós é um arco verde-claro de videiras pintado sobre

a janela do primeiro andar. Na parte de trás da casa, árvores retorcidas se

aproximam, a floresta se estende até onde posso ver, e à esquerda, no prado, um

mirante entrelaçado com uvas silvestres fica dentro de um pequeno bosque de

árvores. Sinos de vento cintilantes de cacos de vidro e alimentadores de pássaros

fofos balançam nos galhos, e o caminho passa por uma fileira de arbustos floridos,

curvando-se para uma passarela e depois desaparecendo na floresta do outro lado.

É como algo saído de um livro de histórias.

Não, é como algo saído de Once In A Lifetime. Encantador. Pitoresco. Perfeito.

— Ah meu Deus. — Libby projeta o queixo para os próximos passos. — Eu tenho

que continuar?

Eu balanço minha cabeça, ainda recuperando o fôlego.

— Eu poderia amarrar um lençol em volta do seu tornozelo e te arrastar para

cima.

— O que eu ganho se eu chegar ao topo?

— Você pode me fazer o jantar? — Eu digo.

Ela ri e enlaça seu braço no meu, e começamos os passos finais, inalando o cheiro

suavemente doce de grama quente. Meu coração incha. As coisas já parecem

melhores do que em meses. Parece mais nós, antes das coisas se intensificarem com

minha carreira e a família de Libby e cairmos em ritmos separados.

Na minha bolsa, ouço meu telefone tocar com um e-mail e resisto à vontade de

verificá-lo.

— Olhe para você — provoca Libby, — parando para cheirar as rosas literais.

— Eu não sou mais a Nora da Cidade — eu digo — eu sou a descontraída, que vai

com o fluxo, N…

Meu telefone toca novamente, e olho para minha bolsa, ainda mantendo o ritmo.

Ele soa mais duas vezes em rápida sucessão, e então uma terceira vez.

Eu não aguento. Eu paro, largo as nossas malas e começo a vasculhar minha bolsa.

Libby me dá um olhar de desaprovação sem palavras.

— Amanhã — digo a ela — vou começar a ser aquela outra Nora.


Por mais diferentes que sejamos, no momento em que começamos a desembalar,

não poderia ser mais óbvio que somos feitas do mesmo tecido: livros, produtos para

cuidados com a pele e roupas íntimas muito chiques. A Trindade do Luxo das

Mulheres Stephens, passadas pela mãe.

— Algumas coisas nunca mudam — Libby suspira, um som melancólico e feliz

que se dobra sobre mim como a luz do sol.

A teoria da mamãe era que a pele jovem faria uma mulher ganhar mais dinheiro

(verdade tanto no trabalho de atriz quanto no de garçonete), boas roupas íntimas a

deixariam mais confiante (até agora, tudo verdade), e bons livros a deixariam feliz

(verdade universal), e nós duas claramente fizemos as malas com essa teoria em

mente.

Em vinte minutos, eu me acomodei, lavei meu rosto, coloquei roupas limpas e

liguei meu laptop. Enquanto isso, Libby guardou metade de suas coisas, depois

desmaiou na cama king size que estamos compartilhando, sua cópia de Uma vez na

vida virada para baixo ao lado dela na colcha.

A essa altura, estou com uma fome desesperada, e preciso de mais seis minutos

pesquisando no Google (o Wi-Fi é tão lento que tenho que usar meu telefone como

ponto de acesso) para confirmar que o único lugar que entrega aqui é uma pizzaria.

Cozinhar não é uma opção. De volta para casa, como cinqüenta por cento das

minhas refeições fora, e outros quarenta por cento vêm de uma mistura de comida

para viagem e entrega.

Mamãe costumava dizer que Nova York era um ótimo lugar para não ter dinheiro.

Há tanta arte e beleza grátis, tanta comida incrível e barata. Mas, tendo dinheiro em

Nova York, lembro-me dela dizendo em um inverno enquanto observávamos as

vitrines no Upper East Side, Libby e eu segurando suas mãos enluvadas, agora isso

seria mágico.

Ela nunca disse isso com amargura, mas sim com admiração, tipo, Se as coisas já

estão tão boas, então como elas devem estar quando você não precisa se preocupar

com contas de luz?

Não que ela estivesse no ramo de atuação por dinheiro (ela estava otimista, não

iludida). A maior parte de sua renda vinha de gorjetas de garçonete no restaurante,

onde ela arrumava livros ou giz de cera para mim e para Libby durante o turno dela,

ou o ocasional trabalho de babá relaxado o suficiente para deixá-la nos carregar até

eu ter cerca de onze anos, e ela confiou em mim para ficar em casa ou na Freeman

Books com Libby, sob a vigilância da Sra. Freeman.

Mesmo sem dinheiro, nós três éramos tão felizes naqueles dias, vagando pela

cidade com falafel de food trucks ou fatias de pizza do tamanho de nossas cabeças,

sonhando com grandes futuros.

Graças ao sucesso de Once in a Lifetime, minha vida começou a se assemelhar a

esse futuro imaginado.

Mas aqui, não conseguimos nem mesmo um pedido de pad thai trazido até a

porta. Teremos que caminhar os três quilômetros até a cidade.

Quando tento acordar Libby, ela literalmente me xinga enquanto dorme.


— Estou com fome, Lib. — Eu empurro seu ombro e ela cai de lado, enterrando o

rosto em um travesseiro.

— Me traz alguma coisa — ela resmunga.

— Você não quer ver sua pequena aldeia favorita? — Eu digo, tentando soar

atraente. — Você não quer ver o boticário onde o Velho Whittaker quase tem uma

overdose?

Sem olhar para cima, ela me mostra o dedo do meio.

— Tudo bem — eu digo. — Eu vou trazer algo para você.

Cabelo preso em um pequeno rabo de cavalo, tênis nos pés, eu desço a encosta

ensolarada da colina em direção à estrada de terra cercada por árvores

desgrenhadas.

Quando a viela estreita finalmente se transforma em uma rua adequada, viro à

esquerda, seguindo a estrada curva para baixo.

Tal como acontece com a casa de campo, a cidade aparece de uma só vez.

Em um instante, estou em uma estrada em ruínas ao lado de uma montanha, e no

próximo, Sunshine Falls está espalhada abaixo de mim como o cenário de um velho

oeste, cumes cobertos de árvores se projetando nas costas e um céu azul sem fim

abobadado sobre ele.

É um pouco mais cinza e gasto do que parecia nas fotos, mas pelo menos vejo a

igreja de pedra de Once, junto com o toldo listrado de verde e branco sobre o

armazém geral e os guarda-chuvas amarelo-limão do lado de fora da fonte de

refrigerante.

Há algumas pessoas na rua, passeando com seus cães. Um velho está sentado em

um banco de metal verde lendo um jornal. Uma mulher rega as floreiras do lado de

fora de uma loja de ferragens, através de cuja janela vejo exatamente zero clientes.

À frente, vejo um velho prédio de pedra branca na esquina, perfeitamente

compatível com a descrição da antiga biblioteca da Sra. Wilder em Once, meu cenário

favorito no livro porque me lembra das manhãs chuvosas de sábado, quando mamãe

deixava eu e Libby na frente de uma prateleira de livros infantojuvenis na Freeman's

antes de atravessar a cidade para uma audição.

Quando ela voltava, ela nos levava para tomar sorvete ou comer nozes

cristalizadas no Washington Square Park. Subíamos e descíamos os caminhos, lendo

as placas nos bancos, inventando histórias sobre quem poderia tê-las doado.

Já imaginou morar em outro lugar? Mamãe costumava dizer.

Eu não podia.

Certa vez, na faculdade, um grupo de meus amigos transplantados concordou

unanimemente que “nunca poderiam criar filhos na cidade”, e fiquei chocada. Não é

só porque eu adorava crescer na cidade, é que toda vez que vejo crianças andando

sonolentamente em massa no Met, ou colocando seu aparelho de som no trem para

dançar break em busca de gorjetas, ou admirando na frente de um violinista de

classe mundial tocando abaixo do Rockefeller Center, eu penso, como é incrível fazer

parte disso, poder compartilhar este lugar com todas essas pessoas.


E adoro levar Bea e Tala para explorar a cidade também, observar o que hipnotiza

uma criança de quatro anos e meio e uma criança de três anos e quais as armadilhas

da cidade por onde passam, aceitando como banal.

Mamãe veio para Nova York esperando o set de um filme de Nora Ephron (meu

xará), mas a verdadeira Nova York é muito melhor. Porque todo tipo de pessoa está

ali, convivendo, compartilhando espaço e vida.

Ainda assim, meu amor por Nova York não me impede de ficar encantada com

Sunshine Falls.

Na verdade, estou fervilhando de excitação quando me aproximo da biblioteca.

Quando espio pelas janelas escuras, o zumbido é interrompido. A fachada de pedra

branca do prédio é exatamente como Dusty a descreveu, mas por dentro não há nada

além de TVs piscando e letreiros de néon de cerveja.

Não é como se eu esperasse que a viúva Sra. Wilder fosse uma pessoa real, mas

Dusty tornou a biblioteca de empréstimo tão vívida que eu tinha certeza de que era

um lugar real.

A excitação azeda, e quando penso em Libby, ela coagula completamente. Isso

não é o que ela está esperando, e eu já estou tentando descobrir como gerenciar suas

expectativas, ou pelo menos presenteá-la com um divertido prêmio de consolação.

Passo por algumas vitrines vazias antes de chegar ao toldo do armazém geral. Um

olhar para as janelas me diz que não há prateleiras de pão fresco ou barris de doces

antiquados esperando lá dentro.

Os vidros estão sujos de poeira e, além deles, o que vejo só pode ser descrito como

merda aleatória. Prateleiras e prateleiras de lixo. Computadores antigos,

aspiradores de pó, ventiladores de caixa, bonecas com cabelos desgrenhados. É uma

casa de penhores. E não uma bem conservada.

Antes que eu possa fazer contato visual com o homem de óculos curvado na mesa,

eu sigo em frente até chegar ao mesmo nível do pátio com guarda-chuva amarelo do

outro lado da rua.

Pelo menos há sinais de vida lá, pessoas entrando e saindo, um casal conversando

com xícaras de café em uma das mesas. Isso é promissor. Um pouco.

Verifico o trânsito nos dois sentidos (nenhum) antes de atravessar a rua. A placa

em relevo dourado sobre as portas diz MUG + SHOT, e há pessoas esperando dentro

de um balcão.

Eu coloco minhas mãos em volta dos meus olhos, tentando ver através do brilho

na porta de vidro, assim que o homem do outro lado começa a abri-la.


OS OLHOS VERDES ESMERALDA DO HOMEM se arregalam.

— Desculpe! — ele grita enquanto eu rapidamente passo pela porta sem nenhum

dano.

Não é sempre que fico atordoada em silêncio.

Agora, porém, estou olhando, silenciosa e ansiosa, para o homem mais lindo que

já vi.

Cabelo louro-dourado, mandíbula quadrada e uma barba que consegue ser

áspera sem parecer rebelde. Ele é musculoso, a palavra surge na minha cabeça,

fornecida por uma vida inteira mexendo nas velhas brochuras Harlequin da mamãe,

sua camisa (de flanela) justa, as mangas arregaçadas em seus antebraços

bronzeados.

Com um sorriso tímido, ele se afasta, segurando a porta para mim.

Eu deveria dizer algo.

Qualquer coisa.

Ah, não, minha culpa! Eu estava no caminho.

Eu até me contentaria com um estrangulado Olá, bom senhor.

Infelizmente, isso não está acontecendo, então eu corto minhas perdas, forço um

sorriso e passo por ele pela porta, esperando parecer que sei onde estou e

definitivamente vim aqui de propósito.

Eu nunca amei os romances de cidade pequena da mamãe do jeito que Libby ama,

mas eu gostei o suficiente para não me surpreender que meu próximo pensamento

seja: Ele cheira a pinheiros e chuva iminente.

Exceto que sim, porque os homens não cheiram assim.

Eles cheiram a suor, sabonete em barra ou um pouco de colônia demais.

Mas esse homem é mítico, o protagonista brilhante demais de uma comédia

romântica que faz você gritar: NENHUM LEITEIRO TEM AQUELES ABS.

E ele está sorrindo para mim.

É assim que acontece? Escolher uma pequena cidade, dar um passeio, conhecer

um estranho incrivelmente bonito? Meus exs tinham razão?

Seu sorriso se aprofunda (covinhas combinando, é claro) quando ele balança a

cabeça e abre a porta.

E então eu estou olhando para ele pela janela enquanto ele se afasta, meu coração

zumbindo como um laptop superaquecido.


Quando as estrelas em meus olhos desaparecem, eu me encontro não no topo do

Monte Olimpo, mas em um cafeteria com paredes de tijolos expostos e pisos de

madeira antigos, o cheiro de café expresso espesso no ar. Na parte de trás da loja,

uma porta se abre para um pátio. A luz que entra atinge uma vitrine de vidro com

doces e sanduíches embrulhados em plástico, e eu basicamente ouço anjos cantando.

Entro na fila e observo a multidão, uma mistura de tipos descolados com

sandálias de tiras de caminhada ao ar livre e pessoas em jeans surrados e chapéus

de malha. Na frente da fila, porém, há outro homem bonito.

Dois na minha primeira hora aqui. Uma proporção excepcional.

Ele não é tão impressionante quanto o Adonis que segura a porta, mas é bonito

como um mero mortal, com cabelos grossos e escuros e uma elegância esguia. Ele

tem mais ou menos a minha altura, talvez um fio de cabelo mais alto ou mais curto,

vestido com um moletom preto cujas mangas são arregaçadas e calças verde-oliva

com sapatos pretos que não tenho escolha a não ser descrever como sexy. Só consigo

ver o rosto dele de perfil, mas é um perfil legal. Lábios carnudos, queixo ligeiramente

saliente, nariz afilado, sobrancelhas a meio caminho entre Cary Grant e Groucho

Marx.

Na verdade, ele meio que se parece com Charlie Lastra.

Tipo, muito parecido com ele.

O homem olha de soslaio para a vitrine, e o pensamento surge em meu cérebro

como uma série de foguetes de garrafa: É ele. É ele. É ele.

Parece que alguém amarrou o meu estômago a um tijolo e o jogou sobre uma

ponte.

Não tem jeito. Já é estranho o suficiente que eu esteja aqui, não tem como ele estar

também.

E mesmo assim.

Quanto mais o estudo, mais insegura fico. Como quando você pensa que viu uma

celebridade pessoalmente, mas quanto mais você fica boquiaberto, mais certeza

você fica de que nunca olhou para o nariz de Matthew Broderick antes, e pelo que

você pode se lembrar, ele pode não ter um.

Ou quando você tenta desenhar um carro durante um jogo de Pictionary e

descobre que não tem ideia de como são os carros.

A pessoa na frente da fila paga, e a fila avança, mas eu me esquivo, me enfiando

do outro lado de uma estante cheia de jogos de tabuleiro.

Se realmente for Charlie, seria humilhante para ele me ver escondida aqui, como

ver sua professora mais chata do lado de fora de um clube só para adolescentes

usando um top curto e um piercing falso no umbigo (não que eu tivesse essa

experiência [eu tive]) mas se não for, posso deixar isso de lado facilmente. Talvez.

Pego meu telefone e abro meu aplicativo de e-mail, procurando o nome dele.

Além de nossa primeira troca de e-mails acalorada, há apenas mais uma mensagem

recente dele, o e-mail em massa que ele enviou com suas novas informações de

contato quando se mudou da Wharton House para se tornar editor-geral da Loggia

seis meses atrás. Eu bato um e-mail rápido para o novo endereço.


Charlie,

Novo MS em andamento. Tentando lembrar: como você se sente sobre animais

falantes?

Nora

Não é como se eu esperasse um aviso de ausência do escritório para detalhar

para onde ele está viajando, ou em que café ele provavelmente está, mas pelo menos

eu saberei se ele está fora do trabalho.

Mas meu telefone não apita com uma resposta automática.

Eu espio ao redor da prateleira. O homem que pode ou não ser meu inimigo

profissional tira o telefone do bolso, abaixando a cabeça e os lábios se afinando em

uma linha não impressionada. Só que eles ainda estão muito cheios, então

basicamente ele está fazendo beicinho. Ele digita por um minuto, depois guarda o

telefone.

Um calafrio genuíno desliza pela minha espinha quando meu telefone vibra na

minha mão.

É uma coincidência. Tem que ser.

Eu abro a resposta.

Nora,

Aterrorizado.

Charlie

A fila avança novamente. Ele é o próximo a fazer o pedido. Não tenho muito

tempo para fugir sem ser vista, com menos tempo ainda para confirmar ou dissipar

meus medos.

Charlie,

E erotismo com o Pé Grande? Tenho algumas dúvidas na minha pilha de lama. Bom

ajuste para você?

Nora

Assim que eu pressiono enviar, eu volto aos meus sentidos. Por que, de todas as

palavras disponíveis para mim, foi isso que eu disse? Talvez meu cérebro esteja

organizado pelo sistema decimal de Dewey, mas agora todas as prateleiras parecem

estar pegando fogo. Constrangimento corre em minhas veias com a imagem

repentina de Charlie abrindo aquele e-mail e instantaneamente ganhando terreno

profissional.

O homem pega o telefone. O adolescente na frente dele acabou de pagar. O barista

chama Talvez Charlie para a frente com um sorriso alegre, mas ele murmura algo e

sai da fila.

Ele está meio de frente para mim agora. Ele balança a cabeça com firmeza, o canto

da boca se contorcendo em uma careta. Tem que ser ele. Tenho certeza disso agora,

mas se eu correr para a porta, só atrairei seu olhar.


O que ele poderia estar fazendo aqui? Meu truque de festa de classe média o

registra da cabeça aos pés: quinhentos dólares de tons neutros, mas se ele estava

procurando camuflagem, não está funcionando. Ele poderia muito bem estar parado

sob uma marquise de cinema anunciando O FORA DA CIDADE com uma flecha

apontada diretamente para seu cabelo apimentado.

Encaro a estante de livros, de costas para ele e fingindo ler os jogos.

Considerando o quão curta, para não mencionar estúpida, minha mensagem foi,

ele leva um tempo surpreendentemente longo para responder.

Claro, ele poderia estar lendo qualquer número de e-mails além do meu.

Eu quase deixo cair meu telefone em meu frenesi para abrir a próxima

mensagem.

Ainda não há opiniões firmes, mas uma curiosidade extrema. Fique à vontade para

me encaminhar.

Eu verifico por cima do meu ombro. Charlie voltou à fila.

Quantas vezes posso continuar fazendo ele sair da fila? Eu me pergunto com

emoção. Entendo ficar grudado no telefone quando se trata de coisas importantes

relacionadas ao trabalho, mas estou surpresa que o instinto seja tão profundo que

ele pense que uma mensagem sobre o erotismo do Pé Grande requer uma resposta

imediata.

Na verdade, tenho uma submissão erótica do Pé Grande na minha caixa de

entrada. Às vezes, quando minha chefe está tendo um dia difícil, faço uma leitura

dramática de Pés Grandes do Pé Grande para animá-la.

Seria antiético compartilhar o manuscrito fora da agência.

Mas o autor na verdade incluiu um link para seu site, onde um punhado de

novelas auto-publicadas estão disponíveis para compra. Eu copio o link para um e

envio para Charlie sem contexto.

Eu olho para trás para vê-lo franzindo a testa em seu telefone. Uma resposta ecoa.

Isso custa 99 centavos............

Eu respondo, eu sei, que pechincha! Se meu profissionalismo é manicure em gel,

então Charlie Lastra é aparentemente a acetona industrial capaz de queimar através

dela.

Procuro o nome dele no Venmo e envio noventa e nove centavos. Outro e-mail

chega um segundo depois. Ele me devolveu o dólar, com o bilhete, sou um homem

adulto, Nora. Eu posso comprar meu próprio livro erótico do Pé Grande, muito

obrigado.

O caixa o cumprimenta novamente, e desta vez ele enfia o telefone no bolso e se

aproxima para fazer o pedido. Enquanto ele está distraído, aproveito a chance.


Estou faminta.

Estou desesperada para saber o que ele está fazendo aqui.

E estou meio correndo em direção à porta.

— De jeito nenhum! — Libby chora. Estamos sentadas à mesa de madeira rústica

do chalé, devorando os pães e as saladas que pedimos na Antonio's Pizza. Eu tive

que voltar para a caixa de correio para pegar o pedido quando o entregador disse

que não tinha permissão para subir as escadas “por motivos de seguro”.

Parece inventado, mas tudo bem.

— O cara que foi tão rude sobre o livro da Dusty? — Libby específica.

Concordo com a cabeça e pego um tomate surpreendentemente suculento na

salada, colocando-o na boca.

— O que ele está fazendo aqui? — ela pergunta.

— Não sei.

— Ah meu Deus — ela diz — e se ele for um superfã de Once In A Lifetime?

Eu bufo.

— Acho que essa é a única possibilidade que podemos descartar.

— Talvez ele seja como o Velho Whittaker em Once. Apenas com medo de mostrar

seus verdadeiros sentimentos. Secretamente, ele ama esta cidade. E o livro. E a viúva

Sra. Wilder.

Na verdade, sou insuportavelmente curiosa, mas não vamos resolver o mistério

adivinhando.

— O que você quer fazer essa noite?

— Vamos consultar a lista? — Ela tira o papel da bolsa e o alisa sobre a mesa. —

Ok, estou muito cansada para tudo isso.

— Muito cansada? — Eu digo. — Acariciar um cavalo e salvar um negócio local?

Mesmo depois do seu cochilo?

— Você acha que quarenta minutos são suficientes para compensar as três

semanas de Bea rastejando para a cama conosco depois de um pesadelo?

Eu estremeço. Essas garotas devem ter uma temperatura corporal interna de

pelo menos trezentos graus. Você não pode dormir ao lado delas sem acordar

encharcada de suor, com um pezinho adorável cavando sua caixa torácica.

— Você precisa de uma cama maior — digo a Libby, pegando meu telefone para

iniciar a busca.

— Oh, por favor — diz Libby. — Não podemos colocar uma cama maior naquele

quarto. Não se planejamos abrir as gavetas da cômoda.

Sinto uma faísca de alívio naquele momento. Porque a mudança em Libby, a

fadiga; a distância estranha e intangível, de repente faz sentido. Tem uma causa, o

que significa que tem uma solução.

— Você precisa de um lugar maior. — Especialmente com o bebê número três a

caminho. Um banheiro, para uma família de cinco pessoas, é minha ideia de

purgatório.


— Nós não poderíamos comprar um lugar maior se estivesse estacionado em

cima de uma barcaça de lixo quarenta e cinco minutos em Jersey — diz Libby. — A

última vez que olhei para as listas de apartamentos, tudo era tipo, um apartamento

de um quarto, um banheiro sem banheira e um box tão apertado quanto aquele em

que um serial killer atacaria; os instrumentos estão inclusos, mas você fornece as

vítimas! E mesmo isso estava fora da nossa faixa de preço.

Eu aceno com a mão.

— Não se preocupe com o dinheiro. Eu posso ajudar.

Ela revira os olhos.

— Eu não preciso de sua ajuda. Eu sou uma mulher adulta. Tudo que eu preciso

é de uma noite, seguida de um mês de descanso e relaxamento, ok?

Ela sempre odiou tomar dinheiro de mim, mas toda a razão de ter dinheiro é

tomar conta de nós. Se ela não aceitar outro empréstimo, terei que encontrar um

apartamento que ela possa pagar. Problema meio resolvido.

— Tudo bem — eu digo. — Nós vamos ficar. Noite de Hepburn?

Ela dá um sorriso genuíno.

— Noite de Hepburn.

Sempre que mamãe estava estressada ou com o coração partido, ela costumava

se permitir uma noite explorar para esse sentimento.

Ela chamava de noite de Hepburn. Ela amava Hepburn. Katharine, não Audrey,

não que ela tivesse algo contra Audrey. Foi assim que acabei com o nome de Nora

Katharine Stephens, enquanto Libby ficou com Elizabeth Baby Stephens, a parte

“Baby” sendo homenagem ao leopardo de Bringing Up Baby.

Nas noites de Hepburn, nós três escolhemos um dos roupões vintage exagerados

da mamãe e nos aconchegamos na frente da TV com um refrigerante e uma pizza, ou

descafeinado e torta de chocolate, e assistíamos algum filme antigo em preto e

branco.

Mamãe chorava durante suas cenas favoritas, e quando Libby ou eu a pegávamos,

ela ria, enxugando as lágrimas com as costas de uma mão, e dizia, eu sou tão mole.

Eu adorava aquelas noites. Eles me ensinaram que um coração quebrado, como

a maioria das coisas, era um quebra-cabeça solucionável. Uma lista de verificação

pode guiar uma pessoa através do luto. Havia um plano acionável para seguir em

frente. Mamãe dominou isso, mas nunca chegou ao próximo passo: eliminar os

idiotas.

Homens casados. Homens que não queriam ser padrastos. Homens que não

tinham absolutamente nenhum dinheiro, ou que tinham muito dinheiro e membros

da família muito dispostos a sussurrar interesseiras, aproveitadoras.

Homens que não entendiam suas aspirações de estar no palco e homens

inseguros demais para dividir os holofotes.

Ela foi sobrecarregada com crianças quando ela era pouco mais velha do que

uma, mas mesmo depois de tudo que ela passou, ela manteve seu coração aberto.

Ela era otimista e romântica, assim como Libby. Eu esperava que minha irmã se

apaixonasse uma dúzia de vezes, tivesse seu coração partido várias vezes por

décadas, mas em vez disso ela se apaixonou por Brendan aos vinte e se estabeleceu.


Eu, enquanto isso, tinha apenas um osso romântico no meu corpo, e uma vez que

ele quebrou e eu me curei, desenvolvi um rigoroso processo de verificação para

namoro. Portanto, nem Libby nem eu precisamos das nossas noites antiquadas de

Hepburn. Agora eles são uma desculpa para sermos preguiçosas e uma maneira de

se sentir perto da mamãe.

São apenas seis horas, mas colocamos nossos pijamas, incluindo os nossos

roupões de seda. Nós arrastamos os cobertores da cama no loft e descemos a escada

em espiral de ferro até o sofá e colocamos o primeiro DVD da caixa Best of Katharine

Hepburn que Libby trouxe com ela.

Encontro duas canecas azuis salpicadas no armário e coloco a chaleira no fogo

para o chá, e então nos afundamos no sofá para assistir Philadelphia Story,

combinando com máscaras de carvão em nossos rostos. A cabeça da minha irmã cai

no meu ombro, e ela solta um suspiro feliz.

— Foi uma boa ideia — diz ela.

Meu coração aperta Em algumas horas, quando eu estiver deitada em uma cama

desconhecida, sem uma posição confortável para dormir, ou amanhã, quando Libby

ver a praça sem brilho da cidade pela primeira vez, meus sentimentos podem mudar,

mas agora, tudo está bem no mundo.

Qualquer coisa quebrada pode ser consertada. Qualquer problema pode ser

resolvido.

Quando ela adormece, eu tiro meu telefone do meu roupão e digito um e-mail,

respondendo a cada corretor de imóveis, senhorio e gerente de construção que eu

conheço.

Você está no controle, digo a mim mesma. Você não vai deixar nada de ruim

acontecer com ela nunca mais.

Meu telefone apita com um novo e-mail por volta das dez da noite

Desde que Libby se arrastou para a cama uma hora atrás, eu fiquei sentada no

deck de trás, querendo me sentir cansada e tomando um copo de pinot aveludado

que Sally Goode, a dona do chalé, deixou para nós.

Em casa eu sou uma coruja. Quando estou fora, sou mais como uma insone que

acabou de misturar um monte de cocaína em um pouco de Red Bull e deu uma volta

em um touro mecânico. Tentei trabalhar, mas o Wi-Fi é tão ruim que meu laptop é

um peso de papel glorificado, então, em vez disso, fiquei olhando para a floresta

escura além do deck, observando vaga-lumes aparecerem e desaparecerem.

Espero encontrar uma mensagem de um dos corretores de imóveis que entrei em

contato. Em vez disso, CHARLIE LASTRA está em negrito no topo da minha caixa de

entrada. Eu abro a mensagem e mal evito um cuspe.

Eu teria preferido passar a vida inteira sem saber que este livro existia, Stephens.


Até para meus próprios ouvidos, minha gargalhada soa como uma madrasta

malvada.

Você comprou o livro erótico do Pé Grande?

Charlie responde.

Despesa comercial.

Por favor, me diga que você usou o vale presente da Loggia.

Este acontece no Natal, escreve ele. Há um para cada feriado.

Tomo outro gole, pensando na minha resposta. Possivelmente algo como Bebeu

algum café interessante ultimamente?

Talvez Libby esteja certa: talvez Charlie Lastra estivesse secretamente tão

encantado quanto o resto da América pelo retrato de Sunshine Falls de Dusty e

planejou uma visita durante a hibernação anual de fim de verão da editora. Eu não

consigo me forçar a abordar o assunto.

Em vez disso, escrevo:

Em que página você está?

Três, ele diz. E eu já preciso de um exorcismo.

Sim, mas isso não tem nada a ver com o livro. Mais uma vez, assim que eu o enviei,

eu tenho que me maravilhar-barra-entrar em pânico com minha própria falta de

profissionalismo. Ao longo dos anos, desenvolvi um filtro bem ajustado, com

praticamente todo mundo, exceto Libby, mas Charlie sempre consegue desarmá-lo,

apertar o botão exato para abrir o portão e deixar meus pensamentos correrem

como velociraptors.

Por exemplo, quando Charlie responde, admito que é uma aula de mestre em

ritmo. Caso contrário, não me impressiono, minha reação instantânea é digitar: “Caso

contrário, não me impressiono” é o que eles colocarão em sua lápide.

Eu nem tenho o pensamento de que não deveria enviar isso até que eu já tenha

enviado.

No seu, ele responde, eles colocarão “Aqui jaz Nora Stephens, cujo gosto muitas

vezes era excepcional e ocasionalmente perturbador.”

Não me julgue com base na novela de Natal, respondo. Eu não li.

Nunca te julgaria pelo pornô do Pé Grande, diz Charlie. Iria julgá-la inteiramente

por preferir Once In A Lifetime à The Glory Of Small Things.

O vinho soltou uns parafusos a mais do meu cérebro: eu escrevo NÃO É UM LIVRO

RUIM!

“NÃO É UM LIVRO RUIM.” — Nora Stephens, Charlie responde. Acho que me lembro

de ter visto esse endosso na capa.

Admita que você não acha que é ruim, eu exijo.


Só se você admitir que também não acha que é o melhor dela, diz ele.

Eu encaro o brilho áspero da tela. As mariposas não param de correr à sua frente

e, na floresta, ouço o zumbido das cigarras, o pio de uma coruja. O ar está pegajoso

e quente, mesmo depois que o sol se pôs atrás das árvores.

Dusty é tão ridiculamente talentosa, eu digito. Ela é incapaz de escrever um livro

ruim. Penso por um momento antes de continuar: trabalho com ela há anos, e ela se

sai melhor com reforço positivo. Eu não me preocupo com o que não está funcionando

em seus livros. Eu me concentro no que ela é ótima. Foi assim que o editor de Dusty

conseguiu levar Once de bom para escandalosamente indestrutível. É isso que torna o

trabalho em um livro emocionante: ver seu potencial bruto, saber o que está tentando

se tornar.

Charlie responde:

Diz a mulher que eles chamam de A Tubarão.

Eu zombo. Ninguém me chama assim. Eu acho que não.

Diz o homem que eles chamam de Nuvem de Tempestade.

Chamam? ele pergunta.

Às vezes, eu escrevo. Claro, eu nunca faria isso. Eu sou muito educada.

Claro, ele diz. É por isso que os tubarões são conhecidos: boas maneiras.

Estou muito curiosa para deixar passar.

Eles realmente me chamam assim?

Os editores, ele escreve de volta, têm pavor de você.

Não estou com medo de que eles não comprem os livros dos meus autores, retruco.

Você estaria com medo, se os livros não fossem fantásticos para caralho.

Minhas bochechas aquecem de orgulho. Não é como se eu tivesse escrito os livros

sobre os quais ele está falando, tudo o que faço é reconhecê-los. E fazer sugestões

editoriais. E descobrir para quais editores enviá-los. E negociar o contrato para que

o autor consiga o melhor negócio possível. E segurar a mão do autor quando eles

receberem cartas editadas do tamanho dos romances de Tolstoi, e conversar com

eles quando me ligarem chorando. Etc...

Você acha que, eu digito de volta, tem alguma coisa a ver com meus olhos

minúsculos e minha cabeça loira acinzentada gigantesca? Então eu envio outro e-

mail esclarecendo, O apelido, quero dizer.

Tenho certeza que é sua sede de sangue, ele diz.

Eu bufo.

Eu não chamaria isso de sede de sangue. Eu não gosto de sangria. Faço para meus

clientes.

Claro, tenho alguns clientes que são tubarões, ansiosos para enviar e-mails de

acusação quando se sentem negligenciados por seus editores, mas a maioria deles é

mais propensa a ser esmagada ou guardar suas reclamações para si mesmo até que

o ressentimento transborde e eles se autodestroem de forma espetacular.

Esta pode ser a primeira vez que ouço meu apelido, mas Amy, minha chefe, chama

minha abordagem de agente como sorrindo com facas, então não é um choque total.

Eles têm sorte de ter você, Charlie escreve. Dusty especialmente. Qualquer um que

iria lutar por um livro “nada ruim” é um santo.


A indignação queima através de mim.

E qualquer um que perca o potencial óbvio desse livro é indiscutivelmente

incompetente.

Pela primeira vez, ele não responde imediatamente. Eu inclino minha cabeça

para trás, gemendo para o céu (alarmantemente estrelado; esta é a primeira vez que

olho para cima?) enquanto tento descobrir como, ou se, voltar atrás.

Uma picada atrai meu olhar para minha coxa, e eu afasto um mosquito, apenas

para pegar mais dois pousando no meu braço. Nojento. Eu dobro meu laptop e o

carrego para dentro, junto com meus livros, telefone e copo de vinho quase vazio.

Enquanto estou me arrumando, meu telefone toca com a resposta de Charlie.

Não foi pessoal, ele diz, então outra mensagem chega. Sou conhecido por ser muito

franco. Aparentemente eu não causo a melhor primeira impressão.

E eu, respondo, sou conhecida por ser muito pontual. Você me pegou em um dia

ruim.

O que você quer dizer? ele pergunta.

Aquele almoço, eu digo. Foi assim que tudo começou, não foi? Eu estava atrasada,

então ele foi rude, então eu fui rude de volta, então ele me odiou, então eu o odiei, e

assim por diante.

Ele não precisa saber que eu tinha acabado de ser dispensada em um telefonema

de quatro minutos, mas parece que vale a pena mencionar que foram circunstâncias

atenuantes. Eu tinha acabado de receber uma má notícia. Por isso cheguei atrasada.

Ele não responde por cinco minutos completos. O que é irritante, porque não

tenho o hábito de ter conversas em tempo real por e-mail, e é claro que ele pode

parar de responder a qualquer momento e ir para a cama, enquanto eu ainda estarei

aqui, olhando para uma parede, totalmente acordada.

Se eu tivesse minha bicicleta ergométrica Peloton, poderia queimar um pouco

dessa energia.

Eu não me importei que você estivesse atrasada, ele diz finalmente.

Você olhou para o seu relógio. Incisivamente, eu escrevo de volta. E disse, se bem

me lembro: “Você está atrasada”.

Eu estava tentando descobrir se eu poderia pegar um vôo, Charlie responde.

Você conseguiu? Eu pergunto.

Não, ele diz. Me distraí com dois martínis de gin e uma tubarão loira platinada que

me queria morto.

Não morto, eu digo. Ligeiramente machucado, talvez, mas eu teria ficado longe do

seu rosto.

Não sabia que você era uma fã, ele escreve.

Um zumbido desce pela minha espinha e sobe de volta, como se minhas vértebras

superiores tivessem acabado de tocar um fio energizado. Ele está flertando? Eu

estou? Estou entediada, sim, mas não tão entediada. Nunca tão entediada.

Eu desvio com, Apenas tentando tomar cuidado com suas sobrancelhas. Se alguma

coisa acontecesse com essas coisas, isso mudaria toda a sua carranca tempestuosa, e

você precisaria de um novo apelido.


Se eu perdesse minhas sobrancelhas, ele diz, de alguma forma acho que não

faltariam novos apelidos disponíveis para mim. Acho que você teria algumas sugestões.

Eu precisaria de tempo para pensar, eu digo. Não gostaria de tomar decisões

precipitadas.

Não, claro que não, ele responde. Segundos depois, outra linha segue. Vou deixar

você voltar para sua noite.

E você para seu livro do Pé Grande, eu digito, então retrocesso e me forço a deixar

a mensagem sem resposta.

Eu balanço minha cabeça, tentando limpar a imagem de Charlie Lastra

carrancudo para seu e-reader em um hotel em algum lugar próximo, sua carranca

se aprofundando sempre que ele alcança algo lascivo.

Mas essa imagem, ao que parece, é tudo em que meu cérebro quer se concentrar.

Esta noite, quando estou deitada na cama, bem acordada e tentando me convencer

de que o mundo não vai acabar se eu adormecer, é para essa imagem que vou voltar,

meu próprio lugar mental feliz.


EU ACORDO, CORAÇÃO ACELERADO, pele fria e úmida. Meus olhos se abrem

em um quarto escuro, pulando de uma porta desconhecida para o contorno de uma

janela para o monte roncando ao meu lado.

Libby. O alívio é intenso e imediato, um balde de gelo despejado sobre mim de

uma só vez. O zumbido do meu coração começa seu tempo de espera pós-pesadelo.

Libby está aqui. Tudo deve estar bem.

Eu reconstruo meus arredores.

Goode's Lily Cottage, Sunshine Falls, Carolina do Norte.

Era apenas um pesadelo.

Talvez “pesadelo” não seja a palavra certa. O sonho em si é bom, até o fim.

Começa comigo e Libby entrando no velho apartamento, pousando as chaves e

as malas. Às vezes, Bea e Tala estão conosco, ou Brendan, sorrindo bem-humorado

enquanto preenchemos cada lacuna com conversas frenéticas.

Desta vez, somos apenas nós duas.

Estamos rindo de alguma coisa, uma peça que acabamos de ver. Newsies, talvez.

De sonho em sonho, esses detalhes mudam, e assim que me sento, respirando com

dificuldade no escuro deste quarto desconhecido, eles se dissipam como pétalas na

brisa.

O que resta é a dor profunda, um abismo imenso.

O sonho é assim:

Libby joga suas chaves na tigela perto da porta. Mamãe ergue os olhos da mesa

da cozinha, pernas dobradas sob ela, camisola esticada sobre elas.

— Oi, mamãe — diz Libby, passando por ela em direção ao nosso quarto, que

dividíamos quando éramos crianças.

— Minhas meninas queridas! — Mamãe chora, e eu me curvo para dar um beijo

em sua bochecha a caminho da geladeira. Eu chego lá antes que os arrepios se

instalem. A sensação de algo estar errado.

Eu me viro e olho para ela, minha linda mãe. Ela voltou a ler, mas quando ela me

pega olhando, ela abre um sorriso perplexo.

— O que?

Eu sinto lágrimas em meus olhos. Esse deveria ser o primeiro sinal de que estou

sonhando, nunca choro na vida real, mas nunca noto essa incongruência.

Ela parece a mesma, nem um dia mais velha. Como a encarnação da primavera, o

tipo de calor que sua pele engole após um longo inverno.


Ela não parece surpresa em nos ver, apenas divertida e depois preocupada.

— Nora?

Eu vou em direção a ela, envolvo meus braços em volta dela, e seguro firme. Ela

me envolve em seus braços também, seu cheiro de limão-lavanda caindo sobre mim

como um cobertor. Seus fios de cabelo brilhantes cor de morango caem em meus

ombros enquanto ela passa a mão na parte de trás da minha cabeça.

— Ei, meu bem — diz ela. — O que está errado? Deixe sair.

Ela não se lembra que ela se foi.

Eu sou a única que sabe que ela não pertence. Entramos pela porta, e ela estava

lá, e parecia tão certo, tão natural, que nenhuma de nós percebeu imediatamente.

— Vou fazer chá — mamãe diz, enxugando minhas lágrimas. Ela se levanta e

passa por mim, e eu sei antes de me virar que quando eu fizer isso, ela não estará

mais lá.

Eu a deixei fora da minha vista, e agora ela se foi. Eu nunca consigo parar de olhar.

De virar para o quarto quieto e silencioso, sentindo aquele vazio doloroso no meu

peito como se ela tivesse sido esculpida em mim.

E é quando eu acordo. Como se, se ela não pudesse estar lá, não faz sentido

sonhar.

Verifico o despertador na mesa de cabeceira. Não são nem seis, e eu não adormeci

até depois das três. Mesmo com os roncos da minha irmã tremendo a cama, a casa

estava silenciosa demais. Grilos cantavam e cigarras cantavam em um ritmo

constante, mas eu senti falta da buzina de um motorista de táxi irritado, ou as sirenes

de um caminhão de bombeiros passando. Até os caras bêbados gritando de lados

opostos da rua enquanto voltavam para casa depois de uma noite pulando de bar

em bar.

Eventualmente, baixei um aplicativo que reproduz sons da cidade e o coloquei no

peitoril da janela, aumentando o volume lentamente para não acordar Libby. Só

quando eu atingi o volume máximo eu adormeci.

Mas estou bem acordada agora.

A pontada de saudade de minha mãe rapidamente se transforma em saudade da

minha bicicleta ergométrica.

Eu sou uma paródia de mim mesma.

Eu coloco um top esportivo e leggings, e desço as escadas, em seguida, puxo meus

tênis e saio para a escuridão fresca da manhã.

A névoa paira sobre o prado e, ao longe, por entre as árvores, os ramos de rosa

arroxeado se estendem ao longo do horizonte. Enquanto atravesso a grama úmida

em direção à passarela, levanto os braços acima da cabeça, esticando-me para cada

lado antes de acelerar o passo.

Do outro lado da passarela, o caminho serpenteia para a floresta, e eu começo

uma corrida fácil, a umidade do ar se acumulando em todos os meus vincos.

Gradualmente, a dor pós-sonho começa a diminuir.

Às vezes, parece que não importa quantos anos se passem, quando acordo pela

primeira vez, sou recém-órfã.


Tecnicamente, acho que não somos órfãs. Quando Libby engravidou pela

primeira vez, ela e Brendan contrataram um investigador particular para encontrar

nosso pai. Quando conseguiram, Libby enviou um convite para o chá de bebê ao

nosso querido papai. Ela nunca recebeu uma resposta, é claro. Não sei o que ela

esperava de um homem que não se deu ao trabalho de comparecer ao nascimento

de sua própria filha.

Ele deixou a mamãe quando ela estava grávida de Libby, sem nem mesmo um

bilhete.

Claro, ele também deixou um cheque de dez mil dólares, mas segundo o que a

mamãe dizia, ele era tão rico que essa era sua ideia de troco.

Eles foram namorados do ensino médio. Ela era uma garota protegida, educada

em casa, sem dinheiro e com sonhos de se mudar para Nova York para se tornar

atriz; ele era o garoto rico da escola preparatória que a engravidou aos dezessete

anos. Os pais dele queriam que mamãe interrompesse a gravidez; os dela queria que

eles se casassem. Eles se comprometeram não fazendo nenhum dos dois. Quando

eles foram morar juntos, ambos os pais os cortaram de suas vidas, mas os dele

entregaram sua herança como um presente de despedida, uma lasca da qual ele nos

deixou quando saiu de casa.

Ela usou o dinheiro para nos mudar da Filadélfia para Nova York e nunca mais

olhou para trás.

Afasto os pensamentos e me perco na deliciosa queimação dos meus músculos,

no bater dos meus pés contra a terra polvilhada com agulhas de pinheiro. As únicas

duas maneiras que eu já consegui sair da minha cabeça são através da leitura e de

exercícios rigorosos. Com qualquer um, eu posso sair da minha mente e vagar nesta

escuridão sem corpo.

A trilha desce uma encosta arborizada, depois vira para seguir uma cerca de

madeiras, além da qual se estende um pasto, brilhando aos primeiros raios de luz,

os cavalos pontilhando o campo iluminado por trás, suas caudas balançando para os

mosquitos e moscas que flutuam e brilham no ar como pó de ouro.

Há um homem lá fora também. Quando ele me vê, ele levanta a mão em saudação.

Eu aperto os olhos contra a luz forte, meu estômago subindo quando eu o imagino

Adonis do café. O protagonista da pequena cidade.

Eu desacelero?

Ele vai vir aqui?

Devo chamá-lo e me apresentar?

Em vez disso, escolho uma quarta opção: tropeço em uma raiz e me esparramado

na lama, minha mão pousando diretamente em algo que parece ser cocô. Muito cocô.

Tipo, talvez uma família inteira de veados tenha marcado especificamente este local

como seu palácio de merda.

Eu me levanto, olhando para o Protagonista de um Livro de Romance para

descobrir que ele perdeu minha performance dramática. Ele está olhando (falando

com?) um dos cavalos.

Por um segundo, penso em chamá-lo. Eu penso na fantasia até sua conclusão

lógica, este homem gloriosamente bonito estendendo a mão para apertar minha


mão, apenas para encontrar minha palma completamente manchada com pelotas de

veado.

Eu estremeço e desço o caminho, voltando para minha corrida.

Se, eventualmente, eu encontrar o lindo encantador de cavalos, então ótimo,

talvez eu possa progredir na lista e marcar o número cinco. Se não… bem, pelo

menos eu tenho minha dignidade.

Eu tiro uma mecha de cabelo do meu rosto, apenas para perceber que usei a mão

suja.

Risque essa parte sobre dignidade.

— Esqueci como é tranquilo fazer compras sem uma criança de quatro anos, tipo,

deitada no chão e lambendo o azulejo — suspira Libby, andando pelo corredor de

artigos de higiene pessoal como uma aristocrata dando uma volta pelo jardim na era

da Regência Inglesa.

— E todo o espaço, o espaço — digo, com muito mais entusiasmo do que sinto.

Consegui evitar que Libby visse o centro da cidade de Sunshine Falls insistindo que

Hardy nos levasse ao mercado na cidade vizinha, mas ainda estou no modo

preventivo de controle de danos, como evidenciado pelos quinze minutos que passei

apontando várias árvores no caminho.

Libby para na frente de tinturas de cabelo, um sorriso brilhante ultrapassando

seu rosto.

— Ei, devíamos escolher a mudança de visual uma da outra! Tipo cor e corte de

cabelo, quero dizer.

— Eu não vou cortar meu cabelo — eu digo.

— Claro que você vai — diz ela. — Eu vou.

— Na verdade, você vai.

Ela franze a testa.

— Está na lista, mana — ela diz. — De que outra forma devemos nos transformar

através da montagem em nossos novos eus? Vai ficar tudo bem. Eu corto o cabelo

das meninas o tempo todo.

— Isso explica a fase Dorothy Hamill da Tala.

Libby me dá um tapa no peito, o que é completamente injusto, porque você não

pode bater no peito de uma mulher grávida, mesmo que ela seja sua irmãzinha.

— Você realmente tem resistência emocional para deixar um checklist

desmarcado? — ela diz.

Algo em mim se contrai.

Eu realmente amo uma lista completa.

Ela me cutuca nas costelas.

— Vamos! Viva um pouco! Vai ser divertido! É por isso que estamos aqui.

Não é por isso que estou aqui. Mas a razão pela qual estou aqui está bem na minha

frente, um lábio inferior melodramático se projetando, e tudo em que consigo

pensar é no mês à nossa frente, isoladas em uma cidade que não é nada parecida

com a que ela está esperando.


E mesmo além disso, historicamente, as crises de Libby podem ser rastreadas por

mudanças dramáticas na aparência. Quando criança, ela nunca mudou a cor do

cabelo – mamãe fez um grande escândalo sobre o quão raros e marcantes eram os

cachos loiros avermelhados de Lib – mas Libby apareceu em seu próprio casamento

com um corte de duende que ela não tinha na noite anterior. Alguns dias depois, ela

finalmente se abriu para mim sobre isso, admitiu que teve uma explosão de medo

que beirava o terror e precisava tomar outra decisão dramática (embora menos

permanente) para lidar com isso.

Eu, pessoalmente, teria ido com uma lista de pró-contras codificada por cores,

mas cada um na sua.

A questão é que Libby está claramente avaliando a chegada deste novo bebê e o

que isso significará para ela e para Brendan, para o pouco dinheiro e para os quartos

apertados. Se eu a forçar a falar sobre isso agora, ela vai se calar. Mas se eu for na

onda dela, ela vai falar sobre isso quando estiver pronta. Aquele espaço dolorido e

pulsante entre nós será selado, um limbo fantasma completo novamente.

É por isso que estou aqui. Isso é o que eu quero. Quero tanto que vou raspar minha

cabeça se for preciso (então pedir uma peruca muito cara).

— Ok — eu cedi. — Vamos nos transformar.

Libby solta um grito de felicidade e fica na ponta dos pés para beijar minha testa.

— Eu sei exatamente que cor vamos pintar — diz ela. — Agora vire-se e não olhe.

Faço uma anotação mental para agendar um cabelereiro para o dia em que vou

para casa em Nova York.

Quando voltamos para o chalé naquela tarde, o sol está alto no céu azul sem

nuvens e, enquanto subimos a encosta, o suor se acumula em todos os lugares

inconvenientes, mas Libby continua tagarelando, despreocupada.

— Estou tão curiosa sobre a cor que você escolheu para mim — ela diz.

— Cor nenhuma — eu respondo. — Nós só vamos raspar sua cabeça.

Ela aperta os olhos através da luz, seu nariz sardento enrugando.

— Quando você vai aprender que é tão ruim em mentir que nem vale a pena

tentar?

Lá dentro, ela me senta em uma cadeira da cozinha e passa tinta no meu cabelo.

Então eu faço o mesmo, nenhuma de nós mostrando a sua escolha. Na hora da

compra, eu me senti tão confiante da minha escolha, mas vendo o quão vibrante a

cor parece endurecida sobre sua cabeça, eu tenho menos certeza.

Uma vez que nossos cronômetros são ajustados, Libby começa a preparar o

brunch.

Ela é vegetariana desde pequena, e depois que mamãe morreu, eu também me

tornei, por padrão. Financeiramente, não fazia sentido comprar duas versões

diferentes de tudo. Além disso, a carne é cara. Do ponto de vista puramente

matemático, o vegetarianismo fazia sentido para duas meninas recém-órfãs de vinte

e dezesseis anos.

Mesmo depois que Libby foi morar com Brendan, continuei. Durante sua fase de

aspirante a chef, ela o conquistou com uma dieta baseada em vegetais. Então, mesmo


que é tempeh 3 fritando na panela ao lado dos ovos que ela está mexendo para nós,

cheira a bacon. Ou pelo menos o suficiente como bacon para atrair alguém que não

comia o verdadeiro há dez anos.

Quando o cronômetro toca, Libby me enxota para enxaguar, me avisando para

não olhar no espelho “se não”.

Como sou péssima em mentir, eu sigo suas ordens, então assumo o trabalho de

transferir o brunch para o forno para mantê-lo aquecido enquanto ela enxagua sua

tintura.

Com o seu cabelo enrolado em uma toalha, ela me leva para o deck para cortar o

meu. A cada poucos segundos, ela faz um “huh” inauspicioso.

— Realmente instalando confiança em mim, Libby — eu digo.

Ela corta um pouco mais na frente do meu rosto.

— Vai ficar tudo bem.

Parece um pouco demais como se ela estivesse dando a si mesma uma conversa

estimulante para o meu gosto. Depois que eu cortei o cabelo dela em um long bob –

a maior parte já seca ao ar – nós entramos para a grande revelação.

Depois de combinar respirações profundas, preparando nossos egos para uma

humilhação, vamos juntos na frente do espelho do banheiro e o contemplamos.

Ela me deu uma franja leve em algum lugar entre uma franja pequena e uma

cortina, e de alguma forma eles faziam a cor marrom-acinzentada parecer mais com

o espírito livre de Laurel Canyon do que com água de louça suja.

— Você realmente é doentiamente boa em tudo, sabe disso, não é? — Eu digo.

Libby não responde, e quando meu olhar corta em direção ao dela, um peso

despenca através de mim. Ela está olhando para o reflexo de suas ondas rosa chiclete

com lágrimas brotando em seus olhos.

Merda. Uma enorme e óbvia falha de ignição. Libby geralmente prefere um visual

ousado, mas esqueci de levar em consideração como a gravidez tende a afetar sua

autoimagem.

— Ele vai começar a sair em algumas lavagens! — Eu digo. — Ou podemos voltar

à loja e comprar uma cor diferente? Ou encontrar um bom salão em Asheville, eu

pago. Realmente, isso é fácil de arrumar, Lib.

As lágrimas estão chegando ao ponto de ruptura agora, prontas para cair.

— Eu me lembrei de você implorando à mamãe para deixar você ter cabelo rosa

quando você estava na nona série — eu continuo. — Lembra? Ela não deixou, e você

fez aquela greve de fome até que ela disse que você podia pintar as pontas?

Libby se vira para mim, os lábios trêmulos. Eu tenho uma fração de segundo para

me perguntar se ela está prestes a me atacar antes que seus braços se arremessem

ao redor do meu pescoço, seu rosto se enterrando no lado da minha cabeça.

— Eu amei, mana — ela diz, seu doce aroma de limão e lavanda me envolvendo.

A tempestade de pânico se acalma em mim. A tensão se dissolve em meus

ombros.

3

Tempeh ou tempê: alimento fermentado, tradicional da Indonésia, é conhecido como carne de soja.


— Que bom — eu digo, abraçando-a de volta. — E você realmente fez um trabalho

incrível. Quero dizer, não tenho certeza do que faria uma pessoa escolher essa cor,

mas você fez isso funcionar.

Ela se afasta, franzindo a testa.

— É o mais próximo da sua cor natural que pude encontrar. Eu sempre amei seu

cabelo quando éramos crianças.

Meu coração aperta, a parte de trás do meu nariz formigando como se houvesse

muita coisa se formando no meu crânio e estivesse começando a vazar.

— Ah, não — diz ela, olhando de volta para o espelho. — Acabei de pensar em

algo: o que devo dizer quando Bea e Tala pedirem para tingir os delas da cor de

cauda de unicórnio? Ou raspar a cabeça inteiramente?

— Você diz não — eu digo. — E então, da próxima vez que eu for babá, vou

entregar a tintura e a tesoura. Depois vou ensiná-las a enrolar um baseado, como a

tia sexy, legal e divertida que sou.

Libby bufa.

— Você gostaria de saber como enrolar um baseado. Deus, eu sinto falta de

maconha. Os livros de maternidade nunca te preparam para o quanto você vai sentir

falta da maconha.

— Parece que há um buraco no mercado — eu digo. — Vou ficar de olho.

— O Guia do Drogado para a Gravidez — diz Libby.

— Mamãe Maconha — eu respondo.

— E seu companheiro, Papai Rapé.

— Sabe — eu digo — se você precisar reclamar sobre sua falta de maconha, ou

gravidez, ou qualquer outra coisa, eu estou aqui. Sempre.

— Sim — diz ela, os olhos de volta em seu reflexo, os dedos de volta em seu

cabelo. — Eu sei.


MEU TELEFONE TOCA com um e-mail recebido, e o nome de Charlie está em

negrito na tela. As palavras distraído por dois martínis de gin e uma tubarão loira

platinada passam pela minha mente como o letreiro de néon de um cassino, parte

emoção, parte aviso.

Não quero que meu e-mail de trabalho seja identificado, mas há tantos trechos

deste livro que não consigo desler. Estou em um filme de terror e não me livrarei dessa

maldição até que o tenha infligido a outra pessoa.

Tecnicamente, Charlie já tem meu número de telefone da minha assinatura de e-

mail; a questão é se devo convidá-lo a usá-lo.

Pró: Talvez houvesse uma abertura natural para mencionar que estou em

Sunshine Falls, diminuindo assim o risco de um encontro estranho.

Contra: Eu realmente quero que meu inimigo profissional me mande mensagens

eróticas do Pé Grande?

Pró: Sim, eu quero. Sou curiosa por natureza e, pelo menos assim, a troca de

informações está acontecendo por canais privados e não profissionais.

Eu digito meu número de telefone e clico em enviar.

A essa altura, é hora da minha ligação com Dusty, uma conversa de vinte minutos

que pode ser apenas eu ouvindo jock jams e correndo em círculos ao redor dela,

cantando seu nome. Eu jogo a palavra gênia meia dúzia de vezes, e quando

desligamos, eu a convenci a entregar o esboço do seu próximo livro, mesmo estando

inacabado, para que sua editora, Sharon, possa começar enquanto Dusty termina de

escrever.

Em seguida, eu me junto a Libby onde ela está se arrumando no banheiro,

enrolando seu cabelo recém-rosado em cachos macios.

— Vamos caminhar até o jantar — diz ela. — Meu pescoço está dolorido daquela

última viagem de táxi. Também me fez fazer xixi na calça.

— Eu lembro — eu digo. — Fez você fazer xixi em mim também.

Ela olha para a minha roupa.

— Tem certeza de que quer usar esses sapatos?


Eu combinei meu vestido preto aberto nas costas com mules pretos, meus saltos

mais largos. Ela está em um vestido de verão com estampa de margaridas dos anos

noventa e sandálias brancas.

— Se você se oferecer para me emprestar seus Crocs novamente, vou processála

por danos emocionais.

Ela se recusa.

— Depois desse comentário, você não merece meus Crocs.

Na caminhada descendo a encosta, tento esconder minha luta, mas com base no

sorriso alegre de Libby, ela definitivamente percebe que meus saltos continuam

perfurando a grama e me travando no lugar.

O sol se pôs, mas ainda está opressivamente quente, e a população de mosquitos

está em fúria. Estou acostumado com ratos, a maioria foge ao ver uma pessoa, e o

resto basicamente apenas segura pequenos chapéus para implorar por pedaços de

pizza. Os mosquitos são piores. Tenho seis novos vergões vermelhos quando

chegamos à beira da praça da cidade.

Libby não foi mordida nenhuma vez. Ela bate os cílios.

— Eu devo ser muito doce para eles.

— Ou talvez você esteja grávida do Anticristo e eles a reconheçam como sua

rainha.

Ela assente pensativa.

— Eu poderia usar a emoção, acho. — Ela para na faixa de pedestres muito vazia

e examina o centro da cidade igualmente desolada, sua boca encolhendo enquanto

ela considera isso. — Huh — ela diz finalmente. — É… mais sonolenta do que eu

esperava.

— Sonolenta é bom, certo? — Eu digo, um pouco ansiosa demais. — Sonolenta

significa relaxante.

—É. — Ela meio que treme, e seu sorriso retorna. — Exatamente. É por isso que

estamos aqui. — Ela parece mais zombeteira do que devastada quando passamos

pela loja-geral-que-virou-loja-de-penhores, e faço questão de apontar Mug + Shot

para distraí-la.

— Cheirava incrível — eu insisto. — Temos que ir amanhã.

Ela se ilumina ainda mais, como se estivesse em um interruptor de luz

alimentado pelo meu otimismo. E se for esse o caso, estou preparado para ser

otimista para caralho.

Em seguida, passamos por um salão de beleza. (“Ok, definitivamente deveriamos

ter cortado o cabelo aqui,” diz Libby, embora eu discorde silenciosamente, com base

nas letras estilo sangue pingando na placa e no fato de que elas soletram Cachos de

Morrer.) Depois de mais algumas vitrines vazias, há um restaurante gordurento,

outro bar e uma livraria (a qual nos comprometemos a retornar, apesar de sua

vitrine empoeirada e sem brilho). No final do quarteirão, há um grande edifício de

madeira com letras de metal enferrujado que lêem, misteriosamente, VOVÔ

CÓCORAS.

A essa altura, Libby está distraída com seu telefone, mandando mensagens para

Brendan enquanto ela se arrasta ao meu lado. Ela ainda está sorrindo, mas é uma


expressão rígida, e quase parece que ela está à beira das lágrimas. Seu estômago está

roncando e seu rosto está corado por causa do calor, e posso imaginar que suas

mensagens são algo como Talvez tudo isso tenha sido um erro, e um súbito desespero

cresce em mim. Eu preciso mudar isso, rápido, começando por encontrar comida.

Paro abruptamente ao lado do prédio de madeira e espio pelas janelas escuras.

Sem tirar os olhos do telefone, Libby pergunta

— Você está espionando alguém?

— Estou olhando pela vitrine do Vovô Cócoras.

Seus olhos se levantam lentamente.

— Que… merda é… um Vovô Cócoras?

— Bem… — Eu aponto para o letreiro. — É um banheiro público muito grande

ou um bar e churrascaria.

— POR QUÊ? — Libby grita em uma mistura de prazer e desânimo, qualquer

resquício de sua decepção desaparecendo. — Por que isso existe?! — Ela se gruda

na janela escura, tentando enxergar dentro.

— Eu não tenho respostas para você, Libby. — Eu me esquivo para abrir uma das

pesadas portas de madeira. — Às vezes o mundo é um lugar cruel e misterioso. Às

vezes as pessoas ficam deformadas, distorcidas, tão doentes no nível da alma que

dariam o nome de um restaurante...

— Bem-vindo ao Vovô Cócoras! — diz uma anfitriã abandonada de cabelos

encaracolados. — Grupo de quantos?

— Duas, mas vamos comer por cinco — diz Libby.

— Ah, parabéns! — a anfitriã diz brilhantemente, olhando cada um de nossos

estômagos enquanto tenta resolver um problema de matemática invisível.

— Eu nem conheço essa mulher — eu digo, inclinando minha cabeça para Libby.

— Ela está me seguindo há três quarteirões.

— Ok, rude — minha irmã diz. — Já se passaram muito mais de três quarteirões,

é como se você nem me visse.

A anfitriã parece incerta.

Eu tossi.

— Duas, por favor.

Ela hesitantemente acena em direção ao bar.

— Bem, nosso bar tem serviço completo, mas se você quiser uma mesa…

— O bar está ótimo — Libby assegura a ela. A anfitriã entrega a cada uma de nós

um menu que tem umas… oh, quarenta páginas muito longas, e nós deslizamos em

bancos com tampo de couro, colocando nossas bolsas no balcão pegajoso e

examinando nossos arredores em um silêncio movido por choque ou admiração.

Este lugar parece que um restaurante rústico teve um bebê com um barzinho

musical, e agora esse bebê é um adolescente que não toma banho o suficiente e

mastiga as mangas do moletom.

Os pisos e paredes são de tábuas de madeira escuras e incompatíveis, e o teto é

de metal corrugado. Fotos de times esportivos locais são emolduradas ao lado de

bordados escrito CASA É ONDE A COMIDA ESTÁ e letreiros brilhantes da Coors, uma

marca de cerveja. O bar corre ao longo do lado esquerdo do restaurante, e em um


canto estão reunidas duas mesas de sinuca, enquanto no canto oposto, uma jukebox

fica ao lado de um palco raso. Há mais pessoas neste prédio do que eu já vi no resto

de Sunshine Falls juntas, mas ainda assim, o lugar consegue parecer deserto.

Abro o menu e começo a ler. Facilmente trinta por cento dos itens listados são

apenas várias coisas fritas. O que você pensar, o Vovô Cócoras pode fritar.

A garçonete, uma mulher sobrenaturalmente linda com cabelos grossos e

escuros e um punhado de tatuagens de constelações em seus braços, vem para ficar

na minha frente, com as mãos apoiadas no bar.

— O que vocês vão querer?

Como o cara da cafeteria/fazenda de cavalos, ela se parece menos com um

barman e mais como alguém que interpretaria uma barman em uma novela sexy.

O que tem na água aqui?

— Martini seco — digo a ela. — Gin.

— Água com gás e limão, por favor — diz Libby.

A bartender se afasta e eu volto a folhear a página cinco do menu. Eu cheguei nas

saladas. Ou pelo menos é assim que eles as chamam, embora se você colocar molho

ranch e Doritos em uma cama de alface, eu acho que você está tomando liberdades

com a palavra.

Quando a bartender volta, tento pedir a Grega.

Ela estremece.

— Tem certeza?

— Não mais.

— Não somos conhecidos por nossas saladas — explica ela.

— Pelo que você é conhecido?

Ela acena com a mão em direção à placa brilhante da Coors Light atrás de seu

ombro.

— Pelo que vocês são conhecidos no que diz respeito à comida? — eu esclareço.

Ela diz

— Ser conhecido não é necessariamente ser admirado.

— O que você recomenda — tenta Libby, — além de cerveja?

— As batatas fritas são boas — diz ela. — O hambúrguer é decente.

— Hambúrguer vegetariano? — Eu pergunto.

Ela franze os lábios.

— Não vai te matar.

— Parece perfeito — eu digo. — Eu vou querer um desses, e algumas batatas

fritas.

— O mesmo — Libby acrescenta.

Apesar de sua insistência de que o hambúrguer não vai nos matar, a bartender

dá de ombros como se falasse “Seu funeral, vadias!”

Libby parece totalmente bem, feliz até, mas ainda há um caroço de ansiedade em

meu estômago, e acidentalmente bebo meu martíni inteiro antes de nossa comida

chegar. Estou bêbada o suficiente para que tudo esteja me levando mais tempo do

que deveria. Libby engole seu hambúrguer e se levanta para usar o banheiro antes

que eu faça um estrago no meu.


Meu telefone vibra no balcão pegajoso, e estou cem por cento esperando que seja

Charlie.

É um zilhão de vezes melhor.

Dusty finalmente entregou parte de seu manuscrito, e não um minuto antes, sua

editora sai de licença maternidade em um mês.

Muito obrigada a todos pela paciência, sei que esse cronograma não foi ideal para

você, mas significa muito que você confie em mim o suficiente para me deixar

trabalhar da maneira que melhor me serve. Eu tenho um primeiro rascunho completo,

mas só tive a chance de limpar e apertar este primeiro pedaço. Espero ter vários outros

capítulos para você dentro da semana, mas espero que isso dê uma ideia do que

esperar.

Abro o documento anexo, intitulado Frigid 1.0.

Ela começa com o Capítulo Um. Sempre um bom sinal de que um autor não foi

estilo Jack Torrance trancado com sua máquina de escrever no Overlook Hotel. 4

Resisto à vontade de rolar até o final, um tique que tenho desde criança, quando

percebi que havia livros demais no mundo e pouco tempo. Sempre usei isso como

um teste decisivo para saber se quero ler um livro ou não, mas como este é o

trabalho de um cliente, vou ler tudo, não importa o quê.

Então, em vez disso, meus olhos deslizam sobre a primeira linha, e ela me atinge

como um soco no estômago.

Eles a chamavam de Tubarão.

— Que porra é essa? — eu digo. Um homem mais velho no final do bar levanta a

cabeça de sua sopa aguada e faz uma careta. — Desculpe — eu resmungo, e olho

para a tela novamente.

Eles a chamavam de Tubarão, mas ela não se importava. O nome se encaixa. Por

um lado, os tubarões só podiam nadar para a frente. Como regra, Nadine Winters

nunca olhou para trás. Sua vida era baseada em regras, muitas das quais serviam para

aliviar sua consciência.

Se ela olhasse para trás, veria o rastro de sangue. Seguindo em frente, tudo o que

havia para pensar era a fome.

E Nadine Winters estava com fome.

Por um minuto espero descobrir que Nadine Winters é literalmente um tubarão.

Que Dusty escreveu a história do animal falante dos pesadelos de Charlie Lastra. Mas

quatro linhas abaixo, uma palavra salta como se, em vez de Times New Roman,

estivesse escrita na fonte de gelar o sangue do Cachos de Morrer.

AGENTE.

A personagem principal de Dusty, a Tubarão, é uma agente.

Eu volto para a palavra logo depois dela. Cinema.

4

Jack Torrance é personagem de “O Iluminado”, livro de Stephen King. Overlook Hotel é o local onde a

história se passa.


Agente de cinema. Não agente literário. A diferenciação não faz nada para

afrouxar o nó em meu peito, ou para acalmar o fluxo de sangue em meus ouvidos.

Ao contrário de mim, Nadine Winters tem cabelo preto e franja sem corte.

Como eu, ela só não usa saltos quando está malhando.

Ao contrário de mim, ela faz Krav Maga todas as manhãs em vez de aulas virtuais

em seu bicicleta ergométrica.

Como eu, ela pede uma salada com queijo de cabra toda vez que come fora com

um cliente e bebe seus martinis de gin secos, nunca mais do que um. Ela odeia

qualquer perda de controle.

Assim como eu, ela nunca sai de casa sem maquiagem e faz manicure quinzenal.

Como eu, ela dorme com o telefone ao lado da cama, o som no volume máximo.

Como eu, ela muitas vezes se esquece de dizer olá no início de suas conversas e

pula adeus no final.

Assim como eu, ela tem dinheiro, mas não gosta de gastá-lo e prefere percorrer

o site da Net-A-Porter, enchendo seu carrinho por horas, depois deixá-lo assim até

que tudo se esgote.

Nadine não gostava da maioria das coisas, escreve Dusty. O prazer estava além do

ponto da vida. Até onde ela sabia, permanecer viva era o ponto, e isso exigia dinheiro

e instintos de sobrevivência.

Meu rosto fica mais quente a cada página.

O capítulo termina com Nadine entrando no escritório bem a tempo de ver suas

duas assistentes comemorando vertiginosamente alguma coisa. Com um olhar

cortante, ela diz “O quê?"

Sua assistente anuncia que está grávida.

Nadine sorri como o tubarão que é, dá os parabéns, depois vai para seu escritório,

onde começa a pensar em todas as razões pelas quais deveria demitir Stacey, a

assistente grávida. Ela não aprova distrações, e a gravidez é uma.

Nadine não se desvia dos planos. Ela não abre exceções às regras. Ela vive a vida

por um código estrito, e não há espaço para quem não o cumpre.

Em suma, ela é um robô que chuta cachorrinhos, odeia gatinhos e é movida por

dinheiro. (O chute do cachorrinho está implícito, mas dê mais alguns capítulos e

pode se tornar canônico.)

Assim que termino de ler, começo de novo, tentando me convencer de que

Nadine, uma mulher que faz Miranda Priestly parecer a Branca de Neve, não sou eu.

A terceira leitura é a pior de todas. Porque é quando eu aceito que é bom.

Um capítulo, dez páginas, mas funciona.

Eu fico tonta e vou em direção ao canto escuro onde ficam os banheiros, relendo

enquanto vou. Eu preciso de Libby agora. Preciso de alguém que me conheça, que

me ame, que me diga que está tudo errado.

Eu deveria estar olhando para onde estava indo.

Eu não deveria ter usado saltos tão altos, ou tomado um martíni com o estômago

vazio, ou lido um livro que está me dando uma experiência extracorpórea surreal.


Porque alguma combinação dessas más decisões me leva a bater em alguém. E

não estamos falando de um casual Oh, eu bati no seu ombro, como eu sou

adoravelmente desajeitada! Estamos falando

— Puta merda! Meu nariz!

Que é o que ouço no momento em que meus tornozelos vacilam, meu equilíbrio

é perdido e meu olhar se fixa em um rosto que pertence a ninguém menos que

Charlie Lastra.

Bem quando eu caio como um saco de batatas.


CHARLIE SEGURA MEUS antebraços antes que eu possa cair, me firmando

enquanto as palavras “Que diabos?” voam para fora dele.

Depois da dor e do choque vem o reconhecimento, seguido rapidamente pela

confusão.

— Nora Stephens. — Meu nome soa como um palavrão.

Ele fica boquiaberto para mim; eu fico boquiaberta de volta.

Eu deixo escapar.

— Estou de férias!

Sua confusão se aprofunda.

— Eu só… Eu não estou perseguindo você.

Suas sobrancelhas franzem.

— Ok?

— Eu não estou perseguindo você.

Ele solta meus antebraços.

— Mais convincente a cada vez que você diz isso.

— Minha irmã queria fazer uma viagem para cá — eu digo — porque ela ama

Once In A Lifetime.

Algo vibra atrás de seus olhos. Ele bufa.

Eu cruzo meus braços.

— É preciso se perguntar por que você estaria aqui.

— Ah — ele diz secamente — estou perseguindo você.

Ao perceber meus olhos arregalados, ele diz:

— Eu sou daqui, Stephens.

Eu olho para ele em choque por tanto tempo que ele acena com a mão na frente

do meu rosto.

— Olá? Você está quebrada?

— Você... é… daqui? Tipo, daqui daqui?

— Eu não nasci no bar deste estabelecimento infeliz — diz ele, com os lábios

curvados — se é isso que você quer dizer, mas sim, perto daqui.

Não faz sentido. Em partes porque ele está vestido como se tivesse acabado de

sair de um Tom Ford na GQ, e em parte porque não estou convencida de que este

lugar não é um set de filmagem que a produção abandonou no meio da construção.

— Charlie Lastra é de Sunshine Falls.

Seu olhar se estreita.


— Meu nariz bateu no seu cérebro?

— Você é de Sunshine Falls, Carolina do Norte — eu digo. — Um lugar com um

posto de gasolina e um restaurante chamado Vovô Cócoras.

— Sim.

Meu cérebro pula várias perguntas mais relevantes para:

— O Vovô Cócoras é uma pessoa?

Charlie ri, um som surpreso tão áspero que sinto como um arranhão contra

minha caixa torácica

— Não?

— O que, então — eu digo — é um Vovô Cócoras?

O canto de sua boca se inclina para baixo.

— Eu não sei, um estado de espírito?

— E o que há de errado com a salada grega aqui?

— Você tentou pedir uma salada? — ele diz. — As pessoas da cidade cercaram

você com forquilhas?

— Não é uma resposta.

— É a alface americana desfiada sem mais nada — diz ele. — Exceto quando o

cozinheiro está bêbado e cobre tudo com presunto em cubos.

— Por quê? — Eu pergunto.

— Imagino que ele esteja infeliz em casa — Charlie responde, inexpressivo. —

Pode ter algo a ver com os tipos de sonhos frustrados que levam uma pessoa a

trabalhar aqui.

— Não o por que o cozinheiro bebe — eu digo. — Por que alguém cobriria uma

salada de presunto em cubos?

— Se eu soubesse a resposta para isso, Stephens — ele diz, — eu teria ascendido

a um plano superior.

Neste ponto, ele percebe algo no chão e se abaixa para o lado, pegando-o.

— Isso é seu? — Ele me entrega meu telefone. — Uau — diz ele, lendo minha

reação. — O que esse telefone fez com você?

— Não é tanto o telefone, mas a super-cadela sociopata que vive dentro dele.

Charlie diz

— A maioria das pessoas apenas a chamam de Siri.

Eu empurro meu telefone de volta para ele, as páginas de Dusty ainda estão

abertas. O sulco em sua testa se forma novamente e imediatamente penso: O que

estou fazendo?

Eu alcanço o telefone, mas ele se afasta de mim, o vinco sob o lábio inferior

carnudo se aprofundando enquanto ele lê. Ele desliza para baixo na tela

incrivelmente rápido, seu beicinho se transformando em um sorriso.

Por que eu entreguei isso a ele? O culpado disso é o martini, o ferimento recente

na cabeça ou puro desespero?

— É bom — Charlie diz finalmente, pressionando meu telefone na minha mão.

— Isso é tudo que você tem a dizer? — Eu exijo. — Nada mais que você gostaria

de comentar?

— Tudo bem, é excepcional — diz ele.


— É humilhante — eu corrijo.

Ele olha para o bar, então encontra meus olhos novamente.

— Olha, Stephens. Este é o fim de um dia particularmente ruim, dentro de um

restaurante particularmente ruim. Se vamos ter essa conversa, posso pelo menos

conseguir uma Coors?

— Você não me parece um cara que toma Coors — eu digo.

— Não sou — diz ele — mas acho que a zombaria impiedosa da barman daqui

diminui meu prazer por uma Manhattan.

Eu olho para a bartender sexy da TV.

— Outra inimiga sua?

Seus olhos escurecem, sua boca fazendo aquela careta de contração.

— É isso que somos? Você envia a todos os seus inimigos livros eróticos do Pé

Grande, ou apenas os especiais?

— Ah, não — eu digo, fingindo pena. — Eu feri seus sentimentos, Charlie?

— Você parece muito satisfeita consigo mesma — diz ele — para uma mulher

que acabou de descobrir que ela foi a inspiração para Cruella de Vil.

Eu faço uma careta para ele. Charlie revira os olhos.

— Vamos. Vou te comprar um martini. Ou um casaco de cachorro.

Um martini. Exatamente o que Nadine Winters bebe, sempre que não tem acesso

fácil ao sangue de uma virgem.

Por alguma razão, meu ex-namorado Jakob voa em minha mente. Eu o imagino

bebendo cerveja de uma lata na varanda dos fundos, sua esposa enrolada debaixo

do braço dele, tomando um gole da sua própria lata.

Mesmo com quatro filhos, ela é descontraída e absurdamente linda, mas de

alguma forma “um dos caras”.

A Anti-Nora.

Elas sempre são, as mulheres pelas quais eu sou dispensada. Muito difícil

aprender a ser “um dos caras” quando toda a sua experiência com homens

crescendo foi 1) eles fazendo sua mãe chorar ou 2) os amigos dançarinos de sua mãe

ensinando você a fazer passos de dança. Eu posso ser um dos caras, desde que os

caras em questão tenham uma música favorita de Les Mis. Caso contrário, estou sem

esperança.

— Eu vou tomar uma cerveja — eu digo quando passo por Charlie — e você está

comprando.

— Como… eu disse? — ele murmura, me seguindo até o bar cheio de cascas de

amendoim.

Enquanto ele está trocando gentilezas com a bartender (definitivamente não são

inimigos; há uma vibração, com o que quero dizer que ele é quinze por cento menos

rude do que o normal), olho para trás em direção ao banheiro, mas Libby ainda não

apareceu.

Eu nem percebo que voltei a reler os capítulos até que Charlie puxa meu telefone

das minhas mãos.

— Pare de ficar obcecada.

— Não estou obcecada.


Ele me estuda com aquele olhar de buraco negro, aquele que me atrai fortemente.

— Estou surpreso que isso seja um problema para você.

— E estou chocada que seu chip de inteligência artificial permite que você se

surpreenda.

— Bem, olá. — Eu me encolho na voz de Libby e a encontro sorrindo como um

gato de desenho animado cuja boca está cheia de vários canários.

— Libby — eu digo. — Esse é…

Antes que eu possa apresentar Charlie, ela fala

— Só queria que você soubesse, eu chamei um táxi. Não estou me sentindo bem.

— O que está errado? — Eu começo a me levantar, mas ela empurra meu ombro

para baixo, com força.

— Apenas exausta! — Ela soa tudo menos isso. — Você deveria ficar, você ainda

nem terminou com seu hambúrguer.

— Lib, eu não vou simplesmente deixar você…

— Ah! — Ela olha para o telefone. — Hardy está aqui, você não se importa de

pagar a conta, não é, Nora?

Não sou tradicionalmente corada, mas meu rosto está pegando fogo porque

acabei de perceber o que está acontecendo, o que significa que Charlie

provavelmente também, e Libby já está recuando, deixando-me com meio

hambúrguer vegetariano, uma conta não paga e um desejo profundo de que a terra

me engula inteira.

Ela lança um olhar por cima do ombro e diz em voz alta:

— Boa sorte marcando o número cinco, mana!

— Número cinco? — Charlie pergunta enquanto a porta se fecha, apagando

minha irmã na noite.

Eu realmente não gosto da ideia de ela subir aqueles degraus sozinha. Pego meu

telefone de volta e mando uma mensagem para ela, DEIXE-ME SABER NO SEGUNDO

QUE VOCÊ CHEGAR AO CHALÉ OU ENTÃO!!!!

Libby responde: Avise-me assim que chegar à terceira base com o Sr. Gostosão.

Por cima do meu ombro, Charlie ri. Eu viro meu telefone, endireitando meus

ombros.

— Essa era minha irmã, Libby — eu digo. — Ignore tudo o que ela diz. Ela está

sempre com tesão quando está grávida. O que é sempre.

Suas (verdadeiramente milagrosas) sobrancelhas se erguem, seu olhar de

pálpebras pesadas se concentrando.

— Tem… muita coisa para descompactar nessa frase.

— E tão pouco tempo. — Eu mordo meu hambúrguer apenas para me concentrar

em algo que não seja seu rosto. — Eu deveria voltar para ela.

— Então não há tempo para aquela cerveja. — Ele diz isso como um desafio, como

se eu soubesse. Sua sobrancelha está arqueada, o menor fragmento de um sorriso se

escondendo em um canto de sua boca. De alguma forma, isso não extingue

totalmente seu beicinho. Isso só torna um beisorriso.

A bartender volta com nossas garrafas de vidro suadas e Charlie agradece. Pela

primeira vez, vejo seu sorriso incrivelmente incandescente.


— Claro — diz ela. — Se precisar de alguma coisa, é só dizer.

Quando ela se vira, Charlie me encara, tomando um longo gole.

— Por que você ganha um sorriso? — Eu exijo. — Eu sou o tipo de pessoa que

sempre deixa pelo menos 30% de gorjeta.

— Sim, bem, você deveria tentar quase se casar com ela e ver se isso ajuda — ele

responde, deixando-me tão atordoada que estou de volta a ficar boquiaberta.

— Falando de frases com muito para descompactar.

— Eu sei que você é uma mulher ocupada — diz ele. — Vou deixar você voltar a

afiar suas facas e organizar seu armário de venenos, Nadine Winters.

Ele diz tudo tão uniformemente que é fácil perder a piada. Mas desta vez a nota

inconfundivelmente bajuladora em sua voz me persegue até que eu me sinta como

um cachorro com os pelos eriçados.

— Primeiro de tudo — eu digo — é uma despensa, não um armário. E em segundo

lugar, a cerveja já está aqui, e é depois do expediente, então é melhor eu beber.

Porque eu não sou Nadine Winters. Eu pego minha garrafa e bebo, sentindo os

olhos de coruja de Charlie pesados em mim.

Ele diz:

— É bom pra caralho, certo? — Pela primeira vez, ele deixa um pouco de emoção

em sua voz. Seus olhos brilham como um relâmpago apenas estalando no interior de

seu crânio.

— Se você gosta de xixi de gato e gasolina.

— O capítulo, Nora.

Minha mandíbula aperta quando eu aceno.

Até onde eu vi, as sobrancelhas de Charlie têm três modos: pensativo, carrancudo

e retratando algo que é preocupação ou confusão. Isso é o que elas estão fazendo

agora.

— Mas você ainda está chateada com ele.

— Chateada? — Eu choro. — Só porque minha cliente mais antiga acha que eu

demitiria alguém por engravidar? Não seja bobo.

Charlie coloca um pé no degrau de seu banquinho, seu joelho batendo no meu.

— Ela não acha isso. — Ele inclina a cabeça para trás para outro gole. Uma gota

de cerveja escorre por seu pescoço e, por um momento, estou hipnotizada,

observando-a abrir um rastro em direção à gola de sua camisa.

— E mesmo se ela achar — diz Charlie — não torna isso verdade.

— Se ela escrevesse um livro inteiro sobre isso — digo — poderia fazer outras

pessoas pensarem que é verdade.

— Quem se importa?

— Essa pessoa. — Aponto para o meu peito. — A pessoa que precisa de pessoas

para trabalhar com ela para ter um emprego.

— Há quanto tempo você representa Dusty? — ele pergunta.

— Sete anos.

— Ela não estaria trabalhando com você, depois de sete anos, se você não fosse

uma agente boa.


— Sei que sou uma agente boa. — Esse não é o problema. O problema é que estou

envergonhada, constrangida e um pouco magoada. Porque, como se vê, eu tenho

sentimentos.

— Está bem. Estou bem.

Charlie me estuda.

— Estou bem! — digo novamente.

— Claramente.

— Você está rindo agora, mas…

— Eu não estou rindo — ele interrompe. — Quando eu ri?

— Bom ponto. Tenho certeza que isso nunca aconteceu. Mas espere até que um

de seus autores entregue um livro sobre um editor idiota de olhos âmbar.

— Olhos âmbar? — ele diz.

— Eu notei que você não questionou a parte idiota da frase — eu digo, e bebo um

pouco mais. Claramente, o filtro derreteu novamente, mas pelo menos isso é prova

de que não sou a mulher dessas páginas.

— Estou acostumado com as pessoas pensando que eu sou um idiota — diz ele

rigidamente. — Menos acostumado com elas descrevendo meus olhos como 'âmbar'.

— Essa é a cor que eles são — eu digo. — É objetivo. Não estou elogiando você.

— Nesse caso, vou me abster de me sentir lisonjeado. De que cor são os seus? —

Ele se inclina sem qualquer sinal de constrangimento, apenas curiosidade, seu hálito

quente batendo no meu queixo. É mais ou menos aí quando eu percebo que eu acho

que ele é gostoso.

Quer dizer, eu sei que achei ele gostoso em Mug + Shot quando pensei que ele era

outra pessoa, mas aqui é quando percebo que acho ele, especificamente Charlie

Lastra, não apenas alguém que se parece com ele, é gostoso.

Eu tomo outro gole.

— Vermelho.

— Realmente realça a cor da sua cauda bifurcada e chifres.

— Você é tão doce.

— Agora isso — diz ele — é algo de que nunca fui acusado.

— Não consigo imaginar por que não.

Ele arqueia uma sobrancelha, aquele anel de ouro mel em torno de suas pupilas

cor de buraco negro brilhando.

— E tenho certeza de que as pessoas fazem fila para recitar sonetos sobre sua

doçura?

Eu zombo.

— Minha irmã é a doce. Se ela faz xixi lá fora, jardins de flores brotam dele.

— Sabe — ele diz — Sunshine Falls pode não ser a cidade grande, mas você

deveria avisar sua irmã, nós temos saneamento básico. Praticamente a única coisa

que Dusty acertou.

— Merda! — Eu pego meu telefone. Dusty. Ela está em um lugar vulnerável, e ela

está acostumada comigo sendo cem por cento acessível. Quer este livro me faça

parecer com a Condessa Báthory ou não, devo fazer o meu trabalho. Começo a digitar

uma resposta, usando um excesso incomum de pontos de exclamação.


Charlie verifica seu relógio.

— Nove horas, de férias, em um bar, e você ainda está trabalhando. Nadine

Winters ficaria orgulhosa.

— Você não pode me julgar — eu digo. — Eu sei que sua conta de e-mail da Loggia

Publishing teve muita ação esta semana.

— Sim, mas não tenho nenhum problema com Nadine Winters — diz ele. — Na

verdade, eu a acho fascinante.

Meus olhos se fixam na palavra que estou digitando.

— Oh? O que há de tão interessante em uma sociopata?

— Patricia Highsmith pode ter algo a dizer sobre isso — ele responde. — Mas o

mais importante, Nora, você não acha que está julgando esse personagem um pouco

duramente? São dez páginas.

Assino a mensagem, clico em enviar e viro de volta para ele, meus joelhos

travando no lugar entre os dele.

— Porque, como todos sabemos, os críticos são notoriamente gentis com

personagens femininas.

— Bem, eu gosto dela. Quem diabos se importa se mais alguém gosta, contanto

que eles queiram ler sobre ela?

— As pessoas também diminuem a velocidade para olhar boquiabertas para os

destroços de um acidente de carro, Charlie. Você está me chamando de acidente de

carro?

— Eu não estou falando de você — diz ele. — Estou falando de Nadine Winters.

Minha paixão fictícia.

Um sentimento como uma onda de calor passa através de mim.

— Grande fã de cabelo preto e Krav Maga, huh?

Charlie se inclina para frente, rosto sério, voz baixa.

— É mais sobre o sangue pingando de suas presas.

Não tenho certeza de como responder. Não porque é nojento, mas porque tenho

certeza de que ele está fazendo uma referência a parte Tubarão de tudo isso, e isso

parece perigosamente perto de flertar.

E eu definitivamente não deveria estar flertando com ele. Pelo que sei, ele tem

uma parceira, ou um quarto de bonecas, e há o fato de que a indústria editorial é um

pequeno lago, e um movimento errado pode poluí-lo facilmente.

Deus, até meu diálogo interno soa como Nadine. Eu limpo minha garganta, tomo

um gole de cerveja, e me forço a não pensar demais no jeito que estou sentada entre

suas coxas, ou como meus olhos continuam focando naquele vinco sob seu lábio. Eu

não preciso pensar demais. Eu não preciso estar no controle completo.

— Então me fale sobre este lugar — eu digo. — O que é interessante aqui?

— Você gosta de grama? — Charlie pergunta.

— Grande fã.

— Temos muito.

— O quê mais? — Eu pergunto.

— Entramos na lista do BuzzFeed dos “Top 10 Restaurantes Mais

Repulsivamente Nomeados na América”.


— Eu estive lá. — Eu aceno para o nosso entorno geral. — Fiz isso.

Ele inclina o queixo para mim.

— Diga-me você, Nora. Você acha que este lugar é interessante?

— É certamente… — Eu procuro a palavra. — Pacífico.

Ele ri, um som rouco e irregular, que pertence a um bar lotado do Brooklyn, as

luzes da rua além da janela manchada de chuva tingindo de vermelho sua pele

dourada. Não aqui.

— Isso é uma pergunta? — ele diz.

— É pacífico — eu digo com mais confiança.

— Então você simplesmente não gosta de “pacífico”. — Ele está sorrindo através

de seu beicinho. Dando um sorrincinho. — Você prefere estar em um lugar

barulhento e lotado, onde apenas existir parece uma competição.

Sempre me considerei introvertida, mas a verdade é que estou acostumada a ter

pessoas de todos os lados. Você se adapta a viver a vida com uma audiência

constante. Torna-se reconfortante.

Mamãe costumava dizer que ela se tornou uma nova-iorquina no dia em que

chorou abertamente no metrô. Ela foi cortada na rodada final de uma audição, e uma

senhora do outro lado do vagão de trem lhe entregou um lenço de papel sem nem

mesmo tirar os olhos do livro.

A maneira como minha mente continua voltando para Nova York parece provar

seu ponto de vista. Mais uma vez, estou enervada com a sensação de que Charlie

Lastra vê através das minhas camadas externas cuidadosamente pressionadas.

— Estou perfeitamente feliz com paz e sossego — insisto.

— Pode ser. — Charlie se vira para pegar sua cerveja, o movimento pressionando

seu joelho de fora no meu apenas o suficiente para ele tomar outro gole antes de me

encarar novamente. — Ou talvez, Nora Stephens, eu possa ler você como um livro.

Eu zombo.

— Porque você é tão socialmente inteligente.

— Porque você é como eu.

Uma eletricidade dispara de onde seu joelho roça o meu.

— Não somos nada parecidos.

— Você está me dizendo — Charlie diz — que desde o momento em que você

desceu do avião, você não estava ansiosa para voltar para Nova York? Sentindo-se

como… como se você fosse uma astronauta no espaço, enquanto o mundo está

girando em uma velocidade normal, e quando você voltar, você terá perdido toda a

sua vida? Como se Nova York nunca precisasse de você como você precisa dela?

Exatamente, eu acho, atordoado pela quadragésima quinta vez em tantos

minutos.

Eu aliso meu cabelo, como se eu pudesse colocar qualquer segredo exposto de

volta no lugar.

— Na verdade, os últimos dias foram uma pausa refrescante de todos os tipos

literários grosseiros e monocromáticos de Nova York.

A cabeça de Charlie se inclina, suas pálpebras pesadas.

— Você sabe que faz isso?


— Faço o que? — Eu digo.

Seus dedos roçam o canto direito da minha boca.

— Fica com uma covinha aqui, quando você mente.

Eu bato sua mão no ar, mas não antes de todo o sangue do meu corpo correr para

encontrar a ponta dos dedos dele.

— Essa não é a minha Covinha da Mentira — eu minto. — É minha Covinha da

Irritação.

— Já que é assim — ele diz secamente — que tal um jogo de pôquer de alto risco?

— Tudo bem! — Tomo outro gole de cerveja. — É minha Covinha da Mentira. Me

processe. Sinto falta de Nova York, e aqui é muito quieto para eu dormir, e estou

muito desapontada que a loja geral seja na verdade uma casa de penhores. É isso que

você quer ouvir, Charlie? Que minhas férias não tiveram um começo auspicioso?

— Sou sempre um fã da verdade — diz ele.

— Ninguém é sempre fã da verdade — eu digo. — Às vezes a verdade é uma

merda.

— É sempre melhor ter a verdade do que ser enganado.

— Ainda há algo a ser dito sobre sutilezas sociais.

— Ah. — Ele acena com a cabeça, os olhos brilhando conscientemente. — Por

exemplo, esperar até depois do almoço para dizer a alguém que você odeia o livro do

seu cliente?

— Isso não teria te matado — eu digo.

— Poderia — diz ele. — Como aprendemos com o Velho Whittaker, os segredos

podem ser tóxicos.

Eu me endireito quando algo me ocorre.

— É por isso que você odiou. Porque você é daqui.

Agora ele se move desconfortavelmente. Eu encontrei uma fraqueza; eu vi

através de uma das camadas mais externas de Charlie Lastra, e as escamas se

inclinam levemente a meu favor. Grande fã, enorme.

— Deixe-me adivinhar. — Eu estico meu lábio inferior. — Más memórias.

— Ou talvez — ele fala lentamente, inclinando-se — tem algo a ver com o fato de

que Dusty Fielding claramente não pesquisou Sunshine Falls nos últimos vinte anos,

muito menos visitou.

Claro, ele tem razão, mas enquanto eu estudo a rigidez irritável de sua mandíbula

e o conjunto estranhamente sensual, embora distintamente sombrio de seus lábios,

eu sei que meu sorriso está se aguçando. Porque eu vejo: a meia verdade de suas

palavras. Eu posso lê-lo também, e parece que descobri um superpoder latente.

— Vamos, Charlie — eu cutuco. — Eu pensei que você sempre fosse um fã da

verdade. Deixe sair.

Ele faz uma carranca (ainda fazendo beicinho, então beirrancando?).

— Então eu não sou o maior fã deste lugar.

— Uauuuu — eu canto. — Todo esse tempo eu pensei que você odiasse o livro,

mas, na verdade, você tinha um segredo profundo e sombrio que fez você se fechar

do amor, da alegria e do riso e – oh meu Deus, você é o Velho Whittaker!


— Ok, maestro. — Charlie pega a garrafa de cerveja com a qual eu estava

gesticulando da minha mão, colocando-a em segurança no bar. — Se acalme. Nunca

gostei dessas narrativas de “tudo é melhor nas cidades pequenas”. Meu “segredo

mais obscuro” é que acreditei no Papai Noel até os doze anos.

— Você diz isso como se não fosse uma chantagem incrível.

— Destruição mutuamente assegurada. — Ele bate no meu telefone, uma alusão

ao documento Frigid. — Estou apenas deixando as coisas justas para você depois

dessas páginas.

— Que nobre. Agora me diga por que seu dia foi tão ruim.

Ele me estuda por um momento, então balança a cabeça.

— Não… Eu não acho que vou. Não até que você me diga por que está realmente

aqui.

— Eu já te disse — eu digo. — Período de férias.

Ele se inclina novamente, sua mão pegando meu queixo, seu polegar pousando

diretamente no buraco no canto dos meus lábios. Minha respiração fica presa. Sua

voz é baixa e rouca

— Mentirosa.

Suas pontas dos dedos caem e ele gesticula para a bartender pedindo mais duas

cervejas.

Eu não o impeço.

Porque eu não sou Nadine Winters.


— QUE TAL — CHARLIE DIZ — um jogo de sinuca. Se eu ganhar, você me diz por

que está realmente aqui e, se eu ganhar, eu lhe contarei sobre o meu dia.

Eu bufo e desvio o olhar, escondendo minha covinha enquanto coloco meu

telefone na minha bolsa, depois de confirmar que Libby chegou em casa em

segurança.

— Eu não jogo.

Ou não desde a faculdade, quando minha colega de quarto e eu costumávamos

caçar garotos de fraternidade semanalmente.

— Dardos? — Charlie sugere.

Eu arqueio uma sobrancelha.

— Você quer me entregar um dardo depois de como minha noite virou do avesso?

Ele se aproxima, os olhos brilhando na luz fraca do bar.

— Vou jogar com a mão esquerda.

— Talvez eu também não queira te entregar um dardo — eu digo.

Seu revirar de olhos é sutil, mais uma contração de alguns músculos-chave do

rosto.

— Sinuca com a mão esquerda, então.

Eu o estudo. Nenhum de nós pisca. Estamos basicamente tendo um concurso de

olhares no estilo da sexta série, e quanto mais tempo isso dura, mais o ar parece

vibrar com algum acúmulo metafísico de energia.

Saio do meu banquinho e bebo minha segunda cerveja.

— Tudo bem.

Vamos para a única mesa aberta. Está mais escuro deste lado do restaurante, o

chão mais pegajoso com a bebida derramada, e o cheiro de cerveja emana das

paredes. Charlie pega um taco de sinuca e um triângulo e começa a juntar as bolas

no centro da mesa de feltro.

— Você conhece as regras? — ele pergunta, olhando para mim enquanto se

inclina sobre a superfície verde.

— Um de nós fica com as listradas e um de nós com as cores sólidas? — Eu digo.

Ele pega o cubo de giz azul da borda da mesa e o coloca sobre o taco de sinuca.

— Você quer ir primeiro?

— Você vai me ensinar, certo? — Estou tentando parecer inocente, parecer Libby

batendo os cílios.

Charlie me encara.


— Eu realmente me pergunto o que você acha que seu rosto está fazendo agora,

Stephens.

Eu estreito meus olhos; ele estreita os seus, de volta, exageradamente.

— Por que você se importa com o motivo de eu estar aqui? — Eu pergunto.

— Curiosidade mórbida. Por que você se importa com o meu dia ruim?

— Sempre útil conhecer as fraquezas do seu oponente.

Ele segura o taco.

— Você primeiro.

Pego o taco, jogo-o na beirada da mesa e olho por cima do ombro.

— Não é agora a parte em que você deveria colocar seus braços em volta de mim

e me mostrar como fazer isso?

Sua boca se curva.

— Depende. Você está carregando alguma arma?

— A coisa mais afiada em mim são meus dentes. — Eu me acomodo sobre o taco,

segurando-o como se eu não só nunca tivesse jogado sinuca antes, mas

possivelmente tivesse acabado de descobrir minhas próprias mãos.

O cheiro de Charlie, quente e estranhamente familiar, invade meu nariz enquanto

ele se posiciona atrás de mim, mal tocando. Eu posso sentir a frente de seu suéter

roçando minha espinha nua, minha pele formigando com a fricção, e seus braços se

dobrando em volta dos meus enquanto sua boca cai ao lado da minha orelha.

— Afrouxe o aperto. — Sua voz baixa vibra através de mim, sua respiração

quente na minha mandíbula enquanto ele tira meus dedos do taco e os reajusta. —

A mão da frente é para apontar. Você não vai movê-la. O impulso… — sua palma

raspa no meu cotovelo até que ele pega meu pulso e o arrasta de volta ao longo do

taco em direção ao meu quadril — virá daqui. Você só quer manter o taco reto

quando está começando. E mire como se estivesse se alinhando perfeitamente com

a bola que deseja afundar.

— Entendi — eu digo.

Suas mãos deslizam para longe de mim, e eu deixo os arrepios na minha pele se

acalmarem enquanto eu alinho minha tacada.

— Uma coisa que esqueci de mencionar — eu empurro o taco na bola branca,

enviando o azul sólido através da mesa para a caçapa — é que eu costumava jogar.

Eu passo por Charlie para alinhar minha próxima tacada.

— E eu aqui pensando que era apenas um bom professor — diz ele sem rodeios.

Embolso a bola verde em seguida, e depois perco a bordô. Quando eu arrisco um

olhar para ele, ele parece não apenas surpreso, mas completamente presunçoso.

Como se eu tivesse provado um ponto.

Ele puxa o taco das minhas mãos e circula a mesa, olhando várias opções para

sua primeira tacada antes de escolher a bola listrada verde e se posicionar.

— E eu acho que eu deveria ter mencionado — ele bate na bola branca, que

manda a bola listrada verde para um bolso, a bola listrada roxa afundando logo atrás

dela — Eu sou canhoto.


Eu fecho minha boca quando ele olha para mim em seu caminho para alinhar sua

próxima tacada. Desta vez, ele encaçapa a bola de listras laranja, depois a bordô,

antes de finalmente errar na próxima jogada.

Ele estica o lábio como eu fiz quando o provoquei sobre memórias ruins.

— Ajudaria se eu te comprasse outra cerveja?

Eu arranco o bastão de sua mão.

— Peça um martini, e pegue um para você também. Você vai precisar.

Charlie ganha o primeiro jogo, então um jogo se torna dois. Eu ganho esse, e ele

não quer empatar, então jogamos a terceira. Quando ele vence, ele tira o taco do meu

alcance antes que eu possa exigir uma quarta partida.

— Nora — ele diz — nós tínhamos um acordo.

— Eu nunca concordei com ele.

— Você jogou — diz ele.

Eu inclino minha cabeça para trás, gemendo.

— Se isso ajudar — diz ele com sua secura característica — estou disposto a

assinar um acordo de confidencialidade antes de você me contar sobre qualquer

fantasia profunda, sombria e distorcida que a trouxe aqui.

Eu fecho meus olhos.

Ele tira meu copo do guardanapo e vasculha os bolsos até encontrar uma Pilot

G2, reconhecidamente minha própria caneta de escolha, embora eu sempre use tinta

preta e ele usa a vermelha tradicional dos editores. Ele se inclina e escreve:

Eu, Charles Lastra, de mente sã, juro que manterei o segredo obscuro, sujo e

distorcido de Nora Stephens sob pena de lei ou cinco milhões de dólares, o que ocorrer

primeiro.

— Ok, você absolutamente nunca viu um contrato — eu digo. — Talvez nunca

tenha estado na mesma sala que um.

Ele termina de assinar e larga a caneta.

— Esse é um contrato bom para caralho.

— Pobres editores de livros desinformados, com suas noções caprichosas de

como os acordos são feitos. — Eu acaricio sua cabeça.

Ele afasta meu braço.

— O que poderia ser tão ruim, Nora? Você está fugindo? Você roubou um banco?

— No escuro, o dourado de seus olhos parece estranhamente claro contra suas

pupilas enormes. — Você demitiu sua assistente grávida? — ele brinca, voz baixa. A

alusão é um choque para o meu sistema, um choque de eletricidade da cabeça aos

pés.

Milagrosamente, eu tinha esquecido as páginas de Dusty. Agora aqui está Nadine

novamente, me provocando.

— O que há de tão errado em estar no controle de qualquer maneira? — Eu exijo,

do universo em geral.

— Sei lá.


— E, sério, só porque eu não quero filhos, eu supostamente puniria uma mulher

grávida por tomar uma decisão diferente da minha? Minha pessoa favorita é uma

mulher grávida! E sou obcecada pelas minhas sobrinhas. Nem toda decisão que uma

mulher toma é uma grande acusação contra a vida de outras mulheres.

— Nora — diz Charlie. — É um livro. Ficção.

— Você não entende, porque você é… você. — Eu aceno com a mão para ele.

— Eu? — ele diz.

— Você pode se dar ao luxo de ser todo mal-humorado e afiado e as pessoas vão

admirá-lo por isso. As regras são diferentes para as mulheres. Você tem que

encontrar esse equilíbrio perfeito para ser levada a sério, mas não visto como uma

vadia sem coração. É um esforço constante. As pessoas não querem trabalhar com

mulheres que parecem tubarões...

— Eu quero — diz ele.

— E mesmo homens exatamente como nós não querem estar conosco. Quero

dizer, claro, alguns deles pensam que sim, mas a próxima coisa que você sabe, eles

estão terminando com você em um telefonema de quatro minutos porque eles nunca

viram você chorar e se mudam para o outro lado do país para se casar com uma

herdeira de árvores de Natal!

Os lábios carnudos de Charlie se apertam em um nó, seus olhos semicerrados.

— …O que?

— Nada — eu resmungo.

— Um “nada” muito específico.

— Esqueça.

— Improvável — diz ele. — Vou ficar acordado a noite toda fazendo diagramas e

gráficos, tentando descobrir o que você acabou de dizer.

— Sou amaldiçoada — eu digo. — Isso é tudo.

— Ah — ele diz. — Certo. Entendi.

— Eu sou — eu insisto.

— Sou um editor, Stephens — diz ele. — Vou precisar de mais detalhes para

comprar essa narrativa.

— É a minha personagem literária — eu digo. — Sou a espertinha da cidade de

sangue frio e excessivamente ambiciosa que existe como um contraste para a Boa

Mulher. Eu sou a que leva um fora pela garota que é mais bonita sem maquiagem e

adora churrasco e de alguma forma faz com que desafinar no karaokê pareça

adorável!

E por algum motivo (minha baixa tolerância ao álcool), isso não para por aí. Eu

vou derramando. Como se eu estivesse vomitando história embaraçosa no chão

cheio de casca de amendoim para todo mundo ver.

Aaron me deixando pela Ilha do Príncipe Eduardo (e, confirmado por meio de

uma perseguição leve nas mídias sociais, uma ruiva chamada Adeline). Grant

terminou comigo por causa de Chastity e da pequena pousada dos pais dela. Luca e

sua esposa e sua fazenda de cerejas em Michigan.

Quando chego ao paciente zero, Jakob, o romancista que virou fazendeiro, me

interrompo. O que aconteceu entre ele e eu não pertence ao fim de uma lista;


pertence onde eu a deixei, na cratera fumegante que mudou minha vida para

sempre.

— Você entendeu a ideia.

Seus olhos se estreitaram, uma inclinação divertida em seus lábios.

— Entendi?

— Tropes e clichês têm que vir de algum lugar, certo? — Eu digo. — Mulheres

como eu sempre existiram. Então é um tipo muito específico de auto-sabotagem ou

uma antiga maldição. Pensando bem, talvez tenha começado com Lilith. Muito

estranho para ser coincidência.

— Sabe — Charlie diz — eu diria que Dusty escrevendo um livro sobre minha

cidade natal e então eu me encontrar com a agente dela na referida cidade é muito

estranho para ser coincidência, mas como já estabelecemos, você “não estão me

perseguindo”, então coincidências ocasionalmente acontecem, Nora.

— Mas isso? Quatro relacionamentos terminando porque meus namorados

decidiram ir para o meio do nada e nunca mais voltar?

Ele está lutando contra um sorriso, mas perdendo a batalha.

— Eu não sou ridícula! — Eu digo, rindo apesar da minha situação. Ok, por causa

da minha situação.

— Exatamente o que uma pessoa não ridícula diria — Charlie permite com um

aceno de cabeça. — Olha, eu ainda estou tentando descobrir como seus exnamorados

aspirantes a Jack London influenciam o motivo de você estar aqui.

— Minha irmã… — Eu considero por um momento, então resolvo contar — As

coisas estão meio estranhas entre nós nos últimos meses, e ela queria fugir por um

tempo. Além disso, ela lê muitos romances de cidades pequenas e está convencida

de que a resposta para nossos problemas é ter nossas próprias experiências

transformadoras, como meus exes tiveram as suas. Em um lugar como este.

— Seus exes — diz ele sem rodeios. — Que desistiram de suas carreiras e se

mudaram para o meio do nada.

— Sim, esses.

— Então, o que? — ele diz. — Você deveria encontrar a felicidade aqui e

abandonar Nova York? Parar de publicar?

— Claro que não — eu digo. — Ela só quer se divertir, antes do bebê nascer. Fazer

uma pausa em nossas vidas habituais e fazer algo novo. Temos uma lista.

— Uma lista?

— Um monte de coisas dos livros. — E é por isso que não bebo dois martínis.

Porque mesmo às cinco e onze da tarde, meu corpo é incapaz de processar álcool,

como evidenciado pelo fato de eu começar a listar — Usar flanela, assar algo do zero,

fazer uma mudança de visual de cidade pequena, construir algo, namorar alguns

locais...

Charlie ri bruscamente.

— Ela está tentando casá-la com um criador de porcos, Stephens.

— Ela não está.

— Você disse que ela está tentando lhe dar seu próprio romance de cidade

pequena — diz ele ironicamente. — Você sabe como esses livros terminam, não


sabe, Nora? Com um grande casamento dentro de um celeiro, ou um epílogo

envolvendo bebês.

Eu zombo. Claro que eu sei como eles terminam. Não só assisti os meus exes

viverem, mas quando Libby e eu ainda dividíamos um apartamento, eu lia as páginas

finais de seus livros quase compulsivamente. Isso nunca me tentou a voltar para a

página um.

— Olha, Lastra — eu digo. — Minha irmã e eu estamos aqui para passar um

tempo juntas. Você provavelmente não aprendeu isso em qualquer laboratório que

o gerou, mas as férias são uma maneira bastante típica para os entes queridos se

unirem e relaxarem.

— Sim, porque se alguma coisa vai relaxar uma pessoa como você — ele diz — é

passar o tempo em uma cidade convenientemente situada entre dois celeiros

equidistantes.

— Sabe, eu não sou tão maníaca por controle quanto você ou Dusty parecem

pensar. Eu poderia me divertir perfeitamente em um encontro com um criador de

porcos. E sabe de uma coisa? Talvez seja uma boa ideia. Não é como se eu tivesse

tido sorte com os nova-iorquinos. Talvez eu tenha pescado no lago errado. Ou, tipo,

o fluxo errado de escoamento de resíduos nucleares.

— Você — ele diz — é muito mais estranha do que eu pensava.

— Bem, se ajuda, antes desta noite, eu assumi que você entrava em uma dispensa

e entrava no modo de economia de energia sempre que não estava no trabalho,

então acho que estamos ambos surpresos.

— Agora você está sendo ridícula — diz ele. — Quando não estou no trabalho,

estou no meu caixão no porão de uma antiga mansão vitoriana.

Eu bufo no meu copo, o que o faz abrir um sorriso real e humano. Está vivo, eu

penso.

— Stephens — ele diz, tom seco mais uma vez — se você é a vilã na história de

amor de outra pessoa, então eu sou o diabo.

— Você disse isso, não eu — eu respondo.

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você está desconexa esta noite.

— Eu sou sempre desconexa — eu digo. — Esta noite eu não estou me

incomodando em esconder isso.

— Bom. — Ele se inclina, baixando a voz, e uma corrente elétrica passa por mim.

— Sempre preferi que as coisas fossem expostas. Embora os criadores de porcos de

Sunshine Falls possam não sentir o mesmo.

Seu olhar desvia para o meu, seu cheiro vagamente picante e familiar. Um peso

indesejável se instala entre minhas coxas. Eu realmente espero que meu queixo não

tenha encontrado uma maneira de anunciar que estou excitada.

— Eu já te disse — eu digo. — Estou aqui pela minha irmã.

E por mais ansiedade que eu sinta estando longe de casa, a verdade é que eu

passo as gravidezes de Libby em um estado de pânico de qualquer maneira. Pelo

menos assim posso ficar de olho nela.


Eu nunca sonhei em ter meus próprios filhos, mas a maneira como me senti

durante a primeira gravidez de Libby realmente selou o acordo. Há muitas coisas

que podem dar errado, muitas maneiras de falhar.

Eu me jogo em um banquinho no canto do bar e quase caio no processo.

Charlie pega meus braços e me estabiliza.

— Que tal um pouco de água? — ele diz, deslizando para o banco vazio ao lado

do meu, aquele sorriso reprimido/beicinho/o-que-é-isso puxando seus lábios

carnudos levemente para um lado enquanto ele sinaliza para a bartender.

Eu endireito meus ombros, tentando ter um pouco de dignidade.

— Você não vai me distrair.

Sua sobrancelha levanta.

— De?

— Ganhei um desses jogos. Você me deve informações. — Especialmente dada a

quantidade horrível que acabei de deixar escapar.

Sua cabeça se inclina, e ele olha para mim.

— O que você quer saber?

Nosso almoço há dois anos surge na minha cabeça, o olhar irritado de Charlie

para o relógio.

— Você disse que estava tentando pegar um voo no dia em que nos conhecemos.

Por quê?

Ele coça o colarinho, a testa franzida, a mandíbula marcada pela tensão.

— A mesma razão pela qual estou aqui agora.

— Intrigante.

— Eu juro que não é. — Águas apareceram no bar. Ele gira uma no lugar, sua

mandíbula tensa. — Meu pai teve um AVC. Um naquela época e outro há alguns

meses. Estou aqui para ajudar.

— Merda. Eu... uau. — Imediatamente, minha visão clareia e aguça nele, minha

bebedeira acabando. — Você estava tão… calmo.

— Eu me comprometi a estar lá — diz ele, com um tom defensivo — e não via

como falar sobre isso seria produtivo.

— Eu não estava dizendo… olha, eu tinha sido dispensada quarenta e seis

segundos antes, e ainda me sentei para um martini e uma salada com um perfeito

estranho, então entendo.

Os olhos de Charlie prendem nos meus, tão intensos que tenho que desviar o

olhar por um segundo.

— Ele estava... seu pai está bem?

Ele gira o copo novamente.

— Quando almoçamos, eu já sabia que ele não estava em perigo. Minha irmã tinha

acabado de me contar sobre o derrame, mas na verdade aconteceu semanas antes.

— Seu rosto endurece. — Ele decidiu que eu não precisava saber, e foi isso.

Ele se mexe em seu banquinho, o desconforto de alguém que acabou de decidir

que compartilhou demais.

Mesmo considerando o gin e a cerveja se espalhando pelo meu corpo, fico

chocada ao me ouvir desabafar:


— Nosso pai nos deixou quando minha mãe estava grávida. Eu realmente não me

lembro dele. Depois disso, foi praticamente um desfile de namorados perdedores,

então não sou realmente uma especialista em pais.

As sobrancelhas de Charlie se apertam, seus dedos parando em seu copo úmido.

— Parece terrível.

— Não foi tão ruim — eu digo. — Ela nunca deixou a maioria deles nos conhecer.

Ela era boa nisso. — Pego meu copo, tentando o imitar, transformando-o em um anel

de seu próprio suor. — Mas um dia, ela estaria flutuando em uma nuvem, cantando

sua música favorita de Hello, Dolly! e afofando as almofadas de brechó bordadas

como a Branca de Neve em Nova York, e no próximo...

Eu não sigo em frente, me cortando completamente.

Não me envergonho da minha infância, mas quanto mais você fala de você para

uma pessoa, mais poder você entrega. E eu particularmente evito compartilhar

minha mãe com estranhos, como se a memória dela fosse um recorte de jornal e toda

vez que eu o pego, ela desbota e enruga um pouco mais.

O polegar de Charlie desliza sobre meu pulso distraidamente.

— Stephens?

— Eu não preciso que você sinta pena de mim.

Suas pupilas dilatam.

— Eu não ousaria. — Sua voz soa exatamente como um desafio.

Em algum momento, nós nos juntamos, minhas pernas dobradas entre as dele

novamente, um ciclo interminável de vibrações em todos os lugares que estamos

tocando. Seus olhos estão pesados em mim, suas pupilas quase apagando suas íris,

um anel brilhante de mel ao redor de um poço profundo e escuro.

O calor se acumula entre minhas coxas, e eu descruzo e recruzo minhas pernas.

Os olhos de Charlie caem para acompanhar o movimento, e seu copo d'água bate em

seu lábio inferior, como se ele tivesse esquecido o que estava fazendo. Naquele

momento, ele está cem por cento legível para mim.

Eu poderia muito bem estar olhando para um espelho.

Eu poderia me apoiar nele.

Eu poderia deixar meus joelhos deslizarem ainda mais no espaço entre os dele,

ou tocar seu braço, ou levantar meu queixo, e em qualquer um desses cenários

hipotéticos, acabamos nos beijando. Posso não gostar muito dele, mas uma parte

não insignificante de mim está morrendo de vontade de saber como é seu lábio

inferior, como aquela mão no meu pulso me tocaria.

Naquele momento começa a chover, uma tempestade, e o telhado de metal

corrugado irrompe em um chocalho febril. Eu puxo meu braço debaixo do de Charlie

e me levanto.

— Eu deveria ir para casa.

— Quer dividir um táxi? — ele pergunta, sua voz baixa, grave.

As chances de encontrar dois táxis a esta hora, nesta cidade, não são grandes. As

chances de encontrar um que não seja dirigido por Hardy são terríveis.

— Acho que vou a pé.

— Nessa chuva? — ele diz. — Com esses sapatos?


Eu pego minha bolsa.

— Eu não vou derreter. — Provavelmente.

Charlie fica de pé.

— Nós podemos compartilhar meu guarda-chuva.


SAÍMOS DO VOVÔ CÓCORAS encolhidos sob o guarda-chuva de Charlie. (Eu

chamaria isso de sorte, mas acontece que ele verifica um aplicativo de previsão do

tempo obsessivamente, então, aparentemente, eu encontrei alguém ainda mais

previsível do que eu.) O cheiro de grama e flores silvestres é forte no ar úmido, e está

esfriado consideravelmente.

Ele pergunta:

— Onde você está hospedada?

— Chama-se Goode's Lily Cottage — digo.

Ele diz, quase para si mesmo

— Bizarro.

Calor sobe pelo meu pescoço de onde sua respiração o atinge.

— O que, eu não poderia ser feliz em qualquer lugar que não seja uma cobertura

de mármore preto com um lustre de cristal?

— Exatamente o que eu quis dizer. — Ele lança um olhar na minha direção

enquanto passamos sob um poste de luz da rua, a chuva brilhando como confete

prateado. — E também é a propriedade alugada dos meus pais.

Minhas bochechas coram.

— Você é... Sally Goode é sua mãe? Você cresceu ao lado de uma fazenda de

cavalos?

— O que — diz ele — eu não poderia ter sido criado em qualquer lugar, mas em

uma cobertura de mármore preto com um lustre de cristal?

— É difícil imaginar você pertencendo a qualquer lugar desta cidade, muito

menos tão perto de uma pirâmide de estrume.

— Pertencer pode ser exagero — diz ele acidamente.

— Então, onde você está hospedado?

— Bem, eu costumo ficar no chalé — diz ele. Outro olhar de soslaio para mim

através da escuridão. — Mas isso não era uma opção.

Seu cheiro é tão estranhamente familiar, mas ainda não consigo identificá-lo.

Quente, com um toque levemente picante, fraco o suficiente para que eu continue

me pegando tentando inalar uma porção dele.

— Então onde? — Eu pergunto. — Seu quarto de infância?

Paramos na rua sem saída onde fica o chalé, e Charlie suspira.

— Estou dormindo em uma cama de carro de corrida, Nora. Você está feliz?


Feliz não é nem metade do que sinto. A imagem de Charlie de sobrancelhas

severas e altamente polido enfiado em um Corvette de plástico e com uma carranca

para o seu Kindle me faz rir tanto que é uma luta para ficar de pé. Ele é

provavelmente a última pessoa que eu poderia imaginar em uma cama de carro de

corrida, além de mim.

Charlie engancha um braço em volta da minha cintura enquanto eu caio.

— Pequeno lembrete — diz ele, me mantendo em movimento pela pista de

cascalho. — Isso está longe de ser a coisa mais embaraçosa que um de nós disse esta

noite.

Eu me solto.

— Você era, tipo, um garoto da NASCAR?

— Não — ele diz — mas meu pai nunca parou de tentar.

Eu caio em outro ataque de riso que ameaça me derrubar. Charlie me puxa contra

seu lado.

— Um pé na frente do outro, Stephens.

— Destruição mutuamente assegurada, de fato — eu choro.

Ele começa a me levar pela encosta, e imediatamente meu calcanhar afunda na

lama, me prendendo no chão. Dou mais um passo e o outro calcanhar perfura a lama

também. Um meio grito indignado sai de mim.

Charlie para, suspirando pesadamente enquanto olha meus sapatos.

— Eu vou ter que te carregar?

— Eu não vou deixar você me levar de cavalinho, Lastra — eu digo.

— E eu — ele responde — não vou deixar você destruir esses pobres e inocentes

sapatos. Eu não sou esse tipo de homem.

Olho para meu mules e um som miseravelmente petulante sai de mim.

— Okay.

— De nada. — Ele se vira e se curva enquanto eu levanto meu vestido e digo um

adeus aos últimos resquícios da minha dignidade, então coloco meus braços sobre

seus ombros e subo em suas costas.

— Tudo certo? — ele diz.

— Estou sendo levada de cavalinho — eu respondo, ajustando o guarda-chuva

sobre nós. — Isso responde à sua pergunta?

— Pobre Nora — ele brinca, suas mãos se acomodando contra minhas coxas

enquanto ele começa a subir os degraus. — Eu só posso imaginar o que você está

passando.

Uma percepção ressoa através de mim, caótica e enfática como sinos de igreja: a

razão pela qual seu cheiro é tão familiar. É a mesma colônia sutil de gênero neutro

que eu uso. Uma mistura de cedro e âmbar chamada BOOK, destinada a evocar

imagens de prateleiras banhadas pelo sol e páginas gastas. Quando descobri que a

empresa estava falindo, fiz um pedido em massa para poder estocá-lo.

Eu teria descoberto antes, mas o cheiro dele é diferente, do jeito que o cheiro de

limão e lavanda da mamãe fica diferente em Libby, uma nota de baunilha que nunca

esteve lá antes. A versão de Charlie de BOOK é mais picante, mais quente que a

minha.


— Muito quieta aí atrás, Stephens — diz ele. — Alguma coisa que eu possa fazer

para tornar sua viagem mais confortável? Um travesseiro de pescoço? Alguns

daqueles pequenos biscoitos Delta?

— Eu prefiro algumas esporas e um chicote de montaria — eu digo.

— Deveria ter previsto isso — ele resmunga.

— Eu também aceitaria uma declaração juramentada de que nunca falaremos

sobre isso novamente.

— Depois da maneira como você menosprezou meu último contrato? Acho que

não.

Quando chegamos aos degraus da frente, eu deslizo pelas costas de Charlie e

tento colocar meu vestido de volta no lugar, o que é uma luta porque eu não fiz um

trabalho incrível em manter o guarda-chuva sobre nós, e nós dois estamos bastante

encharcados, meu vestido grudado nas minhas coxas e a franja grudada nos meus

olhos.

Charlie estende a mão para afastá-los.

— Belo corte de cabelo, a propósito.

— Homens héteros adoram franja — eu digo. — Elas tornam as mulheres

acessíveis.

— Nada mais intimidante do que uma testa — diz ele. — Embora eu meio que

sinto falta do loiro.

E aí está: aquela nuvem de desejo em forma de cogumelo na minha barriga, uma

pontada entre minhas coxas.

— Não é natural — eu anuncio.

— Não achei que fosse — diz ele — mas combina com você.

— Por que parece vagamente malvado? — Eu acho.

Ele abre um sorriso raro e completo, mas apenas por um segundo. Apenas o

suficiente para fazer meu estômago revirar.

— Eu estive pensando.

— Vou chamar uma equipe de notícias imediatamente.

— Você deveria riscar o número cinco.

— Número cinco?

— Da lista.

Eu apalpo meu rosto.

— Por que eu te contei sobre isso?

— Porque você queria que alguém a impedisse de continuar com isso — diz ele.

— A última coisa que você precisa é se envolver com alguém que mora aqui.

Eu deixo cair minha mão e estreito meus olhos para ele.

— Eles comem forasteiros?

— Pior — diz ele. — Eles os mantêm aqui para sempre.

Eu zombo.

— Compromisso duradouro. Que terrível.

— Nora — diz ele, em tom baixo e repreendendo. — Você e eu sabemos que você

não quer esse epílogo. Alguém como você, com sapatos assim, nunca poderia ser

feliz aqui. Não alimente as esperanças de um pobre criador de porcos à toa.


— Ok, rude — eu digo.

— Rude? — Ele se aproxima, a luz fluorescente escaldante sobre a porta o

lançando em evidência, marcando as cavidades sob as maçãs do rosto e fazendo seus

olhos brilharem. — Rude é declarar que todo o conjunto de possíveis namorados da

cidade de Nova York está contaminado só porque você conseguiu pegar quatro

idiotas seguidos.

Minha garganta aquece, um pedaço de lava deslizando por ela.

— Não me diga que feri seus sentimentos — murmuro.

— Você, mais do que ninguém, deveria saber — ele diz, olhando para minha boca

— que nós “tipos literários grosseiros e monocromáticos” não temos isso.

Na minha cabeça, a voz de Nadine Winters grita, Aborte, aborte! Isso não cabe em

nenhum plano! Mas há muito sangue correndo e pele formigando para as palavras

competirem.

Não me lembro de ter feito isso, mas meus dedos estão pressionados contra seu

estômago, seus músculos se contraindo sob eles.

Péssima ideia, penso na fração de segundo antes de Charlie puxar meus quadris

contra os dele. As palavras se desfazem como uma sopa de letrinhas, letras se

estilhaçando em todas as direções, totalmente sem sentido agora. Sua boca pega a

minha rudemente enquanto ele me leva de volta para a porta do chalé, cobrindo meu

corpo com o dele.

Eu meio que gemo com a pressão. Suas mãos apertam minha cintura. Meus lábios

se abrem para a sua língua, o sabor da cerveja e a ponta de ervas do gim

emaranhando-se agradavelmente na minha boca.

Parece que meu contorno está se dissolvendo, como se eu estivesse virando

líquido. Sua boca desliza pela minha mandíbula, sobre a minha garganta. Minhas

mãos raspam seu cabelo áspero e encharcado de chuva, e ele solta um gemido baixo,

sua mão arrastando para o meu peito, os dedos roçando meu mamilo.

Em algum momento, o guarda-chuva caiu no chão. A camisa de Charlie está

grudada nele. Ele me apalpa através do meu vestido úmido, fazendo-me arquear.

Nossas bocas deslizam juntas.

Os últimos resquícios de cerveja e gim evaporam da minha corrente sanguínea, e

tudo está acontecendo em alta definição. Minhas mãos deslizam pela parte de trás

de sua camisa, as unhas afundando em sua pele lisa e quente, trazendo-o para mais

perto, e sua palma se move para a bainha do meu vestido, puxando-o pela minha

coxa. Seus dedos deslizam mais alto, enviando calafrios sobre minha pele, e algo

como “Espere” desliza para fora de mim.

Eu nem tenho certeza de como ele ouviu, mas Charlie recua, parecendo um

homem recém-saído de um transe, cabelo despenteado, lábios inchados, olhos

escuros piscando rapidamente.

— Merda! — ele diz, rouco, dando um passo para trás. — Eu não queria…

A clareza me atinge com um choque de água fria.

Merda mesmo!

Tipo, eu não cago onde eu como. Ou beijo onde eu trabalho. Já é ruim o suficiente

que em um ano e meio todos com quem trabalho pensem em mim como Nadine


Winters, não preciso adicionar mais combustível potencial à pira funerária da minha

reputação.

Ele diz:

— Eu realmente não posso me envolver...

— Não preciso de explicação! — Eu o cortei, puxando a bainha do meu vestido de

volta para as minhas coxas. — Isso foi um erro!

— Eu sei! — Charlie diz, soando vagamente ofendido.

— Bem, eu também sei!

— Ótimo! — ele diz. — Então concordamos!

— Ótimo! — Eu choro, continuando o argumento mais estranho e menos

produtivo da história registrada.

Charlie não se moveu. Nenhum de nós fez. Seus olhos ainda estão escuros e

famintos, e graças à lâmpada sobre a porta, sua ereção poderia muito bem estar em

uma vitrine em um museu particularmente lascivo.

Eu respiro.

— Vamos apenas agir como…

Ao mesmo tempo, ele diz:

— Devemos fingir que isso nunca aconteceu.

Eu concordo.

Ele concorda.

Está acordado.

Ele pega seu guarda-chuva do chão, e nenhum de nós se preocupa com “boa

noite”. Ele apenas acena com a cabeça novamente rigidamente e se vira e vai embora.

Isso nunca aconteceu, eu penso com alguma força.

O que é bom, porque minhas decisões imprudentes sempre têm consequências

desastrosas.


QUANDO EU TINHA 12 ANOS, minha mãe foi escalada para uma série criminal.

Ela se deu bem com o showrunner. Em pouco tempo, ela o estava vendo todas as

noites.

Quatro episódios depois, ele se reconciliou com sua ex-esposa. A corajosa

personagem detetive da mamãe foi rapidamente morta, seu corpo descoberto em

um frigorífico.

Eu nunca tinha visto mamãe tão perturbada. Evitamos partes inteiras da cidade

depois, evitando qualquer lugar que ela pudesse encontrar com ele, ou lembrasse

dele, ou do emprego que ela havia perdido.

Depois disso, foi uma decisão fácil para mim nunca me apaixonar.

Por anos, eu me apeguei a isso. Então eu conheci Jakob.

Ele fez o mundo se abrir ao meu redor, como se houvesse cores que eu nunca

tinha visto, novos níveis de felicidade que eu não poderia imaginar.

Mamãe ficou em êxtase quando eu disse a ela que estava indo morar com ele.

Depois de tudo que ela passou, ela ainda era uma romântica.

Ele vai cuidar tão bem de você, docinho, ela disse. Ele era alguns anos mais velho

que eu e tinha um emprego bem remunerado de bartender e um pequeno

apartamento no subúrbio.

Uma semana depois, dei um abraço de despedida em mamãe e Libby e levei

minhas coisas para a casa dele. Duas semanas depois disso, mamãe se foi.

As contas vieram todas de uma vez. Aluguel, serviços públicos, um cartão de

crédito que abrimos em meu nome quando as coisas ficaram particularmente

apertadas. O crédito da minha mãe foi zerado, e eu queria ajudar a puxar meu peso.

Eu trabalhava na Freeman Books desde os dezesseis anos, mas ganhava um

salário mínimo e só conseguia trabalhar meio expediente enquanto estava na

faculdade, e algum dia, os empréstimos estudantis que fiz voltariam para me

assombrar.

Os amigos atores de mamãe fizeram uma arrecadação de fundos para nós,

anunciando depois do funeral que haviam arrecadado mais de quinze mil dólares, e

Libby chorou lágrimas de felicidade, porque ela não tinha ideia de quão pouco isso

faria.


Ela estava com uma paixão por design de moda e queria ir para Parsons, e eu

debati em desistir do meu curso de inglês para financiar sua mensalidade, embora

eu já tivesse investido dezenas de milhares de dólares na minha.

Saí da casa de Jakob e voltei a morar com Libby.

Fiz o orçamento.

Vasculhei a internet em busca das refeições mais baratas e fartas.

Assumi outros empregos: aulas de reforço, garçonete, redigindo trabalhos de

colegas.

Jakob descobriu que havia sido aceito na residência de redação em Wyoming e

foi embora, e então houve o rompimento, a desolação total, o lembrete de por que a

promessa que fiz a mim mesmo anos atrás ainda importava.

Parei de namorar, basicamente. Os primeiros encontros eram permitidos

(somente jantar), e embora eu nunca contasse a ninguém, a razão era que eu teria

uma refeição a menos para pagar. Duas se eu pedisse o suficiente para trazer as

sobras para Libby.

Os segundos encontros eram inúteis. Eram quando a culpa aparecia, ou os

sentimentos.

Libby brincava comigo sobre como ninguém era bom o suficiente para um

segundo encontro.

Eu a deixei. Iria me destruir ouvir o que ela pensava da verdade.

Ela trabalhou também. Sem a renda da mamãe, tivemos que apertar os cordões

da bolsa, mas Libby nunca quis gastar dinheiro consigo mesma.

Às vezes, depois de reclamar com ela sobre um encontro particularmente ruim,

então, eu voltava para casa das aulas ou de um turno de aulas particulares para

encontrar ela já dormindo em seu quarto (eu me mudei para a sala de estar, onde

mamãe costumava dormir, para que ela pudesse ter o quarto só para ela) e um

buquê de girassóis em um vaso ao lado do sofá-cama.

Se eu fosse normal, eu poderia ter chorado. Em vez disso, eu me sentava lá,

segurando o vaso, e apenas tremia. Como se houvesse emoções profundas em mim,

mas muitas camadas de cinzas estavam sobre elas, amortecendo-as para nada além

de um murmúrio tectônico.

Há um ponto no meu pé que não consigo sentir. Pisei em um pedaço de vidro e

os nervos estão mortos agora. O médico disse que eles voltariam a crescer, mas já

faz anos e aquele lugar ainda está dormente.

Era assim que meu coração se sentia há anos. Como se todas as rachaduras

estivessem calejadas.

Isso me permitiu focar no que importava. Construí uma vida para mim e para

Libby, uma casa que nenhum banco ou ex-namorado poderia tirar de nós.

Vi meus amigos em relacionamentos fazerem compromissos atrás de

compromissos, encolhendo-se até que não passassem de um pedaço de um todo, até

que todas as suas histórias viessem do passado, e suas aspirações de carreira, seus

amigos e seus apartamentos fossem substituídos por nossas aspirações, nossos

amigos, nosso apartamento. Meias vidas que poderiam ser tiradas deles sem

qualquer aviso.


Nessa altura eu tinha toda a prática em primeiros encontros que uma pessoa

poderia ter. Eu sabia observar os sinais de alerta, as perguntas a fazer. Eu tinha visto

meus amigos, companheiros de trabalho, colegas serem enganados, traídos,

entediados em seus relacionamentos e rudemente surpreendidos quando os

parceiros na verdade eram casados ou tinham problemas com jogos de azar ou

estavam cronicamente desempregados. Eu vi encontros casuais se transformarem

em meio relacionamentos miseravelmente complicados.

Eu tinha padrões e uma vida, e eu não estava disposta a deixar um homem

destruí-lo como se fosse apenas a bandeira de papel que ele deveria atravessar ao

entrar em campo.

Então, apenas quando minha carreira estava no caminho certo eu comecei a

namorar novamente, e desta vez eu fiz certo. Com cautela, listas de verificação e

decisões cuidadosamente ponderadas.

Eu não beijei colegas. Eu não beijei pessoas que eu quase não conhecia. Eu não

beijei homens com quem não tinha intenção de namorar, ou homens com quem era

incompatível. Eu não deixei ataques aleatórios de luxúria tomarem as decisões.

Até Charlie Lastra.

Que nunca aconteceu.

Eu esperava que Libby ficasse tonta com meu deslize. Em vez disso, ela é tão

desaprovadora quanto eu.

— Seu Nêmesis Profissional de Nova York não conta para o número cinco, mana

— diz ela. — Você não poderia ter ficado com, tipo, um palhaço de rodeio com um

coração de ouro?

— Eu estava usando sapatos totalmente errados para isso — eu digo.

— Você poderia beijar um milhão de Charlies na cidade. Você deveria estar

tentando coisas novas aqui. Nós duas deveríamos. — Ela brande a espátula de ovo

na minha direção. Crescendo, nosso apartamento era uma casa de café da manhã de

iogurte ou de barras de granola, mas agora Libby é uma garota do café da manhã

inglês completo, e já há panquecas e salsichas vegetarianas empilhadas ao lado da

panela de ovo.

Caí da cama às nove depois de mais uma noite agitada, fiz uma corrida seguida

de um banho rápido, depois desci para o café da manhã. Libby já está acordada há

horas. Ela ama as manhãs ainda mais do que adorava dormir quando era

adolescente. Mesmo nos fins de semana, ela nunca dorme depois das sete. Em parte,

tenho certeza, porque ela pode ouvir o guincho agudo de Bea ou os pezinhos

latejantes de Tala a cinco quilômetros e uma dose de morfina de distância.

Ela sempre diz que as duas somos nós, mas com os corpos trocados.

Bea, a mais velha, é doce como uma torta de cereja como Libby, mas com minha

magreza e meu cabelo castanho acinzentado. Tala tem os cabelos lourosavermelhados

de sua mãe e está destinada a não ter mais de 1,60m, mas como sua

tia Nono, ela é uma bruta: teimosa e determinada a nunca seguir nenhum comando

sem uma explicação completa.


— Você é a que me prendeu com ele — eu aponto, puxando a espátula da mão de

Libby e conduzindo-a em direção a uma cadeira. — Isso nunca teria acontecido se

você não tivesse me dispensado.

— Olha, Nora, às vezes até as mamães precisam de um tempo sozinhas — ela diz

lentamente. — De qualquer forma, eu pensei que você odiasse aquele cara.

— Eu não o odeio — eu digo. — Somos apenas, tipo, ímãs opostos, ou algo assim.

— Ímãs opostos são os que se atraem.

— Ok, então somos ímãs com a mesma polaridade.

— Dois ímãs com a mesma polaridade nunca se pegariam contra uma porta.

— Ao contrário de outros ímãs, que definitivamente fariam isso. — Eu carrego

nossos pratos cheios, caindo na cadeira em frente a ela. Já está um calor infernal.

Estamos com as janelas abertas e os ventiladores ligados, mas está tão enevoado

quanto uma sauna barata.

— Foi um momento de fraqueza. — A memória das mãos de Charlie na minha

cintura, seu peito me achatando na porta, queimam através de mim.

Libby arqueia uma sobrancelha. Com seu cabelo rosa sem corte, ela está mais

perto de dominar o meu próprio olho maligno, mas suas bochechas ainda são, em

última análise, muito macias para fazer o trabalho.

— Para que você não esqueça, mana, esse tipo de homem não funcionou para você

no passado.

Pessoalmente, eu não compararia Charlie com meus ex. Por um lado, nenhum

deles jamais tentou me devastar do lado de fora. Além disso, eles nunca saíram de

um beijo como se eu tivesse enfiado um atiçador de fogo quente em suas calças.

— Estou orgulhosa de você por ter saído dos seus padrões… eu só não teria

escolhido uma pegação pesada pelo Conde von Lastra como O Movimento.

Eu deixo cair meu rosto em meu antebraço, recentemente mortificada.

— Isso é tudo culpa da Nadine Winters.

A testa de Libby se contrai.

— Quem?

— Ah, verdade. — Eu levanto minha cabeça. — Em seu desespero para me ver

descalça e grávida, você saiu correndo antes que eu pudesse contar. — Desbloqueio

meu telefone e abro o e-mail de Dusty, deslizando-o para o campo de visão de Libby.

Ela se curva enquanto lê, e eu enfio comida na boca o mais rápido que posso para

começar meu dia de trabalho.

Libby não é uma leitora surpreendentemente rápida. Ela absorve os livros como

se fossem banhos de espuma, enquanto meu trabalho me forçou a tratá-los mais

como chuveiros quentes e rápidos.

Sua boca encolhe, apertando em um nó enquanto ela lê, até que finalmente ela cai

na gargalhada.

— Meu Deus! — ela chora. — É uma fanfic da Nora Stephens!

— Pode realmente ser chamado de fan fiction se o autor claramente não é um fã?

— Eu digo.

— Ela te mandou mais? Tem cena hot? Muitas fanfics ficam obscenas.

— Mais uma vez — eu digo — não é fanfic.


Libby gargalha.

— Talvez Dusty tenha uma crush.

— Ou talvez ela esteja contratando um assassino enquanto conversamos.

— Espero que fique obsceno — diz ela.

— Libby, se você pudesse, todos os livros terminariam com um orgasmo

devastador.

— Ei, por que esperar até o final? — ela diz. — Ah, certo, porque é aí que você

começa a ler. — Ela finge vomitar com o pensamento.

Levanto para lavar meu prato.

— Bem, tem sido divertido, mas estou procurando um Wi-Fi que não me faça

querer enfiar a cabeça na parede.

— Eu te encontro mais tarde — diz ela. — Primeiro, vou passar algumas horas

andando nua, gritando palavrões. Então eu provavelmente vou ligar para casa, quer

que eu diga a Brendan que você disse oi?

— Quem?

Libby faz um gesto obsceno. Eu beijo alto o lado de sua cabeça no meu caminho

para a porta com minha bolsa de laptop.

— Não vá a lugar nenhum de Once In A Lifetime sem mim! — ela grita.

Eu me interrompo antes de não tenho certeza de que esses lugares existem possa

sair de mim. Pela primeira vez em meses, nós sentimos como nós de um tempo

diferente, totalmente conectadas, totalmente presentes, e a última coisa que quero

é alguma variável incontrolável bagunçando as coisas.

— Prometo — eu digo.


DEPOIS DE PAGAR o meu Iced Americano no Mug + Shot, peço a senha do Wi-Fi

para a barista alegre com piercing no septo.

— Oh! — Ela gesticula para uma placa de madeira atrás dela dizendo “Vamos

desconectar!” — Não há Wi-Fi aqui. Desculpe.

— Espere — eu digo — sério?

Ela sorri.

— Sim.

Eu olho ao redor. Nenhum laptop à vista. Todo mundo aqui parece que veio direto

da escalada do Everest ou de uma tenda do Coachella, onde estavam usando drogas.

— Tem uma biblioteca ou algo assim? — Eu pergunto.

Ela acena.

— A alguns quarteirões abaixo. Também não tem Wi-Fi, deveria chegar no

outono. Por enquanto, eles têm desktops que você pode usar.

— Há algum lugar na cidade com Wi-Fi? — Eu pergunto.

— A livraria acabou de comprar — ela admite, baixinho, como se esperasse que

as palavras não desencadeassem uma debandada de bebedores de café que

gostariam muito de ser desconectados.

Agradeço a ela e saio para o calor pegajoso, suor acumulando em minhas axilas e

decote enquanto caminho em direção à livraria. Quando entro, parece que acabei de

entrar em um labirinto, todas as brisas, sinos de vento e conversas de pássaros

silenciados ao mesmo tempo, aquele cheiro quente de cedro e papel queimado ao

meu redor.

Eu tomo um gole da minha bebida gelada e me deleito com a serotonina de cano

duplo correndo por mim. Tem coisa melhor do que um café gelado e uma livraria em

um dia ensolarado? Quer dizer, além de café quente e uma livraria em um dia

chuvoso.

As prateleiras são construídas em ângulos selvagens que me fazem sentir como

se estivesse deslizando para fora da borda do planeta. Quando criança, eu adoraria

o capricho disso, uma casa divertida feita de livros. Como adulta, preocupo-me

principalmente em como ficam de pé.

À esquerda, uma porta baixa e arredondada é cortada em uma das prateleiras,

sua moldura esculpida com as palavras Livros Infantis.


Eu me curvo para espiar através dela para um suave mural azul-esverdeado,

como algo saído de Madeline, palavras girando sobre ele: Descubra novos mundos!

Do outro lado da sala principal, uma porta de tamanho médio leva à Sala de Livros

Usados e Raros.

Esta sala principal não está exatamente cheia de novas lombadas. Tanto quanto

eu posso dizer, há muito pouco método para a organização desta loja. Novos livros

misturados com velhos, brochuras com capa dura e fantasia ao lado de não-ficção,

uma camada não tão fina de poeira sobre a maior parte.

Uma vez, aposto que este lugar era uma jóia da cidade onde as pessoas

compravam presentes de datas festivas e pré-adolescentes fofocavam sobre

Frappuccinos. Agora é outro cemitério de pequenas empresas.

Eu sigo as prateleiras labirínticas para dentro da loja, passando por uma porta

para o “café” mais deprimente do mundo (um par de mesas de jogo e algumas

cadeiras dobráveis), e viro uma esquina, e congelo por um milissegundo, meio passo,

um pé pairando no ar.

Ver o homem debruçado sobre seu laptop atrás do caixa, com uma expressão

inexpressiva na testa, é como acordar de um pesadelo em que você está caindo de

um penhasco, apenas para perceber que sua casa foi destruída por um tornado

enquanto você dormia.

Este é o problema das cidades pequenas: um pequeno lapso de julgamento e você

não pode andar um quilômetro sem se deparar com ele.

Tudo o que quero fazer é virar e fugir, mas não posso me permitir fazer isso. Não

deixarei que um deslize, ou qualquer homem, comece a governar minhas decisões.

Todo o motivo para evitar complicações no local de trabalho é se proteger contra

esse cenário. Além disso, o envolvimento foi evitado. A maior parte.

Eu endireito meus ombros e levanto meu queixo. Naquele momento, pela

primeira vez, me pergunto se posso ter um anjo da guarda, porque bem na minha

frente, na prateleira de best-sellers locais, está uma pilha virada para fora de Once

in a Lifetime.

Pego uma cópia e vou até o balcão.

O olhar de Charlie não sai de seu laptop até que eu joguei o livro no mogno

arranhado.

Seus olhos castanhos dourados sobem lentamente.

— Olha só. Se não é a mulher que “não está me perseguindo”.

Eu resmungo:

— Se não é o homem que “não tentou me devorar no meio de um furacão”.

Seu gole de café volta a jorrar em sua caneca, e ele olha para o café trágico.

— Eu certamente espero que a diretora do meu ensino médio estava pronta para

ouvir isso.

Eu me inclino para o lado para espiar pela porta. Em uma das mesas de jogo, uma

mulher curvada de cabelos grisalhos está assistindo The Sopranos em um tablet com

apenas um fone de ouvido.

— Outra ex sua?

Aquele movimento para baixo no canto de sua boca.


— Eu posso dizer que você está satisfeita consigo mesma quando seus olhos

ficam todos predatórios assim.

— E eu posso dizer que você está quando você faz aquela coisa de contrair os

lábios.

— Isso se chama sorriso, Stephens. Eles são comuns aqui.

— E por “aqui” você deve estar se referindo a Sunshine Falls, porque você

definitivamente não está se referindo ao raio de um metro e meio de sua cerca

elétrica.

— Tenho que manter os moradores afastados de alguma forma. — Seus olhos

caem para o livro. — Finalmente encarando a situação e lendo a coisa toda? — ele

diz secamente.

— Sabe… — Eu pego o livro e o seguro na frente do meu peito. — Encontrei isso

na prateleira dos mais vendidos.

— Eu sei. Está exposto ao lado do Guia para as trilhas de bicicleta da Carolina do

Norte que meu antigo dentista publicou no ano passado — diz ele. — Você queria

um desses também?

— Este livro vendeu mais de um milhão de cópias — digo a ele.

— Estou ciente. — Ele pega o livro. — Mas agora estou me perguntando quantos

desses você comprou.

Eu franzi o cenho. Ele me recompensa com um quase sorriso e, pela primeira vez,

sei exatamente o que minha chefe quer dizer quando descreve meu “sorriso com

facas”.

Eu olho para longe de seu rosto, o que realmente significa que meus olhos

deslizam por sua garganta dourada e por sua camiseta branca imaculada até seus

braços. São bons braços. Não de uma forma bombada, apenas de uma forma

atraentemente simples.

Certo, são apenas braços. Calma, Nora. Homens heterossexuais têm tudo muito

fácil. Uma mulher heterossexual pode ver algo não sexual de aparência muito

normal, e a biologia diz “Afaste-se, últimos quatro mil anos de evolução, é hora de

contribuir para a continuação da raça humana.”

Ele afasta o laptop e começa a reorganizar as canetas, panfletos e outros

materiais de escritório na mesa. Talvez eu não esteja com tesão por ele tanto quanto

por suas roupas e suas habilidades organizacionais.

— Na verdade, eu estava apenas enviando um e-mail para você.

Volto para a conversa, vibrando como um elástico estourado.

— Oh?

Ele acena com a cabeça, sua mandíbula apertada, seus olhos escuros e intensos.

— Você já soube da Sharon?

— A editora de Dusty?

Ele concorda.

— Ela está de licença, teve seu bebê.

E de repente, todos os braços esguios, dedos bonitos e potes de canetas e

marcadores perfeitamente organizados do mundo não são suficientes para prender

minha atenção.


— Mas ela não deveria ter ele por mais um mês — eu digo, em pânico. — Temos

mais um mês para obter as edições de Dusty.

Outro pequeno sorriso.

— Você gostaria que eu ligasse para ela e dissesse isso a ela? Talvez algo possa

ser feito… espere, você tem algum contato no Hospital Mount Sinai?

— Você terminou? — Eu pergunto. — Ou há uma segunda parte para essa piada

hilária?

As mãos de Charlie se apoiam no balcão e ele se inclina para frente, a voz rouca,

os olhos estalando com aquele estranho relâmpago interno.

— Eu quero.

Sinto que perdi um passo.

— O-o quê?

— O livro de Dusty. Frigid. Eu quero trabalhar nele.

Oh! Graças a Deus. Eu não tinha certeza de onde isso estava indo. E também: de

jeito nenhum no inferno.

— Se quisermos manter a data de lançamento — Charlie continua — Sharon não

voltará a tempo de editar. Loggia precisa de alguém para intervir, e eu pedi para

fazer isso.

Minha mente não parece só estar girando, mas parece como se estivesse fazendo

malabarismo com quinze pratos que estão pegando fogo.

— É de Dusty que estamos falando. A tímida e gentil Dusty, que está acostumada

com o comportamento calmo e otimista de Sharon. E você, que, sem ofensa, é tão

delicado quanto uma picareta antiga.

Seus músculos da mandíbula flexionam.

— Sei que não tenho os melhores modos. Mas eu sou bom no meu trabalho. Eu

posso fazer isso. E você pode colocar Dusty a bordo. A editora não quer adiar a data

de lançamento. Precisamos levar isso adiante, sem atrasos.

— Não é minha decisão.

— Dusty vai ouvir você — diz Charlie. — Você poderia vender óleo de cobra para

um vendedor de óleo de cobra.

— Não tenho certeza se é assim que diz o ditado.

— Eu tive que revisá-lo para refletir com precisão o quão boa você é em seu

trabalho.

Minhas bochechas estão pegando fogo, menos pelo elogio do que por uma

memória repentina e vívida da boca de Charlie. A parte em que ele cambaleou para

trás de mim como se eu tivesse atirado nele segue rapidamente.

Eu engulo.

— Eu vou falar com ela. Isso é tudo que posso fazer. — Por hábito, sem pensar,

virei para a última página de Once. Agora eu mudo para os agradecimentos, deixando

meus músculos relaxarem ao ver meu nome. É a prova de que sou boa no meu

trabalho, que mesmo que não possa controlar tudo, há muita coisa que posso colocar

em forma.

Eu limpo minha garganta.


— O que você está fazendo aqui de qualquer maneira, e quanto tempo você tem

até que a luz do sol faça você explodir em chamas?

Charlie dobra os antebraços no balcão.

— Você pode guardar um segredo, Stephens?

— Pergunte-me quem atirou em JFK — eu digo, adotando seu próprio tom

inexpressivo.

Seus olhos se estreitam.

— Estou muito mais interessado em como você conseguiu essa informação.

— Aquele livro do Stephen King — eu respondo. — Agora, de quem estamos

guardando segredos?

Ele considera, os dentes correndo sobre o lábio inferior cheio. É quase indecente,

mas não é pior do que o que está acontecendo no meu corpo agora.

— Loggia Publishing — ele responde.

— Ok. — Eu considero. — Eu posso manter um segredo da Loggia, se você fizer

isso interessante.

Ele se inclina para mais perto. Eu sigo o exemplo. Seu sussurro é tão baixo que

quase tenho que pressionar meu ouvido em sua boca para ouvi-lo

— Eu trabalho aqui.

— Você… trabalha… aqui? — Eu me endireito, piscando para limpar a névoa de

seu cheiro quente.

— Eu trabalho aqui — ele repete, virando seu laptop para revelar um PDF de um

manuscrito — enquanto tecnicamente estou trabalhando lá.

— Isso é legal? — Eu pergunto. Dois empregos de tempo integral acontecendo

simultaneamente parece que pode realmente somar dois empregos de meio

período.

Charlie arrasta a mão pelo rosto enquanto suspira exausto.

— É desaconselhável. Mas meus pais são donos deste lugar e precisavam de

ajuda, então eu administro a loja há alguns meses enquanto edito remotamente.

Ele pega o livro do balcão.

— Você realmente vai comprar isso?

— Gosto de apoiar os negócios locais.

— A Goode Books é menos um negócio local e mais um poço financeiro, mas

tenho certeza de que o túnel dentro da terra valoriza seu dinheiro.

— Com licença — eu digo — você acabou de dizer que este lugar se chama Goode

Books? Como no sobrenome de sua mãe, mas também um bom livro?

— Pessoas da cidade — ele diz. — Nunca param para cheirar as rosas ou olhar

para cima para ver as placas exibidas com muito destaque sobre as empresas locais.

Eu aceno com a mão.

— Ah, eu tenho tempo. É só que o Botox no meu pescoço torna difícil levantar

meu queixo tão alto.

— Eu nunca conheci alguém que é tão vaidosa e tão prática — diz ele, soando um

pouco impressionado.

— Que será o que realmente vai na minha lápide.

— Que pena — diz ele — desperdiçar tudo isso com um criador de porcos.


— Você está realmente apegado ao criador de porcos — eu digo. — Enquanto

Libby não ficará satisfeita comigo namorando qualquer um que não seja um pai

solteiro viúvo que rejeitou uma carreira na música country para administrar uma

pousada.

Ele diz:

— Então você conheceu Randy.

Eu comecei a rir, e o canto de sua boca tiquetaqueia.

Ah Merda. É um sorriso. Ele está feliz por ter me feito rir. O que faz meu sangue

parecer xarope de bordo. E eu odeio xarope de bordo.

Dou meio passo para trás, um limite físico para acompanhar o mental que estou

tentando reconstruir.

— De qualquer forma, ouvi um boato de que você está acumulando a internet de

toda a cidade aqui.

— Você nunca deve acreditar em um boato de cidade pequena, Nora — ele

repreende.

— Então…

— A senha é goodebooks — diz ele. — Tudo em minúsculo, tudo junto, com um e

em goode — Ele aponta o queixo em direção ao café, sobrancelha arqueada. — Diga

oi a diretora Schroeder.

Meu rosto se arrepia. Em vez disso, olho por cima do ombro para uma cadeira de

madeira no final de um corredor.

— Pensando bem, vou me instalar lá.

Ele se inclina para frente, baixando a voz novamente.

— Covarde.

Sua voz, o desafio dela, envia arrepios pela minha espinha dorsal.

Minha tendência competitiva se ativa instantaneamente, e dou meia-volta e entro

no café, parando ao lado da mesa ocupada.

— Você deve ser a diretora Schroeder — eu digo, acrescentando

significativamente — Charlie me falou muito sobre você.

Ela parece nervosa, quase derrubando seu chá na pressa de apertar minha mão.

— Você deve ser a namorada dele?

Ela absolutamente ouviu meu comentário sobre devorar e o furacão.

— Ah, não — eu digo. — Nos conhecemos ontem. Mas você aparece muito nas

conversas.

Olho por cima do ombro para ver a expressão no rosto de Charlie e sei: eu venci

esta rodada.

— Eu não chamaria de “experimentando coisas novas” algo como passar o dia

todo em seu laptop a três metros de seu inimigo de Nova York. — Libby está

absolutamente encantada com a velha loja empoeirada, um pouco menos com seu

caixa. — A última coisa que você precisa é passar as férias inteiras imersa em sua

carreira.


Olho cautelosamente da porta do café (que vende apenas descafeinado e café

normal) para a livraria propriamente dita, certificando-me de que Charlie não está

ao alcance da voz.

— Eu não posso tirar um mês inteiro de folga do trabalho. Depois das cinco todos

os dias, prometo que sou toda sua.

— É melhor você ser — diz ela. — Porque temos uma lista para passar, e isso —

ela inclina a cabeça na direção geral de Charlie — é uma distração.

— Desde quando me distraio com os homens? — Eu sussurro. — Você já me

conheceu? Estou aqui usando o Wi-Fi, não dando lap dances grátis.

— Vamos ver — diz ela asperamente. (Tipo, dê vinte minutos, e eu estarei, de

fato, distribuindo lap dances na livraria independente local?)

Ela examina nossos arredores novamente, suspirando melancolicamente.

— Odeio ver livrarias vazias. — Alguma coisa disso pode ser os hormônios da

gravidez, mas ela está legitimamente chorando.

— É caro manter lojas como esta — digo a ela. Especialmente quando tantas

pessoas estão se voltando para a Amazon e outros lugares que podem se dar ao luxo

de vender com um grande desconto. Esse tipo de loja é sempre o resultado do sonho

de alguém e, como a maioria dos sonhos, parece ter uma morte lenta e dolorosa.

— Ei — diz Libby. — E o número doze? — Ao meu olhar vazio, ela acrescenta,

olhos brilhando: — Salvar um negócio local. Devemos ajudar este lugar!

— E deixar as cabras sacrificadas para se defenderem sozinhas?

Ela me golpeia.

— Estou falando sério.

Eu arrisco outro olhar na direção de Charlie.

— Eles podem não precisar da nossa ajuda. — Ou querer.

Ela bufa.

— Eu vi uma cópia de Todo Mundo Caga na prateleira ao lado de um livro de

receitas 1001 Sobremesas com Chocolate.

— Traumatizante — eu concordo com um estremecimento.

— Vai ser divertido — diz Libby. — Já tenho ideias. — Ela puxa um caderno de

sua bolsa e começa a rabiscar, os dentes afundados em seu lábio inferior.

Não estou entusiasmada com a perspectiva de passar ainda mais tempo dentro

de um raio de três metros de Charlie depois do ponto humilhante de ontem à noite,

mas se isso é o que Libby realmente quer fazer, não vou deixar um beijo – que

supostamente "nunca aconteceu" de qualquer maneira, me assustar.

Assim como eu não vou deixar isso me impedir de fazer algum trabalho hoje. As

pessoas sempre falam sobre compartimentalização como se fosse uma coisa ruim,

mas eu amo o jeito que, quando eu trabalho, todo o resto parece ser dobrado

ordenadamente nas gavetas, os livros em que estou trabalhando incham para o

primeiro, imergindo cada pedacinho de mim como era ler os capítulos favoritos dos

meus livros preferidos quando criança. Como se não houvesse nada para se

preocupar, planejar, lamentar ou descobrir.

Estou tão absorta que nem noto que Libby parou seu brainstorming para escapar,

até que ela volta algum tempo depois com um café gelado fresco do outro lado da


rua e uma pilha de um metro de romances de cidade pequena que ela escolheu das

prateleiras da Goode Books.

— Faz meses desde que eu li mais de cinco páginas em uma sentada — ela diz

vertiginosamente. Ao contrário de mim, Libby não lê a última página primeiro. Ela

nem lê a capa, preferindo entrar sem nenhuma noção preconcebida. Provavelmente

porque ela é conhecida por jogar livros pela sala.

— Uma vez tentei me trancar no banheiro com um romance de Rebekah

Weatherspoon — diz ela. — Em poucos minutos, Bea se mijou.

— Você precisa de um segundo banheiro.

— Preciso de uma segunda eu. — Ela abre seu livro, e eu clico em um novo

navegador, verificando se há novas listas de apartamentos. Não há nada na faixa de

preço de Libby e Brendan que não pareça um cenário de crime de SVU.

Um e-mail chega de Sharon então, e eu toco nele.

Ela está bem, e o bebê também, embora ambos devam ficar no hospital por um

tempo, já que ele chegou prematuramente. Ela me enviou algumas fotos de seu

rostinho rosado em seu pequeno gorro de tricô. Honestamente, todos os recémnascidos

parecem mais ou menos iguais para mim, mas saber que ele veio de alguém

que eu gosto é o suficiente para fazer meu coração inchar.

Ele se contrai novamente enquanto eu leio e chego à parte do e-mail dedicada a

elogiar Frigid. Por um segundo, quase esqueci que, em pouco mais de um ano, todos

com quem trabalhei lerão sobre Nadine Winters. É aquele pesadelo de ir para escola

só com roupas íntimas vezes cem.

Mesmo assim, sinto uma onda de orgulho ao ler a confirmação de Sharon do que

eu já sabia: este é o livro certo. Há uma faísca inquantificável nestas páginas, uma

sensação de clareza e propósito.

Alguns livros têm essa inevitabilidade desde o início, um estranho déjà vu. Você

não sabe o que vai acontecer, mas tem certeza de que não há como evitar.

Assim como resto do e-mail de Sharon:

Gostaríamos de trazer nosso novo e talentoso editor-geral Charlie Lastra para

fazer Dusty passar pela primeira rodada de grandes edições. Vou enviar outro e-mail

fazendo a apresentação entre eles, mas queria falar com você primeiro para que você

possa preparar a bomba, por assim dizer.

Charlie é fantástico no que faz. Frigid estará em excelentes mãos.

Flashes das excelentes mãos de Charlie chiam em minha mente. Saio do e-mail

com a ferocidade de um adolescente batendo a porta e gritando: Você não é meu pai

de verdade!

Se há algo mais embaraçoso do que ter um romance velado sobre você publicado,

provavelmente é ter esse livro editado por um homem que te apalpou durante uma

tempestade.

É por isso que as regras existem. Para se proteger contra esse exato (ok,

aproximado) cenário.

Só há uma maneira de lidar com isso. Seja o tubarão, Nora.


Eu me levanto, alongo meus ombros para trás e me aproximo da caixa

registradora.

— Ela vai comprar algum desses — Charlie fala lentamente, inclinando o queixo

em direção à torre de livros de Libby — ou apenas espirrar café em cima deles?

— Alguém já lhe disse que você é uma pessoa natural no atendimento ao cliente?

— Eu pergunto.

— Não — diz ele.

— Ótimo. Eu sei como você se sente sobre mentirosos.

Seus lábios se abrem, mas antes que ele possa replicar, eu digo

— Vou colocar Dusty a bordo, mas tenho uma condição.

A boca de Charlie se fecha, seus olhos ficam duros.

— Vamos ouvir isso.

— Suas notas passam por mim — eu digo. — A primeira editora de Dusty fez um

estrago em sua psique, e ela está recuperando sua confiança. A última coisa que ela

precisa é de você arrasando sua autoestima. — Ele abre a boca para objetar, e eu

acrescento. — Confie em mim. Esta é a única maneira que pode funcionar. Se puder

funcionar de alguma forma.

Depois de um longo momento de consideração, ele estende a mão sobre a mesa.

— Ok, Stephens, você tem um acordo.

Eu balanço minha cabeça. Eu não vou cometer o erro de tocar Charlie Lastra

novamente.

— Nada está resolvido até eu falar com ela.

Ele concorda.

— Vou ter meu guardanapo e caneta esperando por sua assinatura.

— Ah, Charlie — eu digo. — Que adorável que você acha que eu assinaria um

contrato com a caneta de outra pessoa.

O canto de sua boca se contrai.

— Você está certa — diz ele. — Eu deveria ter adivinhado.


— MAS ELA NÃO DEVERIA TER O BEBÊ até o mês que vem — diz Dusty.

— Confie em mim: eu tentei dizer isso a ela. — Eu pego um pouco de tinta

descascada no gazebo enquanto observo um zangão roliço voar em espiral pelos

canteiros de flores. A floresta está densa com sinfonia das cigarras, e o céu está

ficando de um tom roxo, o calor espesso como sempre. — Mas Charlie está muito

empolgado com este livro e, pelo que ouvi, ele é ótimo no que faz.

Dusty diz

— Nós não submetemos Once a ele? E ele recusou?

Eu coloco meu telefone entre meu ombro e orelha, movendo minha franja frisada

para o lado.

— Isso mesmo, mas mesmo assim, ele estava convencido de que adoraria ver

seus projetos futuros.

Uma longa pausa.

— Mas você nunca trabalhou com ele. Quer dizer, você não sabe como são os

gostos editoriais dele.

— Dusty, ele está apaixonado por essas páginas. De verdade. E olhando para seus

outros títulos… Acho que Frigid faz sentido para ele.

Ela suspira.

— Eu realmente não posso dizer não, posso? Quero dizer, não sem parecer difícil.

— Olha — eu digo. — Já adiamos esse prazo antes e, se tivermos que fazer de

novo, o faremos. Mas acho que, em termos de tempo, com o lançamento do filme

Once, seu lançamento não poderia estar muito melhor posicionado. E eu estarei lá a

cada passo do caminho. Eu vou fazer a interferência, fazer o que eu tiver que fazer

para ter certeza de que você está feliz com o resultado deste livro. Isso é o que mais

importa.

— Essa é a outra coisa — diz ela. — Com Once, havia todo esse tempo. Eu tinha

suas anotações antes de vendermos o livro, e, tudo isso está acontecendo tão rápido,

e eu sabia que com Sharon, poderíamos fazer isso funcionar, mas, estou meio em

pânico.

— Se você quiser as minhas notas, eu vou te dar notas — eu prometo. — Nós

podemos misturá-las com as do Charlie, então você terá dois pares de olhos nele. O

que você precisar, Dusty, eu te ajudo, ok?

Ela solta um suspiro.


— Posso pensar sobre isso? Só por um ou dois dias?

— Claro — eu digo. — Sem pressa.

Se Charlie Lastra tiver que suar, não vou reclamar.

Quatro dos meus clientes decidiram ter colapsos simultâneos, sobre tudo, desde

edições de linha excessivamente zelosas a planos de marketing medíocres. Mais dois

clientes me enviaram manuscritos surpresa, poucas semanas depois que li seus

últimos livros.

Eu faço o meu melhor para honrar minha promessa a Libby, estar totalmente

presente para ela depois das cinco todos os dias, mas isso significa apenas que eu

quase não consigo respirar durante o dia de trabalho.

Por mais diferentes que sejamos, minha irmã e eu somos criaturas de hábitos e

entramos no ritmo quase imediatamente.

Ela acorda primeiro, toma banho, depois lê no deck com uma xícara fumegante

de descafeinado. Eu me levanto e corro até que mal consigo respirar, tomo um banho

escaldante e a encontro na mesa do café da manhã enquanto ela está servindo

batatas fritas ou panquecas de ricota ou quiche recheado de vegetais.

Os próximos quinze minutos são dedicados a uma descrição detalhada dos

sonhos de Libby (notoriamente macabros, perturbadores, eróticos ou todos os três).

Depois, fazemos FaceTime com Bea e Tala na casa da mãe de Brendan, durante o

qual Bea conta seus sonhos enquanto Tala corre, quase derrubando as coisas e

gritando: Olha, Nono! Eu sou um dinossauro!

De lá, eu vou para Goode Books, deixando Libby ligar para Brendan e fazer o que

ela quiser durante seu precioso tempo sozinha.

Charlie e eu trocamos gentilezas afiadas e eu pago a ele por uma xícara de café e

então me acomodo no meu lugar no café, onde me recuso a dar a ele a satisfação de

olhar em sua direção, não importa quantas vezes eu sinta seus olhos em mim.

Na terceira manhã, ele tem meu café esperando no caixa.

— Que surpresa — diz ele. — Aqui às oito e cinquenta e dois, igual a ontem e

anteontem.

Eu pego o café e ignoro a insinuação.

— Dusty vai me dar a resposta hoje à noite, a propósito — eu digo. — Um café

grátis não vai mudar nada.

Ele baixa a voz, se inclina sobre o balcão.

— Porque você está esperando um cheque gigante?

— Não — eu digo. — Pode ser um cheque de tamanho normal, só precisa de

muitos zeros.

— Quando quero alguma coisa, Nora — diz ele — não desisto facilmente.

Externamente, não sou afetada. Internamente, meu coração bate na minha

clavícula por causa de sua proximidade ou sua voz ou talvez o que ele acabou de

dizer. Meu telefone vibra com um e-mail, e eu o pego, grata pela distração. Até ver a

mensagem de Dusty: estou dentro.


Resisto à vontade de limpar a garganta e, em vez disso, encontro seus olhos com

frieza.

— Parece que você pode esquecer o cheque. Você terá páginas até o final da

semana.

Os olhos de Charlie piscam com uma empolgação viciosa..

— Não pareça tão vitorioso — eu digo. — Ela me pediu para estar envolvida em

cada passo do caminho. Suas edições passam por mim.

— Isso deveria me assustar?

— Deveria. Sou assustadora.

Ele se lança sobre a mesa, os bíceps se contraindo, a boca em um beicinho

sensual.

— Não com essa franja. Você está extremamente amigável.

Na maioria dos dias eu não vejo Libby até depois do trabalho. Às vezes eu até

volto para a cabana antes dela, e ela guarda seu tempo sozinha com tanto ciúme que

toda vez que eu pergunto como ela passou aquelas nove horas, ela me dá uma

resposta cada vez mais ridícula (drogas pesadas; tórrido caso com um vendedor de

porta a porta de aspiradores; começou a papelada para participar de um culto). Na

sexta-feira, porém, ela se junta a mim na hora do almoço com sanduíches

vegetarianos da Mug + Shot que são cerca de oitenta por cento de couve. Com a boca

cheia, ela diz:

— Este sanduíche tem um gosto excepcionalmente desconectado.

— Acabei de morder um pedaço de terra pura — eu digo.

— Sorte — diz Libby. — Ainda estou comendo couve pura.

Depois que comemos, volto ao trabalho e Libby volta seu foco para um romance

de Mhairi McFarlane, ofegando e rindo tão regularmente e alto que, finalmente, a

voz rouca de Charlie chama do outro cômodo:

— Você poderia rir ou engasgar mais baixo? Toda vez que você engasga assim,

você quase me dá um ataque cardíaco.

— Bem, suas cadeiras de café estão me dando hemorroidas, então eu diria que

estamos quites — Libby responde.

Um minuto depois, Charlie aparece e empurra duas almofadas de veludo para

nós.

— Vossas majestades — diz ele, fazendo uma careta/beicinho antes de retornar

ao seu posto.

Os olhos de Libby se iluminam e ela se inclina para sussurrar para mim.

— Ele acabou de nos trazer travesseiros de bunda?

— Eu acredito que ele trouxe — eu concordo.

— O Conde von Lastra tem um coração batendo — diz ela.

— Eu posso ouvir vocês — ele chama.

— Os mortos-vivos têm sentidos notoriamente aguçados — digo a Libby.


Ao longo da semana, os anéis ao redor dos olhos de Libby desapareceram, sua

cor voltou e as bochechas incharam tão rapidamente que parece que aqueles meses

tensos foram um sonho.

Em contraste direto, todos os dias as olheiras ao redor dos olhos de Charlie

escurecem. Eu acho que ele está tendo problemas para dormir também, eu ainda

tento adormecer em nosso chalé completamente silencioso e escuro antes das três

da manhã, e na maioria das noites, pelo menos uma vez, eu acordo assustada,

coração acelerado e pele fria.

Precisamente às cinco, fecho meu laptop, Libby guarda seu livro e saímos.

Minhas preocupações sobre Sunshine Falls decepcioná-la em grande parte não

deram em nada. Libby está mais ou menos satisfeita em passear, entrando em lojas

de antiguidades mofadas ou parando para assistir a uma aula de kickboxing

impressionantemente brutal para idosos na praça da cidade.

De vez em quando passamos por um cartaz proclamando ser o local de uma cena

crucial de Once. Não importa que três prédios separados afirmem ser o local do

boticário, incluindo um espaço vazio cujas janelas estão cobertas de cartazes que

dizem: ALUGUE O BOTICÁRIO DO LIVRO DO MOMENTO ONCE IN LIFETIME!

LOCALIZAÇÃO SUPIMPA!

— Eu não ouço ninguém dizer supimpa desde os anos oitenta — diz Libby.

— Você não estava viva nos anos oitenta — eu aponto.

— Precisamente.

De volta ao chalé, ela prepara um grande jantar: milho doce, maionese de batata

com cebolinha crocante, uma salada coberta com melancia raspada e gergelim

torrado e hambúrgueres de tempeh grelhados em pães de brioche, com fatias

grossas de tomate e cebola roxa, tudo coberto com abacate.

Eu corto tudo o que ela me manda, então a vejo recortar a seu gosto. É uma

estranha inversão, ver as coisas que minha irmãzinha domina e que eu nunca

consegui. Isso me deixa orgulhosa, mas também meio triste. Talvez seja assim que

os pais se sentem quando seus filhos crescem, como se algum pedaço deles se

tornasse fundamentalmente irreconhecível.

— Lembra quando você ia ser um chef? — Eu pergunto uma noite enquanto estou

cortando manjericão e tomate para uma pizza que ela está fazendo.

Ela dá um hm evasivo que poderia significar “é claro” tão facilmente quanto “não

lembro”.

Ela sempre foi tão inteligente, tão criativa. Ela poderia ter feito qualquer coisa, e

eu sei que ela adora ser mãe, mas também posso entender por que ela precisava

tanto disso, da chance de ser uma pessoa solitária antes de ter um recém-nascido

grudado no seu quadril novamente.

Como todas as noites até agora, jantamos no deck e, depois que lavei a louça e

guardei tudo, vasculhamos o baú cheio de jogos de tabuleiro e jogamos dominó no

deck, os fios de globos de luz nossa única iluminação.

Um pouco depois das dez, Libby vai para a cama, e eu volto para a mesa da

cozinha para pesquisar as listas de apartamentos online. Logo eu tenho que encarar

o fato da internet instável e desistir, mas eu não estou nem perto de cansada, então


eu enfio meus pés nos Crocs de Libby e saio para o campo na frente do chalé. O luar

e as estrelas são brilhantes o suficiente para deixar a grama prateada, e a umidade

mantém o calor do dia próximo, o cheiro doce de gramado no ar.

Sentir-se tão sozinha é enervante, da mesma forma que olhar para o oceano à

noite ou ver nuvens de trovoada se formarem. Em Nova York, é impossível escapar

da sensação de ser uma pessoa entre milhões, como se todos fossem terminações

nervosas em um vasto organismo. Aqui, é fácil se sentir a última pessoa na terra.

Por volta da uma hora, vou para cama e olho para o teto por uma hora ou mais

antes de adormecer.

No sábado de manhã, seguimos nossa programação habitual, mas quando entro

na livraria, fico sem jeito.

— Olá! — A pequena mulher atrás do caixa sorri enquanto se levanta, os aromas

de jasmim e maconha exalando dela. — Posso ajudar?

Ela parece uma mulher que passou a vida do lado de fora, sua pele oliva

permanentemente sardenta, as mangas de sua camisa jeans enroladas em seus

delicados antebraços. Ela tem cabelos grossos e escuros que caem até os ombros;

um rosto bonito e redondo; e olhos escuros que enrugam nos cantos para acomodar

seu sorriso. O vinco abaixo do lábio é o que entrega.

Sally Goode, a proprietária do nosso chalé. A mãe de Charlie.

— Hum — eu digo, esperando que meu sorriso seja natural. Odeio quando tenho

que pensar no que meu rosto está fazendo, especialmente porque nunca estou

convencida de que está traduzindo. Eu não estava planejando ficar muito tempo,

apenas uma hora ou mais para ler mais alguns e-mails antes de encontrar Libby para

almoçar, mas agora me sinto culpada por usar o Wi-Fi de graça.

Pego o primeiro livro que vejo, A Grande Família Marconi, um daqueles livros

destinados a serem arremessados pela minha irmã do outro lado da sala, e depois

pego por mim. Ao contrário de Libby, eu amei tanto a última página que li uma dúzia

de vezes antes de voltar para a frente.

— Só isso!

— Meu filho editou este — Sally Goode diz orgulhosamente. — É isso que ele faz,

para viver.

— Oh. — Alguém me dê um troféu de como falar em público, estou estou corando.

Falar apenas com Libby e Charlie por uma semana claramente diminuiu minha

capacidade de entrar no modo Nora profissional.

Sally diz o valor total da compra e, quando entrego meu cartão, seus olhos

deslizam sobre ele.

— Pensei que poderia ser você! Não é sempre que eu não reconheço alguém aqui.

Eu sou Sally, você vai ficar no meu chalé.

— Oh, uau, oi! — Digo, mais uma vez esperando parecer humana, criada por

outros humanos. — Prazer em conhecê-la.

— Você também… como está o lugar para você? Você quer uma sacola para o

livro?

Eu balanço minha cabeça e aceito o livro e o cartão de volta.

— Maravilhoso! Excelente.


— É, né? — ela diz. — Está na minha família há tanto tempo quanto esta loja.

Quatro gerações. Se não tivéssemos filhos, teríamos vivido lá para sempre. Muitas

lembranças felizes.

— Algum fantasma? — Eu pergunto a ela.

— Não que eu já tenha visto, mas se você encontrar algum, diga a eles que Sally

disse oi. E para não assustarem meus convidados. — Ela dá um tapinha no balcão.

— Vocês, meninas, precisam de alguma coisa no chalé? Lenha? Estacas para assar

marshmallows? Vou enviar meu filho com um pouco de madeira, só por precaução.

Oh, Deus.

— Está tudo bem.

— Ele não tem nada para fazer de qualquer maneira.

Exceto os seus dois empregos em tempo integral, um dos quais ela acabou de

mencionar.

— Não é necessário — eu insisto.

Então ela insiste, dizendo literalmente:

— Eu insisto.

— Bem — eu digo — obrigada.

Depois de alguns minutos de trabalho no café, agradeço novamente e saio para a

rua deslumbrantemente ensolarada para atravessar para a Mug + Shot.

Meu telefone dá uma vibração curta e rápida. Uma mensagem de um número

desconhecido.

Por que minha mãe está me mandando mensagens sobre o quão gostosa você é?

Isso só pode ser uma pessoa.

Estranho, eu escrevo. Acha que tem alguma coisa a ver com o fato de eu ter ido à

livraria com nada além de um casaco de couro?

Charlie responde com uma captura de tela de alguns textos entre ele e sua mãe.

A convidada do chalé é muito bonita, escreve Sally, então, separadamente, Sem

anel.

Charlie respondeu: Ah? Pensando em deixar o papai?

Ela ignorou o comentário dele e, em vez disso, disse, Alta. Você sempre gostou de

garotas altas.

Do que você está falando, Charlie escreveu de volta, sem ponto de interrogação.

Lembra-se da sua parceira na festa de formatura? Lilás Walter-Hixon? Ela era

praticamente uma gigante.

Essa foi a festa da oitava série, ele disse. Foi antes do meu surto de crescimento.

Bem, essa garota é muito bonita e alta, mas não muito alta.

Eu sufoco uma risada.

Alta, mas não muito alta, digo a Charlie, também pode ser adicionado à minha

lápide.

Ele diz, vou anotar.

Eu digo, Ela me disse que você levaria madeira para a cabana para mim.

Ele diz: Por favor, jure para mim que você não fez uma piada de “tarde demais para

isso”.


Não, mas a diretora Schroeder estava no café, e ouvi que as fofocas andam rápido

por aqui, então é apenas uma questão de tempo.

Sally vai ficar tão decepcionada com você, diz Charlie.

Comigo? E o FILHO dela, o Libertino da Rua Principal?

O navio de sua decepção comigo partiu há muito tempo. Eu teria que fazer algo

BEM mais sacana para decepcioná-la agora.

Quando ela encontrar seu estoque de livros eróticos do Pé Grande debaixo da cama

de carro de corrida, talvez o navio dê meia volta.

Do lado de fora da Mug + Shot, eu me inclino contra a janela aquecida pelo sol, as

árvores ao longo da rua farfalhando em uma brisa suave que aumenta o cheiro de

café expresso no ar.

Outra mensagem chega. Uma página do livro de Natal do Pé Grande,

apresentando um uso particularmente notório de enfeitar os corredores, bem como

uma referência a um movimento sexual chamado Yeti Voraz, que não parece sequer

possível anatomicamente.

Libby entra na minha visão periférica.

— Já terminou de usar o Wi-Fi?

— Totalmente desconectada — eu respondo. — Você já ouviu falar do Yeti Voraz?

— Isso é um livro infantil?

— Claro.

— Vou ter que pesquisar.

Meu telefone vibra com outra mensagem: Acho o Yeti Voraz altamente

implausível.

Encontro-me sorrindo, possivelmente com facas. Tão decepcionante. Realmente

tira o leitor de uma obra de realismo impressionante.


EU ME SENTO, ofegante, com frio, em pânico.

Libby.

Onde está Libby?

Meus olhos ziguezagueiam pelo quarto, procurando por algo que o ancore. Os

primeiros raios de sol entrando por uma janela. O som de panelas e frigideiras

batendo. O cheiro de café passando pela porta.

Estou no chalé.

Está bem. Ela está aqui. Ela está bem.

Em casa, quando estou ansiosa, eu pedalo. Quando preciso de um impulso de

energia, eu pedalo. Quando eu preciso me nocautear, eu pedalo. Quando não consigo

me concentrar, eu pedalo.

Aqui, correr é minha única opção.

Eu me visto silenciosamente, calço meus tênis enlameados e desço as escadas

para fugir para a manhã fria. Estremeço enquanto atravesso o campo enevoado,

acelerando o passo na floresta.

Salto sobre uma raiz retorcida e depois trovo pela passarela que forma um arco

sobre o riacho.

Minha garganta começa a queimar, mas o medo ainda está me perseguindo.

Talvez seja estar aqui, me sentindo tão longe da mamãe, ou talvez seja passar tanto

tempo com Libby, mas algo está me trazendo de volta para todas aquelas coisas que

eu tento não pensar.

Parece que há veneno dentro de mim. Não importa o quanto eu corra, não consigo

queimar. Pela primeira vez, eu gostaria de poder chorar, mas não posso. Não choro

desde a manhã do funeral.

Eu acelero o meu ritmo.

— Eu o encontrei! — Libby grita, correndo para o banheiro enquanto eu estou

tentando convencer minha franja à submissão, contra os desejos expressos da

umidade implacável.

Ela empurra o telefone para mim, e eu olho para uma foto de um homem atraente

com cabelo curto chocolate e olhos cinzentos. Ele está vestindo um colete sobre uma

camisa xadrez e olhando para um lago enevoado. Sobre a foto dele está BLAKE, 36.


— Libby! — Eu grito, a realização surgindo. — Por que diabos você está em um

aplicativo de namoro?

— Eu não estou — diz ela. — Você está.

— Eu definitivamente não estou — eu digo.

— Eu fiz uma conta para você — diz ela. — É um novo aplicativo. Muito

casamenteiro. Quero dizer, chama-se Matrimônio Até Eternidade.

— MAE? — Eu digo. — A sigla do aplicativo é MAE? Às vezes me preocupo com a

grave falta de sinais de alerta em seu cérebro, Libby.

— Blake é um pescador ávido que não tem certeza se quer ter filhos — diz ela. —

Ele é professor e uma coruja noturna, como você, e extremamente ativo fisicamente.

Pego o telefone e leio por mim mesma.

— Libby. Diz aqui que ele está procurando uma mulher prática que não se

importe de passar os sábados torcendo pelos Tar Heels.

— Você não precisa de alguém exatamente como você, mana — Libby diz

gentilmente. — Você precisa de alguém que te valorize. Quero dizer, você

obviamente não precisa de ninguém, ponto final, mas você merece alguém que

entenda o quão especial você é! Ou pelo menos alguém que possa lhe dar uma noite

descontraída.

Ela está olhando para mim agora com aquele olhar esperançoso de Libby. Está a

meio caminho entre a expressão de um gato que deixou cair um rato aos pés de uma

pessoa e a de uma criança entregando um desenho do Dia das Mães, alegremente

inconsciente de que o “chapéu de neve” da mamãe se parece apenas e exatamente

com um pênis gigante.

Blake é o chapéu do pênis neste cenário.

— Não poderíamos apenas ter uma noite descontraída juntas? — Eu pergunto.

Ela desvia o olhar com uma careta de desculpas.

— Blake já acha que vai encontrar você no Vovô Cócoras para a noite de karaokê.

— Quase todas as partes dessa frase são preocupantes.

Ela murcha.

— Eu pensei que você queria mudar as coisas, não ser tão…

Nadine Winters, diz uma voz em minha mente. Levo um segundo para reconhecêlo

como o timbre rouco e provocador de Charlie. Suprimo um gemido de resignação.

É uma noite, e Libby teve muito trabalho para fazer esse presente muito estranho.

— Acho que eu deveria pesquisar no Google o que é um Tar Heel de antemão —

eu digo.

Um sorriso se abre em seu rosto. Se o sorriso de mamãe era primavera, o de Libby

é pleno verão. Ela diz:

— De jeito nenhum. Isso é o que chamamos de início de conversa.

Libby (agindo como eu) não disse a Blake onde estávamos hospedadas, e em vez

disso sugeriu que eu (secretamente nós) o encontrasse no Vovô Cócoras por volta

das sete. Em seu vestido esvoaçante com o cabelo perfeitamente despenteado e gloss

rosa nos lábios, você pensaria que ela tinha algo melhor para fazer do que tomar um


refrigerante de limão enquanto me observava do outro lado do bar, mas ela parece

perfeitamente empolgada com a noite desapontamento pela frente.

Normalmente, eu chegaria a um encontro mais cedo, mas estamos operando na

linha do tempo de Libby e, portanto, chegamos dez minutos atrasadas. Do lado de

fora das portas da frente, ela me para pelo cotovelo.

— Devemos entrar separadamente. Então ele não sabe que estamos juntos.

— Certo — eu digo. — Isso tornará mais fácil nocauteá-lo e esvaziar seus bolsos.

Qual deve ser o nosso sinal?

Ela revira os olhos.

— Eu vou entrar primeiro. Vou examiná-lo e ter certeza de que ele não está

carregando uma espada, ou vestindo um colete listrado, ou fazendo show de mágica

para estranhos.

— Basicamente que ele não é nenhum dos quatro cavaleiros do apocalipse.

— Vou mandar uma mensagem quando for seguro entrar.

Quarenta segundos depois que ela desliza para dentro, ela me envia um sinal de

positivo, e eu a sigo.

É mais quente no Vovô Cócoras do que do lado de fora, provavelmente porque

está lotado.

A multidão está bêbada cantando “Sweet Home Alabama” ao redor e no palco de

karaokê no fundo da sala, e todo o lugar cheira a suor e cerveja derramada.

Blake, 36, está sentado na primeira mesa, de frente para a porta com as mãos

cruzadas como se estivesse aqui com Ruth do RH para me demitir.

— Blake? — Estendo a mão.

— Nora? — Ele não se levanta.

— Sim.

— Você parece diferente da sua foto — ele responde.

— Corte de cabelo — eu digo, tomando meu assento, mão sem ser apertada.

— Você não disse o quão alta você era em seu perfil — diz ele.

Isto vindo de um homem que informou que tinha um metro e oitenta e dois, mas

não pode ser mais alto do que 1,70 a menos que esteja usando pernas de pau debaixo

desta mesa.

Então, pelo menos ir em encontros em Sunshine Falls é exatamente o mesmo que

em Nova York.

— Não me ocorreu que isso importaria.

— Qual a sua altura? — Blake pergunta.

— Hum — eu paro, esperando que isso lhe dê tempo para repensar sua estratégia

de primeiro encontro. Sem sorte. — 1,80m.

— Você é modelo? — Ele diz isso com esperança, como se a resposta certa

pudesse desculpar uma infinidade de pecados relacionados à altura.

Há, é claro, o equívoco de que homens heterossexuais amam mulheres altas e

magras. Sendo este tipo mulher, posso desmascarar isso.

Muitos homens são muito inseguros para namorar uma mulher alta. Muitos dos

que não são, são idiotas à procura de um troféu. Tem mais a ver com o status do que

com a atração. O que só é eficaz se a pessoa alta for modelo. Se você está namorando


alguém mais alto que você e ela é modelo, então você deve ser gostoso e

interessante. Se você está namorando alguém mais alto que você e ela é uma agente

literária, deixe as piadas sobre ela usar suas bolas em um colar de prata.

Pelo lado positivo, pelo menos Blake, 36, não está perguntando sobre…

— Quanto você calça? — Seu rosto está comprimido como se estivesse com dor.

Eu também, Blake. Eu também.

— O que você está bebendo? — Eu digo. — Álcool? Álcool soa ótimo.

A garçonete se aproxima e, antes que ela possa dizer uma palavra, digo:

— Dois martinis de gin bem grandes, por favor. — Ela deve ver os sinais

familiares de sofrimento do primeiro encontro em mim, porque ela pula seu

discurso de boas-vindas, acena com a cabeça e praticamente corre para preparar

nosso pedido.

— Eu não bebo — diz Blake.

— Não se preocupe — eu digo — eu vou beber o seu.

De volta às mesas de sinuca, Libby sorri e mostra dois joinhas.


VOCÊ ACHARIA QUE ele estaria com pressa de chamar essa coisa do que é: algo

que foi por água abaixo.

Mas Blake não é um usuário casual do MAE. Ele está à espreita de uma esposa, e

apesar da minha estatura enorme, pés gigantes e indulgência com gim, ele não está

disposto a me deixar ir até que ele tenha esclarecido individualmente que eu não sei

como fazer nenhuma de suas comidas favoritas.

— Eu realmente não cozinho — eu digo, quando terminamos com os petiscos do

Super Bowl e passamos para vários peixes fritos.

— Nem mesmo tilápia? — ele diz.

Eu balanço minha cabeça.

— Salmão? — ele pergunta.

— Não.

— Dourado?

— Tipo a cor? — Eu digo.

Ele pausa brevemente o inquérito quando as portas da frente se abrem e Charlie

Lastra entra. Eu luto contra a vontade de afundar na minha cadeira e me esconder

atrás do cardápio, mas isso não importaria. No segundo em que uma pessoa entra

por aquelas portas, ela fica cara a cara com a nossa mesa, e os olhos de Charlie saltam

direto para mim, sua expressão dando um salto mortal de surpresa para algo como

desgosto e então alegria perversa.

É realmente como assistir a uma tempestade se formando em um vídeo de timelapse,

culminando na explosão de um relâmpago.

Ele acena para mim antes de seguir em direção ao bar, e Blake retoma sua lista

de peixes. Só assim, perco mais quinze minutos da minha vida.

Blake era bonito em suas fotos, mas eu realmente acho esse homem abominável.

Dou um tapinha na mesa e me levanto.

— Você quer alguma coisa do bar?

— Eu não bebo — ele me lembra, parecendo terrivelmente impaciente para um

homem que ouviu a frase eu não cozinho dezessete vezes nos últimos trinta minutos

sem causar uma impressão duradoura.

Na verdade, não posso pedir outra bebida. Um terceiro coquetel e eu

provavelmente faria Blake ficar de costas para mim enquanto nossa garçonete nos

media. Ou talvez eu realmente o nocauteasse e roubasse sua carteira.


De qualquer forma, estou em uma missão para encontrar Libby em vez de beber,

mas este lugar está lotado. Eu me encosto no bar e pego meu telefone para encontrar

não uma, mas duas ligações perdidas de Dusty, junto com uma mensagem de texto

pedindo desculpas por ligar tão tarde. Disparo uma resposta perguntando se ela está

bem e se posso ligar de volta em vinte minutos, depois digito uma mensagem para

Libby: ONDE VOCÊ ESTÁ? Quando pressiono enviar, fico na ponta dos pés para

escanear a multidão.

— Se você está procurando por sua dignidade — alguém diz em meio ao barulho

da conversa (e as garotas gritando “Like a Virgin” no fundo da sala) — você não vai

encontrar aqui.

Charlie está sentado no canto do bar com uma garrafa reluzente de Coors.

— O que há de tão indigno na noite de karaokê? — Eu pergunto. — Quero dizer,

você está aqui.

Alguém se interpõe entre nós para fazer o pedido. Charlie se inclina atrás dela

para continuar a conversa, e eu também.

— Sim, mas não estou aqui com Blake Carlisle.

Olho por cima do ombro. Blake está olhando ansiosamente para uma morena que

parece ter cerca de um metro e sessenta.

— Cresceram juntos? — Eu chuto.

— Pouquíssimas pessoas que nascem aqui escapam — diz ele sabiamente.

— O Departamento de Turismo de Sunshine Falls sabe sobre você? — Eu

pergunto.

A mulher que está entre nós claramente não tem planos de sair, mas continuamos

conversando ao redor dela, inclinando-nos na frente e depois atrás dela,

dependendo de sua postura.

— Não, mas tenho certeza que eles vão querer um endosso de você uma vez que

você tenha feito sua caminhada da vergonha da casa de Blake. Tenho certeza de que

ele tem um banheiro acarpetado.

— Azar o seu, porque eu não durmo no apartamento de um homem há dez anos.

Os olhos de Charlie brilham, outro raio atinge as nuvens escuras de seu rosto.

— Estou desesperado por mais informações.

— Tenho uma rotina intensa de cuidados noturnos com a pele. Não gosto de

sentir falta disso, e nem tudo cabe em uma bolsa. — Minha mãe costumava dizer:

Você não pode controlar a passagem do tempo, mas pode suavizar o golpe em seu

rosto.

Sua cabeça inclina para um lado enquanto ele considera minha meia-verdade de

uma resposta.

— Então, como você acabou aqui com Blake? Jogou um dardo em uma lista

telefônica?

— Você já ouviu falar do MAE?

— Aquela mulher que trabalha na livraria? — Charlie impassível. — Acho que

sim. Por quê?


— O aplicativo de namoro. — Eu bato no bar quando a realização me atinge. —

Você acha que é por isso que eles o chamaram assim? Então você poderia dizeer:

mamãe armou para mim?

Charlie se recusa.

— Eu nunca sairia com alguém com quem Sally me arranjou.

— Sua mãe me acha linda — eu o lembro.

— Estou ciente — diz ele.

— Acho que já estabelecemos que você não namoraria comigo — digo.

Sua sobrancelha levanta, puxando um canto de sua boca.

— Ah, vamos fazer isso agora? — Ele não consegue esconder um sorriso

malicioso atrás de sua garrafa de cerveja. Enquanto ele bebe, o vinco sob seu lábio

se aprofunda, e minhas entranhas começam a ferver.

— Fazer o que?

— A coisa em que fingimos que rejeitei você.

— Você exatamente me rejeitou — eu digo.

— Você disse “espera” — ele desafia.

— Sim, e você aparentemente ouviu “eu vou dar um chute no seu pau”.

— Você disse que foi um erro — diz ele. — Com fervor.

— Você disse primeiro! — Eu digo.

Ele bufa.

— Nós dois sabemos — a mulher entre nós finalmente saiu, e Charlie desliza em

seu assento abandonado — que tudo o que era para você era um item completo da

sua lista extremamente deprimente, e esse não é um jogo que eu estou interessado

em jogar, Nora.

— Oh, por favor. Você nem se qualifica para a lista. Você é a pessoa mais “da

cidade” possível. — Imediatamente me arrependo de dizer isso. Eu poderia ter

fingido que o beijo foi calculado; agora ele sabe que eu só queria.

A forma como sua garrafa de cerveja pausa contra seus lábios entreabertos, como

se eu o tivesse pego desprevenido, quase faz valer a pena. Seja qual for o jogo que

estamos jogando, ganhei mais uma rodada: o prêmio é sua expressão envergonhada.

Ele abaixa a garrafa, coça a sobrancelha.

— Eu vou deixar você voltar para o seu encontro.

Eu verifico meu telefone. Libby respondeu: Indo para casa. Eu não vou esperar

por você. Ela teve a audácia de incluir um rosto piscando.

Eu olho para cima, e Charlie está me observando.

— Existe uma maneira de sair daqui — eu pergunto — sem o Blake me ver?

Ele me estuda por um instante e diz secamente

— Nora Stephens, MAE não vai ficar feliz com você. — Então ele estende a mão.

— Porta dos fundos.

Charlie me puxa para longe da multidão e para trás do bar, e passamos por uma

porta estreita para a cozinha, apenas para sermos imediatamente interrompidos.


— Ei! Vocês não podem… — a bonita garçonete grita, jogando os braços para os

lados. Ela olha para Charlie e cora. De alguma forma, isso a torna ainda mais bonita.

— Amaya — diz Charlie. Ele ficou um pouco mais rígido, como se tivesse acabado

de lembrar que tem um corpo e cada músculo dele se contraiu por reflexo.

Eu estive pensando no sorriso de Amaya, e seu tom com Charlie, como sedutor,

mas isso foi antes de eu conhecer sua história. Agora, quando aquele sorriso aparece,

eu analiso sombras de mágoa e hesitação, um tênue raio de esperança brilhando

através de tudo.

Charlie limpa a garganta, seus dedos se contorcendo ao redor dos meus. O olhar

de Amaya estremece em direção ao movimento, e assim, meu rosto está pegando

fogo também.

— Precisamos usar a porta dos fundos — diz Charlie, pedindo desculpas. — Blake

Carlisle acha que está em um encontro com essa mulher.

Seus olhos piscam entre nós novamente. Depois de um momento ponderando

suas opções, ela suspira e se afasta.

— Só desta vez. Nós realmente não devemos deixar ninguém andar por aqui.

— Obrigado. — Ele acena com a cabeça, mas não se move por um segundo.

Provavelmente muito atordoada pelo retorno de seu sorriso brilhante, esperançoso,

que diz “eu ainda te amo”. — Obrigado — diz ele novamente, e lidera o caminho pela

porta. Lá fora, no beco, o ar parece frio e seco, e com a súbita onda de oxigênio no

meu cérebro, eu me lembro de puxar minha mão da dele.

— Bem, isso foi estranho.

— O que?

Eu lhe dei uma olhada.

— Sua amante abandonada e sua visão de raio-X.

— Ela não foi abandonada. E até onde eu sei, ela não tem superpoderes.

— Bem, talvez ela não tenha sido abandonada — eu digo — mas ela está

traumatizada.

— Você está mal-informada — diz ele.

— Você está sendo burro — eu digo.

— Confie em mim — diz ele, levando-me para a rua transversal. — A forma como

as coisas terminaram não deixou espaço para alguém ter traumas.

— Ela parecia atormentada, Charlie.

— Ela ouviu o nome de Blake Carlisle — ele responde. — De que outra forma ela

deveria estar?

— Então Blake tem uma reputação.

— É uma cidade pequena — diz Charlie. — Todo mundo tem uma reputação.

— Qual é a sua?

Seu olhar corta em minha direção, levantando a sobrancelha e os músculos da

mandíbula saltando.

— Provavelmente o que você pensa que é.

Eu desvio o olhar antes que aqueles olhos possam me engolir inteira.


Algumas pessoas estão fumando na frente do Vovô Cócoras, outras duas se

arrastando em direção a um restaurante italiano de tijolos vermelhos coberto de

hera, o Giacomo's. Até agora não o vi aberto.

Hoje à noite, as janelas estão brilhando, os toldos brilhando, garçons em camisas

brancas e gravatas pretas zunindo para frente e para trás com bandejas de taças de

vinho e massas.

Eu inclino meu queixo em direção ao de Giacomo.

— Achei que aquele lugar estava fechado.

— Só abre nas noites de sábado e domingo — diz Charlie. — O casal que o

administra se aposentou há muito tempo, mas todos os convenceram a manter as

coisas no fim de semana.

— Você quer dizer que toda a cidade se uniu para salvar um estabelecimento

amado? — eu cutuco. — Exatamente como em um livro?

— Claro — ele diz calmamente — ou eles apareceram com forquilhas e exigiram

seu cacio e pepe semanal.

— É bom? — Eu pergunto.

— Na verdade, é muito bom. — Ele hesita por um momento. — Está com fome?

Meu estômago ronca, e sua boca se contrai.

— Você gostaria de jantar comigo, Nora? — Ele interrompe minha resposta com

— Como colegas. Aqueles que não podem cumprir as listas de verificação uns dos

outros.

— Eu não sabia que você tinha uma lista de verificação — eu digo.

— Claro que tenho uma lista de verificação. — Seus olhos brilham no escuro. —

O que eu sou, um animal?


— OLHA SÓ, SE NÃO é o jovem Charles Lastra! — Uma senhora com um coque

grisalho no alto da cabeça e um vestido cujo a gola chega até o queixo vem em nossa

direção. — E você trouxe uma acompanhante! Que adorável!

Seus olhos castanhos brilham quando ela dá um aperto no braço de Charlie e

outro no meu.

Ele parece absolutamente adorável, pelos padrões do Charlie. Mesmo Amaya não

conseguiu esse sorriso.

— Como vai, Sra. Struthers?

Ela estende as mãos, apontando para a movimentada sala de jantar.

— Não posso reclamar. Apenas vocês dois?

Quando ele acena com a cabeça, ela nos leva para uma mesa coberta por uma

toalha branco dobrada contra uma janela forrada com velas pingando cera em

garrafas de vinho embrulhadas em vime.

— Vocês dois aproveitem. — Ela bate na mesa com uma piscadela, depois volta

para o balcão da recepção.

O cheiro de pão fresco é forte e inebriante e, em trinta segundos, uma garrafa de

vinho tinto aparece na mesa.

— Oh, nós não pedimos isso — digo ao garçom, mas ele inclina a cabeça na

direção da Sra. Struthers e sai correndo.

Charlie ergue os olhos da taça de vinho que está servindo para mim.

— Ela é a proprietária. Também minha ex-professora substituta favorita. Me deu

um livro de Octavia Butler que mudou minha vida.

Meu coração dá uma estranha vibração com o pensamento. Eu levanto meu

queixo em direção ao vinho.

— Você tem que beber tudo isso. Já bebi dois drinques e sou um peso-leve.

— Ah, eu me lembro — ele brinca, deslizando minha taça na minha direção —

mas isso é vinho. É o suco de uva do álcool.

Eu me inclino sobre a mesa, pegando a garrafa e derrubando-a sobre seu copo até

que esteja cheio até a borda. Tão inexpressivo como sempre, ele se curva e sorve o

copo sem levantá-lo.

Eu caio na gargalhada contra a minha vontade, e ele está tão visivelmente

satisfeito que me dá uma pontada de orgulho de corpo inteiro. Ele quer me fazer rir.

— Então, o quão mal eu deveria me sentir — eu pergunto — sobre abandonar

Blake?


Charlie se recosta em sua cadeira, suas pernas esticadas, roçando as minhas.

— Bem — ele diz — quando estávamos no ensino médio, ele costumava tirar

meus livros do meu armário da academia e colocá-los no tanque do vaso sanitário,

então talvez três de dez?

— Ah não. — Eu tento abafar uma risadinha, mas estou feliz, cheia de adrenalina

da minha fuga.

— Quantos encontros faltam? — ele pergunta. — Na sua lista de férias de

arruinar vidas?

— Depende. — Eu tomo um gole. — Quantos mais valentões do ensino médio

você teve?

Sua risada é baixa e rouca. Isso me faz pensar no som satisfatório de uma raquete

de tênis oferecendo um retorno perfeito.

Sua voz, sua risada, tem uma textura; ela raspa. Tomo outro gole de vinho para

entorpecer o pensamento, depois volto para a respirar.

— Isso significa que você quer namorar meus valentões, ou humilhá-los? — Ele

pega um pouco de pão da cesta sobre a mesa, arranca um pedaço e o coloca entre os

lábios.

Desvio o olhar enquanto o calor sobe pelo meu pescoço.

— Isso depende se eles perguntam o tamanho dos meus pés nos primeiros cinco

minutos do encontro.

Charlie se engasga com o pão.

— Era, tipo, um fetiche ou algo assim?

— Acho que foi mais algo como “Uau, você teve que cair em um poço de lixo

radioativo para ficar tão alta?”

— Blake nunca teve o senso mais seguro de si mesmo — Charlie reflete.

Somos interrompidos por um garçom adolescente com um infeliz corte de cabelo

no estilo tigela anotando nosso pedido, duas saladas de queijo de cabra e cacio e

pepes.

Assim que ele está fora do alcance da voz, eu digo

— Libby escolheu Blake. Ela está mexendo no aplicativo para mim.

— Claro. — Suas sobrancelhas se erguem apreensivamente. — MAE.

— Dois encontros na lista. Blake é o primeiro.

Os olhos de Charlie fazem uma alusão entediada a um revirar de olhos.

— Poupe o problema e use esse como número dois.

— Eu já te disse. Você não conta.

— As palavras que todo homem sonha em ouvir.

— Considere-se o suco de uva dos encontros.

— Então o número cinco é ir a dois encontros de merda com homens que você

nunca poderia gostar, em uma cidade em que você não suportaria viver — diz

Charlie. — Qual é o número seis mesmo? Lobotomia voluntária?

Eu deslizo sua taça de vinho quase cheia em direção a ele.

— Ainda estou esperando seus segredos, Lastra.

Ele empurra o copo de volta para o meio da mesa.


— Você já sabe o meu. Eu sou o filho pródigo não convidado, aqui para

administrar uma livraria que está morrendo rapidamente enquanto meu pai está

ocupado com fisioterapia e minha mãe está tentando impedi-lo de subir no telhado

para limpar as calhas.

— Isso é… muita coisa — eu digo.

— Está bem. — Seu tom deixa claro que a frase termina com um ponto.

— E Loggia tem sido boa em deixar você trabalhar remotamente — eu digo.

— Por enquanto. — Quando seu olhar encontra o meu, é surpreendentemente

escuro. Parece que eu tropecei na beira de algo perigoso. E pior, como se eu estivesse

presa lá em mel viscoso, incapaz de me afastar da borda.

— Agora, o que Libby tem contra você que fez você sair com Blake? — Charlie

pergunta. — Você vendeu segredos de estado? Cometeu um assassinato?

— E aqui eu pensei que você tinha uma irmã mais nova.

Ele relaxa na cadeira.

— Carina. Ela tem vinte e dois anos.

Mesmo que eu tenha conhecido a mãe dele, é difícil imaginar Charlie com uma

família. Ele parece tão… independente. Então, novamente, isso é provavelmente o

que as pessoas dizem sobre mim.

— E Carina não pode obrigá-lo a fazer algo simplesmente pedindo? — Eu digo.

Ou esquivando-se de você por meses, guardando segredos e sempre olhando como

se ela tivesse acabado de se soltar depois de ser arrastada por um trem.

Charlie hesita.

— É por isso que eu estou aqui.

Eu me inclino sobre a mesa, sua borda cavando em minhas costelas. Eu tenho

aquela sensação de ler um romance de mistério, sabendo que uma revelação está

chegando e lutando contra o desejo de pular adiante.

— Ela estava planejando voltar e administrar a livraria depois da faculdade —

diz ele. — Então ela decidiu no último minuto ficar na Itália por um tempo. Florença.

Ela é uma pintora.

— Uau — eu digo. — As pessoas realmente fazem isso? Mudar para a Itália para

pintar?

Charlie franze a testa,gira seu copo de água no lugar, então reajusta seus talheres

em uma fileira arrumada. É gratificante assistir; parece que alguém coça o ponto

bem entre minhas omoplatas.

— As mulheres da minha família sim. Minha mãe também foi lá para pintar por

algumas semanas quando ela tinha vinte anos e acabou ficando por um ano.

— O espírito livre caprichoso trazendo magia para a vida de todos — eu digo. —

Eu estou familiarizada com essa trope.

— Algumas pessoas chamam isso de mágica — diz ele. — Prefiro pensar nisso

como “urticária de estresse violento”. Carina estava morando em um Airbnb de

propriedade de um verdadeiro traficante de drogas até que eu aluguei outro lugar

para ela.

Eu estremeço.

— Isso é exatamente a Libby em um universo paralelo.


— Irmãzinhas — diz ele, a torção de sua boca aprofundando o vinco abaixo de

seu lábio inferior.

Eu o encaro por um tempo muito longo. Meu cérebro luta para continuar na

conversa.

— E o seu pai? Como ele é?

Ele inclina a cabeça para trás.

— Tranquilo. Forte. Um empreiteiro de uma cidade pequena que arrebatou

minha mãe tão completamente que ela decidiu criar raízes.

Ao meu olhar de auto-satisfação, ele se inclina para frente, combinando com

minha postura.

— Tudo bem, sim, eles são a típica história de amor de uma cidade pequena —

ele admite, os olhos brilhando enquanto nossos joelhos se pressionam. Debaixo da

mesa estamos jogando um teste de coragem: quem vai se afastar primeiro?

Os segundos se estendem, grossos e pesados como melaço, mas permanecemos

onde estamos, unidos pelo desafio.

— Tudo bem, Stephens — ele diz finalmente. — Vamos ouvir sobre sua família.

Onde exatamente eles se enquadram em seu catálogo de caricaturas

bidimensionais?

— Fácil — eu digo. — Libby é a caótica e charmosa heroína das comédias

românticas dos anos 90 que está sempre atrasada e é levada pelo vento de um jeito

fofo e sexy. Meu pai é o pai caloteiro e ausente que “não estava pronto para ter

filhos”, mas agora, de acordo com um investigador particular pago, leva seus três

filhos e esposa para um passeio em seu barco no Lago Erie todo fim de semana.

— E a sua mãe? — ele pergunta.

— Minha mãe… — Eu reorganizo meus próprios talheres, como se fossem

palavras na minha próxima frase. — Ela era mágica. — Eu encontro seus olhos,

esperando um sorriso de escárnio, mas em vez disso encontro apenas uma pequena

ruga em suas sobrancelhas. — Ela era a atriz esforçada que perseguiu seus sonhos

para Nova York. Nós nunca tivemos dinheiro, mas de alguma forma, ela tornou tudo

divertido. Ela era minha melhor amiga. Quero dizer, não apenas quando ficamos

mais velhas. Desde que me lembro, ela nos levava com ela para todos os lugares. E

você sabe, para muitas pessoas que se mudam para a cidade, ela perde o brilho em

alguns anos? Mas com mamãe, era como se todo dia fosse o primeiro.

“Ela se sentiu tão sortuda por estar lá. E todos se apaixonaram por ela. Ela era tão

romântica. É daí que Libby tira isso. Ela começou a ler os romances antigos da

mamãe muito jovem.”

— Você era próxima dela — diz Charlie calmamente, a meio caminho entre

observação e pergunta. — Sua mãe?

Eu concordo.

— Ela apenas melhorava as coisas. — Ainda posso sentir seu cheiro de limão e

lavanda, sentir seus braços em volta de mim, ouvir sua voz... Deixe sair, docinho.

Apenas um olhar e essas três palavras, e tudo se derramaria. Faço o meu melhor por

Libby, mas nunca tive esse tipo de ternura que ultrapassa as defesas.


Quando eu olho para cima, Charlie não está mais me observando, mas me lendo,

seus olhos viajando para frente e para trás sobre o meu rosto como se ele pudesse

traduzir cada linha e sombra em palavras. Como se ele pudesse me ver lutando por

uma sequência.

Ele limpa a garganta e me dá uma confissão.

— Li alguns romances quando criança.

Meu alívio com a mudança de assunto rapidamente se transforma em outra coisa,

e Charlie ri.

— Você não poderia parecer mais malvada agora, Stephens.

— Este é o meu rosto encantado — eu digo. — Eles te ensinaram alguma coisa

útil?

Ele murmura

— Eu nunca poderia compartilhar essa informação com uma amiga.

Eu reviro os olhos.

— Então isso seria um não.

— Foi assim que você começou a gostar de livros? O amor da sua mãe por

romances?

Eu balanço minha cabeça.

— Para mim, foi uma loja. Freeman Books.

Charlie assente.

— Eu conheço.

— Nós vivíamos em cima dela — eu explico. — Sra. Freeman costumava fazer

todos esses programas, coisas que eram gratuitas com a compra de um livro, e isso

tornava mais fácil para nossa mãe justificar o gasto. Eu nunca fiquei estressada lá,

sabe? Eu esquecia de tudo. Parecia que eu poderia ir a qualquer lugar, fazer qualquer

coisa.

— Uma boa livraria — diz Charlie — é como um aeroporto onde você não precisa

tirar os sapatos.

— Na verdade — eu digo — não é recomendado.

— Às vezes acho que a Goode Books poderia usar uma placa sobre isso — ele

responde. — É a razão pela qual eu nunca digo aos clientes para se sentirem em casa.

— Certo, porque então os sapatos e sutiãs voam, e Marvin Gaye começa a tocar

no volume máximo.

— Para cada núcleo de informação que você oferece, Stephens — diz ele — há

uma centena de novas perguntas. E ainda não sei como você entrou no ramo de

agente.

— Sra. Freeman fez esses cartões de palestrantes para nós preenchermos —

explico. — Recomendados dos amantes de livros, diziam… era assim que ela nos

chamava, seus pequenos amantes de livros. Então, acho que comecei a pensar nos

livros de forma mais crítica.

A fenda sob seu lábio se transforma em uma fenda definitiva.

— Então você começou a deixar comentários contundentes?

— Fiquei super mesquinha com minhas recomendações — respondo. — E então

comecei a mudar as coisas enquanto lia; consertando finais se Libby não gostasse de


como eles se desenrolaram, ou se todos os personagens principais fossem meninos,

eu adicionaria uma garota com cabelo loiro avermelhado.

— Então você era uma editora infantil — diz Charlie.

— Isso é o que eu queria fazer. Comecei a trabalhar na loja no ensino médio e

fiquei lá durante toda a graduação, economizando para o programa editorial de

Emerson. Então minha mãe morreu e eu me tornei a guardiã legal de Libby, então

tive que adiar. Alguns anos depois, a Sra. Freeman também faleceu, e seu filho teve

que cortar metade da equipe para sobreviver. Consegui um emprego de

administradora em uma agência literária, e o resto é história.

Havia mais do que isso, é claro. O ano que equilibrei dois empregos, cochilei nas

horas entre os turnos. O jeito que descobri para acalmar autores em pânico quando

seus agentes estavam fora do escritório. Os eventuais romances best-sellers que tirei

da pilha de lama e encaminhei para meus chefes.

A oferta para entrar como agente júnior e a lista de contras que escrevi: teria que

deixar meu emprego de garçonete; trabalhar com comissão era arriscado; havia uma

chance de eu nos colocar no buraco exato do qual eu estava nos tirando desde a

morte da mamãe.

E então, nas colunas pró e contra: agora que eu tive um gostinho de como era

trabalhar com livros, como eu poderia ser feliz com qualquer outra coisa?

— Eu me dei três anos — digo a Charlie — e uma quantia em dólar que eu

precisaria ganhar, e se eu não conseguisse, prometi me demitir e procurar algo

assalariado.

— Quão cedo você chegou em seu prazo?

Sinto meu sorriso se curvar involuntariamente.

— Oito meses.

Seus lábios se curvam também. Sorrindo com facas.

— Claro que você fez — ele murmura. Nossos olhos travam por uma batida. — E

edição?

Eu sinto a covinha no meu queixo antes mesmo de mentir. Nos primeiros anos,

verifiquei compulsivamente as listas de empregos. Uma vez eu até fui a uma

entrevista. Mas eu estava prestes a fazer uma grande venda e estava apavorada em

ficar presa a um salário mais baixo com um cargo de nível básico. Três dias antes da

minha segunda entrevista, eu a cancelei.

— Eu sou boa em agenciamento — eu respondo. — E você? Como você acabou

no mercado editorial?

Ele esfrega uma mão na parte de trás de seus cachos grisalhos.

— Tive muitos problemas na escola quando era pequeno — diz ele. — Não

conseguia focar. As coisas não davam certo. Fiquei retido.

Eu tento controlar minha surpresa.

— Você não tem que fazer isso — diz ele, divertido.

— Fazer o que?

— A coisa da Nora Brilhante e Educada — diz ele. — Se você está horrorizada

com meu fracasso, então fique horrorizada. Eu aguento.


— Não é isso — eu digo. — Você só tem uma… vibe acadêmica. Eu esperava que

você fosse, tipo, um estudioso da Rhodes, com uma tatuagem da Biblioteca

Bodleiana na sua bunda.

— Então, para onde iria minha tatuagem do Garfield? — ele pergunta tão

secamente que eu tenho que cuspir meu vinho de volta no copo. — Um a um — diz

ele com um sorriso fraco.

— O que é isso?

— Nosso pontuação de cuspes.

Eu tento limpar meu sorriso, mas ele pega. O compromisso de Charlie com a

verdade é contagioso, aparentemente, e a verdade é que estou me divertindo.

— E daí? — Eu digo. — Depois que você foi retido?

Ele suspira, endireita seus talheres.

— Minha mãe era... bem, você a conheceu. Ela é um espírito livre. Ela queria

apenas me tirar da escola e me deixar cuidando da sua plantação de maconha com

uma forma de “educação em casa”. Meu pai é o mais… firme dos dois. — Seu sorriso

é delicado, quase doce.

“De qualquer forma, ele percebeu que se eu era ruim na escola, então ele só

precisava descobrir no que eu era bom. No que eu poderia focar. Tentou um milhão

de hobbies comigo, então, finalmente, quando eu tinha oito anos, ele me deu este CD

player, provavelmente esperando que eu me tornasse o próximo Jackson Browne ou

algo assim. Em vez disso, imediatamente desmontei o CD player.”

Eu aceno sobriamente.

— E foi assim que ele descobriu sua paixão por assassinatos em série.

Os olhos de Charlie brilham enquanto ele ri.

— Foi como ele percebeu que eu queria aprender a juntar as coisas. Achei que o

mundo fazia sentido e queria encontrar o sentido. Depois disso, meu pai começou a

me pedir para ajudá-lo a trabalhar nesse carro que ele estava consertando. Eu me

envolvi muito nisso.

— Aos oito anos? — Eu choro.

— Acontece que — diz ele — tenho um foco incrível quando estou interessado

em alguma coisa.

Apesar da inocência do comentário, parece que lava derretida está enrolando

meus dedos dos pés, minhas pernas, me engolindo.

Eu mudo meu olhar para o meu copo.

— Então foi assim que você acabou com uma cama de carro de corrida?

— Junto com uma tonelada de livros sobre carros e restauração. A leitura

finalmente encaixou e parei de me importar com a mecânica da noite para o dia.

— Isso o decepcionou? — Eu pergunto.

Agora os olhos de Charlie caem, uma ruga de preocupação se formando em sua

testa.

— Ele só queria que eu amasse alguma coisa. Ele não se importava com o quê.

Pai, como um conceito, sempre foi tão irrelevante para minha vida diária como

os astronautas. Eu sei que eles estão por aí, mas raramente penso neles. De repente,


porém, quase posso imaginar. Eu quase posso sentir falta disso, dessa coisa que eu

nunca tive.

— Isso é muito legal. — Parece não apenas um eufemismo, mas um completo erro

de tradução para algo vasto e indisciplinado.

— Ele é um cara legal — diz Charlie baixinho. — De qualquer forma, ele largou

as coisas do carro e começou a pegar livros de bolso para mim toda vez que passava

em uma venda de garagem, ou quando uma nova caixa de doação entrava na loja da

mamãe. Ele não tem ideia de quantas leituras eróticas ele me deu.

— E você realmente leu.

Charlie gira sua taça de vinho cento e oitenta graus, os olhos cravados em mim.

— Eu queria entender como as coisas funcionavam, lembra?

Eu arqueio uma sobrancelha.

— Como foi isso para você?

Ele se senta para frente.

— Fiquei um pouco desapontado quando minha primeira namorada séria não

teve três orgasmos consecutivos, mas de resto tudo bem.

Uma torrente de risos rasga através de mim.

— Então eu encontrei a chave para a alegria de Nora Stephens — diz ele. — A

minha humilhação sexual.

— Não é só a humilhação como também o puro otimismo.

Seus lábios pressionam juntos.

— Eu diria que sou realista, mas aquele que nem sempre entende quando o que

vê não é realismo.

— Então por que você fugiu para Nova York?

— Eu não fugi — diz ele. — Eu me mudei.

— Existe alguma diferença? — Eu pergunto.

— Ninguém estava me perseguindo? — ele diz. — Além disso, “fugir” implica

velocidade. Eu tive que ir para a faculdade comunitária por alguns anos aqui,

trabalhar na construção com meu pai para economizar para que eu pudesse me

transferir no meu primeiro ano.

— Você não me parece um cara de capacete.

— Definitivamente, eu não sou um cara de capacete — ele diz. — Mas eu

precisava de dinheiro para chegar a Nova York e achava que todos os escritores

moravam lá.

— Ah — eu digo. — A verdade aparece. Você queria ser um escritor. — Meu

cérebro vai direto para Jakob, como um livro cuja lombada é dobrada para cair em

uma página favorita.

— Eu pensei que sim — diz Charlie. — Na faculdade, percebi que gostava mais

de fazer workshops sobre as histórias de outras pessoas. Eu gosto do quebra-cabeça.

Olhar para todas as peças e descobrir o que algo está tentando ser, e como chegar lá.

Sinto uma pontada de saudade.

— Essa é a minha parte favorita do trabalho também.

Ele me estuda por um momento.

— Então acho que você pode estar no emprego errado.


Editar pode ter sido o sonho, mas você não pode comer, beber ou dormir em cima

dos sonhos. Eu pousei na próxima melhor coisa. Todo mundo tem que desistir de

seus sonhos eventualmente.

— Sabe o que eu acho?

Seus olhos permanecem fixos em mim, suas pupilas crescendo como se de

alguma forma estivessem absorvendo todas as sombras da sala.

— Não, mas estou desesperado para descobrir — ele diz.

— Eu acho que você fugiu deste lugar.

Ele revira os olhos e se recosta na cadeira, a postura de um gato selvagem.

— Saí tranquilamente. Enquanto, em uma semana, você correrá, gritando, pelos

limites da cidade, implorando a cada motorista de caminhão que passa por uma

carona até a padaria mais próxima.

— Na verdade — eu digo, levantando o desafio em sua voz — estou aqui por um

mês.

Seus lábios pressionam juntos.

— É mesmo?

— É — eu digo. — Libby e eu temos muitas coisas divertidas planejadas. Mas você

já sabe disso. Você viu a lista.

Porque eu não sou Nadine. Sou capaz de espontaneidade, e flanela não vai me

fazer ter uma erupção cutânea, e vou terminar essa lista.

Seu olhar se estreita.

— Você vai “dormir sob as estrelas”? Se oferecer aos mosquitos?

— Existem repelentes para isso.

— Montar um cavalo? — ele diz. — Você disse que tem pavor de cavalos.

— Quando eu disse isso?

— Na outra noite, quando você estava mais pra lá do que pra cá. Você disse que

tinha pavor de qualquer coisa maior do que uma marmota. E então você voltou atrás

e disse que até as marmotas a incomodam, porque são imprevisíveis. Você não vai

andar a cavalo.

Mudamos para Acariciar um cavalo, mas agora não estou disposta a recuar.

— Gostaria de fazer uma aposta?

— Que você não vai “salvar um negócio moribundo” em um mês? — ele diz. —

Não chamaria isso de uma aposta.

— O que você vai me dar, quando eu ganhar?

— O que você quer? — ele diz. — Um órgão vital? Meu apartamento com aluguel

abaixo do valor de mercado?

Eu bato sua mão na mesa.

— Você tem um apartamento alugado abaixo do valor?

Ele puxa a mão de volta.

— Eu tenho desde a faculdade. Compartilhei com duas outras pessoas no começo,

até que eu pudesse pagar por conta própria.

— Quantos banheiros? — Eu pergunto.

— Dois.

— Fotos?


Ele pega seu telefone e procura por um tempo, então o entrega. Eu estava

esperando fotos onde o apartamento ficava em segundo plano. Estas foram

obviamente tiradas por um fotógrafo imobiliário. É um apartamento lindo, arejado

e com bom gosto minimalista. Além disso, é extremamente limpo, sendo isso:

gostoso.

Os quartos são pequenos, mas são três, e o banheiro principal tem uma pia dupla

gigantesca. É o material dos sonhos de Nova York.

— Por que você apenas… tem isso? — Eu digo. — Esta é a sua versão de

pornografia?

— Uma página cheia prejuízos comerciais é a minha versão de pornografia — diz

ele. — Tenho as fotos porque estava pensando em subarrendar enquanto estou aqui.

— Libby e sua família — eu digo. — Quando eu ganhar esta aposta, eles ficam

com o apartamento.

Ele zomba.

— Você não está falando sério.

— Eu fiz coisas mais desagradáveis por uma recompensa menor. Lembra do

Blake?

Ele considera por um momento.

— Ok, Nora. Você faz tudo nessa lista e o apartamento é seu.

— Indefinidamente? — eu esclareço. — Você subloca para eles pelo tempo que

eles quiserem e encontra outro lugar para morar quando voltar?

Ele dá uma espécie de rosnado.

— Claro — ele diz — mas não vai acontecer.

— Você está em seu juízo perfeito? — Eu digo. — Porque se nós concordarmos

com isso, está acontecendo.

Seu olhar prende o meu e ele estende a mão sobre a mesa. Quando eu pego sua

mão, a fricção parece que pode acender um fogo. Um arrepio corre entre minhas

omoplatas.

Só me lembro de soltar a mão dele porque, naquele momento, a salada e o cacio

e pepe aparecem em uma nuvem do cheiro mais celestial que se possa imaginar,

carregada pelo garçom de cabelo de tigela, e Charlie e eu nos afastamos como se

tivéssemos sido pegos em flagrante.

Depois disso, não perdemos tempo com conversa fiada, em vez disso, enfiamos a

massa artesanal em nossas bocas por dez minutos seguidos.

Quando terminamos, a maioria das mesas de dois lugares foram arrastadas para

formar mesas maiores, as cadeiras reorganizadas para que os grupos pudessem se

reunir, o riso crescente ultrapassando a suave música italiana e o tilintar de taças de

vinho, o cheiro de pão e molhos amanteigados mais denso do que nunca.

— Eu me pergunto onde Blake está agora — eu digo. — Espero que ele tenha

encontrado a felicidade com aquela garçonete minúscula.

— Espero que ele tenha sido confundido com um criminoso procurado e pego

pelo FBI — diz Charlie.

— Ele será solto em quarenta e oito horas — acrescento. — Mas até lá, ele não

vai se divertir muito.


Charlie sorri abertamente, e eu acrescento:

— Só espero que o interrogador dele não seja tão alto quanto eu. Isso é um pouco

demais.

— Acho que você deveria saber alguma coisa. — A voz de Charlie se torna rouca

quando ele se inclina sobre a mesa, arrepios subindo pelas minhas pernas enquanto

sua panturrilha roça a minha.

Eu me aproximo também, nossos joelhos se encaixando sob nós, como dedos

entrelaçados desta vez: dele, meu, dele, meu.

Ele sussurra:

— Você não é tão alta assim.

Eu sussurro de volta:

— Eu sou tão alta quanto você.

— Eu não sou tão alto — diz ele.

O que meu corpo ouve é, vamos dar uns amassos.

— Sim, mas para os homens — eu digo — não existe isso de ser alto demais.

Ele mantém meu olhar muito sério para esta conversa muito pouco séria. Minha

pele vibra, como se meu sangue fosse feito de enchimentos de ferro e seus olhos

fossem ímãs varrendo-os.

— Não há para as mulheres também. Há apenas mulheres altas — diz ele — e os

homens inseguros demais para namorar com elas.


DESCEMOS A ESTRADA ESCURA QUASE EM SILÊNCIO, mas o ar zumbe com

uma corrente elétrica entre nós.

— Você não tem que me acompanhar todo o caminho até o chalé — eu finalmente

digo.

— É no meu caminho — diz Charlie.

Lancei-lhe um olhar incrédulo.

Sua cabeça se inclina, a luz da rua lançando seu rosto. Não tenho certeza se

alguém no planeta tem sobrancelhas mais bonitas do que esse homem. Claro, não

tenho certeza se já notei as sobrancelhas de um homem antes, então pode ser o meu

cérebro pouco estimulado durante a baixa temporada de publicação tenha me

forçado a encontrar novos interesses.

— Tudo bem — ele cede. — Não está longe do meu caminho.

No limite da cidade, a calçada dá lugar a um acostamento com grama, mas esta

noite estou usando sapatos confortáveis. À nossa direita, uma trilha estreita

serpenteia pela folhagem.

— O que há por aí?

— Bosques — diz ele.

— Isso eu sei — eu digo. — Para onde vai?

Ele passa a mão no rosto.

— Para o chalé.

— Espere, como um atalho?

— Mais ou menos.

— Existe uma razão para não irmos por ali?

Ele arqueia uma sobrancelha.

— Eu achei que você fosse do tipo que gosta de caminhar na calada da noite?

Eu passo por ele.

— Stephens — diz ele. — Você não precisa provar nada. — Seu cheiro levemente

picante me alcança antes dele, tão familiar e ainda assim surpreendente, notas de

canela e laranja que são muito mais fortes nele do que em mim. — Vamos voltar e

seguir a estrada.

No alto, uma coruja pia, e ele abaixa a cabeça e joga os braços sobre ela

protetoramente.

— Espera. — Eu cortei-lhe um olhar, pare. — Você tem… medo do escuro?


— Claro que não — ele rosna, começando o caminho novamente. — Estou

surpreso com o quão longe você está levando essa coisa de transformação de cidade

pequena. E só para você saber, essas franjas não a tornam mais acessível. Você

parece uma assassina gostosa com uma peruca cara.

— Tudo o que acabei de ouvir — digo — foi gostosa e cara.

— Se eu lhe mostrasse um teste de Rorschach 5 , você acharia gostosa e cara em

algum lugar lá.

Meu olhar passa por cima do ombro dele. Logo além da trilha, um riacho afunila

sobre uma pequena cachoeira, rochas enormes se projetando como dentes em

ambos os lados para formar um buraco para nadar. Uma quebra na cobertura das

árvores deixa o luar se acumular em seu centro, transformando a água espumosa

em uma paisagem de espirais prateadas cintilantes.

— Número seis — eu expiro.

Charlie segue meu olhar, franzindo a testa.

— De jeito nenhum.

A vontade de surpreendê-lo surge como um maremoto. Mas há outra coisa

também. Na faculdade, eu sempre fui a Mãe da Festa, aquela que se certificava de

que ninguém caísse da escada ou bebesse qualquer coisa que não tivesse visto quem

serviu. Com Libby, eu sou a irmã mais velha preocupada. Para meus clientes, a

durona que discute, pressiona e negocia.

Aqui, percebo abruptamente, não sou nenhuma dessas coisas. Não preciso ser,

não com o obsessivo, organizado e responsável Charlie Lastra. Então eu piso na

pedra mais próxima e tiro meus sapatos.

— Nora — ele geme. — Você está falando sério.

Eu tiro meu vestido sobre meus ombros.

— Por que não? Há jacarés?

Eu olho para ele a tempo de capturar seus olhos passando pela minha calcinha,

ficando presos no meu sutiã por uma fração de segundos antes de voltarem para o

meu rosto com um aperto de sua mandíbula.

— Tubarões? — Eu pergunto.

— Só você — diz ele.

— Sanguessugas? Lixo nuclear?

— O lixo comum não é ruim o suficiente? — ele diz.

— Eu não estou fazendo você entrar — eu digo.

— Não até você começar a se afogar.

Sento-me na pedra, balançando as pernas na água fria. Um arrepio atravessa

minhas omoplatas.

— Sou uma nadadora muito proficiente. — Entro no riacho, reprimindo um

ganido.

— Frio? — Charlie diz, em tom de auto-satisfação.

5

É um questionário utilizado em testes psicólogos que faz uso de manchas de tintas para a realização de

uma análise dos traços da personalidade de uma pessoa.


— Agradável — eu respondo, vadeando mais fundo até que a água chega ao meu

peito. — Eu teria que me esforçar muito para me afogar nisso.

Ele se aproxima da borda.

— Pelo menos a infecção bacteriana virá facilmente.

— Eu teria pensado que isso era algum tipo de rito de passagem de Sunshine Falls

— eu digo.

— Eu pareço o tipo de pessoa que honraria os ritos de passagem locais?

— Bem, suas botas são Sandro e eu vi você usar cashmere de luxo pelo menos

três vezes — eu digo — então talvez não.

— Guarda-roupa cápsula — ele diz, como se isso explicasse tudo. — Só compro

coisas que podem ser usadas com tudo o que já possuo e que sei que gosto o

suficiente para usar por anos. É um investimento.

— Tão pessoa da cidade — eu canto.

Ele revira os olhos.

— Você sabe que isso não conta para o número seis, certo? Talvez em Manhattan

eles considerem isso como nadar pelado, mas aqui, em Sunshine Falls, nós

chamaríamos essa roupa de um maiô premium.

Outro desafio.

Eu sou uma mulher possuída. Eu afundo na água, abro meu sutiã e jogo nele. Ele

bate em seu peito.

— Melhor — ele admite, levantando a delicada alça de renda preta para examinála

ao luar. — Tudo isso — ele diz seriamente — desperdiçado com Blake Carlisle.

— Eu possuo apenas roupas íntimas bonitas — eu digo. — Elas são obrigadas a

ser desperdiçadas ocasionalmente.

— Falou como uma verdadeira dama de luxo.

Eu deslizo para trás, joelhos dobrados, dedos dos pés deslizando ao longo do leito

de pedra lisa do riacho.

— Acho que provamos que, de nós dois, você é o aristocrata aqui. Eu estou

nadando pelada. Em um riacho local. Enquanto você não sabe nem nadar.

Ele revira os olhos.

— Eu sei nadar.

— Charlie — eu digo. — Está bem. Não há vergonha na verdade.

— Lembra quando você costumava fingir ser educada?

— Você sente falta?

— De jeito nenhum. — Ele puxa a camisa pela cabeça e a joga nas pedras. — Você

é muito mais divertida assim. — Quando suas calças estão na metade, eu me lembro

de desviar o olhar, e um momento depois, quando a água estoura, eu giro para

encontrá-lo estremecendo com a água fria contra seu estômago.

— Merda! — ele engasga. — Puta merda!

— Tão jeitoso com as palavras. — Eu nado em direção a ele. — Não é tão ruim.

— É possível que você não tenha nenhum receptor de dor? — ele sibila.

— Não apenas possível, mas é bem provável — eu respondo. — Me disseram que

não sinto nada.

Charlie franze a testa.


— Quem disse isso claramente só conheceu a Nora Profissional.

— A maioria das pessoas.

— Pobres idiotas — diz ele, quase carinhosamente. A mesma voz com que ele

disse Claro que sim quando eu disse a ele que atingi meus objetivos de agente oito

meses antes.

Eu paro perto o suficiente para ver sua pele formigando. As gotas em sua

garganta e mandíbula captam a luz da lua, e meu peito e minhas coxas formigam em

resposta.

Eu deslizo para trás enquanto ele caminha em minha direção, mantendo a

distância entre nós.

— Que outros ritos de passagem de Sunshine Falls você ignorou?

Os músculos ao longo de sua mandíbula sombreiam enquanto ele pensa.

— As pessoas gostam muito de rochedos aqui.

— Deixe-me adivinhar — eu digo. — É quando você está no topo de uma

montanha e espera que um de seus inimigos passe, então empurra uma pedra no

penhasco.

— Perto — diz ele. — É quando você escala pedregulhos.

— Por… que razão?

— Para chegar ao topo, provavelmente.

— E então?

Seu ombro dourado levanta em um encolher de ombros, a água escorrendo pelo

seu peito.

— Provavelmente há outra pedra, e então você sobe até o topo dela. Os seres

humanos são uma espécie misteriosa, Nora. Certa vez, vi um carteiro de bicicleta ser

atropelado por um carro, levantar-se e gritar que me tornei Deus a plenos pulmões

antes de partir na direção oposta.

— O que há de misterioso nisso? — Eu digo. — Ele testou os limites de sua

própria mortalidade e descobriu que eles não existiam.

A boca carnuda de Charlie puxa para um lado em um meio sorriso.

— Isso é o que eu amo em Nova York.

— Tantos mensageiros de bicicleta com complexos de deuses.

— Você nunca é a pessoa mais estranha da sala.

— Sempre tem aquela pessoa com pintura corporal prateada — concordo — que

pede doações para consertar seu OVNI.

— Ele é o meu favorito do trem Q — diz Charlie.

Minha pele aquece. Eu me pergunto quantas vezes nos cruzamos em nossa cidade

de milhões.

— Eu gosto que você é anônimo lá — ele continua. — Você é quem você decidir

ser. Em lugares como aqui, você nunca se livra do que as pessoas pensaram primeiro

sobre você.

Eu nado mais perto. Ele não recua.

— E o que eles acham de você?

— Não são grandes fãs — diz ele.

— Sra. Struthers é — eu aponto — e… sua ex também.


Lanço-lhe um olhar e afundo na água para esconder a forma como meu corpo se

ilumina sob seu olhar.

Eu não me sinto como Nadine Winters quando ele está tão perto. Sinto que sou

açúcar sob um maçarico, como se ele estivesse caramelizando meu sangue.

— Sra. Struthers gostava de mim porque eu adorava a escola — diz ele. — Quero

dizer, uma vez que eu descobri como realmente ler. Não me fez exatamente um

sucesso com as outras crianças, no entanto. No ensino médio, as coisas não eram tão

ruins, e então, eventualmente…

— Você ficou gostoso — eu digo sombriamente.

Sua risada arranha minha pele.

— Eu ia dizer “eu me mudei para Nova York”.

Paramos de nos mover. Calor se espalha pelas minhas costelas, enrolando-se

mais a cada movimento.

Eu limpo minha garganta o suficiente para brincar:

— E então você ficou gostoso.

— Na verdade — ele diz — isso só aconteceu quatro ou cinco semanas atrás.

Houve uma grande chuva de meteoros, e eu fiz um desejo e… — Charlie estende os

braços enquanto se aproxima.

Meu coração parece leve e nervoso no meu peito, meus membros

incongruentemente pesados.

— Então você está dizendo que a expressão de Amaya era menos de desejo e mais

de surpresa sobre seu novo rosto.

— Eu não notei a expressão de Amaya — ele diz.

Minha boca fica seca, o peso se acumulando entre minhas coxas. Ele pega uma

gota de água que escorre sobre o arco do meu cupido. Meus lábios se separam, a

ponta de seu dedo permanecendo no meu lábio inferior.

Estou perfeitamente ciente de quão frágil é o espaço entre nós agora,

escorregadio, finito, fechável. Talvez seja por isso que as pessoas fazem viagens, por

aquela sensação de sua vida real se derretendo ao seu redor, como se nada do que

você fizesse pudesse puxar qualquer outro fio de seu mundo cuidadosamente

construído.

É uma sensação não muito diferente de ler um livro realmente bom: consome

tudo, elimina preocupações.

Normalmente eu vivo como se estivesse tentando ver quatro lances à frente como

em um jogo de xadrez, mas agora não consigo pensar além dos próximos cinco

minutos. É preciso muito esforço para dizer:

— Você provavelmente quer ir para casa.

Ele balança a cabeça.

— Mas se você quiser…

Eu balanço minha cabeça.

Por um momento, nada acontece. Parece que há uma negociação silenciosa

acontecendo entre nós. Sua mão pega a minha debaixo d'água. Depois de uma batida,

ele me puxa em direção a ele, lentamente, tempo suficiente para qualquer um de nós

se afastar.


Meus dedos roçam seu quadril, e o tabuleiro de xadrez em minha mente se

desintegra.

Sua outra mão encontra minha cintura, fechando a distância entre nós. A

sensação de estar sendo pressionada contra ele está em algum lugar entre a

felicidade e a tortura. Um pequeno suspiro sai de mim. Ele não me provoca por isso.

Em vez disso, suas mãos cortaram um caminho lento pelos meus lados, colando cada

centímetro de mim contra ele: peito, estômago, quadris alinhados, todas as minhas

partes mais macias contra todas as suas mais duras, minhas coxas ficando soltas ao

redor de seus quadris. Seus polegares pegam nas curvas dos meus quadris, e um

zumbido grave ressoa através dele.

Meus mamilos apertam contra sua pele, e seus braços apertam minhas costas.

Nós dois estamos em silêncio, como se qualquer palavra pudesse quebrar o

feitiço do luar prateado.

Nossos lábios se encontram levemente uma vez, então se separam, deslizam

juntos um pouco mais fundo. Suas mãos seguem a curva das minhas costas para

baixo, enrolando em volta de mim, me apertando contra ele, pressionando seus

quadris nos meus.

Minha boca parece que está derretendo sob a dele, como se eu fosse cera e ele

fosse o pavio queimando no meu centro. Uma de suas mãos se enrola em torno do

meu queixo, a outra varrendo meu peito enquanto minhas coxas se envolvem em

torno dele. Minha respiração fica presa em sua boca quando seu polegar rola em

meu mamilo. Ele me levanta, tudo até meu umbigo acima da água agora, exposta ao

luar, e ele está olhando, tocando, provando seu caminho através de mim.

Meu cérebro luta pelo controle do meu corpo em curto-circuito.

— Devemos pensar sobre isso?

— Pensar? — Ele diz isso como se nunca tivesse ouvido a palavra. Outro beijo

faminto de revirar o estômago também apaga isso do meu vocabulário. Minhas mãos

torcem em seu cabelo. Sua boca se move para o lado da minha garganta, os dentes

afundando na minha clavícula.

Estou tentando pensar sobre isso, mas parece que sou uma passageira em um

corpo muito disposto.

Charlie brinca no meu ouvido:

— Você devia nunca usar roupas, Nora. — Minha risada morre na minha garganta

quando ele me prende contra uma das rochas planas na beira da água, meus quadris

travando em torno dele, a sensação queimando através das minhas coxas com o

atrito entre nós, com o empurrão de seu estômago e sua ereção se movendo contra

mim através de nossas roupas íntimas.

Charlie beija como ninguém com quem eu já estive. Como alguém que toma o

tempo para descobrir como as coisas funcionam.

Cada inclinação dos meus quadris, arco da minha coluna, respiração superficial o

guia, pontos de referência em um mapa que ele está fazendo do meu corpo.

Ele cantarola meu nome em minha pele. Soa tanto como um palavrão como

quando eu bati nele no Vovô Cócoras, sua voz chiando através de mim até eu me

sentir como um diapasão golpeado.


Seus lábios arrastam da minha garganta para o meu peito, sua respiração

irregular enquanto ele me puxa em sua boca. Seus dedos circulam meus pulsos

contra a rocha, nossos quadris se movendo em um ritmo faminto.

— Merda — ele sibila, mas pelo menos desta vez, ele não está se afastando de

mim. Suas mãos ainda estão em toda parte. Sua boca não deixou minha pele. — Não

quero parar.

Minha mente ainda está guerreando sem entusiasmo pelo controle. Meu corpo

toma a decisão unilateral de dizer:

— Então não pare.

— Temos que falar sobre isso primeiro — diz ele. — As coisas estão complicadas

para mim agora.

E ainda estamos clamando um pelo outro. As mãos de Charlie deslizam sobre

minhas coxas, apertando com tanta força que poderia machucar. Minhas unhas estão

em suas costas, empurrando-o para perto. Sua boca quente desliza sobre meu

ombro, sua língua e dentes encontram meu pulso na base da minha garganta.

Eu concordo.

— Então fale.

Outro beijo profundo, seus dentes duros contra meu lábio, suas mãos duras

contra minha bunda.

— É difícil pensar em palavras agora, Nora.

Suas mãos enrolam no meu cabelo, sua boca deslizando contra o canto da minha,

sua respiração superficial e frenética. Eu me levanto contra ele e uma de suas mãos

aperta contra minha coluna, seu gemido crepita através de mim como uma dúzia de

relâmpagos indo direto para o meu centro.

Todo o resto é brevemente obliterado quando eu me movo contra ele, e ele

retribui o favor, o atrito entre nós é elétrico.

— Deus, Nora — ele sibila.

Algo como eu sei sai de mim, direto para sua boca. Seus dedos cavam sob a renda

nas laterais dos meus quadris, enterrando-se na minha pele. Nunca senti a

frustração de outra pessoa de forma tão palpável; nunca estive tão frustrada. Estou

vendo manchas, tudo perdido atrás de uma parede de necessidade.

E então meu telefone toca das rochas.

De repente, a realidade me acerta, um deslizamento de pensamentos que minha

luxúria estava segurando. Eu me afasto de Charlie, ofegando.

— Dusty!

Ele pisca para mim no escuro, o peito arfando.

— O que?

— Merda! Não! Não! — Nado para as rochas, o toque ecoando no escuro.

— O que está errado? — Charlie pergunta, logo atrás de mim.

— Eu deveria ligar para Dusty. Horas atrás. — Saio da água e corro para o

telefone. Eu perco o último toque por segundos, e quando ligo de volta, vai direto

para o correio de voz. — Merda!

Como eu pude fazer isso? Como eu pude simplesmente esquecer da minha cliente

mais antiga, mais sensível e mais bem paga? Como pude me deixar distrair tanto?


Eu ligo novamente e recebo sua mensagem de correio de voz.

— Ei, Dusty! — Eu digo brilhantemente após o bipe. — Desculpe por isso. Eu tive

um…

Com o que eu poderia estar ocupado tão tarde da noite? Nenhuma reunião

respeitável, certamente.

— Uma coisa surgiu aqui — eu digo. — Mas estou livre agora, então me ligue de

volta!

Eu desligo, então leio a sequência de mensagens de Libby, pedidos cada vez mais

frenéticos para que eu confirme que Blake não me entregou a um picador de

madeira. Meu coração dispara na minha garganta, e a vergonha quente e formigante

sobe à superfície da minha pele. No caminho para casa, mando uma mensagem para

Libby.

— Tudo certo?

Eu me viro e encontro Charlie vestindo suas calças, sua camisa enrolada em uma

mão.

— O que aconteceu? — ele pergunta.

Eu não estava lá, eu penso. Elas precisavam de mim e eu não estava lá. Assim

como… eu me interrompo antes que minha mente possa disparar lá atrás, digo em

vez disso

— Eu não faço isso.

A sobrancelha de Charlie arqueia.

— Faz o que?

— Tudo o que acabou de acontecer — eu digo. — Tudo isso. Não é assim que eu

funciono.

Ele meio que ri.

— E o que, você acha que isso é um padrão para mim?

— Não — eu digo. — Quero dizer, talvez. Essa é a questão! Como eu poderia

saber? — Seu sorriso cai, e meu peito arde em resposta. Eu balanço minha cabeça.

— É este livro, Frigid, e esta viagem… comecei a pensar que poderia simplesmente

seguir com isso, mas… — Eu levanto meu telefone ao meu lado, como se isso

explicasse tudo. A crise pré-bebê de Libby, a insegurança intensa de Dusty, para não

mencionar todos os meus outros clientes, todos que estão contando comigo. — Não

posso me dar ao luxo de uma distração agora.

— Distração. — Ele repete a palavra vazia, como se não estivesse familiarizado

com o conceito. Provavelmente ele é. Por uma década sólida, eu estava.

Priorização. Compartimentalização. Qualificação. Essas coisas sempre

funcionaram para mim no passado, mas agora apenas uma pitada de imprudência

me distraiu tanto da minha irmã quanto da minha cliente premiada. Depois do que

aconteceu com Jakob, eu deveria saber que não podia confiar em mim mesma.

Eu forço o nó duro na minha garganta.

— Eu preciso estar focada — eu digo. — Devo isso a Dusty.

Quando estou distraída, deixo passar as coisas. Quando eu deixo passar as coisas,

coisas ruins acontecem.

Charlie me estuda por um longo momento.


— Se é o que você quer.

— É — eu digo.

Sua sobrancelha levanta ligeiramente, seus olhos lendo a mentira óbvia. Não

importa. Querer não é uma boa maneira de tomar decisões.

— E, além disso — acrescento — as coisas são complicadas para você de qualquer

maneira, certo?

Depois de um momento, ele suspira.

— Mais a cada segundo.

Ainda assim, nenhum de nós se move. Estamos em um impasse silencioso,

esperando para ver se a barragem aguenta, a pressão crescendo entre nós, minhas

células ainda vibrando sob seu olhar.

Charlie desvia o olhar primeiro. Ele esfrega o lado de sua mandíbula.

— Você tem razão. Eu não sei por que é tão difícil para mim aceitar que isso não

significa nada. — Ele arranca meu vestido da pedra e o estende.

Meu estômago afunda, mas eu aceito o vestido.

— Obrigada.

Sem olhar para mim, ele diz secamente:

— Para que servem os amigos?


SAIO DA CAMA ÀS NOVE, minha cabeça latejando e meu estômago parecendo

um barco meio naufragado perdido no mar. Aparentemente eu bebi o suficiente para

me envenenar, sem nem mesmo passar do nível de embriaguez. Um dos muitos

motivos de ter trinta e dois anos é absolutamente ótimo.

Libby já está andando lá embaixo, cantarolando para si mesma. Não estou

surpresa, apesar de suas mensagens de pânico na noite passada, ela já estava

dormindo e roncando alto quando cheguei em casa. Dusty finalmente me ligou de

volta, e eu andei de um lado para o outro, úmida, pela campina por uma hora,

convencendo-a que a Parte Dois de Frigid não poderia ser tão ruim quanto ela estava

convencida que era. Com os olhos turvos, verifico meu telefone e, com certeza, as

novas páginas estão esperando na minha caixa de entrada.

Eu não estou pronta para isso. Depois de vestir uma legging e um sutiã esportivo,

eu cambaleio para fora, espalhando calor em meus braços enquanto atravesso o

prado. Eu bamboleio pela floresta, segurando meu estômago, até a náusea diminuir

o suficiente para correr.

Ok, eu acho. Isso está indo bem. É mais uma afirmação positiva do que uma

observação. Eu sigo o caminho inclinado através da floresta até a cerca e dou mais

três passos antes de que Isso está indo bem se torna Oh, Deus, não. Eu me jogo sobre

minhas coxas e vomito na lama assim que uma voz corta a manhã:

— Você está bem, senhora?

Eu viro em direção à cerca, passando as costas da minha mão pela minha boca.

O semideus loiro está encostado no outro lado da cerca, a não mais de um metro

e meio de distância.

Claro que ele está.

— Tudo bem — eu me obrigo a dizer. Eu limpo minha garganta e faço uma careta

com o gosto. — Acabei de beber o equivalente a uma banheira de álcool na noite

passada.

Ele ri. É uma ótima risada. Provavelmente seu grito de terror é até bastante

agradável.

— Já passei por isso.

Nossa, ele é alto.

— Eu sou Shepherd — diz ele.


— Que nem… o trabalho? 6 — Eu pergunto.

— E minha família é dona do estábulo — diz ele. — Vá em frente e ria.

— Nunca faria isso — eu digo. — Tenho um péssimo senso de humor. — Eu

começo a esticar minha mão, então me lembro onde ela esteve recentemente

(vômito) e a largo. — Eu sou Nora.

Ele ri novamente, um som claro de sino de prata.

— Você está hospedada no Goode's Lily?

Eu concordo.

— Minha irmã e eu estamos visitando de Nova York.

— Ah, gente da cidade grande — ele brinca, os olhos brilhando.

— Eu sei, nós somos os piores — eu jogo junto. — Mas talvez Sunshine Falls nos

converta.

Os cantos de seus olhos se enrugam.

— Certamente fará isso.

— Você é daqui originalmente?

— Toda a minha vida — diz ele — menos um curto período em Chicago.

— A vida na cidade não era para você? — Eu suponho.

Seus ombros enormes levantam.

— Os invernos do norte certamente não eram.

— Claro — eu digo. Pessoalmente, eu gosto do inverno, mas é uma reclamação

familiar.

As pessoas basicamente saem de Nova York porque estão com frio,

claustrofóbicas, cansadas ou sobrecarregadas financeiramente. Ao longo dos anos,

a maioria dos meus amigos de faculdade foi para as cidades do Meio-Oeste que são

mais baratas ou para subúrbios com gramados enormes e cercas brancas, ou então

para um dos êxodos em massa para Los Angeles, o que acontece a cada poucos

invernos.

Há lugares mais fáceis para se viver, mas Nova York é uma cidade cheia de

pessoas famintas, que compartilham o desejo de uma energia vibrante.

Shepherd dá um tapinha na cerca.

— Bem, eu vou deixar você voltar para a sua… — Juro que ele olha para minha

pilha de vômito. — …corrida — ele termina diplomaticamente, virando-se para ir

embora. — Mas se você precisar de um guia turístico enquanto estiver aqui, Nora de

Nova York, ficarei feliz em ajudar.

Eu chamo atrás dele.

— Como devo… entrar em contato?

Ele olha para trás, sorrindo.

— É uma cidade pequena. Nós vamos nos encontrar.

Eu tomo isso como a rejeição mais gentil do mundo até o segundo em que ele me

dá uma piscadela, a primeira piscadela quente que eu já vi na vida real.

6

Shepherd significa “pastor(a) de animais” em inglês


Desde que terminei de contar o que aconteceu, Libby ficou me encarando.

— O que está acontecendo dentro do seu cérebro agora? — Eu pergunto.

— Estou tentando decidir se fico impressionada por você ter ido nadar pelada,

irritada por ter ido com Charlie, ou apenas terrivelmente arrependida por arranjar

um encontro tão terrível para você.

— Não seja tão dura consigo mesmo — eu digo. — Tenho certeza de que se eu

tivesse cortado os 15 centímetros inferiores das minhas pernas, ele teria sido

perfeitamente agradável.

— Sinto muito, mana — ela chora. — Eu juro que ele parecia normal em suas

mensagens.

— Não culpe Blake. Eu sou a única gigante de carne e osso.

— Sério, que idiota! — Libby balança a cabeça. — Deus, eu sinto muito. Vamos

esquecer o número cinco. Foi uma ideia ruim.

— Não! — Eu digo rapidamente.

— Não? — Ela parece confusa.

Depois de ontem à noite, eu adoraria jogar a toalha, mas também há o

apartamento de Charlie para pensar. Se eu desistir do nosso acordo agora, tudo o

que aconteceu foi em vão. Pelo menos assim, algo de bom pode sair disso.

— Eu vou continuar com isso — Eu digo. — Quero dizer, nós temos uma lista de

verificação.

— Sério? — Libby bate palmas, radiante. — Isso é ótimo! Estou tão orgulhosa de

você, mana, saindo da sua concha… o que me lembra! Falei com Sally sobre o número

doze, e ela adoraria ajuda para enfeitar a Goode Books.

— Quando você falou com ela? — Eu digo.

— Trocamos alguns e-mails — diz ela com um encolher de ombros. — Você sabia

que ela pintou o mural na seção infantil da loja?

Considerando que Libby prepara uma torta especial para seu carteiro intolerante

ao glúten todo mês de dezembro, não deveria me surpreender que ela também

esteja tendo uma troca de email detalhada com a nossa anfitriã do Airbnb.

Meu pulso dispara com o zumbido do meu telefone. Felizmente, a mensagem não

é de Charlie.

É do Brendan. O que é raro. Quando você percorre as nossas conversas, é um vaie-vem

de feliz aniversário! intercaladas com fotos fofas de Bea e Tala.

Olá, Nora. Espero que a viagem esteja indo bem. Libby está bem?

— Isso é sobre o quê? — Eu seguro meu telefone, e ela se inclina para ler, seus

lábios apertados como uma bolsa.

— Diga a ele que eu ligo para ele mais tarde.

— Sim, senhora, e quais chamadas você quer que sejam encaminhadas para o seu

escritório?

Ela revira os olhos.

— Eu não quero subir e pegar meu telefone agora. O mundo não vai acabar se

Brendan não tiver notícias minhas a cada vinte e cinco minutos.


A impaciência em sua voz me pega desprevenida. Eu já vi ela e Brendan

discutirem antes, e é basicamente como assistir duas pessoas balançando penas na

direção uma da outra. Isso é uma verdadeira irritação.

Eles estão brigando? Sobre o apartamento, ou a viagem, talvez?

Ou essa viagem está acontecendo porque eles estão brigando?

O pensamento instantaneamente me dá náuseas. Eu tento tirar isso da minha

cabeça, Libby e Brendan são obcecados um pelo outro. Eu posso ter perdido algumas

coisas nos últimos meses, mas eu teria notado algo assim.

Além disso, ela tem ligado para ele todos os dias.

Exceto que você nunca a viu ligar para ele. Acabei de presumir que em algum

lugar, nessas nove horas em que estamos separadas todas as tardes, ela está

conversando com ele.

Um suor frio surge na parte de trás do meu pescoço. Minha garganta torce e

aperta, mas Libby não parece notar. Ela está sorrindo friamente enquanto se levanta

de sua cadeira adirondack.

Você está pensando demais nisso. Ela só deixou o telefone no andar de cima.

— De qualquer forma, vamos — diz ela. — A Goode Books não vai se salvar

sozinha. Goode Books não vão se salvarem sozinhas? Qualquer que seja. Você

entendeu.

Eu digito uma resposta rápida para Brendan. Tudo ótimo. Ela diz que vai te ligar

mais tarde. Ele responde imediatamente com um rosto sorridente e um polegar para

cima.

Está tudo bem. Estou aqui. Estou focada. Eu resolvo isso.

Eu gostaria de dizer que, tendo percebido tudo o que estava em jogo nesta

viagem, o feitiço de Charlie Lastra instantaneamente se dissipou. Em vez disso, toda

vez que seus olhos cortam de Libby para mim, há um flash em sua íris que me faz

imaginar quanto tempo levaria para tirar minhas roupas.

— Você quer — ele fala lentamente, olhando de volta para minha irmã — fazer

uma reforma na Goode Books?

— Estamos dando uma revitalização da cabeça aos pés. — As pontas dos dedos

de Libby se apertam em excitação. Sua pele está bronzeada e as bolsas sob seus olhos

quase desapareceram. Ela parece não apenas descansada, mas também empolgada

com a oportunidade de limpar uma livraria empoeirada.

Charlie se inclina para o balcão.

— Isso é para a lista? — Seus olhos se movem em direção aos meus, piscando

novamente. Meu corpo reage como se ele estivesse me tocando. Nossos olhares se

mantêm, o canto de sua boca se curvando como, eu sei o que você está pensando.

— Ele sabe sobre a lista? — Libby pergunta, então, a Charlie — Você sabe sobre

a lista?

Ele a encara de novo, esfrega o queixo.

— Não temos orçamento para “revitalização”.


— Todos os móveis serão de segunda mão — diz ela. — Eu tenho o toque mágico

de brechó. Eu fui criada em um laboratório para isso. Apenas nos aponte na direção

de seus materiais de limpeza.

Os olhos de Charlie voltam para mim, pupilas dilatadas. Se eu olhasse para baixo,

tenho certeza de que encontraria minhas roupas reduzidas a uma pilha de cinzas

aos meus pés.

— Você nem vai saber que estamos aqui — eu consigo dizer.

— Duvido disso — diz ele.

Outra “verdade universal” com que Austen poderia ter começado Orgulho e

Preconceito é: Quando você diz a si mesmo para não pensar em algo, será tudo o que

você pode pensar.

Assim, enquanto Libby está fazendo uma limpeza irregular da Goode Books,

esfregando marcas do chão, estou pensando em beijar Charlie. E enquanto estou

repondo biografias na seção de não-ficção recém-nomeada, estou contando quantas

vezes e onde o pego olhando para mim.

Quando estou debruçado sobre a nova parte de Frigid no café, puxando suas

cordas de enredo e cutucando seus alçapões, minha mente invariavelmente

encontra o caminho de volta para Charlie me prendendo contra uma pedra, sua voz

grossa no meu ouvido: É difícil pensar em palavras agora, Nora.

É difícil pensar, ponto final, a menos que seja sobre a única coisa que eu não

deveria estar pensando.

Mesmo agora, voltando para a cidade com Libby para a “surpresa secreta” que

ela planejou para nós, estou apenas dois terços presente. Determinada a disputar

esse último terço em submissão, pergunto:

— Estou bem vestida?

Sem diminuir o passo, Libby aperta meu braço.

— Perfeita. Uma deusa entre os mortais.

Eu olho para o meu jeans e regata de seda amarela, tentando adivinhar para que

eles podem ser “perfeitos”.

Com o canto do olho, faço outra auditoria rápida de sua linguagem corporal. Eu a

tenho observado de perto desde a mensagem estranha de Brendan, mas nada

parecia errado.

Quando éramos crianças, ela costumava implorar à Sra. Freeman para deixá-la

voltar a colocar livros na estante, e agora seus esforços para atualizar Goode Books

a transformaram na Bela Bizarra, até cantar a música da “vida no interior” em seu

cabo de vassoura enquanto Charlie me atira olhares ardentes de Faça Isso Parar.

— Eu não posso ajudá-lo — eu finalmente disse a ele. — Não tenho jurisdição

aqui.

Ao que Libby gritou do outro lado da loja:

— Sou um garanhão selvagem, baby!

Quando finalmente saímos, ela me forçou a entrar no táxi de Hardy para procurar

móveis em todas as lojas de segunda mão da grande Asheville. Sempre que


encontrávamos algo perfeito para o café da Goode Books, Libby insistia em 1)

pechinchar e 2) conversar literalmente com todo mundo, literalmente sobre

qualquer coisa.

O trabalho a energizou, enquanto espero fervorosamente que a excursão

surpresa desta noite termine no único spa de Sunshine Falls. Embora se chame

Spaaaahhh, o que me faz pausar. Não está claro se isso deve ser lido como um suspiro

ou um grito. Ou a mesma pessoa perturbada é dona disso, da Mug + Shot e do Cachos

de Morrer, ou há algo extremamente estranho no abastecimento de água de

Sunshine Falls.

Libby passa pelo Spaaaahhh e viramos a esquina para um amplo prédio de tijolos

cor-de-rosa com janelas em arco de dois andares, um telhado de duas águas e uma

torre sineira. De um lado fica um estacionamento meio cheio e, do outro, algumas

crianças com os joelhos manchados de terra jogam bola em um campo de beisebol

coberto de mato com mosquitos fervilhando na cerca atrás do home plate.

— Viemos para o grande jogo? — Eu pergunto a Libby.

Ela me puxa pelos degraus do prédio e entra em um saguão mofado. Uma horda

de adolescentes em collants de balé passa correndo, gritando e rindo, para subir a

escada à nossa direita. Meia dúzia de crianças mais novas em collants coloridos estão

esparramadas no chão limpando tapetes de ginástica azuis.

Libby diz:

— Acho que é por ali.

Passamos por cima e ao redor das pequenas ginastas e passamos por outro

conjunto de portas em uma sala espaçosa cheia de conversas ecoantes e cadeiras

dobráveis. Para meu alívio, ninguém está vestindo um collant, então provavelmente

não estamos aqui para uma aula de ginástica para grávidas, o que definitivamente

me parece algo para o qual Libby nos inscreveria.

Eu localizo Sally perto da frente, agarrando o ombro de um homem loiro mais

velho enquanto ela ri (e, eu tenho certeza, chupa uma caneta vape). Algumas fileiras

atrás dela estão a barista do Mug + Shot com o piercing de septo e Amaya, a

bartender bonita e ex do Charlie.

Libby me puxa para a última fila, onde pegamos dois lugares no momento em que

alguém bate um martelo na frente da sala.

Há um palco lá, mas o pódio fica no chão, no nível das cadeiras. A mulher atrás

dele tem o maior e mais ruivo cabelo que eu já vi, as únicas luzes acesas na sala

brilhando sobre ela como um holofote difuso.

— Vamos começar, pessoal! — ela late, e a multidão se aquieta enquanto a música

do piano vem do andar de cima.

Eu me inclino para Libby, assobiando:

— Você me trouxe para um julgamento de bruxas?


— O primeiro item que estamos considerando — diz a ruiva — é uma reclamação

contra o negócio no número 1480, da rua principal, atualmente conhecido como

Mug and Shot 7 .

— Espere — eu digo. — Nós somos...

Libby me silencia assim que a barista salta de seu assento, girando para um

homem careca alguns assentos adiante.

— Nós não vamos mudar nosso nome de novo, Dave!

— Parece — Dave explode — como um lugar para vagabundos e criminosos!

— Você não estava feliz com Cafeteria Grão Fino...

— É um trocadilho fraco — argumenta Dave.

— Você teve um ataque quando éramos Alguns Gostam Quente.

— É praticamente pornográfico!

A ruiva bate o martelo. Amaya puxa a barista de volta para seu assento.

— Vamos colocar em votação. Todos a favor de renomear Mug and Shot. —

Algumas mãos se erguem, incluindo Dave. Ela bate o martelo novamente. — Moção

rejeitada.

— Não há absolutamente nenhuma maneira disso se sustentar em um tribunal

— eu sussurro, espantada.

— O que eu perdi?

Eu pulo no meu assento enquanto Charlie desliza na cadeira ao meu lado.

— Não muito. “Dave” simplesmente apresentou uma moção para renomear cada

Peter na cidade para algo menos pornográfico.

— Alguém já chorou? — Charlie pergunta.

— As pessoas choram? — Eu sussurro.

Ele deixa cair a boca ao lado da minha orelha.

— Da próxima vez, tente não parecer tão animada com o pensamento de miséria.

Vai ajudá-la a se misturar melhor.

— Considerando que estamos na parte dos desordeiros da multidão, eu não estou

tão preocupada em me misturar — eu sussurro de volta. — O que você está fazendo

aqui?

— Meu dever cívico.

Eu o corrijo com um olhar.

— Há uma votação com a qual minha mãe está animada. Eu não sou nada além

de uma mão no ar. Estou feliz por ter vindo agora, terminei as novas páginas. Eu

tenho anotações.

Eu giro em direção a ele, a ponta do meu nariz quase roçando o dele no escuro.

— Já?

— Acho que devemos tentar começar o livro no acidente da Nadine — ele

sussurra.

Eu ri. Várias pessoas na fila à nossa frente me encaram. Libby me dá um tapa no

peito, e eu sorrio me desculpando. Quando nosso público volta a assistir à nova

7

Mug + Shot é um trocadilho com a palavra Mugshot, em inglês, que são as fotos tiradas em delegacia

quando alguém vai preso, e a separação das sílabas, Mug (caneca) e shot (dose).


discussão na frente da sala, entre um homem e uma mulher cujas idades combinadas

devem chegar a duzentos, eu encaro Charlie novamente, que sorri.

— Acho que você precisava de ajuda para se misturar, afinal.

— O acidente é depois de cinquenta páginas — eu assobio de volta. — Perdemos

todo o contexto.

— Acho que não. — Ele balança a cabeça. — Eu gostaria de pelo menos sugerir

isso a Dusty e ver o que ela pensa.

Eu balanço minha cabeça.

— Ela vai pensar que você odeia as primeiras cinquenta páginas das cem que ela

te enviou.

— Você sabe o quanto eu queria este livro — diz ele — apenas baseado naquelas

dez primeiras. Eu simplesmente quero que seja sua melhor versão, assim como você.

E Dusty. A propósito, o que você achou do gato?

Eu me preocupo com meu lábio e recebo uma dose de satisfação pura e não

diluída com a maneira como ele assiste a ação. Deixo a pausa durar mais do que é

estritamente natural.

— Estou preocupada que fique muito parecido com o cachorro em Once.

Charlie pisca. Eu vejo o momento em que ele encontra seu lugar na conversa

novamente.

— Exatamente o que eu penso.

— Teríamos que ver onde ela planeja levá-lo — eu digo.

— Nós apenas mencionamos a semelhança e deixamos que ela decida — ele

concorda.

A ruiva bate o martelo, mas o velho e a mulher na frente continuam gritando um

com o outro por mais vinte segundos. Quando ela finalmente os faz parar, eles, sem

brincadeira, acenam com a cabeça, pegam as mãos um do outro e voltam para seus

lugares juntos.

— Isso é como algo saído de Macbeth — eu me maravilho.

— Você deveria ver como é o planejamento de eventos de férias — diz ele. — É

um banho de sangue. Melhor dia do ano.

Eu sufoco uma risada com as costas da minha mão. Seu rosto se contorce, e meu

coração palpita com o olhar extraordinariamente satisfeito em seu rosto. Em minha

mente, eu o ouço dizendo: Você é muito mais divertida assim.

Eu me viro antes que o olhar possa afundar ainda mais na minha corrente

sanguínea.

— O que você achou das motivações de Nadine? — ele sussurra, conseguindo

fazer as palavras soarem naturalmente sexuais. Quatro pontos diferentes no meu

corpo começam a formigar.

Foco.

— Para qual parte?

— Atravessando a rua correndo antes que a placa mudasse para CAMINHADA —

ele esclarece, a decisão que leva Nadine ao hospital, quando um ônibus a atinge.

Isso mesmo: minha procuração quase morre com cinquenta páginas no livro. Ou

na primeira página, se Charlie conseguir.


— Eu me pergunto se ela estar com pressa legítima enfraquece o argumento de

Dusty — eu sussurro. — Nós devemos pensar que esta mulher é um tubarão frio e

egoísta. Talvez ela devesse estar correndo só por correr, porque é isso que ela faz.

Eu juro que os olhos de Charlie piscam no escuro.

— Você daria uma boa editora, Stephens.

— E com isso — eu digo — você quer dizer que concorda comigo.

— Acho que precisamos ver Nadine exatamente como o mundo a vê, antes que a

cortina seja puxada para trás.

Eu o estudo. Ele tem um ponto. É sempre uma coisa estranha, trabalhar com

apenas um pedaço de um livro, sem saber ao certo o que vem a seguir, especialmente

para alguém que nem gosta de ler dessa maneira, mas eu conheço a escrita de Dusty

como meu próprio batimento cardíaco, e tenho um sentimento que Charlie está

certo sobre este.

— Então — ele sussurra — você vai contar a ela sobre as primeiras cinquenta

páginas?

— Eu vou perguntar a ela — eu desvio. Mesmo quando estamos concordando um

com o outro, nossas conversas parecem menos como se estivéssemos nos revezando

carregando a tocha e mais como se estivéssemos jogando tênis de mesa enquanto a

mesa está pegando fogo.

Charlie estende a mão para apertarmos. Eu hesito antes de deslizar minha palma

na dele, este toque cuidadoso desvendando pedaços da outra noite em minha mente

como bobinas de filme. Suas pupilas se expandem, os fios dourados ao redor deles

ardendo, e seu pulso salta na base de sua garganta.

Poder ler um ao outro tão bem vai complicar essa “relação de negócios”.

Onde sua coxa não toca a minha, parece uma faca quente encostada na manteiga.

Alguém perto da frente da sala dá uma tosse cortante que estoura a bolha. Ao

nosso redor, os braços estão no ar, incluindo os de Libby. Sally está retorcida na

cadeira, tossindo em nossa direção, a mão sobre a cabeça.

Charlie solta sua mão da minha e a empurra para cima. Os olhos de Sally foram

para os meus em seguida, quase implorando. Quando levanto minha mão, ela sorri

e se vira na cadeira.

Enquanto a mulher ruiva está contando os votos, eu me inclino para perguntar a

Libby

— O que exatamente estamos votando?

— Você não estava ouvindo? Eles estão colocando uma estátua na praça da

cidade!

— De quem?

Charlie bufa. Libby sorri.

— De quem mais? — ela diz. — O Velho Whittaker e seu cachorro!

Uma estátua para Once In a Lifetime.

Eu me viro para Charlie, pronta para provocá-lo, mas ele encontra meu olhar com

um sorriso malicioso.

— Vá em frente e tente, Stephens; nada vai estragar minha noite.


Minha adrenalina aumenta com o desafio, mas este é um jogo muito perigoso

para eu jogar com ele, quando o meu autocontrole já está tão tênue. Em vez disso,

forço um sorriso plácido e profissional e me viro para a frente da sala.

Passo o resto da reunião presa em um jogo pior comigo mesma: não pense em

tocar na mão de Charlie. Não pense nos relâmpagos nos olhos de Charlie. Não pense

em nada disso. Foco.


PARA MINHA SURPRESA, Dusty está de acordo com os cortes. Uma hora depois

de prometer receber suas notas formais em breve, Charlie me envia um documento

de cinco páginas sobre o primeiro ato de Frigid.

Eu o examino no café enquanto Libby está reorganizando a sala de livros infantis

e cantando uma versão desafinada de “My Favorite Things”, mas substituindo todas

as coisas listadas por suas próprias preferências: livros sem orelhas e capas novas e

brilhantes, limpeza e arrumação e ler sobre amor!

Reenvio o documento de Charlie com sessenta e quatro alterações controladas, e

ele responde em poucos minutos, como se não estivéssemos a seis metros de

distância, com ele no caixa e eu no café.

Você é absolutamente cruel, Stephens.

Escrevo de volta, tenho uma reputação a zelar.

Eu ouço a risada baixa na sala ao lado tão claramente como se seus lábios

estivessem pressionados no meu estômago.

Na sala de livros usados e raros, Libby cantando, Gatos nas vitrines e café com

muita cafeína.

Estes elogios não são um pouco exagerados? Charlie me manda um e-mail. Talvez

referindo-se aos quarenta e tantos elogios que inseri em seu documento.

Você ama as páginas, eu respondo. Eu só adicionei detalhes.

Parece ineficiente e condescendente passar tanto tempo falando sobre coisas que

ela não precisa mudar.

Se você disser a Dusty para cortar um monte de coisas, mas não deixar claro o que

está funcionando, corre o risco de perder as coisas boas.

Passamos o documento de um lado para o outro até ficarmos satisfeitos e depois

o enviamos. Não espero ter notícias de Dusty por dias. Sua resposta chega duas

horas depois.

Tantas grandes ideias aqui. Muito o que pensar, e eu vou começar a trabalhar para

incorporar as mudanças. A única coisa é que precisamos manter o gato. Enquanto isso,

terminei de limpar as próximas cem páginas (em anexo).


Ela me manda um e-mail privado, seu assunto é Mas falando sério e o corpo você

pode ser minha co-editora para sempre? Estou realmente animada para começar.

Beijos

Sinto-me como uma lâmpada acesa, toda quente e resplandecente de orgulho.

Charlie me manda outra mensagem, e todo aquele calor se reforça, como um

daqueles presentes de cobras em lata sendo reiniciados para outra tentativa.

Acho que podemos funcionar bem juntos, Stephens.

Uma estrela muito pequena se aloja em meu diafragma. Eu respondo, sim, juntos

nós somamos um humano emocionalmente competente, uma verdadeira realização,

então ouço sua risada rouca.

Mas outro som chama minha atenção para a janela, a voz de Libby, abafada pelo

vidro, mas ainda meio gritando, obviamente frustrada. Sigo o labirinto de prateleiras

em direção à frente da loja, onde posso vê-la pela vitrine na calçada, o telefone

encostado no ouvido e uma mão protegendo os olhos do sol.

Sua postura é defensiva, seus ombros levantados, cotovelos dobrados contra

seus lados. Ela dá um bufo frustrado, diz outra coisa e desliga. Vou em direção à

porta da frente para encontrá-la, mas ela enfia a bolsa no ombro e sai pelo outro lado

da rua, virando à direita e marchando rapidamente.

Eu congelo no meio do passo, meu estômago afundando.

O que acabou de acontecer?

Meu telefone toca, e eu pulo com o som. É uma mensagem de Libby. Tinha

algumas coisas para fazer! Devo estar em casa por volta das oito.

Eu engulo uma bola de tensão do tamanho de um punho e escrevo de volta, Algo

em que eu possa ajudar? Não há muito trabalho a fazer hoje. Uma mentira descarada,

mas ela não está aqui para ver isso na minha cara.

Não! ela diz. Estou aproveitando o tempo sozinha, sem ofensa. Até mais!

Eu ando de volta para o meu computador em transe. Parece uma espécie de

traição, mas não sei mais o que fazer neste momento, semanas nesta viagem e nem

um pouco perto de qualquer resposta. Eu mando uma mensagem para o Brendan.

Ei, como estão as coisas em casa? Libby chegou a te ligar de volta?

Ele responde imediatamente. As coisas estão boas! Sim, nos falamos! Tudo bem aí?

Eu tento quatorze versões diferentes de O que há de errado com minha irmã antes

de aceitar que ela definitivamente ficaria furiosa comigo se descobrisse que eu

perguntei para ele. As regras que regem a dinâmica familiar são absurdas, mas

também rígidas. Mamãe sabia exatamente como nos abrir, mas estou cada vez mais

me sentindo como se estivesse em uma caverna com armadilhas, o coração de Libby

em um estrado no centro. Cada passo que dou corre o risco de piorar as coisas.

Tudo certo! Escrevo de volta para Brendan e volto meu foco para o trabalho. Ou

tento.

No resto da tarde, os clientes vêm e vão, mas na maior parte do tempo Charlie e

eu somos as duas únicas pessoas na loja, e nunca fui menos produtiva.

Depois de um tempo, ele manda uma mensagem da mesa: Onde foi a Julie

Andrews?


De volta ao convento, escrevo. Ela desistiu. Ela não poderia ajudá-lo.

Eu tenho esse efeito, ele diz.

Não em Dusty, eu escrevo. Ela está amando você.

Ela está nos amando, ele corrige. Como eu disse, funcionamos bem juntos.

Eu procuro uma resposta e não encontro nenhuma. A única coisa em que posso

realmente pensar é no olhar tenso no rosto da minha irmã e sua partida repentina.

Libby tinha alguns planos misteriosos, digo a ele.

Ele diz: Deve ser a grande inauguração do Dunkin' Donuts, duas cidades adiante.

Um minuto depois, ele acrescenta, você está bem? Como até mesmo de cômodos

separados, com várias telas entre nós, ele está lendo meu humor. O pensamento

envia uma estranha dor oca pelos meus membros. Algo como a solidão. Algo como

Ebenezer Scrooge assistindo a festa de Natal de seu sobrinho Fred pela janela gelada.

Uma exterioridade tornada ainda mais gritante pela revelação da interioridade.

Tudo o que eu realmente quero é me sentar na beirada da mesa de Charlie e

contar tudo a ele, fazê-lo rir, deixá-lo me fazer rir até que nada pareça tão urgente.

Tudo bem, eu escrevo de volta. Depois, me pego atualizando meu e-mail algumas

vezes e me forço a clicar de volta no manuscrito. Estou tão distraída tentando me

distrair, são oito minutos depois das cinco quando olho novamente para o relógio.

A loja está silenciosa, e eu arrumo as minhas coisas com o cuidado de quem tenta

não acordar um bando de leões famintos. Coloco minha bolsa no ombro e saio

correndo do café, ainda sem saber se Charlie é o leão do cenário ou se eu sou.

É nisso que estou pensando quando passo pela porta e quase colido com Charlie

do outro lado, o que pode explicar por que grito:

— LEÃO!

Seus olhos se arregalam. Suas mãos voam na frente de seu rosto (talvez ele tenha

pensado que eu quis dizer, Aqui está um leão! Pegue!), e milagre de todos os milagres,

nós dois paramos, caindo quase grudados na calçada, mas tocando absolutamente

em algum lugar.

Meu coração palpita. Meu peito cora.

— Eu não sabia que você ainda estava aqui — diz ele.

— Eu estava — eu digo.

— Você sempre sai às cinco. — Ele muda o regador da mão esquerda para a

direita. Atrás dele, as flores na vitrine da loja brilham, gotículas gordas grudadas em

suas pétalas laranja e rosa e brilhando à luz da tarde. — Exatamente às cinco —

acrescenta Charlie.

— Fiquei um pouco ocupada — minto.

Seus olhos disparam para o meu queixo. Minha pele aquece mais dez graus.

Tranquilamente, ele começa:

— Está tudo bem? Você não parecia...

— Ei! Charlie! — Uma voz baixa e suave o interrompe. Do outro lado da rua, um

homem gigante e angelical com covinhas gêmeas e olhos de pedras preciosas está

saindo de uma caminhonete enlameada.

— Shepherd — Charlie diz, um tanto rígido, seu queixo mergulhando em

saudação. Não é como se houvesse punhais em seus olhos, mas ele também não


parece feliz em ver Shepherd. História, subtexto, plano de fundo… como você quiser

chamar, essas duas pessoas têm.

— Sally me pediu para deixar isso aqui — diz Shepherd, empurrando uma sacola

na direção de Charlie enquanto ele atravessa a rua em nossa direção.

Charlie agradece, mas Shepherd está de frente para mim agora, seu sorriso se

alargando.

— Ora, ora, ora, se não é a Nora de Nova York — diz ele. — Disse que nos

encontraríamos novamente.

Li uma vez que os girassóis sempre se orientam para o sol. É assim que estar

perto de Charlie Lastra é para mim. Poderia haver um violento incêndio florestal

correndo em minha direção do oeste e eu ainda estaria me esforçando para o leste

em direção ao seu calor.

Então, apesar de ter oitenta por cento de certeza de que Shepherd está flertando

comigo, é claro que olho diretamente para Charlie. Ou melhor, para a porta da loja

se fechando atrás dele.

— Ei — diz Shepherd. — Alguma chance de você estar livre agora? Eu poderia te

dar aquele passeio sobre o qual conversamos?

— Hum. — Verifico meu telefone, mas ainda não há novas mensagens de Libby.

Por um instante, a ansiedade cresce em todos os meus lados, uma centena de punhos

batendo nas portas da minha mente, exigindo se soltarem. Enfio meu telefone de

volta na minha bolsa. Concentre-se em algo que você pode controlar. A lista. Número

cinco.

Resistindo à vontade de olhar para trás na vitrine, encontro os olhos de

Shepherd, sorrio e minto entre dentes:

— Um passeio parece perfeito.

Dirigimos com as janelas abaixadas, o cheiro de pinheiro, suor e terra queimada

pelo sol trançado ao vento. Eu nunca vi nada parecido com a Blue Ridge Parkway, a

forma como suas curvas fáceis são cortadas na lateral das montanhas, de modo que

as copas das árvores se erguem sobre nós de um lado e se desenrolam abaixo de nós

do outro. Shepherd é uma visão rara também. Ele tem o tipo de antebraços em que

os autores poderiam gastar páginas inteiras, grossos com músculos e polvilhados

com fios loiros dourados. Ele cantarola a música country no rádio, os dedos

tamborilando no volante e na embreagem.

Depois da emoção inicial de fazer algo espontâneo, os nervos se instalaram. Faz

muito tempo que não saio com um homem não avaliado. Deixando de lado a

possibilidade de ele ser um estuprador, assassino ou canibal, também não sei como

falar com um homem sobre o qual não sei nada e não estou considerando como

parceiro de longo prazo.

Você pode fazer isso, Nora. Você não é Nadine para ele. Você pode ser qualquer um.

Apenas diga alguma coisa.

Ele finalmente me tira da miséria:

— Então, Nora, o que você faz?


— Eu trabalho com publicação — eu digo. — Sou uma agente literária.

— Não brinca! — Seus olhos verdes piscam da estrada para mim. — Então você

já conhecia Charlie, antes de sua visita?

Meu estômago cai, então sobe no meu peito.

— Não realmente — eu digo evasivamente.

Shepherd ri, um som claro e retumbante.

— Uh-oh. Conheço esse olhar, não julgue o resto de nós com base nele.

Sinto uma onda de proteção, ou talvez seja empatia, uma compreensão de que

pode ser assim que as pessoas falam sobre mim. Simultaneamente, porém, estou

irritada que eu literalmente entrei no carro de um estranho como se fosse uma

cápsula de fuga no espaço profundo, e de alguma forma o espectro de Charlie ainda

está aqui.

— Ele não é tão ruim quanto parece — Shepherd continua. — Quero dizer,

voltando aqui para ajudar Sal e Clint, quando praticamente tudo o que ele queria era

ficar longe de… — Ele acena com a mão em um arco amplo, gesticulando em direção

à estrada salpicada de sol à nossa frente. Ele vira em uma rua lateral que serpenteia

mais acima no sopé que estamos subindo.

— Então, o que você faz? — Eu digo.

— Trabalho com construção — diz ele. — E faço algumas carpintarias também,

quando tenho tempo.

— Claro que sim — digo acidentalmente em voz alta.

— O que foi isso? — ele pergunta, os olhos brilhando como esmeraldas bem

iluminadas.

— Só quero dizer, você parece um carpinteiro.

— Oh.

Eu explico

— Os carpinteiros são famosos por serem bonitos.

Sua testa enruga enquanto ele sorri.

— Eles são?

— Quero dizer, carpinteiros são os interesses amorosos em muitos livros e

filmes. É uma trope comum. É como você mostra alguém pé no chão e paciente, e

gosotoso sem ser superficial.

Ele ri.

— Isso não soa tão ruim, eu acho.

— Desculpe, já faz um tempo desde que eu fui… — Eu paro de dizer em um

encontro, o que definitivamente não é, e termino com o muito mais trágico — para

qualquer lugar.

Ele sorri, como se nem tivesse ocorrido a ele que eu poderia ter escapado

recentemente de uma escotilha apocalíptica no chão depois de anos de pouca ou

nenhuma socialização.

— Bem, então, Nora de Nova York, eu sei exatamente para onde estou levando

você.


Eu não sou muito de engasgar, reações dramáticas e audíveis são mais o terreno

de Libby, mas quando eu saio da caminhonete, não posso evitar.

— Aposto que você não tem vistas como essa em Nova York — diz Shepherd com

orgulho.

Não tenho coragem de dizer a ele que não estava ofegante com a vista. Embora

seja linda, fiquei realmente impressionada com a casa construída de três quartos

que fica no cume, com vista para o vale abaixo de nós. Do outro lado, o sol se põe no

horizonte, cobrindo tudo com um favo de mel dourado que pode ser minha nova cor

favorita.

Mas a casa, um enorme rancho moderno com uma parede de trás feita

inteiramente de vidro, está em chamas na lavagem ardente do pôr do sol.

— Você construiu isso? — Eu olho por cima do meu ombro para encontrar

Shepherd puxando um cooler da parte de trás de sua caminhonete, junto com um

cobertor azul.

— Estou construindo — ele corrige, fechando a porta traseira. — É para mim,

então está levando anos, entre trabalhos remunerados.

— É incrível — eu digo.

Ele coloca o cooler no chão e estica o cobertor.

— Queria morar aqui desde os dez anos. — Ele gesticula para que eu me sente.

— Você sempre quis trabalhar com construção? — Eu coloco minha saia contra

minhas coxas e me abaixo no chão, assim que Shepherd pega duas latas de cerveja

do cooler e cai ao meu lado.

— Engenheiro estrutural, na verdade — diz ele.

— Ok, nenhuma criança de dez anos quer ser engenheira estrutural — eu digo.

— Elas nem sabem que isso é uma coisa. Francamente, acabei de descobrir que era

uma coisa neste momento.

Sua risada baixa e agradável ressoa pelo chão. Eu recebo aquela dose de

adrenalina que fazer qualquer um rir envia através de mim, mas a sensação de

bêbada-ou-borboletas-no-estômago está desagradavelmente ausente. Eu ajusto

minhas pernas para que elas fiquem um pouco mais perto das dele, deixo nossos

dedos se roçarem enquanto aceito uma cerveja dele. Nada.

— Não, você está certa — diz ele. — Quando eu tinha dez anos, queria construir

estádios. Mas quando fui para Cornell, já tinha entendido.

Eu engasgo com minha cerveja, e não só porque é nojenta.

— Você está bem? — Shepherd pergunta, acariciando minhas costas como se eu

fosse um cavalo assustado.

Eu concordo.

— Cornell — eu digo. — Isso é muito chique.

Os cantos de seus olhos se enrugam generosamente.

— Você está surpresa?

— Sim — eu digo — mas só porque eu nunca conheci um ex-aluno de Cornell que

esperou tanto tempo para mencionar que ele era um ex-aluno de Cornell.

Ele joga a cabeça para trás, rindo, e passa a mão pela barba.


— Justo. Eu provavelmente costumava falar um pouco mais sobre isso antes de

me mudar para casa, mas não importa onde eu fui para a faculdade, as pessoas aqui

ainda ficam mais impressionadas com meus anos como quarterback.

— Como o que? — Eu digo.

— Quarterback. é uma posição em… — Ele para enquanto observa minha

expressão, um sorriso se formando no canto de sua boca. — Você está brincando.

— Desculpe — eu digo. — Mau hábito.

— Não é tão ruim — diz ele, uma ponta de flerte em sua voz.

Eu cutuco seu joelho com o meu.

— Então, como você acabou voltando aqui? Você disse que morou em Chicago

por um tempo?

— Logo que saí da faculdade, consegui um emprego lá — diz ele. — Mas eu senti

muita falta de casa. Eu não queria ficar longe de tudo isso.

Sigo seu olhar sobre o vale novamente, roxos e rosas fervilhando sobre ele

enquanto a sombra se desenrola no horizonte. Trilhões de mosquitos e moscas

dançam na luz moribunda, o próprio balé cintilante da natureza.

— É lindo — eu digo.

Aqui em cima, o silêncio parece mais calmante do que assustador, e ele veste tão

bem a umidade espessa que sou capaz de (um pouco) acreditar que também não

pareço uma borboleta encharcada. A pegajosidade quente é quase agradável, e o

cheiro de grama é calmante. Nada parece urgente.

No fundo da minha mente, uma voz familiarmente rouca diz: Você prefere estar

em algum lugar barulhento e lotado, onde apenas existir parece uma competição.

Sinto olhos em mim, e quando olho de lado, a surpresa é desorientadora. Como

se eu tivesse esperado outra pessoa.

— O que a traz aqui? — Shepherd pergunta.

O sol está quase totalmente desaparecido agora, o ar finalmente esfriando.

— Minha irmã.

Ele não pressiona por informações, mas deixa espaço para eu continuar. Eu tento,

mas tudo o que está acontecendo com Libby é tão intangível, impossível de detalhar

para um estranho quase perfeito.

— Espere aqui um segundo — diz Shepherd, pulando. Ele volta para sua

caminhonete e vasculha a cabine até que a música country estala dos alto-falantes,

uma balada lenta e cantada com bastante sotaque. Ele deixa a porta entreaberta e

volta para mim, esticando a mão com um sorriso quase tímido. — Gostaria de

dançar?

Normalmente, eu não poderia imaginar nada tão mortificante, então talvez a

magia da cidade pequena seja real. Ou talvez alguma combinação de Nadine, Libby

e Charlie tenha soltado algo em mim, porque sem hesitar, coloco minha cerveja de

lado e pego sua mão.


POSSO VER A CENA SE DESENROLANDO como se estivesse acontecendo com

outra pessoa. Como se estivesse lendo, e no fundo da minha mente, não consigo

parar de pensar: Isso não acontece.

Só que, aparentemente, acontece. As tropes vêm de algum lugar e, como se vê,

desde tempos imemoriais, as mulheres dançam lentamente ao som de música

country estática com arquitetos-carpinteiros gostosos enquanto sombras profundas

se desenrolam sobre vales pitorescos, grilos cantando como violinos.

Shepherd cheira como eu me lembrava. Folhas e couro e luz solar.

E tudo parece bom. Como se eu estivesse me soltando de todas as maneiras certas

e não das que poderiam voltar para me morder.

Tome isso, Nadine. Estou presente. Estou suada. Estou seguindo a deixa de outra

pessoa, deixando Shepherd me girar para fora, e depois para dentro. Não estou

rígida, dura, fria. Ele me mergulha, e na meia-luz ele pisca aquele sorriso de estrela

de cinema antes de me balançar de volta em meus pés.

— Então — ele diz — está funcionando?

— O que está funcionando? — Eu pergunto.

— Estamos te conquistando? — ele diz. — Para Sunshine Falls.

Alguém como você, com sapatos assim, nunca poderia ser feliz aqui. Não alimente

as esperanças de um pobre criador de porcos à toa.

Eu perco um passo, mas Shepherd é muito gracioso para que isso importe. Ele

pega meu peso e me move por um quarto de volta, todos os problemas evitados,

exceto no que diz respeito aos meus calcanhares. Eles estão cobertos de sujeira,

manchados de grama, e estou furiosa comigo mesma por perceber.

Por relembrar Charlie me carregando pela encosta depois do nosso jogo de

sinuca.

Do lado de fora, Shepherd e eu ainda formamos aquela cena perfeita, de apertar

o coração, mas tenho aquela sensação de estar de fora novamente. Como se não fosse

realmente eu, aqui nos braços de Shepherd. Ou como se eu ainda estivesse do lado

errado da janela.

A imagem é imediata, intensa: Nossa velha janela. Nosso apartamento. Uma

cozinha com piso pegajoso e uma bancada laminada encharcada. Eu e Libby em cima

dela, mamãe encostada nela. Uma caixa de sorvete de morango e três colheres.

Isso me atinge como um susto de filme de terror. Como se eu virasse em uma

curva e encontrasse um penhasco.


Eu aperto meus dedos nos de Shepherd, deixo ele me puxar para mais perto, meu

coração disparado. Eu volto para a pergunta dele e gaguejo:

— Isso definitivamente está causando uma boa impressão.

Se ele notou a mudança em mim, ele não dá nenhuma indicação. Ele sorri

docemente e coloca uma mecha de cabelo atrás da minha orelha. É isso, eu percebo.

Estou prestes a beijar um homem bom e bonito em um encontro não planejado em

um lugar desconhecido. É assim que a história deveria ser, e finalmente é.

Sua testa abaixa em direção à minha, e meu telefone toca na minha bolsa.

Instantaneamente, outra janela brilha em minha mente. Outro apartamento. Meu.

O sofá floral macio, as pilhas intermináveis de livros, minha vela Jo Malone

favorita queimando na lareira. Eu descansando em um roupão antigo e uma máscara

facial com um manuscrito novo e brilhante, e do outro lado do sofá, um homem com

a testa franzida, a boca em um nó, livro na mão.

Charlie, batendo no meu cérebro como uma aspirina, se dispersando em todas as

direções.

Meu rosto se move para o lado. Shepherd para de repente, sua boca pairando a

uma polegada da minha bochecha.

— Eu deveria voltar para minha irmã! — Sai não planejado e cerca de sessenta

vezes mais alto do que eu pretendia. Mas não posso continuar com isso. Meu cérebro

parece muito enlameado.

Shepherd recua, vagamente intrigado, e sorri bem-humorado.

— Bem, se você precisar de um guia turístico novamente… — Ele enfia a mão no

bolso da camisa e tira um pedaço de papel e uma caneta Bic azul, rabiscando na

palma da mão. — Não desapareça. — Ele me entrega o número, então hesita por um

segundo antes de dizer — Ou mesmo se você não precisar de um guia turístico.

— Sim — eu gaguejo. — Eu vou te ligar. — Assim que eu descobrir o que está

acontecendo na minha cabeça.

Charlie empurra meu café pelo balcão.

— Precisamente na hora — diz ele. — Então eu acho que Shepherd não quebrou

sua maldição de pessoa da cidade.

Por alguma razão, sua confirmação de que ele me viu entrando na caminhonete

ontem me irrita. Como se fosse a prova de que ele invadiu meus pensamentos de

propósito.

Eu coloco meus óculos de sol em cima da minha cabeça e paro na mesa.

— Tivemos um tempo muito bom. Muito obrigada por perguntar. — Estou brava

com ele. Estou brava comigo. Eu sou geralmente, irracionalmente brava.

Os músculos da mandíbula de Charlie saltam.

— Para onde ele levou você? O Creamy Whip na próxima cidade? Ou o

estacionamento do Walmart para observar as estrelas de caminhão?

— Cuidado, Charlie — eu digo. — Isso soa como ciúme.

— É alívio — diz ele. — Eu esperava que você aparecesse aqui hoje em shortinhos

e tranças, talvez uma tatuagem de Ford em seu cóccix.


Eu deslizo meus antebraços sobre a mesa e me inclino para frente de tal forma

que eu realmente poderia ter trazido uma bandeja de prata e apresentado meu

decote para ele dessa maneira. A falta de sono está realmente me afetando. Eu me

sinto assombrada por ele, e estou determinada a assombrá-lo de volta.

— Eu ficaria — eu abaixo minha voz — adorável em shortinhos e tranças.

Seus olhos voltam para o meu rosto, piscando; sua boca se contorce através

daquele beicinho/careta, um par tão confiável quanto um trovão e um relâmpago.

— Não é a palavra que eu usaria.

Consciência chia na minha espinha dorsal. Eu me inclino mais perto.

— Encantadora?

Seus olhos permanecem no meu rosto.

— Nem isso também.

— Doce — eu digo.

— Não.

— Um chuchu? — Eu acho.

— Chuchu? Em que ano estamos, Stephens?

— Uma verdadeira garota que mora ao lado — eu desvio.

Ele bufa.

— Ao lado de quem?

Eu endireito.

— Vou me acostumar.

— Duvido — diz ele baixinho.

A auto-satisfação dura o tempo que leva para me instalar no café e puxar minha

lista de verificação para as tarefas de hoje. Há propostas que não terminei de marcar

ontem, consultas que preciso enviar sobre pagamentos atrasados e listas de envios

que preciso solidificar antes que a baixa temporada termine.

Mais uma vez meu trabalho precisa de toda a minha atenção, e mais uma vez não

consigo compartimentar o suficiente para que isso aconteça. O jantar de ontem à

noite com Libby continua girando em minha mente como borboletas em chamas. Ela

estava efusivamente animada, nenhum sinal de algo errado, até que eu a pressionei

em suas misteriosas tarefas, momento em que sua energia diminuiu e seus olhos

endureceram.

— Uma mulher adulta não pode ter um pouco de tempo sozinha? — ela disse. —

Acho que tenho o direito a um pouco de privacidade.

E foi isso. Nós deixamos o constrangimento de lado, mas pelo resto da noite, um

pouco dessa distância voltou aos olhos dela, um segredo pairando entre nós como

uma parede de vidro ou um bloco de gelo, mais ou menos invisível, mas

decididamente físico.

Abro as páginas de Dusty e me imagino em um submarino, afundando neles,

incitando o mundo ao meu redor a se tornar monótono. Nunca é preciso esforço, foi

isso que me fez me apaixonar pela leitura: a sensação instantânea de flutuação, a

dissolução dos problemas do mundo real, cada preocupação de repente segura do

outro lado de alguma superfície metafísica. Hoje é diferente.


Os sinos tocam na frente da loja, e um ronronar familiar e feminino de uma voz

cumprimenta Charlie. Ele responde calorosamente, e ela dá uma risada sexy. Não

consigo entender cada palavra, mas todas as poucas frases são pontuadas pelo

mesmo som grave.

Amaya, eu percebo, enquanto ela está dizendo algo como

— Ainda estamos combinados para sexta-feira?

Charlie diz algo como:

— Ainda funciona para mim.

E meu cérebro diz algo como NÃO FUNCIONA PARA MIM. DE JEITO NENHUM.

Ao que o anjo da carreira no meu ombro responde: Cale a boca e cuide da sua

vida. Ele não deveria ocupar nenhum de seus pensamentos de qualquer maneira.

Coloco fones de ouvido e explodo meus sons de paisagem urbana para me fazer

parar de ouvir, mas nem mesmo os tons doces dos melhores taxistas de Nova York

xingando uns aos outros são suficientes para me acalmar.

Charlie disse que Amaya não foi abandonada, o que provavelmente significa que

ela terminou com ele. Não quero seguir esse pensamento até sua conclusão lógica,

mas meu cérebro é um trem desgovernado, esmagando estação após estação com

velocidade implacável.

Charlie não queria que o relacionamento terminasse.

Amaya lamenta sua decisão agora.

As coisas são complicadas para Charlie. O que quer que esteja acontecendo entre

ele e eu “não pode ser nada”.

Charlie está mantendo a porta aberta para algo com sua ex.

Amaya acabou de convidá-lo para sair.

Quero dizer, essa é apenas uma linha possível, mas é assim que meu cérebro

funciona: ele traça.

É por isso que paixões são terríveis. Você passa de sentir que a vida é um caminho

plano que só precisa percorrer para passar cada segundo em uma inclinação, ou

pega em uma queda livre, de estômago na garganta. É mamãe correndo para pegar

um táxi, cabelo enrolado e lábios sorridentes pintados, apenas para voltar para casa

com manchas de rímel no rosto. Altos e baixos, e nada no meio.

Quando Libby finalmente aparece, fico grata pelas tarefas relacionadas ao

número doze que ela me atribui, mesmo que sejam todas do tipo tirar o

pó/esfregar/organizar.

Charlie permanece a maior parte do tempo escondido no escritório, e quando ele

sai para ajudar os clientes, evito olhar para ele e de alguma forma ainda sempre sei

exatamente onde ele está.

Após nosso intervalo para o almoço, Libby coloca alguns cartões de

Recomendação para Amantes de Livros no caixa para os clientes preencherem, junto

com uma caixa de decoupage para devolver os cartões. Ela me entrega três cartões

“para começar”, e ando pela loja em busca de inspiração. Vejo o livro de January

Andrews que comprei no meu primeiro fim de semana aqui, aquele que Sally me

disse que Charlie havia editado, e apoio meu cartão na estante para rabiscar algumas

linhas. Em seguida, escolho um romance de Alyssa Cole que Libby me emprestou no


ano passado, que cometi o erro de abrir no meu telefone e acabei devorando em

duas horas e meia na frente da minha geladeira.

Em seguida, entro na sala de livros infantis e me endireito para me encontrar cara

a cara com Charlie. Ímãs, eu acho. Ele pega meus cotovelos, me segurando antes que

possamos colidir, mas você ainda pensaria que fomos esmagados um contra o outro

da boca à coxa com base no calor instantâneo que brota em mim.

— Eu não sabia que você estava aqui! — digo com pressa. Grande melhoria em

relação ao LEÃO!

Eu vejo a faísca em seus olhos de açúcar queimado no segundo em que a resposta

perfeita aparece em seu cérebro, e eu sinto a gota de decepção quando ele decide,

em vez disso, dizer:

— Inventário. — Ele me solta e levanta a prancheta da prateleira. Uma colossal

distância de 8,5 centímetros nos separa, e uma carga elétrica salta dele, zumbindo

em minhas veias. — Eu vou deixar você voltar para…

Ainda nenhum de nós se move.

— Então você e Amaya estão saindo. — Acrescento, quase involuntariamente —

Eu não estava bisbilhotando, é uma loja silenciosa.

A sobrancelha dele está trêmula.

— “Não bisbilhotando”— ele brinca em voz baixa. — “Não perseguindo.” Estou

sentindo um padrão aqui.

— Não é ciúmes. — Eu desafio, me aproximando. — Não é adorável.

Seus olhos mergulham na minha boca e se dilatam um pouco antes de subir.

— Nora… — ele murmura, um peso em sua voz, um pedido de desculpas ou uma

súplica sem entusiasmo.

Minha garganta aperta enquanto nossos estômagos roçam, cada terminação

nervosa em alerta máximo.

— Hum?

Ele coloca as mãos em meus ombros, seu toque leve e cuidadoso.

— Eu preciso ir — diz ele baixinho, evitando meu olhar. Ele se afasta de mim e

sai da sala.

Na sexta-feira, outro lote de páginas Frigid chega às nossas caixas de entrada.

Passo as primeiras horas lendo e relendo, reunindo meus pensamentos em um

documento e resistindo à vontade de mandar uma mensagem para Charlie na outra

sala. Libby só está por perto da hora do almoço até as três, momento em que ela sai

com o lembrete de que ela tem outra surpresa para mim esta noite.

Tento me convencer de que esse foi o motivo do desaparecimento dela no outro

dia, mas não consigo evitar a ideia de que tinha algo a ver com Brendan. Eu sugeri

que fizéssemos uma videochamada para ele algumas vezes, mas ela sempre tem uma

desculpa.

Às cinco, arrumo minhas coisas e saio para encontrá-la. Mais uma vez, Charlie

não está no caixa, e agora não estou apenas irritada e frustrada, estou triste.

Eu sinto falta dele, e estou cansado de nos escondermos um do outro.


Preparando-me, entro no escritório. Ele olha para cima, assustado, de onde está

encostado na volumosa mesa de mogno do lado direito da sala, lendo. Seus olhos,

sua postura, tudo lê gato selvagem. Se por alguma estranha e antiga maldição, um

jaguar fosse transformado em homem, ele seria Charlie Lastra. Depois de um

concurso de olhares de segundos, ele se lembra de si mesmo e diz

— Você precisa de alguma coisa?

No ano passado, eu teria pensado que ele estava sendo arrogante. Agora percebo

que ele está indo direto ao ponto.

— Devemos agendar um horário para conversar sobre as próximas cem páginas.

Seus olhos me perfuraram até que há fumaça saindo da minha pele. Eu sou uma

formiga sob sua lupa iluminada pelo sol. Finalmente, ele desvia o olhar.

— Podemos fazer isso por e-mail. Eu sei que Libby está mantendo você ocupada.

— Tem que ser pessoalmente. — Não aguento mais essa tensão entre nós. Evitálo

só está piorando as coisas, e eu odeio sentir que estou me escondendo. Com Libby,

a maneira de chegar ao coração das coisas pode ser uma pista de obstáculos lenta e

cautelosa, mas este é Charlie, e Charlie é como eu. Precisamos demolir através da

estranheza. Eu sinto falta dele. Suas provocações, seus desafios, sua

competitividade, seu cuidado com meus sapatos caros, seu cheiro e...

Merda, eu não esperava que a lista fosse tão longa. Estou na merda mais do que

percebi.

— A menos que você esteja muito ocupado! — Eu adiciono.

Ele mostra seu primeiro beiço-sorriso da semana.

— Com o que eu poderia estar ocupado?

Seus planos com Amaya surgem na minha mente. Eu o imagino segurnado-a

sobre uma poça para salvar seus sapatos, abrindo um guarda-chuva para proteger

seu cabelo.

— Talvez aquela grande inauguração do Dunkin' Donuts — eu digo. — Ou o

processo de divórcio daquele casal que brigou na prefeitura.

— Ah, eles nunca vão se separar — ele diz sério. — Isso são apenas as

preliminares dos Cassidys.

Preliminares. Não é palavra que eu teria escolhido para apresentar a esta

conversa.

— Amanhã funciona para você? — Eu pergunto. — No fim da manhã?

Ele me estuda.

— Vou reservar um cômodo para nós. — Na minha expressão, ele ri. — Na

biblioteca, Stephens. Uma sala de estudos. Pare de ter a mente suja.

Acredite em mim, eu penso, eu tentei.


LIBBY ME CARREGA PARA FORA DO TÁXI DE HARDY, em direção ao som da

conversa, e me posiciona para o drama opcional.

— Ta-da!

Eu puxo para baixo o cachecol que ela me fez usar como venda e pisco contra o

rosa e laranja do crepúsculo. Estou diante da marquise de uma escola primária.

HOJE À NOITE, 19H

O TEATRO COMUNITÁRIO DE SUNSHINE FALLS APRESENTA:

ONCE IN A LIFETIME

— Ah — eu digo. — Meu. Deus.

Ela solta um grito sem palavras de excitação.

— Viu? Teatro local! Tudo o que Nova York tem, você encontra aqui também!

— Isso é… um pouco exagerado.

Libby ri, enganchando um braço em volta de mim.

— Vamos. Os ingressos são de entrada geral, e eu quero pipoca e bons lugares.

Não tenho certeza se existem “bons assentos” quando você está escolhendo entre

fileiras de cadeiras dobráveis no ginásio de uma escola. O palco é elevado, o que

significa que estaremos esticando o pescoço pela duração da peça, mas assim que as

luzes da casa se apagam, fica claro que a disposição dos assentos é o menor dos

problemas desta produção.

— Oh meu Deus — Libby sussurra, agarrando meu braço enquanto um ator se

arrasta na frente do cenário de boticário pintado. Ele vagueia até o balcão de

adereços e olha melancolicamente para uma foto emoldurada lá.

— Não — eu sussurro.

— Sim! — ela chia.

O Velho Whittaker está sendo interpretado por uma criança.

— E o abuso de drogas?! — Libby diz.

— E a overdose?! — Eu digo.

— Ele não pode nem ter treze anos, certo? — Libby sussurra.

— Ele tem a voz de um menino de coral de dez anos!

Alguém resmunga perto de nós, e Libby e eu afundamos em nossas cadeiras,

castigadas. Pelo menos até a Sra. Wilder, a dona da biblioteca, entrar no palco e eu

ter que transformar minha gargalhada em tosse.

Libby bufa ao meu lado.


— Ah meu Deus, ah meu Deus, ah meu Deus. — Ela não está olhando para o palco,

apenas olhando para os pés e tentando não explodir.

Eu abaixo minha voz perto de seu ouvido

— Qual você acha que é a diferença de idade entre esses atores? Sessenta e oito

anos?

Ela limpa a garganta para controlar sua risada.

A mulher que interpreta a Sra. Wilder poderia facilmente ser a avó do Velho

Whittaker.

Inferno, talvez ela seja.

— Talvez a pequena Delilah Tyler seja interpretada pela família Rottweiler — eu

sussurro. Libby se joga sobre a barriga, escondendo o rosto enquanto seus ombros

tremem com uma risada silenciosa.

Outro olhar sujo da mulher à nossa direita. Desculpe, eu sussurro, Alergias. Ela

revira os olhos, desvia o olhar.

No ouvido de Libby, eu sussurro:

— Uh-oh, a mamãe de Whittaker está brava.

Ela morde meu ombro, como se estivesse tentando não gritar. No palco,

Menininho Whittaker agarra suas costas e estremece a palavra com P com a dor dos

nervos cronicamente comprimidos de seu personagem.

Libby aperta minha mão com tanta força que parece que vai quebrá-la.

— Está muito claro — ela sussurra hesitantemente — que aquela criança

pequena e barbuda ainda não sentiu dor física.

— Aquele menino ainda não experimentou o crescimento de seus testículos —

eu respondo.

Como que para refutar isso, sua próxima linha envia sua voz cambaleando,

quebrando em um guincho que faz Libby fechar os olhos e cruzar as pernas.

— Eu não vou fazer xixi em mim!

Nós olhamos para os nossos pés, irrompendo em calafrios de riso a cada poucos

minutos. É a coisa mais divertida que fiz em anos.

O que quer que esteja acontecendo, com Brendan, com o apartamento, com

minha irmã, agora, somos nós, como não éramos há muito tempo.

No segundo em que a peça termina, Libby e eu corremos. Nós duas estamos

prestes a nos descontrolarmos e preferimos fazer isso em particular. A meio

caminho da marquise, uma voz alegre nos para.

— Nora! Libby? — Sally Goode corta uma trilha em nossa direção, ao lado de um

enorme homem loiro em uma cadeira de rodas. Seu sorriso com covinhas é parecido

com Charlie; a nuvem de jasmim e maconha em que ela chega não é. É difícil imaginar

Charlie, o articulado e refinado, sendo criado por essa mulher selvagem e

despreocupada.

— É um prazer ver você aqui! — Libby canta.

— Cidades pequenas e tudo isso — diz Sally. — Acho que vocês não conheceram

meu marido?


— Clint — o homem oferece. — Prazer em conhecê-las.

— Prazer em conhecê-lo — Libby e eu dizemos em uníssono.

Ele pergunta

— O que acharam da peça?

Libby e eu trocamos um olhar de pânico.

— Ah, não as faça responder isso. — Sally dá um tapa no braço dele, sorrindo. —

Pelo menos não antes do encontro. Vocês têm que vir, sempre chamamos amigos

para beber e comer torta depois de um show.

— Esta é uma ocorrência regular? — Minha irmã quase se engasga com as

palavras. Ainda estamos muito sensíveis para termos essa conversa.

— Eles fazem quatro shows por ano — diz Sally.

A sobrancelha de Clint se levanta.

— Só isso? Parece muito mais.

Libby engole uma risada, mas um guincho ainda sai de sua garganta.

— Por favor, digam que virão — Sally implora.

— Oh, nós não poderíamos nos intrometer… — eu começo.

— Absurdo! — ela chora. — Não existe intrusão em Sunshine Falls. Ou você não

assistiu à mesma peça que nós?

— Nós definitivamente assistimos — Libby murmura.

Sally entrega a bolsa ao marido e procura um pedaço de papel e uma caneta,

depois anota um endereço.

— Estamos do outro lado da floresta e no caminho de vocês. — Ela entrega o

papel para Libby. — Mas há uma rua e uma entrada que vai direto para a nossa casa,

se você não quiser andar no escuro.

Ela não espera por uma confirmação ou mesmo uma resposta. Eles estão se

afastando, a multidão engarrafando atrás de nós.

— Oh, Boris foi maravilhosamente bem — diz um senhor mais velho. — E apenas

onze anos!

Libby aperta minha mão e descemos a calçada, rindo como pré-adolescentes em

Mountain Dew.

A casa Lastra-Goode fica no final de uma longa estrada ladeada por carvalhos

maduros. É longe o suficiente do final da cidade que há pouca luz para interromper

o manto cintilante do céu noturno acima ou as massas de vaga-lumes piscando nos

arbustos.

É uma casa colonial de dois andares, com paredes brancas e persianas pretas

recém-pintadas. Na garagem enorme, cerca de dez carros já estão estacionados, com

outro parando atrás de nós enquanto Hardy para para nos deixar sair.

Ao nos aproximarmos das portas da frente, Libby olha para a frente da casa

aconchegante e diz sonhadoramente:

— Eu pagaria um milhão de dólares para estar aqui no Natal.

— Acho que isso explica por que Brendan faz o orçamento.


O braço de Libby endurece no meu. Eu olho para ela. Ela está um pouco pálida

também. Eu não posso dizer se ela parece estressada ou doente, ou ambos. De

qualquer forma, o nó de pavor dá uma pulsação aguda atrás de minhas costelas, um

lembrete de que, mesmo naquelas horas em que encolhe, nunca desaparece.

Eu esfrego seu braço.

— Está tudo bem, Lib?

Sua surpresa derrete na neutralidade.

— É claro! Por que não estaria?

— Só quero dizer, se você precisar de alguma coisa — eu digo — você sabe que

eu sempre…

— Olá, Olá! — Sally chama, abrindo a porta. — Entrem!

Ela tem que gritar para ser ouvida enquanto nos conduz pelo saguão da frente

com aroma de jasmim em direção ao trovão de risos e zumbidos de conversas

sobrepostas nos fundos da casa.

— Só para vocês saberem, normalmente fingimos que tudo foi ótimo.

— Desculpe? — Eu digo.

Seu sorriso aprofunda seus pés de galinha. Ela se parece muito com uma mulher

na casa dos sessenta, do jeito mais impressionante possível, de uma maneira

amadeirada e castigada pelo sol.

— A peça — ela esclarece. — Ou quando é uma mostra de cerâmica, ou um

mercado de artesanato, ou qualquer outra coisa: Nós fingimos que é bom. Pelo

menos até termos algumas rodadas. — Ela dá um tapinha em nossos ombros e se

afasta, dizendo — Sintam-se em casa!

— Vou precisar que todos passem por algumas rodadas bem rápido — diz Libby.

— O que eu estava dizendo lá fora, Lib…

Ela aperta meus braços.

— Estou bem, Nora. Estou um pouco estranha porque estou com essa perna

inquieta que interrompe meu sono. Pare de se preocupar e apenas... aproveite

nossas férias, ok?

Quanto mais ela insiste que está tudo bem, mais certeza tenho de que não está.

Mas como tem sido o caso há anos, ela simplesmente se fecha ao primeiro sinal de

preocupação.

É assim que isso é. Ela nunca pede ajuda, então eu tenho que descobrir o que ela

precisa e como levar isso a ela de uma maneira que ela se sinta bem em aceitar.

Mesmo com o vestido de noiva dela, eu tive que fingir rastrear uma venda de

amostra e conseguir um vestido danificado com desconto, quando na verdade eu

paguei no cartão e esfumei um corretivo dentro do corpete.

Mas com isso, eu nem sei por onde começar.

Oh Deus.

Uma clareza repentina e aterrorizante me atinge como um saco de areia no

estômago. A lista. Todas essas homenagens aos quase-futuros de Libby: construção,

confeitaria, livraria… marketing.

Isso tudo é uma incursão de volta ao mundo do trabalho? Ou uma maneira de

provar que ela poderia sobreviver sozinha se precisasse? Três semanas longe do


marido. Eu deveria ter achado isso estranho. Especialmente com o quão estranho

ela está agindo. Especialmente depois de mais de cinco meses de gravidez.

Ela ama Brendan, eu me lembro. Mesmo que eles estejam passando por alguma

coisa, cedendo sob o estresse de um novo bebê, isso não pode ter mudado.

Minhas roupas parecem muito apertadas, muito quentes. Olho em volta,

procurando algo para me concentrar, para me aterrar. Meu olhar pega Clint, parado

com um andador do outro lado da cozinha lotada, depois para o homem igualmente

alto, embora muito mais jovem e musculoso ao lado dele.

— Wooow — diz Libby, marcando Shepherd ao mesmo tempo que eu.

Seus olhos verdes encontram os meus, e ele murmura algo para Clint antes de se

desvencilhar e passear em nossa direção.

— Oh meu Deus — diz Libby. — Aquele arcanjo está vindo em nossa direção

agora?

— Shepherd — eu digo, distraída pela roda de preocupações do hamster girando

dentro do meu crânio.

Libby pergunta:

— Aquilo é um pastor vindo em nossa direção?

— Não, o nome dele é...

— Ahhh. Shepherd — ela diz, percebendo isso, bem quando ele para na nossa

frente.

— Viu — diz ele, radiante. — É por isso que você tem que amar cidades pequenas.


— NÃO VI VOCÊ NA PEÇA — diz Shepherd. — Você deve ter escapado rápido.

Libby me dá um olhar que diz: Você esqueceu de mencionar que seu encontro era

o Adonis?

— Minha irmã teve que fazer xixi — eu digo, o que só aumenta sua expressão de

mau humor. — Esta é a Libby. Libby, Shepherd.

Libby diz apenas:

— Uau.

— Prazer em conhecê-la, Libby — ele responde.

Ela aperta a mão dele.

— Aperto forte. Sempre uma grande qualidade em um homem, certo, Nora? —

Ela me olha incisivamente, ao mesmo tempo tentando ser minha ajudante e me

envergonhar.

— Parece ser útil nos filmes de James Bond — concordo. Shepherd sorri

educadamente. Ninguém diz nada. Eu tossi. — Por causa de todas as pessoas

penduradas nos prédios…

Ele concorda.

— Entendi.

A loucura temporária ou magia da outra noite se desfez. Eu não tenho ideia de

como interagir com esse homem.

Ele diz:

— Posso pegar alguma coisa para vocês? Cerveja? Seltzer?

— Eu tomaria vinho — eu digo.

— Você não acredita? — Libby sorri. — Esta maldita bexiga! Já tenho que fazer

xixi de novo.

Shepherd gesticula pelo corredor.

— O banheiro é por ali.

— Volto em um segundo — promete Libby, e quando Shepherd se vira para me

servir uma taça de vinho de uma garrafa aberta no balcão, ela faz uma pausa,

murmurando por cima do ombro, NÃO, NÃO VOU.

Shepherd me entrega o copo, e eu inclino meu queixo para as, aproximadamente,

quatorze mil garrafas de vinho na ilha.

— Vocês todos realmente querem esquecer aquela peça.

Ele ri.


— O que você quer dizer?

Eu tomo um grande gole.

— Apenas brincando. Sobre o vinho.

Ele coça a nuca.

— Minha tia administra essa troca informal de vinhos. Todo mundo traz um, e ela

coloca números na parte inferior. No final, ela sorteia o que não foi aberto.

— Parece meu tipo de mulher — eu digo. — Ela está aqui?

— Claro — diz ele. — Ela não perderia sua própria festa.

Eu quase inalo meu vinho e tenho que tossir para limpar meus pulmões.

— Sally? Sally é sua tia? Charlie Lastra é seu primo?

— Eu sei, não é? — ele diz, rindo. — Opostos totais. O engraçado é que éramos

muito próximos quando crianças. Nos separamos à medida que envelhecemos, mas

o latido dele é pior do que a mordida. Ele é um cara bom, por baixo de tudo.

Eu preciso mudar de assunto ou procurar um sofá para desmaiar.

— Eu juro que ia ligar, a propósito.

— Não se preocupe — diz ele, uma covinha tímida aparecendo. — Estarei por

perto.

Eu digo:

— Então sua família é dona da fazenda de cavalos?

— Estábulos — ele me corrige.

— Certo. — Eu não tenho ideia de qual é a diferença.

— É a casa dos meus pais. Quando as coisas na construção são lentas para mim e

meu tio, ainda os ajudo às vezes.

Tio. Construção. Ele trabalha com o pai de Charlie.

O telefone de Shepherd vibra. Ele suspira enquanto lê a tela.

— Não sabia que tinha ficado tão tarde. Eu tenho que ir.

— Oh — eu digo, ainda em uma sequência de diálogos curtos.

— Ei — ele diz, se animando — espero que isso não soe muito agressivo, porque

eu entendo se você não estiver interessada, mas se você quiser fazer um passeio de

trilha enquanto estiver aqui, eu adoraria te levar.

Sua expressão calorosa e amigável é tão deslumbrante quanto quando eu

esbarrei nele pela primeira vez do lado de fora de Mug + Shot. Ele é, acredito

sinceramente, um homem verdadeiramente bom.

— Talvez sim — eu digo, então renovo minha promessa de ligar para ele. À

medida que seu cheiro de pinho e couro se retira pela sala, fico enraizada no local,

presa em um loop infinito de Shepherd é primo de Charlie. Eu quase beijei o primo de

Charlie.

Não deveria importar, mas importa. Posso ouvir Charlie dizendo: Isso não pode

ser nada, mas não consigo afastar a sensação de que já é.

Eu me sinto vagamente doente. Libby ainda não voltou, e estou muito imersa em

meus pensamentos para uma conversa fiada com estranhos. Evitando qualquer

tentativa de contato visual, ando pela multidão até o outro lado da sala de estar.

Uma série de três pinturas enormes está pendurada em um tríptico. As paredes

estão cobertas de pinturas, na verdade, de todas as paletas de cores e tamanhos,


dando à casa uma sensação aconchegante e eclética, incompatível com seu exterior

antiquado.

As pinturas são definitivamente de nudez, embora abstratas: todas rosas e

bronzeadas e marrons, curvas roxas e sombras. Elas me lembram os Recortes de

Matisse, mas enquanto aqueles sempre me parecem românticos, até mesmo

eróticos, todos arcos artísticos e pernas curvas e pretzels, essas parecem casuais, o

tipo de nudez vulnerável de andar nu em seu apartamento, procurando sua escova

de cabelo.

O cheiro de maconha me atinge logo antes de sua voz, mas ainda estremeço

quando Sally diz:

— Você é uma artista?

— Definitivamente não. Mas sou uma apreciadora.

Ela levanta a garrafa de vinho em sua mão como se fosse uma pergunta. Eu aceno

e ela enche meu copo.

— Quem as fez? — Eu pergunto.

Os lábios de Sally se apertam em um sorriso entusiasmado.

— Eu fiz. Em outra vida.

— Elas são fenomenais. — Do ponto de vista técnico, sei muito pouco sobre arte,

mas essas pinturas são lindas, calmantes em suas cores terrosas e formas orgânicas.

Eles definitivamente não são o tipo de arte que faz uma pessoa dizer: Minha sobrinha

de quatro anos poderia pintar isso.

— Eu não posso acreditar que você fez isso. — Eu balanço minha cabeça. — É tão

estranho ver algo assim e perceber que veio de uma pessoa normal. Não que você

seja normal!

— Oh, querida — ela ri. — Há coisas muito piores para ser. Normal é um

distintivo que uso com orgulho.

— Você poderia ter sido famosa — eu digo. — Quero dizer, são muito boas.

Ela avalia as pinturas.

— Falando nessas “coisas piores do que ser normal”.

— Fama vem com dinheiro — eu aponto. — Dinheiro é útil.

— A fama também vem com as pessoas dizendo o que elas acham que você quer

ouvir.

— Olá — Libby murmura, deslizando para o lugar ao nosso lado. Ela me dá um

movimento indiscreto das sobrancelhas, e eu estou grata que Sally não percebe,

então eu não tenho que explicar o significado por trás disso é que ela quer que eu

foda seu sobrinho! Em vez de seu filho! Que também esteve brevemente em discussão!

— Sally pintou essas — eu digo.

Libby olha para ela para confirmação.

— De jeito nenhum!

Sally ri.

— Tão chocada!

— Elas são, tipo, profissionais, Sally — diz Libby. — Você já tentou vender

alguma?

— Eu costumava. — Ela parece descontente com o pensamento.


— Uh-oh — diz Libby. — Há claramente uma história aqui. Vamos, Sal. Deixe sair.

— Não é muito interessante — diz ela.

— Sorte sua, acabamos de ver uma peça que baixou severamente nossos padrões

— digo.

Sally deixa escapar uma risadinha diabólica e dá um tapinha no meu braço.

— Não deixe a Reverenda Monica ouvir você dizer isso. O Velho Whittaker é seu

afilhado.

— Espero que ele pose para a estátua na praça da cidade — eu digo.

— Aquela estátua pode se parecer com meu carteiro, Derek, por tudo que me

importa — diz Sally. — Desde que a placa diga Whittaker. Precisamos do negócio

que esse tipo de coisa poderia trazer.

— De volta à história — diz Libby. — Você costumava vender suas pinturas?

Ela suspira.

— Bem, quando eu era menina, queria ser pintora. Então, quando eu tinha

dezoito anos, fui para Florença para pintar por algumas semanas, que se

transformaram em meses, Clint e eu terminamos, é claro, e depois de um ano, voltei

para os Estados Unidos para tentar entrar no cenário artístico. Em Nova York.

— Mentira! — Libby bate levemente no braço de Sally. — Onde você morava?

— Alphabet City — ela diz. — Muito, muito tempo atrás. Fiquei os onze anos

seguintes, trabalhando pra caramba. Vendi algumas pinturas, me candidatei a shows

constantemente. Trabalhei para três ou quatro artistas diferentes e passei todas as

noites tentando fazer networking em galerias. Trabalhei até o osso. Então,

finalmente, quando eu estava nisso há oito anos, eu fiz parte desse show coletivo. E

esse cara entra, escolhe uma das minhas pinturas e a compra. Acontece que ele é um

curador renomado. Minha carreira decola da noite para o dia.

— Esse é o sonho! — Libby grita.

— Achei que sim — responde Sally. — Mas eu percebi a verdade muito rápido.

— Que Clint era seu verdadeiro amor? — Libby adivinha.

— Que era tudo um jogo. Minhas pinturas não mudaram, mas de repente todos

esses lugares que me rejeitaram me queriam. Pessoas que nunca olharam para mim

estavam em cima de mim. Pouco importava o que eu fiz. Meu trabalho se tornou um

símbolo de status, nada mais, nada menos.

— Ou — eu digo — você era extremamente talentosa, e foi preciso uma pessoa

de bom gosto para dizer isso antes que as massas entendessem.

— Talvez — Sally permite. — Mas então eu estava cansada. E com saudades de

casa. E geralmente com muita fome e sem dinheiro, e o curador veio até mim quando

eu estava sozinha o suficiente para cair na cama com ele. Não muito tempo depois

que meu pai faleceu, nós terminamos, e eu voltei para casa para ficar com minha

mãe. Enquanto eu estava aqui, ela pediu a Clint para vir limpar nossas calhas.

— As piadas se escrevem sozinhas — eu digo.

— Então você percebeu que ele era seu verdadeiro amor? — Libby diz.

Sally sorri.

— Naquela vez, sim. Ele estava noivo até então. Não impediu as maquinações da

minha mãe. Seu mantra era “Não é oficial até que eles cheguem ao altar”. Graças a


Deus ela estava certa. Assim que vi Clint novamente, eu sabia que tinha cometido um

grande erro. Três semanas depois, ele estava noivo de mim.

— Isso é tão romântico — diz Libby.

— Mas você não sentiu falta? — Eu digo.

— Falta do que? — Sally diz, claramente não entendendo.

— Da cidade — eu digo. — Das galerias em Nova York. Tudo isso.

— Honestamente, depois de todos esses anos de labuta, foi um grande alívio vir

aqui e apenas… — Ela solta uma respiração profunda, seus braços flutuando ao seu

lado. — Me estabelecer.

— Sem brincadeira — diz Libby. — Nós nos mudamos para a cidade para que

nossa mãe pudesse tentar ser atriz, a pessoa mais cronicamente exausta do mundo.

— Isso não é justo. — Ela estava magra, com certeza, mas ela também estava

cheia de vida, em êxtase por estar perseguindo seus sonhos.

Libby me lança um olhar.

— Lembra daquela vez que ela estava com uns centavos a menos na mercearia?

Logo após a audição de Producers? O funcionário disse a ela para colocar um limão

de volta, e ela quebrou.

Meu coração aperta. Eu não tinha ideia de que Libby se lembrava disso. Ela tinha

acabado de fazer seis anos, e mamãe queria fazer os biscoitos de milho e limão

favoritos de Lib. Quando mamãe começou a chorar na caixa registradora, peguei o

limão extra em uma mão e os dedinhos de Libby na outra e a arrastei de volta para

as prateleiras, tomando nosso tempo ziguezagueando para mamãe enquanto ela se

recompunha.

Se você pudesse ter qualquer alimento, de qualquer livro, eu perguntei a ela, o que

você escolheria?

Ela escolheu manjar turco, como Edmund comeu em Nárnia. Escolhi o frobscottle

do O Bom Gigante Amigo, porque poderia fazer você voar. Naquela noite, nós três

assistimos Willy Wonka e comemos os restos de nossos doces de Halloween.

É uma lembrança feliz, do tipo que quase brilha. Mais uma prova de que todos os

problemas podem ser resolvidos com o roteiro certo.

Tudo acabou bem, lembro-me de pensar. Enquanto estivermos juntas, isso sempre

acontece.

Nós éramos felizes.

Mas não é isso que Libby está dizendo a Sally. Ela está dizendo

— Mamãe estava sem dinheiro, cansada e solitária. Ela colocou sua carreira à

frente de absolutamente tudo e ficou infeliz por causa disso. — Ela se vira para Sally,

conspiratória. — Nora é do mesmo jeito, trabalha até o osso. Não há tempo para uma

vida real. Certa vez, ela recusou um segundo encontro com um cara porque ele pediu

para ela colocar o telefone no Não perturbe durante o jantar. O trabalho sempre vem

em primeiro lugar para ela. É por isso que eu a arrastei aqui. Esta viagem é

basicamente uma intervenção.

Ela diz tudo como uma piada, mas há algo duro e espinhoso por baixo, e suas

palavras caem no meu estômago como um soco. A sala começou a pulsar e vacilar.

Minha garganta está cheia, minhas roupas coçam contra minha pele, como se algo


estivesse inchando dentro de mim. Ela ainda está falando, mas suas palavras estão

distorcidas.

Cansada, solitária, sem vida real, o trabalho sempre vem em primeiro lugar.

Por semanas, eu me preocupei como as pessoas vão me ver quando Frigid chegar

às prateleiras, mas Libby, Libby é a única pessoa que realmente me conhece. E é

assim que ela me vê.

Como um tubarão.

A vergonha bate quente e rápida, um desespero para rastejar para fora da minha

pele. Estar em qualquer outro lugar. Para ser outra pessoa.

Eu me afasto, indo para o banheiro no corredor da frente, mas está trancado, e

vou direto para a porta da frente, apenas para encontrar um punhado de pessoas se

aglomerando. Eu viro para trás, tonta.

Eu quero ficar sozinha. Eu preciso estar em um lugar onde eu possa desaparecer

na multidão, ou pelo menos onde ninguém vai reconhecer o que está acontecendo

comigo.

O que está acontecendo comigo?

As escadas. Eu subo para o segundo andar. Há um banheiro no final do corredor.

Estou quase lá quando um quarto à direita chama minha atenção. Uma parede de

livros é visível através da porta entreaberta.

É um feixe de luz, um farol em uma margem distante. Eu entro e fecho a porta

atrás de mim, a festa recuando para um abafamento. Meus ombros relaxam um

pouco, o baque do meu coração se acalma quando eu observo a cama do carro de

corrida vermelho-cereja contra a parede à minha esquerda.

Não uma monstruosidade de plástico comprada em loja, mas uma moldura de

madeira caseira, pintada com perfeição brilhante. A visão disso envia uma pontada

através de mim. Assim como as estantes caseiras que revestem a parede oposta. Há

tanto cuidado, não apenas na construção, mas na organização, o toque de Charlie e

o de Clint tão visíveis quanto impressões digitais de tinta.

Os livros são meticulosamente ordenados por gênero e autor, mas não são

bonitos. Não havia fileiras de volumes encadernados em couro, apenas brochuras

com lombadas amassadas e capas meio perdidas, livros com adesivos de brechós de

cinco centavos e indicadores decimais de Dewey nos que vieram das vendas da

biblioteca.

São os tipos de livros que a Sra. Freeman costumava nos dar, aqueles que ela

colocava na caixa de “Pegue um Livro, Deixe um Livro”.

Libby e eu costumávamos brincar que a Freeman Books era nosso pai. Nos

ajudou a nos criar, nos fez sentir seguras, nos trouxe pequenos presentes quando

nos sentíamos para baixo.

A vida cotidiana era imprevisível, mas a livraria era uma constante. No inverno,

quando nosso apartamento estava muito frio, ou no verão, quando a janela não

conseguia ficar aberta, descíamos e líamos no cobiçado assento da vitrine da loja. Às

vezes mamãe nos levava ao Museu de História Natural ou ao Met para nos refrescar,

e eu trazia comigo minha cópia rasgada de Dos Arquivos Misturados da Sra. Basil E.


Frankweiler e pensava: Se for preciso, poderíamos viver aqui, como os irmãos Kincaid.

Entre nós três, estaríamos bem. Seria divertido.

Mágicos. Era assim que eu sentia aqueles dias. Não como Libby fez soar.

Claro, havia problemas, mas e quanto a todos aqueles dias deitadas de bruços na

areia de Coney Island lendo até o sol se pôr? Ou noites seguidas no sofá, comendo

besteiras e assistindo a filmes antigos?

E a iluminação da árvore do Rockefeller Center, chocolate quente mantendo

nossas mãos aquecidas?

A vida com a mamãe, a vida em Nova York, era como estar em uma livraria

gigante: todos esses trilhões de caminhos e possibilidades arrastando sonhadores

para o coração pulsante da cidade, dizendo: Não faço promessas, mas ofereço muitas

portas.

Você pode fazer um chassé em um palco iluminado com os melhores bailarinos, mas

também pode chorar por um limão não comprado.

Quatro dias depois do incidente do limão, os amigos da mamãe vieram com o

champanhe de Cook e um envelope de dinheiro que eles juntaram para nos ajudar.

Sim, Nova York é cansativa. Sim, há milhões de pessoas nadando rio acima, mas

vocês também estão juntos.

Por isso coloquei minha carreira em primeiro lugar. Não porque não tenho vida,

mas porque não suporto deixar escapar o que mamãe queria para nós. Porque eu

preciso saber que Libby e Brendan e as meninas e eu ficarão bem, não importa o que

aconteça, porque eu quero esculpir um pedaço da cidade e sua magia, só para nós.

Mas esculpir transforma você em uma faca. Fria, dura, afiada, pelo menos por fora.

Por dentro, meu peito está machucado, sensível.

Uma coisa é aceitar que a pessoa que mais amo é basicamente irreconhecível

para mim; outra é aceitar que ela também não me vê. Ela não confia em mim, não o

suficiente para compartilhar o que está acontecendo, não o suficiente para se apoiar

em mim ou me deixar confortá-la.

Todos esses velhos sentimentos borbulham até que eu não consiga respirar

direito, até que eu esteja me afogando.

— Nora? — Uma voz atravessa o miasma, baixa e familiar. A luz entra pelo

corredor. Charlie está na porta, o único ponto fixo no redemoinho.

Ele diz meu nome novamente, hesitante, uma pergunta.

— O que aconteceu?


A BOLSA DO LAPTOP DE CHARLIE desliza para o chão quando ele vem em

minha direção.

— Nora? — ele diz mais uma vez.

Quando não consigo emitir nenhum som, ele me puxa em direção a ele, segurando

meu queixo, os polegares se movendo em carícias suaves contra minha pele.

— O que aconteceu? — ele murmura.

Suas mãos me enraízam no chão, a sala parando de girar.

— Desculpe. Eu só precisava de…

Seus olhos procuram os meus, os polegares ainda acariciando naquele ritmo

suave.

— Um cochilo? — ele brinca baixinho, hesitante. — Um romance de fantasia?

Uma troca de óleo competitivamente rápida?

O bloco de gelo em meu peito racha.

— Como você faz isso?

Sua testa franze.

— Faço o que?

— Diz a coisa certa.

O canto de sua boca se curva.

— Ninguém pensa isso.

— Eu penso.

Seus cílios se espalham por suas bochechas enquanto seu olhar cai.

— Talvez eu apenas diga a coisa certa para você.

— Senti como se estivesse sufocando. — Minha voz falha na palavra, e suas mãos

deslizam no meu cabelo, seus olhos subindo para os meus novamente. — Como...

como se todos estivessem olhando para mim, e todos pudessem ver o que há de

errado comigo. E eu estou acostumada a me sentir assim… como se eu fosse o tipo

errado de mulher, mas com Libby sempre foi diferente. Ela é a única pessoa com

quem eu realmente me senti eu mesma, desde que minha mãe morreu. Mas acontece

que Dusty estava certa sobre mim. Essa é quem eu sou, até mesmo para minha irmã.

O tipo errado de mulher.

— Ei. — Ele inclina meu rosto para o dele. — Sua irmã te ama.

— Ela disse que eu não tenho vida.

— Nora. — Ele apenas sorri. — Você está nos livros. Claro que você não tem uma

vida. Nenhum de nós tem. Há sempre algo bom demais para ler.


Uma meia risada fraca sai de mim, mas a sensação não dura.

— Ela acha que eu não me importo com nada além do meu trabalho. Isso é o que

todos pensam. Que eu não tenho sentimentos. Talvez eles estejam certos. — Eu rio

grosseiramente. — Eu não choro há uma maldita década. Isso não é normal.

Charlie considera por um momento. Seus braços deslizam em volta da minha

cintura para travar contra a parte inferior das minhas costas, e o contato envia bolas

de canhão diretamente em meus pensamentos, enviando-os para longe do impacto.

Não me lembro de ter feito isso, mas meus braços estão ao redor dele também,

nossos estômagos encostados, o calor se acumulando entre nós.

— Você sabe o que eu penso?

Tocá-lo é tão bom, tão estranhamente descomplicado, como se ele fosse a exceção

a todas as regras.

— O que?

— Eu acho que você ama seu trabalho — diz ele suavemente. — Acho que você

trabalha tanto porque se importa dez vezes mais do que a maioria das pessoas.

— Sobre trabalho — eu digo.

— Sobre tudo. — Seus braços apertam ao meu redor. — Sua irmã. Seus clientes.

Seus livros. Você não faz nada que não vá fazer cem por cento. Você não começa nada

que não possa terminar.

“Você não é a pessoa que compra uma bicicleta ergométrica como parte de uma

resolução de Ano Novo e a usa como cabideiro por três anos. Você não é o tipo de

mulher que só trabalha duro quando se sente bem, ou só aparece quando é

conveniente. Se alguém insulta um de seus clientes você deixa as boas maneiras de

lado, e você carrega sua própria caneta o tempo todo, porque se você tiver que

escrever alguma coisa, não custa nada que fique bonito. Você lê primeiro a última

página dos livros… não faça essa cara, Stephens. — Ele abre um sorriso no canto da

boca. — Eu vi você… mesmo quando você está arrumando as estantes, às vezes você

verifica a última página, como se estivesse constantemente procurando todas as

informações, tentando tomar as melhores decisões absolutas.

— E por você ter me visto — eu digo — você quer dizer que você me observou.

— Porra, é claro que sim — diz ele em uma voz baixa e áspera. — Eu não posso

parar. Estou sempre ciente de onde você está, mesmo que eu não olhe, mas é

impossível não olhar. Eu quero ver seu rosto ficar sério quando você está mandando

um e-mail para o editor de um cliente, sendo durona, e eu quero ver suas pernas

quando você está tão empolgada com algo que acabou de ler que não consegue parar

de cruzar e descruzar elas. E quando alguém te irrita, você fica com essas manchas

vermelhas. — Seus dedos roçam minha garganta. — Bem aqui.

Meus mamilos endurecem, minhas coxas apertando e a pele estremecendo. A

tensão em suas mãos faz com que seus dedos se enrolem contra a curva na parte

inferior das minhas costas, juntando o tecido lá como se ele estivesse se

convencendo a não rasgá-lo.

— Você é uma lutadora — diz ele. — Quando você se importa com alguma coisa,

você não deixa nada encostar nela, porra. Nunca conheci ninguém que se importasse

tanto quanto você. Você sabe o que a maioria das pessoas daria para ter alguém


assim em sua vida? — Seus olhos estão escuros, sondando, seu batimento cardíaco

acelerado. — Você sabe o quão sortudo é alguém com quem você se importa? Você

sabe…

Ele hesita, os dentes afundando em seu lábio, os olhos baixos, os dedos se

afrouxando, mas não se soltando das minhas vértebras.

— Quando Carina e eu éramos crianças, meu pai tinha que trabalhar muito. Nós

não tínhamos muito dinheiro, e então a mãe da minha mãe faleceu, e... a livraria

começou a perder dinheiro.

“Minha mãe não é uma empresária. Ela nem é realmente uma pessoa que mantém

uma agenda. Assim, o horário da loja era totalmente imprevisível. Alguma conversa

de artista seria marcada para o meio da semana na Geórgia, e ela tiraria eu e Carina

da escola para irmos com ela, sem aviso prévio. Ou ela ficaria ocupada com uma

pintura e não só perderia o dia de trabalho, mas esqueceria de nos buscar na escola.

Carina sempre foi mais como meus pais, descontraída, mas eu era ansioso. Talvez

porque eu tenha passado por um momento tão difícil quando comecei a escola, ou

talvez apenas porque finalmente comecei a gostar, mas odiava perder aula, e ainda

por cima...

Ele respira. Meus braços estão torcendo na parte de trás de sua camisa,

mantendo-o perto, conectado a mim o tempo todo.

— … As pessoas não aprovavam minha família — ele continua. — Meu pai já

estava noivo quando ele e minha mãe ficaram juntos, e ela já estava grávida de três

meses de mim.

Minha boca abre e fecha.

— Oh. Clint não…

Ele balança a cabeça.

— Meu pai biológico é um curador de arte, em Nova York, na verdade. Trocamos

alguns e-mails e isso foi o suficiente para nós. No que me diz respeito, Clint é o único

pai que já tive ou precisei, mas desde que me lembro, eu sabia que não era como ele.

Não parecia com ele. Não gostava das mesmas coisas que ele.

O dourado quente e escuro de seus olhos se erguem para os meus novamente, e

um desejo doloroso floresce dentro de mim.

— Eu estava na quinta série quando descobri a verdade. De algumas crianças na

escola.

A borda irregular de sua voz me tira o fôlego. Eu luto contra o impulso de

controlar meu choque, e então tudo se encaixa, os pedaços de Charlie que eu estava

colecionando como peças de quebra-cabeça se tornando uma imagem completa. Não

a trope de Darcy. Não o acadêmico arrogante e austero que conheci para um almoço

muito desagradável. Um homem que anseia por honestidade completa, o realista

que nem sempre entende quando não está vendo realismo. Charlie, que quer

entender o mundo, mas aprendeu a não confiar nele.

— Eu sinto muito, Charlie — eu sussurro.

Ele engole.

— Sei que ele simplesmente não queria que eu pensasse que eu não era nada

além de seu filho — diz ele. — Mas foi uma maneira ruim de descobrir. Todos na


cidade eram mais ou menos gentis com os meus pais pessoalmente, mas aqueles

primeiros anos de escola foram um inferno. A abordagem da minha mãe era matálos

com bondade, e funcionou. Ela conquistou a porra da cidade inteira. Mas não

consegui. Eu não posso puxar conversa fiada com pessoas que eu sei que me odeiam.

Eu não posso ser legal com pessoas que eu acho que são idiotas. Carina estava na

terceira série a primeira vez que alguém lhe disse que ela provavelmente nasceu

com uma DST porque nossa mãe era uma puta.

— Puta merda, Charlie. — Eu solto meus braços de suas costas e seguro seu rosto

entre minhas mãos, sentindo como se meus pulmões estivessem em chamas, como

se houvesse sentimentos que meu vocabulário não fosse avançado o suficiente para

colocar em palavras. Eu quero me jogar sobre ele como cota de malha, ou engolir um

pouco de gasolina, descer as escadas e cuspi-la como fogo.

— Passei metade do ensino médio na biblioteca e a outra metade no escritório

do diretor por entrar em brigas, e honestamente, esses foram os únicos dois lugares

em que senti que tinha algum controle sobre minha vida. — Ele balança a cabeça,

como se estivesse clareando. — Meu ponto é, ser aquela mulher de “espírito livre e

mágica” que você acha que é miticamente perfeita? Ela vem com seus próprios

problemas. Só porque nem todo mundo te entende não significa que você está

errada. Você é alguém com quem as pessoas podem contar. Realmente contar. E isso

não faz de você fria ou chata. Isso faz de você a mais… — Ele para, balança a cabeça.

— Você e sua irmã podem ter suas diferenças, e ela pode não te entender totalmente,

mas você nunca vai perdê-la, Nora. Você não precisa se preocupar com isso.

— Como você pode ter tanta certeza? — Eu pergunto.

Agora seus olhos são todo caramelo líquido, suas mãos macias, movendo-se para

frente e para trás sobre meus quadris, uma maré que nos aproxima, separa, juntos,

cada pincelada mais intensa que a anterior.

— Porque — ele diz calmamente — Libby é inteligente o suficiente para saber o

que ela tem.

Quero puxá-lo para a cama de carro ridícula e me envolver no cheiro de seu

xampu, sentir a pressão de seus dedos crescer frenética em mim, pela pressão

quente e dura de seu estômago e nosso balanço constante e nos separando para

encaixar.

— Até você chegar aqui — ele murmura — tudo que esse lugar tinha sido era um

lembrete de como eu era uma decepção, e agora você está aqui, e… eu não sei. Eu

sinto que estou bem. Então, se você é o “tipo errado de mulher”, então eu sou o tipo

errado de homem.

Eu posso ver todos os tons dele de uma vez. Garoto quieto e sem foco. Préadolescente

precoce e ressentido. Um colegial desesperado para sair. Homem

refinado tentando se encaixar de volta em um lugar ao qual nunca pertenceu.

Essa é a coisa sobre ser um adulto ao lado de sua cama de carro de corrida de

infância. O tempo colapsa e, em vez da versão de você que você construiu do zero,

você é todos os rascunhos banais que vieram antes, de uma só vez.

— Você não é uma decepção. — Sai fraco. — Você não está errado.


Os olhos de Charlie varrem meu rosto. Seus dedos roçam o ponto liso no canto

direito da minha boca, sua mandíbula apertando. Quando seus olhos se levantam

para os meus novamente, eles estão em chamas, um truque da luz quente vindo do

abajur, mas eu ainda sinto o calor subindo dele.

— E todas aquelas pessoas que fizeram você se sentir como se estivesse — ele

diz com voz rouca — têm um gosto horrível pra caralho.

O afeto em sua voz me apressa como uma maré quente, enchendo um milhão de

pequenas poças em meu peito.

Realmente somos dois ímãs opostos, incapazes de estar na mesma sala sem nos

aproximar. Eu quero passar meus dedos pelo cabelo dele e beijá-lo até que ele

esqueça onde estamos, e tudo e todos que o fizeram sentir como se ele fosse uma

decepção. E ele está olhando para mim como se eu pudesse, como se houvesse uma

dor nele que só eu poderia aliviar.

Eu quero dizer a ele, você é alguém que procura uma razão para tudo.

Ou você é a pessoa que separa as coisas e descobre como elas funcionam em vez de

simplesmente aceitá-las. Você é alguém que prefere ter a verdade do que uma mentira

conveniente.

Ou ainda, você é a pessoa que só tem cinco looks, mas cada um deles é perfeito,

cuidadosamente escolhido.

— Eu acho — eu sussurro — você é uma das pessoas menos decepcionantes que

eu já conheci.

A linha abaixo de seu lábio inferior sombreia quando seus lábios se separam, e

seu hálito quente e mentolado é leve contra minha boca. Por um segundo, somos

pegos em um empurra-empurra, saboreando o espaço entre nós. Parece que não há

mais ar na sala, mas o que eu realmente quero de qualquer maneira é respirá-lo.

Todas as minhas razões para manter essas paredes entre nós parecem de repente

inconsequentes. Porque a parede não está levantada. Não está. Charlie me vê. Ele

está me tocando. E pela primeira vez em tanto tempo, talvez desde que perdemos

mamãe, sinto que não estou fora de cena, observando através do vidro, desejando

tanto encontrar uma maneira de entrar.

Meu telefone toca, e todo aquele peso quente evapora enquanto Charlie se

endireita, sacudido de volta à realidade, às suas próprias razões para tentar

construir uma barricada entre nós.

Ele se vira para as prateleiras, e minha garganta fica seca quando percebo que ele

está se ajustando.

Tudo em mim dói para tocá-lo novamente, mas eu não faço. Meus sentimentos

podem ter mudado, mas ainda há o fim das coisas de Charlie: isso não pode ser nada.

As coisas são complicadas.

Minha mente vai direto para Amaya, e culpa, ciúme e mágoa se misturam na boca

do meu estômago.

Outra mensagem chega de Libby, e outra.

Onde você está??

Quando você terminar de se introverter em um canto escuro, encontrei uma carona

para casa.


OLÁ? vc esta viva????

— É a Libby.

Atrás de mim, Charlie limpa a garganta e diz com voz rouca:

— Você deveria resgatá-la antes que o clube de tricô a recrute. Eles são o

equivalente a máfia de Sunshine Falls.

Eu concordo.

— Vejo você amanhã.

—Boa noite, Stephens.

Eu quase colidi com Sally no pé da escada.

— Eu estava procurando por sua irmã! — ela diz. — Eu peguei o número que ela

pediu, você poderia entregar para ela?

Aceito o pedaço de papel, e antes que eu possa pedir esclarecimentos, Sally está

correndo atrás de uma mulher com franja muito bem espalhada.

Eu mando uma foto do número de telefone para Libby.

Da Sally. Aliás: onde você está?

Na frente, ela diz. Rápido! Gertie Park, a Barista Anarquista, está nos dando carona

para casa!

Libby está agindo normalmente, mas na traseira do hatchback de Gertie com

adesivos pesados, eu vasculho as últimas semanas como se tudo fosse papel picado.

O que Libby disse sobre mamãe, sobre mim. As mensagens estranhas de Brendan

e a reação de Libby a elas. A discussão do lado de fora da livraria, a lista, o modo

como ela desaparece e reaparece misteriosamente, como seu cansaço e palidez

parecem ir e vir.

Organizo tudo em pilhas, em problemas solucionáveis, em cenários a partir dos

quais posso elaborar planos de fuga. Estou de volta no meio disso, olhando através

do tabuleiro de xadrez e tentando mitigar o que quer que aconteça a seguir.

Mas por um minuto, lá em cima, com os braços de Charlie apertados nas minhas

costas, tudo ficou bem.

Eu estava bem.

Flutuando em uma escuridão reconfortante e sem corpo, onde nada precisava ser

consertado e eu poderia simplesmente, penso nos braços de Sally se erguendo ao

lado do corpo, me estabelecer.


A BIBLIOTECA NOS LIMITES DA CIDADE É ENORME: três andares de tijolos

cor-de-rosa e telhado triangular. Enquanto Libby comanda as entregas de móveis

para a Goode Books, vou me encontrar com Charlie para uma sessão de edição na

Sala de Estudos 3C, no último andar.

Durante toda a manhã, as coisas pareciam tensas entre Libby e eu. Estamos

presas em um ciclo de comentários vagos e sentimentos ruins.

Ela está frustrada com o quanto eu trabalho, e isso está criando distância. A

distância faz com que ela guarde segredos. Os segredos me frustraram com ela. É

uma profecia autorrealizável, mantendo-nos presas em uma briga invisível e não

dita, em que ambas fingimos que nada está errado.

Essa dor oca: você está perdendo ela, e então para que tudo isso?

Assim que as portas automáticas da biblioteca se abrem, aquele cheiro delicioso

de papel quente me envolve como um abraço, e meu peito relaxa um pouco. À direita,

alguns estudantes do ensino médio descansam em uma fileira de computadores de

mesa antigos, suas conversas abafadas pelo carpete azul industrial. Passo por eles e

subo a larga escadaria para o segundo andar e depois para o terceiro.

Sigo a fileira de salas de estudo com janelas ao longo da parede externa até a 3C

e encontro Charlie inclinado sobre seu laptop, a luz do teto apagada e a luz difundida

do dia entrando pela janela para lançá-lo em um azul frio.

A sala é minúscula, com um telhado íngreme. Uma mesa laminada e quatro

cadeiras combinando ocupam a grande maioria do espaço.

Por alguma razão, o silêncio, talvez, ou o que aconteceu na noite passada me sinto

tímida enquanto pairo na porta.

— Eu estou atrasada?

Ele olha para cima, os olhos escuros.

— Estou adiantado. — Ele limpa a sonolência áspera de sua voz. — Eu edito aqui

na maioria dos sábados.

Um enorme café da Mug + Shot está na frente de um assento vazio, esperando

por mim. Eu caio na cadeira.

— Obrigada.

Charlie acena com a cabeça, mas ele está hiperfocado em sua tela, uma mão

puxando o cabelo atrás da orelha.

Meu telefone vibra com outra mensagem de Brendan: Vocês ainda estão se

divertindo?


Cordões de ansiedade deslizam um sobre o outro no meu estômago. Libby me

mandou uma mensagem da loja cinco minutos atrás, então eu sei que ela está com o

telefone dela. O que significa que ele não mandou uma mensagem primeiro para ela

ou ela simplesmente não respondeu.

Sim! Eu digito de volta. Por quê? Tudo certo?

Definitivamente!!! Ele está realmente vendendo com aqueles pontos de

exclamação.

Talvez seja hora de recorrer a implorar por respostas.

Por enquanto, porém, coloco essa linha de pensamento em um compartimento

no fundo da minha mente. Vai com uma facilidade surpreendente.

— Você precisa de um minuto? — Eu pergunto a Charlie enquanto ligo meu

computador.

Ele se assusta, como se tivesse esquecido que estou aqui.

— Não. Não, desculpe. Estou bem. — Ele passa a mão pela boca, depois se levanta

e arrasta a cadeira para o canto, onde pode ver minhas anotações na tela. Sua coxa

bate na minha enquanto ele se senta, e por alguns momentos depois, há algum tipo

de avalanche acontecendo atrás das minhas costelas.

Eu pergunto:

— Devemos começar com tudo o que gostamos? — Charlie encara por muito

tempo; ele absolutamente perdeu a pergunta. — Ah, vamos lá, Charlie — eu provoco.

— Você pode admitir que gosta das coisas. Dusty e eu não contaremos a ninguém.

Ele pisca algumas vezes. É como ver sua consciência nadar em direção à

superfície.

— Obviamente eu gosto do livro. Eu implorei para trabalhar nele, lembra?

— Vou me lembrar de você implorando até meu último suspiro.

Ele olha abruptamente para a tela, todo profissional, e parece que meu coração

está se afogando.

— As páginas são ótimas — diz ele. — A fisioterapeuta alegre é um bom contraste

para Nadine, mas acho que até o final desta seção, ela precisa de mais profundidade.

— Eu escrevi isso também! — Eu fico imediatamente constrangida com a voz de

puxa-saco do professor de “Tirei-Dez-Na-Prova” quando vejo o rosto de Charlie. —

O que?

Ele reprime seu sorriso.

— Nada.

— Não é “nada” — eu desafio. — Esse rosto.

— Sempre tive um, Stephens — diz ele. — Bastante decepcionante que você só

notou agora.

— Sua expressão.

Ele se recosta na cadeira, sua caneta Pilot vermelha equilibrada sobre um nó dos

dedos e sob dois.

— É só que você é boa nisso.

— E isso é um choque?

— Claro que não — diz ele. — Não posso gostar de ver alguém ser bom em seu

trabalho?


— Tecnicamente, este é o seu trabalho.

— Pode ser seu também, se você quiser.

— Eu fiz a entrevista para um trabalho de edição uma vez — digo a ele.

Suas sobrancelhas se erguem.

— E você não conseguiu?

— Eu não fiz a segunda entrevista — eu digo. — Libby tinha acabado de

engravidar.

— E?

— E Brendan foi demitido. — Meus ombros contraem, travando no modo

defensivo. — Eu estava ganhando um bom dinheiro com comissões, e aceitar um

emprego de nível básico significaria um corte salarial.

Ele me estuda até minha pele começar a latejar, então desvia o olhar novamente;

estamos presos em um jogo interminável do covarde, revezando o perdedor.

— Como Libby se sentiu sobre isso?

— Eu não contei a ela. — Volto às minhas anotações. — A seguir, temos Josephine.

Depois de um momento, Charlie diz:

— Você não acha que ela ficaria triste por você ter desistido do emprego dos seus

sonhos por ela?

— Ela não admira exatamente minha devoção ao meu trabalho atual — eu o

lembro. — Agora, Josephine.

Ele suspira, cedendo.

— Amo a Jo.

— Ela é diferente o suficiente do Velho Whittaker, você concorda? Quero dizer,

uma pessoa velha e rabugenta sem família?

— Eu acho que sim. Temos profundidade em seu personagem rapidamente, e seu

passado, com o ex que a expulsou de Hollywood, não soa como Once. O velho

Whittaker perdeu sua família, mas Josephine nunca teve uma. E, além disso, a

discussão de como ela sendo uma mulher ditou como a mídia e o mundo a trataram

é meio que todo o negócio deste livro.

— Verdade — eu digo. — E eu amo isso, mas isso me leva ao meu próximo

pensamento. Talvez devêssemos adiar a revelação sobre sua conexão com a

indústria cinematográfica até mais tarde.

Os olhos de Charlie assumem a forma do processador de um computador Mac,

como se seus pensamentos estivessem carregando.

— Eu discordo — diz ele lentamente. — O que eu preferiria é que não

descobríssemos por que Nadine nunca se tornou atriz até mais tarde. Acho que há

oportunidade para tensão aí. Como talvez quando Nadine encontra o Oscar da Jo,

vem à tona que Nadine originalmente queria atuar e Jo pergunta o que a fez mudar

de ideia, e temos alguns prenúncios.

— Merda — eu digo.

— O que? — Charlie diz.

— Você tem razão.

— Minhas condolências — diz ele. — Isso claramente foi muito difícil para você.

Começo a digitar a atualização em minhas anotações.


— Nadine não deveria ter desistido de atuar — diz Charlie.

As palavras flutuam ali por um minuto, uma armadilha óbvia.

— Ela ganha muito dinheiro como agente — eu respondo.

— Ela não gosta de seu dinheiro — ele me lembra.

Continuo digitando.

— Ela gosta de agenciar.

— Ela amava atuar.

— Achei que você fosse o maior fã dela.

— E sou — diz ele. — É por isso que eu quero que ela tenha seu final feliz.

— Eu não acho que seja esse tipo de livro, Charlie.

Ele dá de ombros em conjunto com um movimento de seus lábios carnudos.

— Veremos.

Apesar do meu documento cuidadosamente organizado, a maneira como

passamos por nossas edições parece mais com aqueles dias vagando pelo Central

Park com mamãe e Libby.

O documento infla e então nós o reduzimos, Charlie puxando meu laptop para ele

para reduzir quatro frases em uma, eu puxando de volta para encadear mais elogios,

até que, horas depois, eu percebo que trocamos de papéis. Agora é ele quem está

inserindo elogios e eu que os corto.

Enquanto ele me observa, ele murmura:

— Eu sempre quis ver um ataque de tubarão de perto. Tanto sangue.

Com o rosto quente, junto com alguns lugares menos inócuos, volto ao

documento, infestado por alterações registradas.

— Gosto de ver o meu progresso.

— Nora — diz ele. — Tudo é progresso neste momento.

Ele estende a mão para selecionar o documento inteiro, depois passa o cursor

sobre Aceitar todas as alterações, seu cotovelo encostado no meu na mesa de

madeira laminada. Ele olha para mim em busca de aprovação.

Concordo com a cabeça, mas ele não se move, e o leve contato de seu braço puxa

todos os nervos do meu corpo para aquele ponto.

A qualquer segundo as paredes voltarão a se erguer, e eu não aguento isso. Pensei

em como abordar o assunto por horas enquanto fiquei acordada ontem à noite e, de

alguma forma, o que sai ainda é apenas:

— Esqueci de mencionar, ontem à noite encontrei seu primo.

Eu digo a palavra propositalmente. Charlie desvia o olhar enquanto coça o

queixo.

— Ele estava resgatando um gatinho de uma árvore ou ajudando uma velhinha a

atravessar a rua?

— Nenhum dos dois — eu digo. — Ele estava apenas sem camisa e lavando um

carro.

— Espero que você tenha dado uma gorjeta a ele por seu problema. — Seu olhar

volta para o meu, um estalo de eletricidade saltando no espaço entre nós.

— Ei, amigo — eu digo — aqui vai uma dica: coloque uma camisa. Este é um salão

literário familiar.


Os cantos dos lábios de Charlie se contorcem quando ele se levanta e se inclina

contra a mesa, os olhos fixos na janela.

— Se você realmente dissesse isso, o clube de tricô feminino teria expulsado você

da cidade. Shepherd sem camisa é um item básico de Sunshine Falls.

Eu luto para manter minha voz uniforme.

— Eu não sabia que ele era seu primo. Ou eu não teria saído com ele.

Ele desvia o olhar.

— Você não me deve nada, Nora.

— Ah, eu sei. — Eu também me levanto. Eu não posso mais evitar isso… não está

funcionando de qualquer maneira. Não posso fazer nada sobre as coisas de Libby,

mas isso... isso pode ser resolvido. De uma forma ou de outra, o muro de tensão está

caindo hoje.

Respiro fundo e continuo:

— Especialmente se algo está acontecendo com você e sua ex.

Seus olhos voltam para os meus.

— Não está.

— Você a viu ontem à noite, não foi?

Sua mandíbula flexiona.

— Eu estava trabalhando. Ela simplesmente parou por lá.

Sinto meu olhar se estreitar com ceticismo.

— Para uma visita planejada?

Ele muda seu peso.

— Sim — ele admite.

— Para comprar um livro? — Eu digo.

Sua mandíbula aperta novamente.

— Não exatamente.

— Para sair?

— Para conversar.

— Como os ex-noivos costumam fazer.

— É uma cidade pequena — diz ele. — Não podemos evitar um ao outro.

Precisávamos esclarecer as coisas.

— Ah — eu digo.

— Não diga ah — diz ele, parecendo frustrado agora. — Nada aconteceu entre

nós, e não vai acontecer.

— Não é da minha conta — eu digo.

— Exatamente. — De alguma forma, isso parece deixá-lo mais frustrado, o que

me deixa mais profunda e vorazmente consciente do espaço encolhendo entre nós.

— Assim como não é da minha conta se você namorar meu primo.

— A quem eu não tenho intenção de ver novamente — eu digo. — E com quem

eu não teria saído nem uma vez se soubesse que ele era seu primo.

— Você não fez nada de errado — Charlie insiste.

— E você também não, passando um tempo com Amaya, — eu respondo. Ou

somos muito bons ou muito ruins em lutar. Estamos negociando cruelmente o apoio

para a vida romântica um do outro.


Ele me supera dizendo:

— Shepherd é um cara legal. O solteiro mais cobiçado da cidade. Ele é perfeito

para sua lista, verifica todos os seus requisitos.

— E Amaya? — eu jogo de volta. — Como ela está à altura da sua?

— Não passou na nota de corte — diz ele.

— Deve ser uma lista bem longa.

— Um item — ele responde. — Muito específico.

A maneira como ele está olhando para mim desperta minha pele, minha corrente

sanguínea, meu desejo.

— Pena que não vai funcionar para vocês — eu digo.

— E lamento ouvir sobre você e Shepherd. — Seus olhos piscam. — Achei que

vocês dois tinham se divertido.

— Oh, eu me diverti — eu digo. — Acontece que um bom momento não é o que

eu realmente quero agora.

Ele olha para mim, os olhos escurecendo, e eu espero que eu seja tão legível para

ele agora como sempre, que ele saiba que eu terminei de ignorar essa coisa entre

nós. Com a voz rasgada, ele diz:

— E o que você quer, Stephens?

— Eu só… — Agora ou nunca. Sinto que estou me preparando para um salto de

paraquedas. — Eu quero estar aqui com você e não me preocupar com o que vem a

seguir.

Ele se aproxima, meu coração zunindo enquanto ele invade meu espaço.

— Nora — diz ele suavemente.

— Está tudo bem se você não quer isso — eu digo. — Mas estou pensando demais

em você. E quanto mais espaço eu tento colocar entre nós, pior é.

Seus lábios torcem; seus olhos brilham.

— Então você está tentando tirar isso do seu sistema?

— Talvez — eu admito. — Mas talvez eu também queira algo que seja fácil para

variar.

Sua sobrancelha levanta, provocando.

— Agora eu sou fácil?

Sim, eu penso, para mim, você é a pessoa mais fácil do mundo. Mas eu digo:

— Deus, eu espero que sim.

Charlie ri, mas desaparece rapidamente e seu olhar cai para o lado.

— E se eu já souber que isso não pode ir a lugar nenhum — diz ele — não importa

o quanto possamos acabar querendo?

— Tem mais alguém?

Seus olhos se erguem, arregalados.

— Não. Não é nada disso. É só que...

— Charlie — eu digo. — Eu te disse. Não quero pensar no que vem a seguir. Eu

nem tenho certeza se eu poderia lidar com isso agora.

Ele me estuda, sua mandíbula trabalhando.

— Tem certeza?


— Completamente — eu digo, e quero dizer isso. — Se você quiser, eu até assino

um guardanapo.

Não tenho certeza de qual de nós começou, mas sua boca está na minha, quente

e faminta, suas mãos correndo pelos meus lados e de volta pela minha frente,

absorvendo o máximo de mim que pode de uma só vez. Sem hesitação, sem polidez,

apenas desejo. Meus dedos se entrelaçam em sua camisa enquanto ele me puxa

contra ele, fechando cada lacuna que podemos encontrar.

Em segundos, ele está puxando minha blusa para fora da minha saia e suas mãos

estão na frente dela, tão perfeitamente ásperas e quentes que a seda é insuportável

em comparação. Um som desesperado passa por mim, e ele nos gira, me

empurrando para a mesa, subindo minha saia pelas minhas coxas para que ele fique

entre as minhas pernas.

Eu o puxo mais para mim, arqueando em seu toque. Seus dedos se enrolam na

parte de trás do meu pescoço e dão um nó no meu cabelo, seus dentes na minha

garganta.

— Nós não podemos fazer isso em uma biblioteca — eu assobio em sua boca,

embora minhas mãos ainda estejam se movendo, deslizando por suas costas sob sua

camisa, unhas arranhando sua pele e deixando arrepios.

Ele murmura, em tom de repreensão:

— Achei que você não queria se preocupar com as regras.

— Quando se trata de indecência pública, é menos uma regra e mais uma lei

federal — eu sussurro.

Seus lábios se movem pela minha garganta, uma mão deslizando sob mim para

inclinar meus quadris contra os dele, posicionando seu comprimento contra mim.

Oh Deus.

— Isso só conta — diz ele — se tirarmos nossas roupas.

O som que eu faço não poderia ser muito menos sexy ou mais animal-selvagemmoribundo.

— E para ser claro — eu digo — você está bem com o fato de estarmos

trabalhando juntos?

Ele beija ao longo da minha clavícula, sua voz toda rouca.

— Nós dois sabemos que você não vai pegar leve comigo por isso.

— E você? — É completamente absurdo que eu esteja mantendo a farsa de ter

uma conversa totalmente normal enquanto minhas mãos estão achatadas na mesa

atrás de mim e meu corpo está levantando discretamente, tornando mais fácil para

sua boca escovar sob a gola da minha camisa.

— Não tenho interesse em pegar leve com você, Nora — diz ele.

Meus dedos serpenteiam em seu cabelo, arrastando para baixo em seu pescoço,

sua pulsação zumbindo sob meu toque. Minha mente parece que passou direto por

um triturador e entrou em um caleidoscópio. Seus dedos deslizam pelo interior da

minha coxa até que não possam ir mais alto, seus olhos observando o progresso com

um brilho quase bêbado.

Meus joelhos se abrem para ele. Sua mandíbula aperta enquanto ele passa a mão

sobre mim, leve como uma pluma no início e depois com mais pressão. Seus dedos


deslizam sob a renda, meus quadris levantando no movimento, nenhum som na sala,

além da nossa respiração irregular.

— Você tem as manchas vermelhas, Nora — ele brinca, passando os lábios sobre

minha garganta. — Você está com raiva de mim?

— Furiosa — eu ofego enquanto sua boca se arrasta para baixo, uma de suas

mãos soltando os botões superiores da minha blusa. Ele puxa meu sutiã para baixo

até que o ar frio encontra minha pele.

— Diga-me como posso fazer as pazes com você — ele murmura contra o meu

peito.

Eu arqueio para trás para dar a ele mais de mim.

— Isso é um começo.

Ele me puxa entre seus lábios e eu tento não gritar quando um gemido baixo

ressoa através dele. Sua mão está sob minha saia novamente, sua respiração travada

contra meu peito.

— Você me desfaz, porra — diz ele.

Eu o puxo para mais perto, precisando de mais dele. Estamos mais ou menos

retos na mesa agora, a parte interna da minha coxa contra seu quadril. Eu enterro

minha boca contra sua garganta para abafar os sons que ele está tirando de mim.

Eu me sinto totalmente fora de controle e, além disso, posso ver o quanto ele

gosta de me ver assim, e isso está apenas atiçando a chama. Eu quero estar fora de

controle. Eu quero que ele me veja assim e saiba que ele é o motivo. Sua mão

percorre meu lado até atingir a ponta do meu calcanhar, engatando minha perna

mais alto, enrolando-a em torno de seus quadris enquanto tentamos nos aproximar.

Se tivéssemos algum lugar mais privado para ir, já teríamos ido.

— Eu quero tanto sentir o seu gosto — ele rosna em minha boca, meu coração

disparando.

— Eu quero sentir o seu — digo a ele.

Ele dá uma risada baixa.

— Tudo é uma competição com você.

Eu deslizo minhas mãos sob seu cós, todo o meu foco se estreitando para a

sensação dele, o som de sua respiração ficando irregular quando minha mão aperta,

seus quadris se movendo para me deixar ter mais dele.

Eu nunca gostei tanto disso. Não tenho certeza se já gostei disso, ponto final, mas

também nunca vi Charlie tão desinibido e estou bêbada com o poder.

— Deus — ele diz — eu preciso estar dentro de você.

Tudo em mim fica tenso.

— Ok. — Eu aceno furiosamente, e ele ri novamente.

— Não, você está certa — diz ele. — Aqui não.

— Nós não temos muitas opções — eu aponto.

— Quando finalmente fizermos isso, Nora — ele diz, afastando-se de mim, suas

mãos deslizando meus botões de volta nas casas dos botões tão facilmente quanto

ele os desfez, — não vai ser em uma mesa de biblioteca, e não vai ser com tempo

apertado. — Ele alisa meu cabelo, enfia minha blusa de volta em minha saia, então


pega meus quadris em suas mãos e me guia para fora da mesa, me puxando contra

ele. — Nós vamos fazer isso direito. Sem atalhos.


EU SAIO DA BIBLIOTECA COM AS PERNAS TRÊMULAS, o coração acelerado

como se tivesse passado por uma aula de spinning de quarenta minutos. Passei

horas sem checar meu telefone, e os e-mails de sempre se acumularam, um do meu

chefe, que raramente honra o conceito do fim de semana, e uma enorme quantidade

de clientes que pensam da mesma forma, junto com uma série demensagens de

Libby.

Eu aperto os olhos contra a luz do sol para ver as fotos que ela enviou do

progresso que ela fez hoje. O café Goode Books agora parece confortável e

aconchegante, e a vitrine de FAVORITOS DO VERÃO está alinhada com luzes

cintilantes. Na maioria das fotos, Sally fica de lado, radiante, mas em uma foto

vacilante que inclui uma boa parte do polegar de alguém, Libby fica com os braços

abertos e um sorriso enorme no rosto, um coque rosa sedoso torto no topo da

cabeça.

Seu rosto em forma de coração parece mais ou menos o mesmo de quando ela

tinha quatorze anos e foi aceita na mostra de arte do ensino médio: orgulhosa,

confiante, capaz. Mesmo com toda a estranheza entre nós, fico tão feliz em vê-la

assim.

Está incrível! Eu digo a ela. Você é um prodígio!! Não posso nem dizer que é o

mesmo lugar!!!

Obrigada! ela responde. Tá tudo certo? Você não costuma atrasar.

Eu deveria encontrá-la no Vovô Cócoras há dez minutos. Eu digito de volta, Tudo

bem. Chego em um minuto.

Eu só tenho uma ligação para fazer primeiro. Paro em um dos bancos verdes ao

longo da rua, o metal quente por causa do sol, e procuro na minha bolsa o número

de telefone que Shepherd me deu. Talvez seja antiquado da minha parte entrar em

contato com alguém para que ele saiba que não estou interessada, mas Shepherd é

um cara legal. Ele merece mais do que eu ignorando-o.

A linha toca três vezes antes de alguém atender, uma voz de mulher dizendo:

— Dent, Hopkins e Morrow. Como posso ajudá-lo?

Depois de um segundo de confusão, eu digo:

— Estou procurando por Shepherd?

— Sinto muito — diz ela — não há ninguém aqui com esse nome.

— Hum, eu posso… quem é? — Eu digo.


— Aqui é a Tyra — diz ela — nos escritórios de advocacia de Dent, Hopkins e

Morrow.

— Eu devo… estar com o número errado. — Eu desligo e vasculho minha bolsa

até encontrar um recibo com números rabiscados. Este é o que Shepherd me deu. O

número que acabei de ligar... deve ter sido o que Sally me deu. Para sua irmã. Peguei

o número que ela pediu.

Eu poderia usar um pouco de comida para absorver o galão de café que bebi hoje,

mas não é apenas o excesso de cafeína que faz minhas mãos tremerem enquanto

digito o nome do escritório de advocacia em uma pesquisa no Google.

Quando os resultados aparecem, é como se alguém tivesse injetado gelo nas

minhas veias.

Dent, Hopkins & Morrow: Advogados de Direito de Família

Libby perguntou a Sally… pelo número de um advogado de divórcio? Por um

instante, a rua, a calçada de pedra, o céu azul pálido, o mundo parece que está sendo

rasgado em tiras. Meus pulmões estão superinflados, algo grande e pesado

bloqueando qualquer coisa de entrar ou sair.

Estou de volta ao nosso antigo apartamento, naquelas semanas terríveis depois

que mamãe morreu, vendo Libby desmoronar, segurando-a com força enquanto ela

soluça, até que ela não consiga respirar, até que ela esteja engasgada.

Estou me afogando em sua dor, meu próprio endurecimento, calcificando em

meu coração.

Não quero ficar sozinha, às vezes ela engasga, ou então, Estamos sozinhas.

Estamos sozinhas, Nora.

Estou segurando-a com força, enterrando minha boca em seu cabelo e

prometendo que ela está errada, que ela nunca estará sozinha.

Eu tenho você, digo a ela. Eu sempre terei você.

Todas aquelas noites em que acordei assustada e encontrei tudo ainda esperando

por mim: mamãe se foi. Sem dinheiro. Libby chorando.

Às vezes ela chorava durante o sono. Outras vezes eu acordava enquanto ela

estava no banheiro, e o ponto frio na cama ao meu lado me deixava em pânico.

Naqueles dias, a dor esperava como um monstro sombrio, elevando-se sobre

nossa cama, e em vez de encolher noite após noite, crescia, alimentando-se de nós,

engordando com nossa dor.

Certa manhã, deitamos embrulhadas sob os cobertores e alisei o cabelo cor de

morango da minha irmã, e ela sussurrou, eu só não quero mais ficar aqui. Eu quero

que isso pare.

E aquele pânico cresceu demais para o meu corpo, inchando, latejando com raiva.

Sem pensar em dinheiro, trabalho, escola ou qualquer um dos milhões de

aspectos práticos pelos quais me tornei responsável, eu disse: Então vamos a algum

lugar.

E nós fizemos.

Comprei passagens de ida e volta, no meio da semana, para Los Angeles. Dei

entrada em um motel decadente cujo ferrolho não funcionava e enfiamos a cadeira

da escrivaninha sob a maçaneta enquanto dormíamos todas as noites.


Todas as manhãs, pegávamos um táxi para a praia e ficávamos lá até o jantar,

sempre algo barato e gorduroso. Pegamos algumas das cinzas da mamãe e as

jogamos no oceano quando ninguém estava olhando, depois fugimos, gritando e

rindo, sem saber se tínhamos acabado de infringir uma lei.

Mais tarde, dividimos o resto das cinzas entre o East River e o Hudson, pedaços

de mamãe de cada lado da nossa cidade, nos cercando, nos segurando. Mas ainda

não estávamos prontos para largar tanto dela.

Durante uma semana inteira, Libby não chorou, e então, no avião para casa,

durante a decolagem, ela olhou pela janela, vendo a água encolher abaixo de nós, e

sussurrou: Quando vai parar de doer?

Eu não sei, eu disse a ela, sabendo que ela veria que eu estava mentindo. Que eu

acreditava que nunca iria parar, nunca.

Ela caiu em soluços feios e dolorosos, e os outros passageiros lançaram olhares

cansados em nossa direção. Eu os ignorei, puxei Libby em meu peito. Deixe sair,

docinho, murmurei, exatamente como mamãe costumava dizer para nós.

Uma comissária de bordo superestimou nossas idades ou teve pena de nós e

discretamente deixou duas garrafas de bebida em miniatura.

Através de seus soluços, Libby escolheu o Bailey's. Eu bebi o gin.

Desde aquele dia, eu não conseguia nem sentir o cheiro sem pensar em abraçar

minha irmã, sobre sentir tanto a falta da mamãe que ela se sentiu mais perto do que

em semanas.

Talvez seja por isso que é a única coisa que eu realmente bebo. Sentir esse buraco

em seu coração é melhor do que não sentir nada.

Eu pisco para apagar a memória, mas a dor no meu peito, a dor no fundo das

minhas mãos não param. Eu afundo no metal quente do banco e conto os segundos

de minhas inalações, combinando-as com minhas exalações.

Essa foi a última viagem que Libby e eu fizemos. Foi a última viagem que fiz, ponto

final, tirando aquele fim de semana malfadado em Wyoming com Jakob.

Assim que consegui controlar nossa dívida, comecei a separar dinheiro aqui e ali

para levar Libby a algum lugar incrível, como Milão ou Paris, quando ela se formasse

na faculdade. Uma vez, ela tinha todos os tipos de ambição, mas depois que

perdemos a mamãe, parecia que tudo acabou. Ela parou de ajudar na Freeman's e

passou por algumas outras carreiras em potencial, mas nenhuma delas prendeu sua

atenção.

Passei seus anos de faculdade em cima dela, empurrando-a, lendo seus trabalhos

para ela, fazendo seus cartões de memória. Brigamos mais do que antes, nossos

novos papéis nos irritando, sua dor sem fim passando da raiva para a exaustão e

vice-versa. Às vezes, mesmo anos depois, ela ainda chorava durante o sono.

E então ela conheceu Brendan e decidiu não terminar a faculdade.

Quando ela me disse que eles estavam noivos, não fiquei surpresa. Tudo o que eu

conseguia pensar era naquela adolescente, com medo de ficar sozinha.

Eu me preocupava que ela fosse muito jovem, que ela estivesse tomando a

decisão mais por uma necessidade de segurança do que porque era o que ela queria


no fundo. Mas a verdade é que ela parecia feliz. Pela primeira vez em anos, eu tinha

minha irmã de volta.

Brendan a acomodou. Eu não gostava que ela tivesse desistido do trabalho de

planejamento de eventos que eu tinha mexido os pauzinhos para ela, mas o olhar

assustado deixou os olhos da minha irmã, e eu finalmente pude respirar.

Por anos, ela finalmente estava bem, e todo o trabalho, todas as festas de

aniversário perdidas, todas as reuniões matinais, todos os relacionamentos que

nunca decolaram por causa da minha agenda, tudo isso valeu muito a pena.

Ela estava bem.

Agora ela está se esquivando das ligações do marido e conversando com um

advogado de divórcio. Passando três semanas longe dele. E talvez seja por isso que

de repente importe tanto que eu seja uma workaholic. Não porque Libby não aprova,

mas porque ela precisa de mim. Ela precisa de mim e eu não estive lá.

O medo rasga através de mim tão violento quanto um incêndio, mas gelado.

Escondido lá, sob meu senso de controle rigidamente fabricado, minhas listas de

verificação e meu exterior de aço, sempre há medo.

Libby estava errada quando disse a Sally que sou igual a mamãe. Mamãe

trabalhava sem parar para perseguir algo que ela queria. Para mim, é correr sem

parar tentando escapar do passado.

Medo do dinheiro acabar novamente. Da fome. Do fracasso. De querer tanto

alguma coisa que me destrua quando não posso tê-la. De amar alguém que não posso

ter, de ver minha irmã escorregar pelos meus dedos como areia. De ver algo quebrar

que eu não saiba como consertar.

Tenho medo, sempre, do tipo de dor que sei que não sobreviveremos uma

segunda vez.

Concentro-me na pressão do chão sob minhas solas, cavando-me no lugar.

Um por um, os itens de ação deslizam para uma coluna organizada em minha

mente.

Encontre o melhor advogado de divórcio que o dinheiro pode comprar.

Encontre um apartamento para Libby que ela possa pagar sozinha, ou então um

que possamos dividir com as meninas. (Podemos todas caber no apartamento do

Charlie?)

Peça a um terapeuta para ajudá-la com isso.

Possivelmente contratar um assassino de aluguel. Ou talvez não um assassino de

aluguel, mas pelo menos alguém que possa se vingar de algo menor, bebidas jogadas

no rosto de Brendan, chaves arrastadas pela lateral do carro, dependendo do que

exatamente aconteceu, por mais difícil que seja imaginá-lo fazendo qualquer coisa

além de olhar com amor para Libby enquanto esfregava seus pés inchados.

E então o item final da lista e o mais imediato: Traga a Libby o máximo de

felicidade possível agora. Fazer com que ela se sinta segura o suficiente para se abrir

comigo.

Meus ombros caem de volta no lugar. Meus pulmões relaxam. Agora que sei o que

está errado, posso consertar.


— Você sabe que pode me dizer qualquer coisa — eu digo. — Certo?

Libby ergue os olhos da mistura de maionese e ketchup em que mergulhamos as

batatas fritas do Vovô Cócoras e ri.

— Cara — ela diz sem rodeios. — Não isso de novo. Concentre-se em sua própria

vida, mana.

Em vez de jogar uma farpa de volta, eu deixei passar.

— O que vem a seguir na lista?

Ela relaxa.

— Estou feliz que você perguntou, porque eu tenho uma ideia incrível.

— Quantas vezes eu tenho que te dizer? — Eu digo. — Um parque aquático feito

de álcool não é uma boa ideia.

— Concordo em discordar. — Ela esfrega as mãos, tirando o sal das pontas dos

dedos. — Mas não é disso que estou falando. Descobri como salvar a livraria.

— Quantas estátuas de bronze uma praça da cidade pode ter?

— Um baile — diz Libby. — Um Baile da Lua Azul. Como em Once.

Eu sinto minha testa franzir.

— Existe mesmo uma lua azul este mês?

— Não é o ponto.

— Certo, porque o ponto é…

— Uma grande oportunidade de arrecadação de fundos! — ela diz. — Sally

conhece alguém que é dono de uma empresa de eventos. Ele pode nos arranjar uma

pista de dança e um sistema de som, e então conseguimos voluntários para decorar

e trazer tortas para uma venda de bolos. Fazemos tudo na praça da cidade, assim

como no livro.

— Isso é muito trabalho — eu digo hesitante.

— Nós não vamos fazer isso sozinhas — ela insiste. — Sally já fez ligações para

todos em sua troca de vinhos, e Amaya vai trabalhar no bar, e Gertie...

— A barista anarquista? — eu esclareço.

— Se ofereceu para fazer panfletos para espalharmos por Asheville. Mug + Shot

se transformará em uma fonte de refrigerante. Além disso, eles já têm uma licença

de bebidas alcoólicas, então podem fazer alguns drinks com álcool. Metade da cidade

já está a bordo. — Ela agarra minha mão contra a barra pegajosa. — Vai ser moleza.

Mamão com açúcar, na verdade. A única coisa é…

— Uh-oh — eu digo em seu estremecimento.

— Tudo bem se não pudermos fazer isso acontecer! — ela diz rapidamente. —

Mas Sally e eu achamos que seria legal fazer uma sessão virtual de perguntas e

respostas com Dusty. E então talvez tenha alguns livros autografados por ela. Só se

ela não se importasse! E só se você não se importar em perguntar a ela.

Ela aperta as palmas das mãos, implorando ou rezando.

— É assim que você quer passar as próximas duas semanas? — digo, cética. —

Não descansando? Não lendo e assistindo filmes e deitada ao sol?

— Desesperadamente.


Seja uma distração ou uma maneira de ela exercer o controle ou uma chance de

tentar uma nova vida, é isso que ela quer, então é isso que ela consegue.

— Vou perguntar a Dusty.

Libby joga os braços em volta do meu pescoço, beijando minha cabeça uma dúzia

de vezes.

— Vamos fazer isso! Vamos salvar um negócio local.

Não estou convencida, mas ela está feliz, e a felicidade de Libby sempre foi minha

droga favorita.


— CLARO, É CLARO! — Dusty diz, no seu jeito Dusty, ao mesmo tempo um pouco

hiperativo e vagamente espacial. — Eu adoraria ajudar, Nora. Mas… Eu nunca estive

realmente em Sunshine Falls. Eu só dirigi por aí, anos atrás.

— Bem, as pessoas aqui amam o seu livro — eu digo. Eu olho para trás em direção

ao lado do chalé, onde Libby está estendida em uma toalha de piquenique, tomando

sol enquanto escuta. Ela me dá dois polegares encorajadores para cima, e eu limpo

minha garganta no telefone e continuo. — A cidade inteira tem essas placas sobre

diferentes partes da história. É muito fofo.

— Muito fofo? — Ela repete essas palavras com admiração. Provavelmente

porque soam como uma antiga maldição latina saindo da minha boca.

Minha voz fica mais alta.

— Sim!

Eu me sinto mal, pedindo um favor a um cliente, especialmente porque requer

admitir que eu estou aqui, trabalhando pessoalmente com Charlie.

Dusty fica chocada ao saber que deixei a cidade, e quando explico que vim aqui

com minha irmã, ela fica quase tão chocada ao saber que tenho uma irmã.

Acontece que tudo o que minha cliente mais antiga realmente sabe sobre mim é

que nunca saio de Nova York e estou sempre acessível por telefone.

Então, depois de algumas histórias sobre o passado, eu a informo sobre a situação

da Goode Books e exponho o plano para a arrecadação de fundos: um clube do livro

on-line com a própria Dusty, aberto a todos que encomendarem um livro da loja.

— É uma hora da minha vida — diz ela. — Acho que posso fazer funcionar. Para

a melhor agente do mundo.

— Eu já te disse ultimamente que você é minha cliente favorita? — Eu digo.

— Você nunca me disse isso — ela responde. — Mas você me enviou alguns

champanhes muito caros ao longo dos anos, então imaginei.

— Quando as edições para Frigid estiverem prontas, enviarei a você uma piscina

de champanhe.

Libby se endireita em seu cobertor e aponta um dedo para mim. VIU? PARQUE

AQUÁTICO DE ÁLCOOL, ela murmura vitoriosa, então se levanta e entra trovejando

para ligar para Sally com as boas notícias.

Ontem eu desabei e mandei uma mensagem para Brendan para perguntar se algo

estava acontecendo entre eles, e ele simplesmente não respondeu, mas estou

tentando não me concentrar nisso.


— Posso te perguntar uma coisa, Dusty? — Eu digo.

— É claro! Pergunte — diz ela.

— Por que Sunshine Falls?

Ela para e pensa.

— Eu acho — ela diz — que parecia o tipo de lugar que pode parecer de um jeito

do lado de fora, e ser algo totalmente diferente quando você o conhece. Como se você

tivesse a paciência de dedicar um tempo para entendê-lo, poderia ser algo bonito.

Sally, Gertie, Amaya e uma série de outros rostos semi-familiares estão entrando

e saindo da loja nos próximos dias, preparando-se para o baile. Finalmente consigo

me concentrar no meu trabalho. Libby, enquanto isso, está no centro do turbilhão

de planejamento, constantemente indo e vindo, atendendo telefonemas no viva voz

até que os olhares descontentes de outros clientes a levem a uma pirueta de

desculpas ao sair pela porta.

Charlie e eu só trabalhamos por e-mail. Se ficarmos na mesma sala por muito

tempo, tenho certeza de que Libby, e talvez até Sally, saberá exatamente o que está

acontecendo, e o complicado chegará rápido.

Eu tenho aceitado a desaprovação de Charlie por Libby, mas agora uma parte de

mim se pergunta se é outra coisa. Se eu usar os aplicativos de namoro foi uma

espécie de jogo suave para ela, só para ver o que está por aí. De qualquer forma, não

preciso expor essa aventura quando ela está lidando com a implosão de seu próprio

relacionamento.

Meu estômago revira toda vez que me permito pensar nisso, mas honestamente,

a correspondência de e-mail entre Charlie e eu é a imagem do profissionalismo.

Nossas mensagens de texto não são, e às vezes eu tenho que fugir do café, que virou

a sala de guerra de Libby, para lê-los em algum lugar onde ninguém possa me ver

corar.

Metade do tempo Charlie me intercepta, e nós nos esgueiramos pela loja,

roubando segundos sozinhos onde quer que os consigamos. O corredor do banheiro.

A sala de livros infantis. O beco sem saída no corredor de não-ficção. Lugares onde

estamos fora de vista, mas ainda temos que ficar quase em silêncio. Uma vez ele me

puxa pela porta dos fundos para o beco atrás da loja, e nós colocamos nossas mãos

um no outro antes que a porta se feche.

— Parece que você não dorme há anos — eu sussurro.

Suas palmas descem até minha bunda, me levantando contra ele, e ele deixa sua

boca cair ao lado da minha orelha.

— Tenho muita coisa na cabeça. — Suas mãos me alcançam, testando cada curva.

— Vamos a algum lugar.

— Onde?

— Em qualquer lugar que minha mãe e sua irmã não possam nos ver — diz ele.

— Ou escutar.

Olho de volta para a porta, na direção geral da lista de mil pontos do quadro

branco da Libby & Co.


Todas aquelas pequenas rachaduras supercoladas no meu coração pulsam de

dor, uma sensação de congelamento emocional do cérebro. Eu quero isso, ele, mas

não posso esquecer o que estou fazendo aqui.

Eu olho para trás em seus olhos de favo de mel, sentindo como se estivesse

afundando até a cintura neles, como se não houvesse esperança de escapar, em parte

porque me falta motivação enquanto suas mãos estão em mim.

— Qualquer lugar? — Eu pergunto.

— Só falar.

Libby está tão imersa no Modo de Trabalho que não insiste em se juntar à nossa

corrida a Target e, em vez disso, se concentra na lista de compras da campanha de

arrecadação de fundos. Sally concorda em cuidar da caixa registradora se alguém

entrar, e partimos no velho carro que Charlie pegou emprestado enquanto ele está

na cidade.

O ar-condicionado não funciona, e o sol bate forte sobre nós, o vento quente e

com cheiro de grama arrancando mecha por mecha do meu cabelo amarrado. Tudo

isso apenas torna a rajada de ar fria e o cheiro de plástico limpo da Target mais

agradável. Eu não acho que estávamos ficando muito tempo fora, mas nas câmeras

de vigilância no caixa automático, minha pele parece bronzeada, sardas parecidas

com as de Libby estão salpicadas no meu nariz, e a umidade deu ao meu cabelo uma

leve onda.

Charlie me pega me estudando e brinca

— Pensando em como você está “gostosa e cara”?

— Na realidade… — Eu pego o recibo. — Estou sonhando acordada sobre o quão

duro estou prestes a fazer você trabalhar.

Seus olhos brilham.

— Eu aguento.

Nós dirigimos direto para o chalé, e assim que entramos no silêncio frio, estou

bem ciente de que este é, realisticamente, o mais sozinhos que Charlie e eu já

estivemos, mas não temos muito tempo até que Libby esteja aqui, e há,

ostensivamente, coisas mais importantes para se concentrar do que os lugares em

que o suor tem sua camisa grudada nele.

— Você pode começar lá atrás — eu digo, e vou para as escadas para reunir o

resto do que vamos precisar.

No momento em que abro a porta dos fundos, com os braços carregados de roupa

de cama, Charlie já está com a barraca montada.

— Bem — eu digo. — Você conseguiu. Você me surpreendeu.

— E eu aqui pensei que se você precisasse atordoar um tubarão, você deveria

apenas dar um tapa entre os olhos.

— Não — eu digo. — Competência com abrigos portáteis é a maneira certa de

fazer isso.


Ele se agacha dentro da barraca e começa a desenrolar o colchão de ar que

compramos na Target, porque, claro, Libby e eu vamos acampar, mas ainda somos

mulheres Stephens.

— Como você é tão profissional nisso? — Eu pergunto.

— Eu acampei muito com meu pai enquanto crescia. — A intensa luz do dia tem

cada linha nítida de seu rosto sombreada em preto, seus olhos mais cor de melado

do que de mel.

— Você foi desde que voltou? — Eu pergunto.

Charlie balança a cabeça. Depois de alguns segundos, ele diz

— Ele não me quer aqui.

Seu tom, sua testa, sua boca, tudo nele assumiu aquela qualidade pétrea, como se

ele estivesse apenas recitando fatos, verdades objetivas que não o afetam.

— Eles não ficaram empolgados quando decidi ficar na cidade em vez de voltar a

trabalhar para um deles.

Eu me pergunto se as pessoas caem nessa. Se, toda vez que Charlie fala sobre as

coisas que mais significam para ele, o mundo vê um homem frio com uma visão

clínica das coisas, em vez de alguém lutando por compreensão e controle em um

mundo onde isso raramente aparece.

Eu engulo o nó dolorido na minha garganta.

— Tenho certeza que eles querem você aqui, Charlie. Parece que isso era o que

eles queriam desde o início.

Ele inclina o queixo em direção à mesa do pátio, onde estão os cabos de extensão

que compramos.

— Se importa de ligar a bomba de ar?

Nos próximos minutos, ficamos em silêncio enquanto a bomba uiva. Eu montei

os ventiladores que tiramos do armário e os ligo na extensão. Charlie coloca a roupa

de cama no colchão, e eu penduro as luzes da lanterna de papel, organizando as velas

repelentes de mosquitos em intervalos regulares.

Estamos quietos até eu não aguentar mais.

— Charlie — eu digo, e ele olha por cima do ombro para mim, então se vira para

se sentar na beirada do colchão de ar.

“Tenho certeza que ele está grato por você estar aqui — eu digo. — Ambos devem

estar”.

Ele usa as costas da mão para limpar o suor na testa.

— Quando eu disse a ele que ficaria por um tempo, suas palavras exatas foram:

Filho, o que você acha que pode fazer? A ênfase em você era dele, não minha.

Sento-me no deque em frente a ele, de pernas cruzadas.

— Mas vocês dois não são próximos?

— Nós éramos — diz ele. — Nós somos. Ele é a melhor pessoa que eu conheço. E

ele está certo, não há muito que eu possa fazer para ajudá-lo. Quero dizer, Shepherd

é quem mantém o negócio funcionando, acompanhando o trabalho que a casa

sempre precisa. Tudo o que posso fazer é administrar a livraria.

Meu coração dói. Lembro-me dessa sensação, de não ser suficiente. De querer

tanto ser o que Libby precisava depois que perdemos a mamãe e fracassar, uma e


outra vez. Eu não poderia ser carinhosa com ela. Eu não poderia trazer a magia de

volta para nossa vida. Tudo o que eu tinha do meu lado era força bruta e desespero.

Mas eu estava tentando viver de acordo com uma memória, o fantasma de alguém

que nós duas amávamos.

Agora eu vejo o que eu não percebi antes. Não só que Charlie nunca sentiu que se

encaixava, mas que ele viu como seria se ele se encaixasse. Eu não entendi na hora,

mas ver Shepherd de pé com Clint no salão, não é apenas porque eles são alturas e

estaturas comparáveis, ou a mesma trope. Eles se parecem. Os olhos verdes, o cabelo

loiro, a barba.

Subo na barraca ao lado dele, o colchão afundando sob meu peso.

— Você é filho dele, Charlie.

Ele passa as mãos pelas coxas, suspirando.

— Eu não sou bom nessa merda. — Ele amassa sua sobrancelha, então se recosta

no colchão, olhando para cima através do teto mosquiteiro, um meio termo sugerido

por Charlie que ainda conta como Libby e eu dormindo sob as estrelas. — Nunca me

senti tão inútil na minha vida. As coisas estão desmoronando para eles, e o melhor

que posso fazer é abrir a loja todos os dias no mesmo horário.

— O que, pelo que você me disse, é uma grande melhoria. — Eu me aproximo,

seu cheiro quente enrolando ao meu redor, o sol persuadindo-o de sua pele. Acima,

nuvens de algodão doce flutuam pelo céu azul de centaurea. — Você não é inútil,

Charlie. Quero dizer, olhe para tudo isso.

Ele me dá um olhar.

— Eu sei como montar uma barraca, Nora. Não é digno de um Nobel.

Eu balanço minha cabeça.

— Não isso. Você é… —Eu procuro a palavra certa. É raro que meu vocabulário

me falhe assim. — Organizado.

Seus olhos crepitam com a luz enquanto ele ri.

— Organizado?

— Extremamente — eu digo, sem expressão. — Para não dizer completo.

— Você me faz soar como um contrato — diz ele, divertido.

— E você sabe como me sinto sobre um bom contrato — eu digo.

Seu sorriso puxa mais alto.

— Na verdade, eu só sei como você se sente sobre um ruim, escrito em um

guardanapo úmido. — Ele se deita totalmente no colchão, e eu também, deixando

um espaço saudável entre nós.

— Um bom contrato é… — Eu penso por um momento.

— Adorável? — Charlie fornece, provocando.

— Não.

— Atraente?

— No mínimo — eu digo.

— Encantador?

— Sexy pra caralho — eu respondo. — Irresistível. É uma lista de grandes

características e compromissos de trabalho que cuidam de todas as partes

envolvidas. É…. satisfatório, mesmo quando não é o que você esperava, porque você


trabalha para isso. Você vai e volta até que cada detalhe seja exatamente como

precisa ser.

Olho de soslaio para Charlie. Ele já está olhando para mim. A lacuna saudável

desenvolveu uma febre.

— O que aconteceu com Amaya? — Está fora antes que eu possa pensar duas

vezes sobre isso.

Os cantos de sua boca se inclinam para baixo.

— O que você quer dizer?

— Quero dizer — eu digo — você quase se casou com ela. O que deu errado?

— Muitas coisas — diz ele.

— Oh, como você sendo muito acessível? — Eu provoco.

Seus lábios puxam em seu beicinho de sorriso.

— Ou talvez ela não fosse espertinha o suficiente para o meu gosto.

Depois de um momento, voltamos nossos olhares para as nuvens macias de

algodão doce e ele diz:

— Começamos a namorar no ensino médio. E então ela foi para a NYU e, depois

de algum tempo na faculdade comunitária, eu a segui.

— Seu primeiro amor? — Eu tento adivinhar.

Ele concorda.

— Quando terminamos a faculdade, ela queria ver lugares em Asheville. Nunca

me ocorreu que ela gostaria de voltar, e nunca ocorreu a ela que eu não iria, e nós

éramos tão ruins em nos comunicar que o assunto não surgiu muito.

— Você tentou a longa distância? — Eu pergunto.

— Por um ano — diz ele. — Pior ano da minha vida.

— Isso nunca funciona — eu concordo.

— Todo dia parece uma separação — diz ele. — Vocês estão constantemente

decepcionando um ao outro, ou segurando um ao outro. Quando finalmente

terminamos as coisas, minha mãe estava com o coração partido. Ela me disse que eu

estava cometendo os mesmos erros que ela e que acabaria sozinha se não

descobrisse minhas prioridades.

— Ela só queria que você voltasse — eu digo. — E Amaya era o caminho mais

rápido.

— Pode ser. — Ele solta um suspiro, como se tivesse se resignado a alguma coisa.

— Nós mal nos falamos por alguns meses, e então… — Ele hesita. — Vim para casa

nas férias e descobri que Amaya estava namorando meu primo desde algumas

semanas depois que nos separamos. Era sobre isso que ela queria esclarecer, na

outra noite.

Sento-me em meus antebraços, surpresa.

— Espera. Sua ex-noiva namorou seu primo? Shepherd?

Ele concorda.

— Minha família basicamente concordou em não me contar, mas eu descobri de

qualquer maneira, e tivemos outro período difícil depois disso.

E aí está, outro pedacinho de Charlie se encaixou.


— Não há uma tonelada de pretendentes em potencial aqui — ele continua —

então eu não os culpo exatamente, mas ao mesmo tempo…

— Que se foda? — Eu tento.

Ele passa a mão pela parte de trás de sua cabeça, em seguida, enfia-a lá.

— Não sei, ela merece ser feliz. Shepherd teve uma chance melhor de dar isso a

ela.

— Por que? — Eu pergunto. Ele olha para mim, testa franzida, como se não

entendesse a pergunta. — Por que ele tem mais chance de fazer alguém feliz do que

você?

— Ah, vamos lá, Stephens — diz ele ironicamente. — Você, de todas as pessoas,

sabe o que quero dizer.

— Eu definitivamente não sei — eu insisto.

— Seus arquétipos — diz ele. — As tropes. Ele é o cara por quem toda mulher se

apaixona. O filho que meus pais queriam, trabalhando em tempo integral no

emprego que meu pai queria que eu tivesse, enquanto fazia, tipo, cadeiras de balanço

em seu tempo livre. Ele até foi para a faculdade que eu queria.

— Cornell? — Eu digo.

— Foi lá para jogar futebol — diz Charlie — mas ele também é muito esperto.

Você saiu com ele, você sabe como ele é.

— Eu saí com ele — eu digo — e é por isso que eu estou qualificada para dizer,

você está errado. Quero dizer, não sobre ele ser inteligente. Mas a outra coisa, que

ele é mais qualificado para fazer alguém feliz.

Seu sorriso desaparece. Ele volta a olhar para o céu.

— Sim, bem — ele murmura. — Pelo menos para Amaya, fazia sentido. Durante

nossa separação, uma das últimas coisas que ela me disse foi: Se ficarmos juntos,

todos os dias do resto de nossas vidas serão iguais. Não foi a última vez que ouvi isso

em um discurso de término. — Ele balança a cabeça. — De qualquer forma, é por

isso que ela queria se encontrar. Para se desculpar por como as coisas terminaram.

Sinto minhas bochechas colorindo.

— É fofo você pensar isso, Charlie — eu digo. — Mas com base em como ela olha

para você, tenho certeza de que toda essa mesmice não é mais tão desagradável para

ela.

— Não era só que eu era muito chato para ela. Ela também decidiu que queria

filhos… ou, eu acho, admitiu que queria, e estava apenas esperando que eu mudasse

de ideia.

Eu me viro para o meu lado e o encaro.

— Você não quer?

— Eu odiava ser criança. — Ele cruza o braço sob a cabeça e olha quase

furtivamente na minha direção. — Eu não tenho ideia de como fazer outra pessoa

passar por isso, e eu definitivamente não iria gostar. Eu gosto deles, mas não quero

ser responsável por nenhum.

— Concordo — eu digo. — Eu amo minhas sobrinhas mais do que qualquer coisa

no planeta, mas toda vez que Tala adormece no meu colo, o pai dela fica com os olhos

marejados e fica tipo, isso não faz você querer ter o seu próprio, Nora? Mas quando


você tem filhos, eles contam com você. Para todo sempre. Qualquer erro que você

cometer, qualquer falha, e se algo acontecer com você…

Minha garganta torce.

— As pessoas gostam de lembrar a infância como mágica e sem

responsabilidades, mas não é bem assim. Você não tem absolutamente nenhum

controle sobre seu ambiente. Tudo se resume aos adultos em sua vida, e… Não sei.

Toda vez que Libby tem uma filha nova, é como se houvesse uma casa mágica no

meu coração que se reorganiza para dar um novo quarto para o bebê.

— E sempre dói. É assustador. Mais uma pessoa que precisa de você.

Mais uma pequena mão com seu coração em seu punho.

Eu respiro, me fortalecendo.

— Posso te dizer uma coisa? Outro segredo?

Ele se vira de lado, olhando para mim através da luz.

— Estamos de volta em quem matou JFK?

Eu balanço minha cabeça.

— Acho que Libby está se divorciando.

Sua sobrancelha se enruga.

— Você acha?

— Ela ainda não me contou — eu explico. — Mas ela não está atendendo as

ligações de Brendan, e ela não está dormindo bem. Ela não teve problemas com isso

desde… — A presença de Charlie mais uma vez me abriu. Ele envolve meu foco em

torno dele de uma maneira que torna difícil pensar no futuro, estar em guarda contra

todos os cenários possíveis.

Ou talvez seja porque ele realmente é tão organizado e meticuloso, é fácil

acreditar que ele poderia consertar qualquer coisa com a sua pura força de vontade,

então parece seguro liberar todos esses sentimentos caóticos.

— Desde que sua mãe faleceu? — ele termina minha frase para mim.

Eu aceno, corro meus dedos sobre o travesseiro frio entre nós.

— A única coisa que realmente importa para mim é ter certeza de que ela tem o

que precisa. E agora ela está passando por algo que muda sua vida e... não posso

fazer nada. Quer dizer, ela nem me contou sobre isso. Então, se alguém é inútil…

Sua mão desliza pelas minhas costas, uma trilha leve e calmante sobre minha

coluna, e se instala sob meu cabelo.

— Talvez — ele diz — você já esteja fazendo o que ela precisa que você faça. Só

por estar aqui com ela.

Eu cortei-lhe um olhar, sentindo meu coração levantar e inchar.

— Talvez isso seja tudo que seu pai precisa de você também.

Ele gentilmente aperta meu pescoço, então deixa sua mão cair.

— A diferença — ele diz — é que Libby pediu para você estar aqui. Ele me pediu

para não fazer isso.

— Bem, se isso é tudo que você precisa — eu digo baixinho, como se fosse um

segredo — Charlie, por favor, você pode estar aqui?

Ele se inclina para frente, beijando-me suavemente, seus dedos esvoaçando

sobre minha mandíbula enquanto respiro seu hálito mentolado e sua pele quente.


Quando ele recua, seus olhos são de ouro derretido, minhas terminações nervosas

tremendo sob eles.

— Sim — diz ele, e me puxa para ele, seu braço enrolando em volta de mim e

queixo dobrado contra meu ombro. — Eu já te disse, Nora — ele murmura, seus

dedos espalmados na minha barriga, logo abaixo da minha camisa. — Eu vou a

qualquer lugar com você.

Às vezes, mesmo quando você começa na última página e acha que sabe tudo, um

livro encontra uma maneira de surpreendê-lo.


— POR QUE SUAS MÃOS CHEIRAM ASSIM? — Libby exige enquanto eu a guio

pela porta dos fundos, as palmas das mãos pressionadas sobre os olhos.

— Minhas mãos não cheiram — eu digo.

— É, tipo, Cheiro de TV Nova — ela diz.

— Isso não existe — eu digo a ela.

— Lógico que existe. Cheiro de TV Nova.

— Você quer dizer Cheiro de Carro Novo.

— Não — ela diz. — É tipo, quando você abre a caixa da TV e puxa a folha de

isopor para fora, e cheira como uma piscina lá dentro.

— Então por que você não diz que eu cheiro como uma piscina?

— Você nos comprou uma TV grande?

— Quer saber, esqueça a grande revelação. — Eu libero meu aperto sobre ela, e

ela grita.

Charlie dá um solavanco como se ela tivesse acabado de jogar um vaso

inestimável em sua direção.

— Mana! — ela grita, girando em minha direção, depois de volta. — Charlie! —

Então para mim novamente. — Estamos acampando?!

Eu dou de ombros.

— Está na lista.

Ela joga os braços em volta de mim e solta outro grito agudo.

— Obrigada, mana — ela murmura. — Obrigada.

— Qualquer coisa para você — eu digo a ela. Por cima do seu ombro, eu travo os

olhos com Charlie.

Obrigada, eu falo sem som. Seu queixo abaixa enquanto ele sorri. Qualquer coisa

por você, ele murmura. No meu peito, algo pesado vira.

Acordo duas vezes, ofegante. A segunda vez, Libby rola, jogando seu braço em

volta de mim em seu sono, sua perna se contorcendo de modo que ela está meio que

me chutando.

Mesmo com os ventiladores estrategicamente posicionados, está

desconfortavelmente quente, mas eu não a tiro de mim. Em vez disso, coloco minha

mão sobre a dela e a aperto contra mim.


Eu vou cuidar de você, eu prometo a ela.

Não vou deixar nada te machucar.

Pela primeira vez, eu me levanto primeiro. Eu pulo minha corrida e vou direto

para um banho, então pré-aqueço o forno.

Os biscoitos de milho e limão estão prontos quando Libby acorda, e nós os

comemos no café da manhã com café.

— Você está cheia de surpresas — diz Libby, e finge não notar que os biscoitos

estão grumosos e queimados nas bordas. Nesse cenário, meus cookies são

definitivamente o desenho ruim com o chapéu de pênis, mas eu não me importo. Ela

está feliz com eles.

Em minha caminhada pela Goode Books, as páginas finais de Frigid chegam. O

último trecho começou oficialmente.

Quando Charlie e eu não estamos na mesma sala, enviamos um e-mail sobre o

manuscrito, estamos enviando mensagens de texto sobre todo o resto.

Na terça-feira, quando eu chuto o balde e peço uma salada do Vovô Cócoras,

mando para ele uma foto da monstruosidade de presunto em cubos que Amaya

deixa cair na minha frente.

Acho que subestimei sua veia sadomasoquista, Stephens, diz ele.

No dia seguinte, ele me manda uma foto borrada do casal geriátrico que brigou

na prefeitura, pego em um abraço apaixonado do lado de fora do novo Dunkin'

Donuts. O amor vence tudo, eu acho, ele escreve.

Eu respondo, ou ela encontrou uma maneira discreta de sufocá-lo.

Que cérebro lindo e distorcido você tem, Nora.

Ele passa uma noite com a madeira que Sally nos prometeu, junto com

suprimentos de s'mores, e nos ajuda a acender uma fogueira para uma noite

tecnicamente quente demais. Enquanto nos sentamos no convés assando

marshmallows, Libby anuncia:

— Decidi que gosto de você, Charlie.

— Estou honrado — diz ele.

— Não fique — digo a ele. — Ela gosta de todo mundo.

Ela enfia a mão no saco de marshmallows e joga um em mim.

— Não é verdade — ela chora. — E a minha vingança contra o cara dos comerciais

do Trivago?

— Um sonho sexual desagradável não é uma vingança — eu digo.

— Uma vez eu tive um sonho sexual com a M&M verde — Charlie diz sem rodeios,

e Libby e eu caímos na gargalhada.

— Ok — Libby diz quando ela se recupera. — Mas se ela quisesse, eu queria

também. Ela é linda pra caralho.

— Linda pra caralho — Charlie concorda, travando os olhos comigo sobre as

chamas. — Muito melhor do que adorável.

Fazemos planos para terminar nossas anotações sobre a parte final do livro no

sábado. Cada momento até então parece parte de uma contagem regressiva. Às

vezes tudo que eu quero é correr para baixo no relógio. Às vezes eu quero enfiar

areia de volta no pescoço da ampulheta.


Ele me manda coisas como puta merda, página 340.

E ela está pegando fogo.

E o gato!

Eu escrevo de volta coisas como EU GRITEI.

Seu melhor até hoje.

E o gato fica.

Ao que ele responde, concordo.

Às vezes ele me manda mensagens que dizem apenas Nora.

Charlie, eu digito de volta.

Então ele vai dizer, este livro.

E eu direi: Este livro.

Está me matando não saber como termina, digo a ele.

Está me matando que isso vá acabar, ele escreve de volta. Se eu não estivesse

editando, eu não terminaria.

Sério? Eu escrevo. Você tem esse nível de autocontrole?

Às vezes. Depois de um momento, ele envia outra mensagem. Há séries completas

que adoro cujo último capítulo nunca li. Eu odeio a sensação de que algo está

acabando.

Instantaneamente, meu coração parece em carne viva, com queimaduras, cada

centímetro dele ardendo.

Este livro, este trabalho, esta viagem, esta interminável conversa de dias. Eu

quero fazer tudo durar, e eu preciso saber como isso termina. Eu quero terminá-lo,

e eu preciso que isso continue para sempre.

Se eu pensei que estava dormindo mal nas nossas primeiras duas semanas aqui,

a terceira semana apaga a noção. Charlie e eu enviamos mensagens de texto até pelo

menos meia-noite todas as noites, às vezes intercaladas com ligações rápidas para

conversar sobre pontos da trama que me deixam tão energizada que tenho que dar

uma volta no campo para acalmar.

Todos esses anos pensando que eu tinha autocontrole sobre-humano, e agora

percebo que nunca coloquei nada que eu quisesse muito na minha frente.

Mas cheguei à noite de quinta-feira, o que significa que faltam apenas dois dias

para terminarmos a carta de edição. Uma semana e algumas horas de viagem até eu

voltar para a cidade, onde O Futuro que Concordamos em Não Discutir começará.

Este interlúdio terminará. O futuro será o presente, e isso se tornará o passado.

Mas ainda não.


LIBBY E EU caminhamos até a cerca com aipo, cenouras e cubos de açúcar, mas

mesmo com nossa melhor voz de bebê, não conseguimos convencer os cavalos.

— Você acha que eles sabem que somos pessoas da cidade? — Eu digo.

— Eles ainda podem sentir o cheiro de Drybar em você — ela responde.

Eu coloco minhas mãos em volta da minha boca e grito através do pasto escuro:

— Isso não é o fim! Nós voltaremos! — Caminhamos de volta para a cabana, então

decidimos que estamos com muita fome para cozinhar e, em vez disso, caminhamos

para a cidade, destinada às batatas fritas e asas de couve-flor do Vovô Cócoras.

Em toda a caminhada, Libby está um pouco trêmula. Sob os postes de luz, ela

passou do reino da felicidade e entrou no território de Completamente

Fantasmagórica.

Atrás do brilho das janelas da Goode Books, Charlie está fechando.

— Vamos convidá-lo para jantar — ela grita, soltando-se de mim e liderando o

caminho até outro lado da rua.

Apesar dos nossos esforços iniciais de discrição, tenho certeza de que ela notou

a vibração entre nós, mas ela manteve qualquer desaprovação para si mesma desde

que Charlie ajudou com o acampamento surpresa.

Ela bate na porta da loja com a ferocidade de um agente do FBI na TV até Charlie

reaparecer, exatamente como ele sempre parece: arrumado, sobrecarregado, bem

vestido e como se quisesse morder minha coxa.

— Viemos convidá-lo para jantar. — Libby empurra para dentro, indo em direção

ao banheiro, como ela costuma fazer hoje em dia, chamando — Nós estamos indo

para o Vovô Cócoras.

— Talvez você já tenha ouvido falar dele — eu digo. — Estava em uma lista muito

exclusiva do BuzzFeed.

Aceno lento. Olhos escuros e derretidos. Segurar seu olhar parece indecência

pública.

— Lugares que parecem que definitivamente vão te dar diarreia, enquanto na

verdade eles só podem te dar diarreia.

— Esse mesmo — eu concordo.

Ele abre a porta para mim, mas então meu telefone toca. Por instinto, eu verifico.

Sharon está ligando. Durante a licença maternidade.

— Eu deveria atender.


Libby faz um guincho de desenho animado e se vira para mim.

— Nenhuma ligação de trabalho depois das cinco — ela me lembra.

— Isso é diferente — eu digo, o zumbido arranhando meus nervos como unhas

em um quadro-negro. — Pode ser importante.

Os lábios de Libby formam uma linha reta.

— Nora.

— Apenas me dê um minuto, Libby — eu digo. Seus olhos se arregalam com a

ponta afiada da minha voz. — Desculpe, eu só... eu tenho que fazer isso.

Eu desço o quarteirão escuro, o coração batendo forte quando atendo a chamada.

— Sharon? Está tudo bem?

— Oi, sim! — ela diz brilhantemente. — Está tudo bem, desculpe preocupá-la. Eu

só tinha uma pergunta.

A tensão em meus ombros se dissolve.

— Certo. Como posso ajudar?

— Eu não posso dar muitos detalhes concretos — ela começa. — Mas… a Loggia

pode contratar um novo editor em breve.

— Oh? — O chão do meu estômago afunda. Eu recebi o suficiente dessas ligações

ao longo dos anos para saber aonde isso está indo. Sharon está indo embora, ou

melhor, não voltando da licença maternidade.

— Sim — ela continua. — É o que parece. E ei, eu sei que você está indo muito

bem na agência, então isso pode não ser interessante para você, mas eu estive

conversando com Charlie, e ele disse que você está realmente ajudando a colocar o

livro de Dusty em forma.

— Ele torna tudo mais fácil — eu digo. — E ela também.

— Claro — diz Sharon. — Mas você também sempre teve um talento especial

para esse tipo de coisa. Acho que estou me perguntando se há alguma chance de você

se interessar.

— Interessar?

— Em edição — diz ela. — Para Loggia.

Devo ficar atordoada em silêncio por mais tempo do que percebo, porque Sharon

diz:

— Olá? Você está aí?

Minha boca está seca. Sai pequeno.

— Aqui.

Deve ser assim que as pessoas se sentem quando a bolsa arrebenta. Como se

estivessem carregando um novo futuro dentro de si e de repente ele estivesse

jorrando, pronto ou não.

— Você quer que eu seja uma editora?

— Eu gostaria que você tentasse fazer uma entrevista, sim — diz ela. — Mas eu

entendo totalmente se você não estiver interessada. Você fez seu nome como agente,

e é ótima nisso. Isso pode não fazer sentido para você.

Eu abro minha boca. Não sai nenhum som.

Estou perplexa.


— Ainda não preciso de uma resposta concreta — diz ela — mas se você estiver

interessada…

Parece que tenho que nadar na sopa de meus pensamentos e sentimentos, tenho

que dar uma tossida cortante para dizer algumas palavras.

Em vez disso, ouço minha voz como se fosse através de um túnel:

— Sim.

— Sim? — diz Sharon. — Você vai se encontrar com a gente?

Eu aperto a ponte do meu nariz enquanto a pressão corre em meu crânio. Este

não é o tipo de decisão que você simplesmente toma. Muito menos quando sua irmã

está no meio de uma crise potencialmente muito cara.

— Eu gostaria de pensar sobre isso — eu volto atrás. — Posso ligar para você em

alguns dias?

— Claro — diz ela. — Claro! Esta seria uma grande decisão. Mas admito, quando

Charlie disse que você poderia se interessar, fiquei muito animada.

Eu mal ouço o resto. Minha mente se tornou um daqueles quadros de cortiça do

FBI com uma corda vermelha em ziguezague entre cada alfinete que pode encontrar,

tentando fazer as coisas se somarem, fazer tudo se encaixar em um padrão

ininterrupto, prova de que isso pode funcionar, que eu posso ter isso, que não é bom

demais para ser verdade.

Quando desligo, sento-me em um banco sob um poste de luz, esperando o torpor

desaparecer. Depois de seis minutos completos, ainda me sinto dentro de um

aquário, tudo surrealmente torto e distorcido ao meu redor. Quando finalmente

volto, os sinos acima da porta da loja parecem soar a quilômetros de distância, mas

a voz de Libby está próxima e dissonante.

— Aí está você, finalmente. — Com óbvio aborrecimento, ela acrescenta —

Podemos ir jantar agora ou você tem uma reunião do conselho para ir?

Eu me sinto frágil, esticada demais em muitas direções, e quando ela revira os

olhos, algo em mim finalmente estala:

— Você pode não fazer isso, Libby? Não agora.

— Fazer o quê? — ela diz. — Você disse que estaria totalmente presente depois

das cinco, e…

— Pare. — Eu levanto a mão, tentando segurar o novo ataque de corda vermelha

e alfinetes chovendo sobre mim, a realidade colidindo de todas as direções.

Porque mesmo que eu queira esse emprego, não posso tê-lo.

Assim como eu não pude da última vez. Mas pelo menos então, Libby me contou

o que ela estava passando. Pelo menos eu não estava jogando dardos no escuro,

esperando que eles tapassem os buracos de um navio afundando.

— O que está acontecendo com você? — ela exige, sobrancelha erguida, rosto

torcido com desânimo.

Uma onda imparável sobe através de mim.

— Comigo? — Eu repito. — Não sou eu quem está me esgueirando,

desaparecendo, não respondendo as mensagens do marido, guardando segredos. Eu

estive totalmente presente, Libby, durante todo o mês, e você ainda está me


mantendo no escuro. — Meu pulso parece errático. Meus dedos formigam. — Eu não

posso ajudar se você não me contar!

— Eu não quero sua ajuda, Nora! — Ela empalidece com o pensamento,

balançando entre seus pés. — Sei que costumava confiar muito em você, e sinto

muito por isso, mas não quero ser mais uma desculpa para você não ter uma vida...

— Ah, certo — eu fumei. — Eu não tenho uma vida! “A única coisa que importa

para mim é minha carreira.” Adivinha só, Libby? Se isso fosse verdade, eu seria uma

editora agora! Eu não teria recusado o trabalho que eu realmente queria para ter

certeza de que você poderia pagar a melhor assistente de parto de Manhattan!

Seu rosto está branco agora, sua testa úmida.

— Espere… v-você… você — Sua respiração é superficial. Ela se vira, colocando

uma palma no balcão. Sua outra mão sobe para a testa, os olhos se fechando. Ela

balança a cabeça, se recompondo.

— Libby? — Dou meio passo em direção a ela, meu coração na garganta.

É quando ela desmaia.


EU A PEGO, MAS não sou forte o suficiente para segurá-la.

— Socorro! — Eu grito quando caímos no chão, o pior de sua queda suavizada.

A porta do escritório se abre, mas ainda estou gritando Socorro, gritando como

se estivesse fazendo alguma coisa, como se apenas gritar a palavra tivesse poder.

Ação sobre a inação. Movimento sobre estagnação. Uma ilusão de controle.

Charlie vem correndo, agacha-se ao nosso lado.

— O que aconteceu?

— Não sei! — Eu digo. — Libby. Libby.

Seus olhos se abriram, estremeceram novamente. Deus, ela está pálida. Ela ficou

tão pálida a tarde toda? E seu coração está acelerado. Eu posso sentir isso tremendo

através dela. Suas mãos estão geladas. Eu pego uma entre as minhas, esfregando-a.

— Libby. Libby?

Seus olhos se abrem novamente, e desta vez ela parece mais alerta.

— Vamos levá-la para o hospital — diz Charlie.

— Estou bem — ela insiste, mas sua voz está trêmula. Ela tenta se sentar.

Eu a puxo de volta para o meu colo.

— Não se mova. Apenas espere um segundo.

Ela balança a cabeça, se acomoda em meus braços.

Charlie já está de pé, indo para a porta.

— Vou trazer meu carro.

Charlie é quem fala com a recepcionista em frases completas quando chegamos.

Charlie é quem me puxa para longe quando começo a gritar com a enfermeira

que nos diz que não podemos passar pelas portas por onde Libby entrou. É ele que

me empurra para uma cadeira na sala de espera, segura meu rosto e promete que

vai ficar tudo bem.

Você não pode saber disso, eu penso, mas ele tem tanta certeza que eu quase

acredito nele.

— Apenas sente-se aqui — diz ele. — Vou cuidar disso.

Sete minutos depois, ele volta com descafeinado, um bolinho de maçã préembalado

e o número do quarto para o qual Libby foi transferida.

— Eles estão fazendo testes. Não deve demorar muito.


— Como você soube? — Eu pergunto, a voz rouca.

— Eu estava no jornal do ensino médio com uma das médicas daqui — diz ele. —

Ela diz que podemos ir e esperar na área dela até que os testes terminem.

Nunca me senti tão inútil ou tão grata por não estar no comando.

— Obrigada — eu resmungo.

Charlie empurra o bolinho na minha direção.

— Você deveria comer alguma coisa.

Ele me transporta pelo hospital, parando em outra máquina de venda automática

para comprar uma garrafa de água, depois para um par de cadeiras horrivelmente

antiquadas em um corredor infernalmente iluminado que cheira a anti-séptico.

— Ela está lá. Se eles não saírem em cinco minutos, eu vou encontrar alguém para

conversar, ok? — ele diz suavemente. — Apenas dê a eles cinco minutos.

Dentro de vinte segundos eu estou andando. Meu peito dói. Meus olhos ardem,

mas nenhuma lágrima vem.

Charlie me agarra, me puxa para o seu peito e envolve uma mão na parte de trás

da minha cabeça. Sinto-me pequena, vulnerável, indefesa de uma forma que não me

sinto há anos.

Mesmo antes de mamãe morrer, eu não chorava muito. Mas quando Libby e eu

éramos crianças e eu estava chateada, não havia nada que pudesse me fazer chorar

mais rápido do que ter os braços de mamãe em volta de mim. Porque então, e só

então, eu sabia que era seguro me desfazer.

Minha doce menina, ela arrulharia. Era assim que ela sempre me chamava.

Ela nunca falava Você está bem, não chore. Sempre Minha doce menina. Deixe sair.

Em seu funeral, lembro-me de lágrimas nos meus olhos, a sensação de alfinetada

na parte de trás do meu nariz, e então, ao meu lado, o som de Libby quebrando,

descendo em soluços.

Lembro-me de me pegar prendendo a respiração, como se estivesse esperando.

E então percebi que estava esperando.

Por ela.

Pela mamãe colocar seus braços em volta de nós.

Libby estava desmoronando e mamãe não vinha.

Foi como se um castelo de areia desmoronado voltasse ao lugar dentro de mim,

reorganizando meu coração em algo razoavelmente resistente. Envolvi meus braços

em volta da minha irmã e tentei sussurrar, Deixe sair. Eu não conseguia tirar as

palavras dos meus lábios.

Então, em vez disso, deixei minha boca cair ao lado da orelha de Libby e sussurrei:

— Ei.

Ela deu um suspiro gaguejante, tipo, O quê?

— Se mamãe soubesse o quão gostoso o reverendo é — eu disse —ela

provavelmente teria chegado aqui mais cedo.

Os olhos pires de Libby olharam para mim, vidrados de lágrimas, e meu peito

parecia uma lata sendo esmagada até que ela soltou uma gargalhada alta o suficiente

para que o Reverendo Gostoso tropeçasse em suas próximas palavras.


Ela deitou a cabeça no meu ombro, virou o rosto na minha jaqueta e balançou a

cabeça.

— Isso é tão foda — disse ela, mas ela estava tremendo com uma risada chorosa.

Por esse segundo, ela estava bem. Agora, porém, quando ela realmente precisa de

mim, sou inútil.

— Por que não pudemos estar na sala para testes? — Eu sai.

Charlie inala, movendo-se entre seus pés.

— Talvez eles pensem que você vai dar a ela as respostas.

Não há absolutamente nenhuma convicção em sua piada. Quando me afasto,

percebo que ele não parece muito bem.

— Você está bem? Parece que você vai ficar doente.

— Só não gosto de hospitais — diz ele. — Estou bem.

— Você não precisa ficar.

Ele pega minhas mãos, segura-as entre nossos peitos.

— Eu não vou deixar você aqui.

— Eu posso lidar com isso.

Sua boca encolhe, o vinco abaixo dela se aprofundando.

— Eu sei. Eu quero estar aqui.

Um grupo de enfermeiras passa com uma maca, e uma palidez se infiltra no rosto

de Charlie.

Eu procuro algo para dizer, qualquer outra coisa para pensar.

— Sharon me ligou.

Seus lábios se apertam em um nó.

— Ela me disse que você me indicou para um emprego.

Depois de uma batida, ele murmura

— Se eu ultrapassei os limites, me desculpe.

— Não é isso. — Meu rosto se arrepia. — É só… e se eu for ruim nisso?

Suas mãos deslizam pelos meus braços até que ele está embalando minha

mandíbula.

— Impossível.

Minha sobrancelha arqueia por vontade própria.

— Porque ajudei a editar um livro?

Ele balança a cabeça.

— Porque você é inteligente e intuitiva. E boa em tirar o melhor da escrita das

pessoas, e você coloca o trabalho antes do seu ego. Você sabe quando empurrar e

quando deixar algo ir. Você é confiável, em parte porque é péssima em mentir, e

cuida das coisas que são importantes para você.

“Se eu tivesse que escolher uma pessoa para ficar do meu lado, seria você. Toda

vez. Você cuida de tudo.”

Com uma pulsação aguda no meu peito, meu olhar cai para o chão.

— Nem sempre.


— Ei. — Os dedos ásperos de Charlie voltam para os meus. Ele levanta minha

mão, roçando sua boca sobre meus dedos. — Vamos descobrir o que está errado e

fazer tudo o que pudermos para consertar.

— Essa porra de lista. — Meu peito está muito apertado para deixar sair qualquer

coisa além de um sussurro. — Ela tem feito demais. Eu não deveria ter deixado.

Dormimos no calor e, estamos trabalhando nesta arrecadação de fundos. Ela deveria

estar descansando.

Charlie se senta, me puxando para seu colo, cada pensamento de discrição, de

evitar complicações desaparecendo em um instante. Eu preciso dele, e ele está aqui,

eu percebo. Totalmente, não com ressalvas ou estipulações. Sua mão desliza pela

parte de trás do meu pescoço, enfiada debaixo do meu cabelo, e eu estou envolvida

nele como se ele fosse minha fortaleza de pedra pessoal. Como se eu desmoronasse,

nada poderia me atingir.

— Libby toma as decisões da Libby — diz ele. — Imagine como você reagiria se

alguém tentasse te impedir de fazer o que quer, Stephens. — Uma sugestão de um

sorriso puxa seu beicinho. — Na verdade, não imagine. É inapropriado ficar excitado

em um hospital.

Eu rio fracamente em seu peito, outro nó se desenrolando no meu.

— Deixar passar alguma coisa. Estou aqui com ela, e Brendan não, e... — Minha

voz falha. O resto desaba dolorosamente — É meu trabalho cuidar dela.

— Eu sei que é assustador estar aqui — diz ele. — Mas este é um bom hospital.

Eles sabem o que estão fazendo. — Seus dedos se movem em círculos suaves e

rítmicos contra a minha nuca. — Foi aqui que meu pai veio.

As palavras cara legal queimam minha mente, como a pós-imagem deixada para

trás pelo estouro da lâmpada de uma câmera.

Era assim que Charlie chamava seu pai. Um cara legal. A melhor pessoa que

conheço.

— O que aconteceu? — Eu pergunto.

Depois de um silêncio prolongado, ele diz:

— O primeiro derrame não foi ruim. Mas este último… ele ficou em coma por seis

dias.

Ele observa o progresso de seu polegar correndo para frente e para trás sobre o

meu. Sua testa aperta. No dia em que nos conhecemos, confundi essa expressão com

mal-humorado, taciturno, prova de que ele era tão caloroso e humano quanto um

bloco de mármore.

Agora tudo o que faz é trazer à tona o olhar perdido em seus olhos.

— Esse cara enorme e habilidoso que pode consertar qualquer coisa, construir

qualquer coisa. E naquela cama de hospital, ele parecia... — Ele para. Eu enrolo

minha mão livre no cabelo da base de seu pescoço.

— Ele parecia velho — diz Charlie, depois de um silêncio tenso. — Quando eu era

criança, tudo o que eu queria era ser como ele, e eu não era. Mas ele sempre me fez

sentir que estava tudo bem em ser do jeito que sou.


Eu seguro sua mandíbula e levanto seu olhar. Eu me pergunto se ele pode ver

cada palavra em minha expressão, porque eu as sinto subindo da parte mais baixa

do meu intestino. Você está mais do que bem.

Ele limpa a garganta.

— Meu pai está vivo por causa do que eles foram capazes de fazer por ele aqui.

Entre eles e você, Libby vai ficar bem. Ela tem que ficar.

Como se fosse uma deixa, o médico, um homem careca com um cavanhaque e

sobrancelha de Salman Rushdie, sai da sala de exames.

— Ela está bem? — Eu me coloco de pé.

— Ela está descansando — diz ele. — Mas ela me deu permissão para falar com

vocês dois.

Ele acena para Charlie, que está de pé, apertando minha mão, me ancorando.

— O que aconteceu? — Eu pergunto.

Em um instante, minha mente percorre todas as doenças que conheço.

Ataque cardíaco.

Derrame.

Aborto espontâneo.

E então fica: EMBOLIA PULMONAR.

As palavras se repetem. Eles ecoam. Eles vão até o começo da minha vida e vão

até o fim dela, essa frase furtiva estendida, percorrendo o tempo, fodendo com tudo,

distorcendo minha vida em alguns lugares, rasgando-a em outros. Embolia

pulmonar.

O médico diz:

— Sua irmã está anêmica.

As palavras batem em uma parede. Ou talvez pulam de um penhasco, é assim que

me sinto, como se eu tivesse saído de uma saliência e estivesse pairando antes da

queda.

— Seu corpo está carente de ferro e B12 — explica ele. — Então ela não está

produzindo glóbulos vermelhos saudáveis o suficiente. Não é incomum durante a

gravidez, e especialmente surpreendente para alguém que já lidou com esse

problema em uma gravidez anterior.

— Libby nunca teve isso antes.

Ele estuda a prancheta em suas mãos.

— Bem, não foi tão grave, mas seus níveis eram definitivamente baixos. Falei com

a ginecologista e aparentemente sua irmã estava um pouco mais estável no primeiro

trimestre, mas eles estão de olho nisso desde o início.

Meus dedos estão formigando novamente. Meu cérebro trabalha para limpar a

fumaça e iniciar uma lista de verificação, mas isso simplesmente não está

acontecendo.

— O que precisamos fazer? — Charlie pergunta.

— É bem simples — diz o médico. — Ela vai precisar tomar um suplemento de

ferro e comer mais carne e ovos, se possível. Ela também vai querer fazer o mesmo

com B12. Nós lhe daremos uma tabela com os melhores alimentos para isso, embora

eu suponha que ela se lembre da última vez.


Última vez.

Isso já aconteceu. Eu não perdi apenas uma vez, mas duas vezes.

— Ela possivelmente terá que lidar com náuseas, mas fazer mais refeições

menores ao longo do dia deve ajudar. Eu gostaria de vê-la na próxima semana, para

ter certeza de que ela está melhor e, depois disso, ela precisará fazer exames

regulares com seu médico até o parto.

Isso é gerenciável. É corrigível. Listável.

— Obrigada. — Eu aperto sua mão. — Muito obrigada.

— O prazer é meu. — Ele sorri, um sorriso notavelmente caloroso e paciente. —

Apenas dê a ela tempo para descansar. A enfermeira avisará quando puder vê-la.

Assim que ele se vai, sinto-me exausta, como se um peso de 450 quilos tivesse

sido tirado de cima de mim, mas só depois de horas carregando-o.

— Você está bem?

Quando olho para Charlie, ele está embaçado; minha visão está distorcida.

— Respire, Nora. — Ele agarra meus ombros, tomando uma inspiração

exagerada. Eu combino. Ficamos em sincronia por algumas respirações até que a

pressão seja liberada. — Ela está bem.

Eu aceno, deixo que ele me puxe para o seu peito, me envolvendo apertado contra

ele.

Eu tento dizer a ele que estou apenas aliviada, mas não há espaço para palavras,

para lógica, razão, argumentos. Meu corpo decidiu o que fazer, e é isso: nada, nos

braços de Charlie.

Ele enterra sua boca contra minha têmpora. Eu fecho meus olhos, deixando as

ondas de alívio me atingirem.

Gradualmente, elas recuam, e eu fico flutuando, à deriva em uma corrente de

Charlie: seu cheiro levemente condimentado, o calor de sua pele, a lã fina de seu

suéter leve.

Uma imagem do meu apartamento pisca em minha mente. As luzes vermelhoamareladas

da rua pegando gotas de chuva na minha vidraça, o som de carros

passando, o radiador assobiando contra meus pés com meias. O cheiro de livros

velhos e novos, e a colônia cujas notas de cedro e âmbar devem evocar a imagem de

bibliotecas ensolaradas. O ranger de tábuas velhas do piso, o arrastar de passos, o

canto meio bêbado enquanto os foliões voltam para casa do bar de tequila do outro

lado da rua, parando para comer fatias de pizza pingando óleo.

Quase posso acreditar que estou lá. Na minha casa, onde é seguro o suficiente

para relaxar, para desfazer os suportes de aço na minha coluna e sair do meu

contorno áspero para... estabelecer.

— Você não é inútil, Charlie — eu sussurro contra seu batimento cardíaco

constante. — Você é…

Sua mão ainda está no meu cabelo.

— Organizado?

Eu sorrio em seu peito.

— Algo assim — eu digo. — Vou lembrar.

No ranger da porta de Libby, meus olhos se abrem.


A enfermeira sorri.

— Sua irmã está pronta para você.


LIBBY SE POSICIONA NA CAMA, já vestida de novo com o seu vestido de verão

roxo de bolinhas e parecendo completamente castigada.

Um sorriso manso puxa seus lábios.

— Oi.

— Oi. — Fecho a porta e vou me sentar ao lado dela.

Depois de um momento, ela diz:

— Você está bem?

Eu recuso.

— Libby, não fui eu quem desmaiou e quase quebrou o crânio em uma caixa

registradora antiga.

Seus dentes afundam em seu lábio.

— Você está brava. — Ela torce as mãos no colo. — Que eu não te disse que isso

aconteceu antes.

— Eu estou… confusa.

Seus olhos disparam furtivamente em direção aos meus.

— Estou confusa por que você não me disse que tinha uma chance em um

trabalho de edição.

— Foi anos atrás — eu digo. — No primeiro degrau da hierarquia, e o pagamento

era uma merda. Não era tudo sobre você. Havia muitas razões para ficar na agência.

Ela olha para mim com olhos lacrimejantes de safira, uma ruga entre as

sobrancelhas.

— Você deveria ter me contado.

— Eu deveria — eu concordo baixinho. — E você deveria ter me contado sobre

tudo isso.

Libby solta um suspiro.

— Ninguém sabia, exceto Brendan. E ele queria que eu te contasse, mas eu sabia

que isso te assustaria. E é super comum. Quero dizer, meu médico tinha certeza de

que tudo ficaria bem. Eu não queria ser um fardo para você.

Eu alcanço a mão dela.

— Libby, você não é um fardo. É você. Você vem primeiro. — Eu acrescento

levemente — Mesmo antes da minha carreira. E da minha bicicleta ergométrica.

Bufando, ela puxa sua mão da minha.


— Você sabe que tipo de culpa vem com isso, mana? Saber que você vai largar

tudo para administrar a minha vida? Que você desistiria do seu emprego dos sonhos

para... ser minha mãe? Isso me faz sentir… incapaz.

— Eu só quero estar lá para você — eu raciocino.

— Eu não deveria estar sempre em primeiro lugar, Nora — ela diz suavemente.

— E seus clientes também não deveriam.

— Tudo bem — eu digo. — De agora em diante, meu cara das rosquinhas vem em

primeiro lugar, mas você está em segundo lugar.

— Estou falando sério. Mamãe esperava muito de você.

— O que mamãe tem a ver com isso? — Eu digo.

— Tudo. — Antes que eu possa argumentar, Libby continua — Não estou dizendo

que a culpo, ela estava em uma situação impossível e fez um trabalho incrível

conosco. Mas isso não muda o fato de que, às vezes, ela esqueceu de quem era o

trabalho de cuidar de nós.

— Lib, o que…

— Você não é meu pai — diz ela.

— Desde quando isso está em questão?

Ela bufa novamente, agarrando minhas mãos.

— Ela tratou você como seu parceiro, Nora. Ela tratou você como se você fosse…

como se fosse seu trabalho cuidar de mim. E eu deixei você, depois que ela morreu,

mas você ainda está fazendo isso. E é demais. Para nós duas.

— Isso não é verdade — eu digo.

— É — ela responde. — Eu tenho minhas próprias filhas agora, e deixe-me te

dizer, Nora, há dias em que eu entro no chuveiro e choro em uma bucha porque estou

tão sobrecarregada, e talvez manter isso escondido delas também não seja a

resposta, mas não consigo imaginar colocar minhas preocupações em Tala ou Bea

como mamãe fez conosco. Especialmente com você.

“Ela teve fases difíceis, mas ela era nossa única mãe, e houve momentos em que

ela se esqueceu disso. Houve momentos em que ela te tratou como se você fosse uma

adulta.”

Uma pontada de gelo passa por mim. Culpa ou mágoa ou saudades da mamãe, ou

tudo isso trançado em um pingente de gelo bem no meu coração, queimando como

só o frio pode.

Como se a coisa mais preciosa, a única coisa preciosa da minha vida tivesse

congelado tão profundamente que há teias de aranha de gelo correndo por mim.

— Eu queria ajudar — eu digo. — Eu queria cuidar de você.

— Eu sei. — Ela levanta minhas mãos entre as dela, segurando-as contra seu

coração. — Você sempre faz isso, e eu te amo por isso. Mas eu não quero que você

seja mamãe, e eu definitivamente não quero que você seja meu pai. Quando eu digo

que algo está acontecendo, às vezes eu só quero que você seja minha irmã e diga:

Isso é uma merda. Em vez de tentar consertar.

A distância entre nós. A viagem, a lista, os segredos. Tenho visto tudo isso como

pequenos desafios a serem superados, ou talvez testes para provar que posso ser a


irmã que Libby quer, mas Charlie está certo. Tudo o que ela realmente quer é uma

irmã. Nada mais nada menos.

— É difícil para mim — eu admito. — Eu odeio sentir que não posso te proteger.

— Eu sei. Mas… — Seus olhos se fecham, e quando eles se abrem novamente, ela

luta para evitar que sua voz se estilhace, nossas mãos tremendo em uma massa

apertada entre nós. — Você não pode. E eu preciso saber que posso ficar bem sem

você.

— Quando perdemos a mamãe, fiquei arrasada, mas nunca tive medo de como

iríamos sobreviver. Eu sabia que você se certificaria de que sim, e... mana, eu aprecio

isso mais do que eu jamais poderia colocar em palavras.

— Você poderia tentar — eu brinco baixinho. — Talvez me dê um cartão ou algo

assim.

Ela ri com lágrimas, puxa uma mão livre para enxugar os olhos.

— Em algum momento, eu tenho que saber que posso fazer as coisas por conta

própria. Não com a ajuda de Brendan, não com a sua. E você precisa abrir espaço em

sua vida para outras coisas, outras pessoas para se importar.

Eu engulo em seco.

— Ninguém nunca vai importar como você, Lib.

— Ninguém nunca vai importar como você também — ela sussurra. — Além do

meu cara das rosquinhas.

Eu envolvo meus braços ao redor de seu pescoço e a arrasto para um abraço.

— Por favor, me diga da próxima vez que você descobrir que tem uma doença ou

deficiência de vitaminas — eu digo em seu cabelo loiro rosa. — Mesmo que tudo que

eu possa fazer seja dizer, Isso é uma merda. E então enviar seis caixas de

suplementos para sua casa.

— Feito. — Ela recua, seu sorriso se transformando em uma careta. — Tem outra

coisa que você deveria saber.

Aqui está, eu acho, o que ela está escondendo de mim.

Ela respira fundo.

— Eu como carne.

Minha reação instantânea é pular da cama como se ela tivesse acabado de me

dizer que matou pessoalmente uma vaca bebê aqui momentos atrás e bebeu sangue

direto de suas veias.

— Eu sei! — ela chora pelas mãos. — Tudo começou quando eu estava grávida

de Tala! Por causa da anemia. E, francamente, esse desejo bizarro e constante por

Whoppers.

— Ew! — Eu digo.

— Eu parei assim que ela nasceu! — Libby diz. — Mas então comecei de novo

quando descobri o número três, e não achei que algumas semanas de folga fariam

diferença para meus níveis, mas não estava sendo consciente o suficiente para

preencher as lacunas. Então. Opa! Ou... whoops?

— Eu não posso acreditar que você me enganou para ser vegetariana, por uma

década, e depois cedeu para um Whopper!

— Como você se atreve — diz ela. — Os Whoppers são incríveis.


— Ok, você está ficando muito boa em mentir.

Ela gargalha.

— Ok, não é incrível, mas o coração quer o que quer.

— Seu coração precisa de terapia.

— Podemos pegar um pouco no caminho para casa? — Ela empurra para fora da

cama. — Whoppers, não terapia.

— Whoppers? Plural?

— Eles têm hambúrgueres vegetarianos, sabia — diz ela. — E já estamos tão

perto de Asheville, e há um BK lá.

Eu a encaro.

— Então você não apenas chamou de “BK” sem uma pitada de ironia, mas você

está me dizendo que verificou onde fica o mais próximo.

— Minha irmã me ensinou a estar preparada. Eu descobri quando Sally e eu

fomos pendurar panfletos para o Baile da Lua Azul.

— Isso não é “preparada” — eu digo. — É “perturbada.” — Com sua risada, eu

cedo. — Whoppers então.

— Tem certeza que você está disposta para isso?

Libby me dá uma olhada.

— Parabéns. Você passou doze horas completas.

— Certo — eu digo. — Você está no comando de si mesma. Quem se importa se

você está disposto a isso? Eu não.

Ela sorri e movimenta sua enorme bolsa roxa.

— Eu tenho carne seca aqui, e amêndoas, e uma daquelas coisas de manteiga de

amendoim para mergulhar. Além disso, estarei com Gertie, Sally e Amaya. Você vai

fazer essas edições para poder tirar uma folga na próxima semana e festejar. — Seu

telefone vibra, e ela verifica. — Gertie está aqui. Parece que vai chover, quer que a

gente deixe você na livraria?

Charlie concordou em assumir o turno de Sally para que ela pudesse se

concentrar no baile do próximo fim de semana, o que significa que estaremos

fazendo as notas finais na loja. Tínhamos planejado terminar de ler as páginas ontem

à noite, mas isso foi para o inferno quando Libby desmaiou, então terminaremos

nossas leituras hoje também.

— Por que não.

O hatch enlameado de Gertie se encontra no pé da colina, ainda mais coberto de

adesivos do que quando ela nos levou do salão para casa, e ela está queimando

incenso no painel. Eu tenho que literalmente morder minha língua para evitar falar

com ela sobre o quão perigoso isso é, não que ela sequer ouça sobre a música

industrial dissonante que ela está tocando.

A vibração principalmente abafa o estrondo do trovão se aproximando enquanto

eu saio na frente do Goode's. No alto, nuvens negras e espumosas estão se

aglomerando, e há uma mordida no ar quando o hatchback se afasta do meio-fio.


Através da claridade amarelada nas vidraças, vejo Charlie na estante de livros

mais próxima, em tons de vermelho e dourado.

Seus lábios e mandíbula estão sombreados com perfeição, seu cabelo escuro

aureolado pela luz suave. Ao vê-lo, meu estômago revira e algo floresce como uma

flor de lapso de tempo atrás da minha caixa torácica. Agora que estou aqui, tão perto

do final deste livro, desta edição, desta viagem, uma parte não pequena de mim quer

virar e correr.

Mas então ele me avista, e sua boca se abre em um sorriso cheio e sensual de

Charlie, e meu medo vai embora, como poeira varrida de uma capa de livro.

Ele abre a porta, inclinando-se para fora quando as primeiras gotas gordas de

chuva respingam nos paralelepípedos.

— Você está pronta para terminar isso, Stephens?

— Pronta. — É verdade e mentira. Alguém quer terminar um bom livro?

O escritório dos fundos parece irresistivelmente aconchegante na escuridão da

tempestade, a mesa de mogno cheia de papéis e bugigangas, mas meticulosamente

arrumada no estilo característico de Charlie. Ao lado do sofá encaroçado, a cornija

da lareira e suas três fileiras de fotos de família foram limpas recentemente, e

manchas de aspirador de pó ainda são visíveis nos tapetes antigos. O volumoso

aparelho de ar-condicionado está pendurado em silêncio na janela, paralisado pela

onda de frio de um falso outono.

Ele tira uma pilha de capas duras do sofá e atravessa a sala para se sentar na

cadeira atrás da mesa. Sua expressão parece provocar, Vê? Eu sou perfeitamente

inofensivo aqui.

Exceto que nada nele parece inofensivo para mim. Parece um canivete suíço. Um

homem com seis meios diferentes para me desfazer.

Esse Charlie, para fazer você revelar seus segredos.

Este para fazer você rir.

Este pode te excitar.

Este é o único que vai convencê-la de que você é capaz de qualquer coisa.

Aqui está o Charlie que vai puxar você para o colo dele para formar sua barricada

humana em um hospital.

E este com o poder de desmontá-la tijolo por tijolo.

— Como está Libby? — ele pergunta.

— Bem — eu digo — ela tem uma bolsa de carne seca agora.

— Então eu acho que você está dizendo que é um saco misto.

Minha cabeça se inclina para trás, uma verdadeira gargalhada saltando de mim.

— O que há com esta cidade e jogo de palavras?

— Eu não tenho ideia do que você está falando — ele diz impassível.

— Resolva uma aposta minha e da Libby. — Eu me inclino para frente sobre meu

laptop, a tela semi-fechada.

— Isso não é muito justo com Libby — Charlie diz. — Sempre sou tendencioso

em relação a um tubarão.

Calor enche meu peito, mas eu pressiono, implacável, uma cabeça de martelo

para o meu núcleo.


— Spaaaahhh deve ser dito como um suspiro ou um grito?

Charlie passa a mão sobre os olhos enquanto ri.

— Bem, eu odeio atrapalhar ainda mais as coisas para você, mas quando eu

morava aqui, chamava-se Ponto G. Então eu acho que a pronúncia depende de como

você acha que um orgasmo soa.

— Você está inventando isso — eu digo.

— Minha imaginação é boa — diz ele — mas não tão boa assim.

— O que acontece nesses salões sagrados — eu me maravilho — e é legal?

— Honestamente — diz Charlie — acho que foi apenas um erro fortuito. O nome

da proprietária é Gladys Gladbury, então acho que essa era a referência que ela

queria.

— Ela podia estar querendo isso, mas ela definitivamente atingiu o Ponto G.

Ele tapa o rosto com a mão.

— Seu cérebro de pesadelo — diz ele — é o meu favorito absoluto, Stephens.

Meu sangue começa a ferver enquanto nossos olhares se mantêm.

— Acho que devemos ler.

— Acho que deveríamos — eu digo.

Desta vez ele desvia o olhar primeiro, move o cursor em seu laptop.

— Me fale quando terminar — diz ele.

Com algum esforço, dirijo minha atenção para Frigid. Em poucos parágrafos,

Dusty me fisgou. Eu mergulhei em suas palavras, engolida da cabeça aos pés por sua

história.

Nadine e Lola, a fisioterapeuta alegre, levam Josephine às pressas para o hospital,

mas depois de 22 horas, o inchaço no cérebro de Jo ainda não diminuiu. Nadine tem

que correr para casa para alimentar o gato selvagem que ela está abrigando e, a essa

altura, a tempestade está aumentando.

Aqui, na Goode Books, as paredes estremecem com o nosso trovão da vida real

em concordância.

Nadine chama a gata enquanto anda pelo apartamento escuro, mas os uivos

ininterruptos de sempre não atendem. Ela vê a janela sobre a pia; ela a deixou

entreaberta, e agora está bem aberta.

Ela corre para a chuva, desejando ter dado um nome ao gato, porque gritar Seu

idiota, volte para o vento não funciona. Finalmente, ela vê o gato malhado sarnento

encolhido, no meio do bueiro.

Nadine começa a atravessar a rua, ouve o barulho da borracha no asfalto molhado,

vê o carro vindo em sua direção.

E então, o ar sai de seus pulmões.

Seus olhos se fecham rapidamente, a dor atravessando suas costelas. Quando ela

abre os olhos, ela está no gramado, Lola esparramada sobre ela. Enquanto recuperam

o fôlego, o gato sai correndo do bueiro, olha para ela com cautela e sai trotando.

— Merda — diz Lola, correndo para perseguir o gato.

Nadine segura seu braço.

— Deixe ele ir — diz ela. — Eu não posso ajudá-lo.


O hospital liga.

Meu peito dói enquanto percorro a primeira página do último capítulo, tomando

fôlego em preparação antes de continuar lendo.

Nadine e Lola estão juntas no cemitério ensolarado. Ninguém mais veio, além do

padre. Jo não teve ninguém exceto, ao longo destes últimos meses, elas. Lola pega a

mão de Nadine e, embora surpresa, ela a deixa segura-la.

Mais tarde, em casa, Nadine encontra um arranjo floral em sua escada, um cartão

de sua ex-assistente: Sinto muito por sua perda. Ela o carrega para dentro e pega um

vaso. A luz entra pela janela aberta, fazendo a água brilhar ao sair da torneira.

Do outro quarto, ela ouve um miado feroz. Seu coração se eleva.

O espaço em branco se estende pela tela, espaço para sentar e respirar.

Olho para a página em branco, esvaziada.

Nos meus livros favoritos, nunca é bem o final que eu quero. Há sempre um preço

a ser pago.

Mamãe e Libby gostavam das histórias de amor em que tudo acontecia

perfeitamente, embrulhado em um laço, e eu sempre me perguntei por que gravito

em direção a outra coisa.

Eu costumava pensar que era porque pessoas como eu não entendem esses finais.

E pedir por isso, torcer por isso, é uma maneira de perder algo que você nunca teve.

Os que mexem comigo são aqueles cujas páginas finais admitem que não há como

voltar atrás. Que toda coisa boa deve acabar. Que toda coisa ruim também acaba, que

tudo acaba.

É isso que procuro cada vez que folheio um livro, verificando compulsivamente

a prova de que em uma vida em que tantas coisas deram errado, pode haver beleza

também. Que sempre há esperança, não importa o quê.

Depois de perder minha mãe, esses foram os finais em que encontrei consolo.

Aqueles que diziam: Sim, você perdeu alguma coisa, mas talvez, algum dia, você

encontre algo também.

Por uma década, eu soube que nunca mais terei tudo, então tudo o que eu queria

é acreditar que, algum dia, novamente, terei o suficiente. A dor nem sempre será tão

ruim. Pessoas como eu não estão quebradas além do reparo. Nenhum gelo congela

espesso demais para descongelar e nenhum espinho cresce denso demais para ser

cortado.

Este livro me esmagou com seu peso e me deslumbrou com seus pequenos

pontos brilhantes. Alguns livros você não lê tanto quanto vive, e terminar um desses

sempre me faz pensar em subir de um mergulho. Como se eu emergisse muito rápido

eu poderia ter uma câimbra.

Eu tomo meu tempo, deixando cada trovão me levar para mais perto, mais perto

da superfície. Quando finalmente olho para cima, Charlie está me observando.

— Acabou? — ele pergunta baixinho.

Eu concordo.

Nenhum de nós fala por um momento.

Finalmente, baixinho, ele diz:


— Perfeito.

— Perfeito — eu concordo. Essa é a palavra. Eu limpo minha garganta, tento

pensar criticamente quando tudo que eu quero fazer é aproveitar este momento.

Estabelecer. — O gato realmente voltaria?

Sem hesitar, Charlie diz:

— Sim.

— Não é o gato dela — eu digo. É o refrão constante de Nadine ao longo do livro,

a razão pela qual ela nunca nomeia o pequeno clandestino.

— Ela entende ele — diz ele. — Todo mundo olha para aquele gato e o vê como

um monstrinho. Não sabe ser um animal de estimação, mas não se importa. É por

isso que ela diz que não é dela. Porque não se trata do que o gato pode dar a ela. Não

pode oferecer nada a ela.

— É um pequeno sanguessuga malvado, feroz, faminto e socialmente pouco

inteligente. — O céu está negro além da janela, a chuva grossa como um lençol toda

vez que o relâmpago o atravessa. — Mas é o gato dela. Nunca pertenceu a ninguém,

mas pertence a ela.

Sinto uma dor estranha. É assim que olhar para Charlie é às vezes. Como um soco

no estômago de uma frase, como uma linha tão afiada que você tem que deixar o

livro de lado para recuperar o fôlego.

Ele abre a boca para falar, e outro trovão estremece a terra. As luzes se apagam.

No escuro, Charlie sai de trás da mesa.

— Você está bem?

Eu encontro sua mão e me agarro a ela.

— Mm-hum.

— Eu deveria trancar a porta da frente — diz ele — até que a energia volte.

No limite de sua voz, eu digo:

— Eu vou com você.

Nós rastejamos para fora do escritório. Com a loja no escuro, o vazio assume um

leve frio, e os pelos ao longo dos meus braços se arrepiam enquanto espero Charlie

virar a placa e trancar a porta.

— Há lanternas no escritório — ele me diz depois, e nós voltamos pelo caminho

de onde viemos. Ele me solta para vasculhar as gavetas da mesa. — Você está com

frio?

— Um pouco. — Meus dentes estão batendo, mas não tenho certeza se é por isso.

Ele me entrega uma lanterna, acende a lanterna de emergência na outra mão e a

leva para a lareira. Seu rosto e ombros estão rígidos enquanto ele empilha toras na

lareira, da mesma forma que ele mostrou a mim e a Libby na outra noite: um ninho

de toras, seus cantos cheios de jornal amassado.

— Você realmente não gosta do escuro — eu digo, ajoelhando no tapete ao lado

dele.

— Não é o escuro, exatamente. — Leva um minuto, mas os gravetos pegam, calor

e luz ondulando sobre nós. — Está tão quieto aqui, e quando está escuro também,

sempre me fez sentir meio que…. sozinho, eu acho.


De tão perto, posso ver todos os detalhes de seu rosto, o anel marrom mais escuro

no meio de suas íris douradas, o vinco sob o lábio e as curvas individuais de seus

cílios.

Eu me coloco em pé e caminho em direção à mesa.

— Preciso dizer uma coisa.

Quando me viro, ele está de pé novamente, a testa franzida, as mãos nos bolsos.

— Talvez, por alguma razão, você simplesmente não queira namorar agora — eu

digo — e tudo bem. As pessoas se sentem assim o tempo todo. Mas se for outra coisa,

se você tem medo de ser muito rígido, ou o que quer que suas ex-namoradas tenham

pensado sobre você, nada disso é verdade. Talvez todos os dias com você fossem

mais ou menos iguais, mas e daí? Isso realmente soa ótimo.

“E talvez eu esteja interpretando mal tudo isso, mas acho que não, porque nunca

conheci ninguém tão parecido comigo. E... se alguma parte de tudo isso é que você

acha que, no final, vou querer um golden retriever em vez de um gatinho malvado,

você está errado.”

— Todo mundo quer um golden retriever — diz ele em voz baixa. Por mais

ridícula que seja uma declaração, ele parece sério, preocupado.

Eu balanço minha cabeça.

— Eu não.

As mãos de Charlie param na borda da mesa em cada lado de mim, seu olhar

derretendo de volta em mel, caramelo, bordô.

— Nora. — Meu coração tropeça em seu tom áspero e hesitante: a voz de um

homem recusando alguém cuidadosamente.

— Esquece. — Eu evito meu olhar, mas sou incapaz de removê-lo

completamente, não com ele tão perto, suas mãos em cada lado dos meus quadris.

— Eu entendo. Eu só queria dizer uma coisa, no caso...

— Eu não vou voltar para Nova York — ele interrompe.

Meus olhos voltam para os dele. Cada ponta afiada de sua expressão assume um

novo significado.

— É por isso — diz ele. — A razão pela qual eu não posso...

— Eu não... — Eu balanço minha cabeça. — Por quanto tempo?

Sua garganta balança enquanto ele engole.

— Minha irmã deveria voltar em dezembro para assumir a loja. Mas ela conheceu

alguém na Itália. Ela vai ficar lá.

Meu coração passou de um beija-flor com excesso de cafeína para uma bigorna,

cada um batendo forte e dolorido.

— Eu já enviei um e-mail para Libby sobre o apartamento — ele continua. — É

dela se ela quiser. Sempre ia ser.

Meus olhos ardem. Meu coração parece uma lista telefônica cujas páginas se

soltaram, e estou tentando colocá-las em uma ordem que faça sentido, que conserte

isso.

— Naquela primeira noite eu encontrei você na cidade — Charlie diz — eu tinha

acabado de descobrir que Carina estava ficando mais um pouco. Eu não tinha certeza

de quanto tempo, mas... ela e o namorado fugiram. Ela não vai voltar.


Suas palavras me atingem de uma maneira distante e vibrante.

— Eu tenho tentado encontrar uma saída. Mas não há uma. Meu pai é quem

manteve tudo junto. A casa deles é velha, precisa constantemente de obras que estou

tentando descobrir como fazer, porque ele não me deixa contratar alguém, e a loja

está pior do que nunca… minha mãe está tentando, mas não consegue.

“Do jeito que estamos indo, a loja tem talvez seis meses restantes. Alguém precisa

estar lá, todos os dias, e minha mãe nem conseguiu isso antes de ajudar meu pai a se

locomover. E foda-se, ele é terrível em confiar nas pessoas, então mesmo que

pudéssemos contratar uma enfermeira, ele não nos deixaria. E se pudéssemos

contratar um gerente de loja, minha mãe não permitiria. Sempre esteve na família

dela. Ela diz que quebraria seu coração ter outra pessoa comandando as coisas.”

Os músculos de sua mandíbula trabalham, sombras tremulando contra sua pele.

— E eles não eram perfeitos, mas meus pais desistiram de muito por mim. Então

eu poderia ir para a faculdade que eu queria e ter o emprego que eu queria e… eu

não posso continuar assim. Loggia quer alguém no local, e minha família precisa de

mim. Eles precisam de alguém melhor do que eu, mas eu sou o que eles têm. Vou

embora depois que Frigid terminar. Essa é a vaga de emprego, aquela para a qual eu

coloquei você.

Seu trabalho. Seu apartamento. Como se ele estivesse apenas entregando a vida

pela qual trabalhou tanto, a preço de custo. Desistindo da cidade onde ele pertence.

Onde ele se sente ele mesmo. Onde ele não se sente errado ou inútil.

— E o que você quer? — Eu exijo. Ele olha para mim como se acreditasse que eu

poderia dar a ele, e eu quero tanto. — Quem está se certificando de que você está

feliz, Charlie? E o seu coração?

Ele tenta sorrir; ele é muito ruim em mentir.

— Pessoas como nós têm isso?

Eu toco seu rosto, inclinando seus olhos para os meus. Levo um momento para

engolir a confusão de emoções que me invadem, para guardar os estilhaços dos

meus pensamentos e aceitar esta nova realidade. Estou tentando fazer uma lista, um

plano, um enredo que nos leve de A a B, mas é apenas um ponto de bala, esse gancho

de um capítulo.

— Hoje à noite — eu digo — posso ficar com você, Charlie? Mesmo que não possa

durar. Mesmo que já saibamos como termina.

Ele segura minha mandíbula com tanto cuidado. Como se eu fosse algo delicado.

Ou talvez como se ele fosse. Como se com um movimento errado pudéssemos abrir

um ao outro. Meu peito aperta com aquela sensação de esmagar o coração do

capítulo final, só agora eu sei a palavra para isso. Eu sei disso, mesmo que eu não

consiga pensar nisso.

— Você me tem, Nora. Nunca tive chance.

Pela primeira vez na minha vida, sei do que diabos Cathy estava falando quando

disse que eu sou sua, Heathcliff 8 . Não apenas porque Charlie e eu somos tão

parecidos, mas porque ele está certo: nós pertencemos. De uma forma que não

8

Referência a uma frase dita pela personagem do livro O Morro dos Ventos Uivantes, de Emilly Bontë.


entendo, ele é meu, e eu sou dele. Não importa o que diz a última página. Essa é a

verdade. Aqui agora.

Seus lábios roçam os meus, leves, cuidadosos, quentes. Eu abro para ele, sabendo

como vai ser quando eu virar a página, mas sem vontade de virá-la.


SEUS DEDOS SE ENTRELAÇAM EM MEU CABELO, sua língua mergulhando

entre meus lábios. Um som sai de mim, e ele me coloca na mesa. No passado, nossa

conexão foi frenética, sem sentido, mas agora ele é tão cuidadoso e carinhoso que

dói.

Seus dedos roçam um dos laços do ombro do meu vestido, soltando o nó antes de

passar para o outro. Minhas mãos estão sob sua camisa, sentindo sua pele lisa e

quente até que está viva com arrepios.

Ele tem gosto de café, com um toque de gengibre. Sua língua patina sobre meu

lábio inferior e sua mão percorre meu lado.

Eu o puxo para mais perto, e ele me puxa para a beirada da mesa, sua boca mais

urgente agora, seus dentes afundando e soltando enquanto nos aproximamos e nos

afastamos, cada suspiro ofegante tornando o próximo beijo mais necessário. Sua

palma varre até meu peito, seu polegar acariciando meu mamilo, e eu estremeço.

Seu coração martela contra mim, e o meu acompanha seu ritmo, dois metrônomos

entrando em sincronia.

Relâmpagos soam no céu, seguidos por um estrondo baixo. O fogo se extingue,

depois se inflama. Pouco a pouco, Charlie vai beijando para longe a dor dessas

últimas três semanas. Seus lábios roçam meu queixo, minha garganta, suas mãos se

movem para trás para terminar de desatar os laços em meus ombros. O corpete do

meu vestido está aberto, e meu coração gira como um cata-vento sob seu hálito

quente enquanto sua boca se move para baixo em mim.

Eu inclino minha cabeça para trás, meus pulmões travando quando sua língua

roça a curva interna do meu seio. Charlie empurra o tecido para baixo até que o ar

quente encontre minha pele. Seus olhos levantam para os meus quando ele deixa

cair seus lábios em mim, me observando enquanto ele puxa meu mamilo em sua

boca. Quando eu começo a arquear, sua língua e dentes cuidadosamente deslizam

pela minha pele.

Seu nome escapa de mim. Nossas bocas colidem novamente, mais profundas,

mais seguras. Sua mão encontra a bainha do meu vestido e desliza para dentro da

minha coxa. Eu empurro meus joelhos, sua palma roçando mais alto até alcançar a

faixa rendada em meus quadris. Sua outra mão faz o mesmo, e eu me inclino para

trás, me levantando para que ele possa juntar o tecido e deslizá-lo pelas minhas

pernas.


Seus olhos travam com os meus, sua mão apertando as dobras dos meus quadris

nus, enquanto ele se ajoelha e traz seus lábios para dentro do meu joelho, beijando

mais alto até sua boca afundar entre minhas coxas. Eu me inclino para trás em

minhas mãos, e minha respiração fica superficial enquanto o calor de sua língua

derrete contra mim.

Eu rolo meus quadris na pressão e ele geme, sua mão deslizando sobre meu

estômago, me pressionando de volta até que eu esteja deitada na mesa.

Penso em sugerir que nos movamos. Penso em perguntar se fazer isso, aqui, é

desrespeitoso. Mas então eu sou incapaz de pensar, porque sua língua encontrou um

interruptor no meu corpo, cortando completamente a energia do meu cérebro.

— Nora — ele murmura. Um pequeno som de reconhecimento sai de mim. — Nós

não deveríamos ter esperado. Deveríamos estar fazendo isso desde que nos

conhecemos.

Minhas mãos se emaranham em seu cabelo. As dele estão debaixo de mim, me

segurando, me inclinando até sua boca.

Lento, faminto, determinado. Pela primeira vez nada entre nós está acontecendo

por acaso.

A pressão cresce até que estou estremecendo sob ele, minhas mãos torcendo em

seu cabelo enquanto arqueio, gritando. Ele se endireita e me puxa de volta para a

beirada da mesa, nossas bocas deslizando juntas, nossas mãos nas roupas um do

outro. Eu tiro sua camisa, desfaço suas calças. Ele tira meu vestido, então me levanta

e se vira para me deitar no sofá, sua língua debaixo do meu sutiã.

— Este é aquele — diz ele, quase com reverência — que você usou na noite em

que nadamos.

Eu passo minhas mãos por suas costas, pegando cada curva firme e linha dura:

minha primeira chance de ter tanto dele quanto eu quero, e também possivelmente

minha última.

Ele beija a base da minha garganta.

— Eu me lembro exatamente como você é tocar em você, Nora. Como a porra da

seda.

Minha boca se amolece contra o lado de seu pescoço, seu pulso contra minha

língua. Minhas mãos o derrubam, empurrando suas calças e cuecas, minhas unhas

marcando sua pele enquanto eu balanço nele. Eu alcanço entre nós, e quando eu

envolvo meus dedos ao redor dele, uma explosão de luz muito brilhante pisca

através de mim, transformando tudo em pontos escuros e brilhantes por um

segundo.

— Eu me lembro de como é tocar em você também.

Ele geme enquanto se move dentro da minha mão. Eu empurro suas calças abaixo

de seus quadris. Ele continua se movendo lentamente, pesadamente contra mim,

chegando cada vez mais perto de mim. Não importa o quanto eu mexa debaixo dele,

ele sempre parece fora de alcance.

Até que ele não está. Até que sua boca está correndo urgentemente sobre mim, e

suas mãos estão abaixando as alças do meu sutiã pelos meus braços, e a coisa toda

acaba enrolada em volta da minha cintura. Então nós dois estamos meio loucos um


pelo outro, suas mãos em minhas coxas, minha boca em seu ombro, sua língua em

minha boca, sua ereção se movendo contra mim até que minhas entranhas estejam

tensas como as cordas do violino.

— Anticoncepcional? — ele pergunta.

— Obviamente, mas…

— Eu sei — diz ele. Claro que sim. Ele é exatamente como eu: mesmo quando

estamos loucamente obcecados um pelo outro, ainda há alguns (muitos) fios

mantendo a razão no lugar. Charlie se afasta de mim, encontra sua carteira e volta

com uma camisinha, sem mais perguntas, sem xingamentos, sem indícios de

frustração, sem implícitos tensa, paranoica ou chata. Ele coloca a mão no meu queixo

e me beija com uma ternura que sinto por todo o meu corpo, todos esses pequenos

bolsões de calor aninhados entre ossos, músculos e cartilagens: Charlie, difundido

em minha corrente sanguínea. E então, finalmente, ele está empurrando em mim.

Devagar. Com cuidado. Ele recua antes que eu tenha algum alívio, e uma risada

sai dele com o som que faço.

— Eu não tinha ideia de que era possível — diz ele — você me querer tanto

quanto eu quero você.

— Mais — eu digo, muito envolvida nisso agora para pensar em admitir algo

assim.

— Agora, isso — diz Charlie, empurrando mais fundo desta vez — eu sei que é

impossível.

Eu me levanto, puxando-o para mais perto. Sua cabeça inclina para trás e um

gemido sobe em sua garganta. À medida que nos movemos juntos, o mundo fica

suave e escuro, tudo encolhendo até os pontos onde nossos corpos se encontram.

Suas mãos me massageando, sua boca desvendando a minha, minhas unhas cavando

em seus contornos para trazê-lo mais perto do que nossos corpos nos permitem

chegar.

Já estou triste com a ideia desse final. Se eu pudesse fazer o sentimento durar

dias, eu faria. Se o mundo acabasse em vinte minutos, é assim que eu gostaria de

morrer. Ele estoca mais fundo, mais forte.

— Porra, Charlie.

— Muito forte? — ele pergunta, desacelerando.

Eu balanço minha cabeça. Ele entende. Sem mais cautela ou restrição.

— Pensei em você em todos os lugares — diz ele. — Não há nenhum lugar nesta

cidade em que não tenhamos feito isso.

Meio rindo mesmo estando enrolada nele, faminta, pergunto:

— Como foi?

— Minha imaginação não é tão boa quanto eu pensava.

Meu cérebro parece fogos de artifício em um céu negro. Charlie se senta e me

puxa para seu colo, empurrando de volta para mim. Eu apoio minhas mãos no

encosto do sofá, movendo-me contra ele com mais força, até que cada inclinação e

giro de meus quadris o faz xingar contra a minha pele. Uma de suas mãos enrola no

meu cabelo, a outra achata nas minhas costas, me segurando onde ele me quer.


— Eu quero mais de você — eu suspiro em sua boca, sentindo cada batida de seu

coração subindo por mim. Mais forte, mais rápido, mais tudo.

— Você é perfeita — ele diz. — Essa é a palavra, Nora. Você é perfeita para

caralho.

Oh Deus. Oh Deus. Charlie, repetindo em minha mente.

— Por favor — eu digo.

Depois disso, não há mais conversa. Eu nunca fiquei tão feliz por alguém ver

através de mim, me ler como um livro, enquanto ele me leva ao limite de novo, e de

novo, e… sim, os deuses do romance ficariam orgulhosos, novamente.


QUANDO EU ME SENTO, Charlie segura meu braço, seus olhos pesados e

quentes.

— Fique — ele sussurra.

Meu coração palpita.

— Por quê?

Ele coloca meu cabelo atrás da minha orelha, a boca se curvando.

— Tantas razões.

— Eu só preciso de uma.

Ele se senta, sua mão se acomodando entre minhas coxas, sua boca pressionando

meu ombro com ternura enquanto a pressão de seu polegar se move em um círculo

lento.

— Uma.

— Nesse caso — eu digo — talvez duas.

Ele se inclina e me beija profundamente, sua mão gentil na minha garganta, o

polegar aninhado na base.

— Porque — ele diz — eu quero que você faça isso.

— Eu não fico na casa de homens estranhos — eu digo, o sangue fervendo.

— Então é uma sorte que esta não seja a minha casa.

— Sim, porque se fosse, seus pais entrariam correndo, com os olhos turvos e com

uma espingarda, pensando que você estava sendo assaltado.

— Mas pelo menos já estaríamos dentro de um carro de fuga — diz ele.

Eu rio, e o canto de sua boca fica mais alto.

— Fique, Nora.

Eu sinto isso florescendo no meu peito novamente, como pétalas se desenrolando

para deixar algo delicado exposto em seu centro. E então uma pontada de pânico,

uma agulha no meu coração desprotegido.

— Eu não posso — eu mal sussurro.

Sua decepção é visível, apenas por um momento. Então eu a vejo se dissolver

enquanto ele aceita, e parece que alguns daqueles pontos curados no meu coração

se abrem novamente. Ele se senta, procurando por suas roupas descartadas, e eu

toco seu braço, parando-o. Mais do que qualquer um que eu já conheci, Charlie

anseia por honestidade, e ele não pune ninguém por isso. Ele a considera imutável e

a sintetiza em seu mundo, e eu não quero ser outra pessoa falando meias verdades

para ele.


— Estava na casa do meu namorado. — Realmente dói dizer as palavras. Eu

nunca precisei antes. Libby já sabe, e não falo sobre isso com mais ninguém. Eu

nunca quis me tornar tão vulnerável, ver os olhares de pena, me sentir fraca.

Os olhos de Charlie seguram os meus.

— Jakob — eu digo. — Eu estava com ele na noite em que minha mãe morreu.

Sua sobrancelha suaviza.

Eu não pesei prós contra contras, custos versus benefícios de contar a ele. Eu só

quero dizer isso. Quero entregar, essa coisa que nunca consegui consertar para ele,

e ver o que acontece.

— Ele foi meu primeiro namorado sério. Talvez meu único sério, de certa forma.

Quer dizer, eu namorei outros homens por mais tempo, mas ele foi o único que eu

escolhi assim.

Acima de tudo. Ou talvez fosse que eu não o escolhi. Apenas cai de cabeça em

meus sentimentos por ele, sem qualquer cautela.

— Eu tinha vinte anos e estava sempre na casa dele, então decidimos que eu

deveria me mudar. E minha mãe, ela era tão romântica, nem estava tentando me

convencer a desistir. Ela queria que eu me casasse com ele. Eu queria também.

Charlie não diz nada, apenas me observa, deixando espaço para eu continuar ou

parar.

— Meu telefone descarregou em algum momento da noite.

Minha voz está rouca agora, como se minha garganta estivesse se fechando para

manter o resto. Mas não consigo parar. Eu preciso que ele saiba. Eu preciso não ficar

sozinha com isso por mais um segundo.

— Quando eu estava com ele, eu apenas… me desligava do mundo. Quando

acordamos, eu nem liguei meu telefone até depois de fazermos o café da manhã. —

Comido. Feito sexo. Feito mais café.

A parte de trás do meu nariz queima.

— Libby estava me ligando há quatro horas. Ela estava sozinha no hospital, e…

— Nada sai depois disso. Minha boca está se movendo, mas não há som.

Charlie se senta para frente, me puxa contra seu peito. Sua boca pressiona com

força o topo da minha cabeça, seu polegar roçando meu ombro.

— Não consigo imaginar. — Ele puxa minhas pernas sobre seu colo, me esmaga

em seu peito novamente, alisa meu cabelo e o beija.

Fecho os olhos, focando nessas sensações, neste momento. Estou aqui, prometo a

mim mesma. Acabou. Não pode mais me machucar.

— Libby acordava gritando. — Minha voz está molhada agora, fina. — Por meses

depois que mamãe morreu. E eu não conseguia dormir de jeito nenhum. Eu estava

com muito medo de não estar lá se ela precisasse de mim.

Aprendi a esperar até que ela acordasse em pânico, a jogar meus cobertores de

lado e fugir para o outro lado da minha cama para que ela pudesse deslizar ao meu

lado sob a colcha. Eu a envolveria em meus braços até que ela chorasse até voltar a

dormir.

Eu nunca disse a ela que ficaria tudo bem. Eu sabia que não. Em vez disso, retomei

o velho refrão de mamãe para nos confortar: Deixe sair, docinho.


— Jakob foi ótimo no começo — eu digo. —Eu mal o vi, mas ele entendeu. E então

ele teve a chance de ir para esta residência, em Wyoming. Ele era um escritor.

— Ele deixou você? — Charlie diz.

— Eu disse a ele para ir — eu admito fracamente. — Eu me sentia como… Eu não

tinha tempo ou energia para ele de qualquer maneira, e eu não queria segurá-lo.

— Nora. — Seu queixo cutuca minha têmpora enquanto ele balança a cabeça. —

Você não deveria ter passado por isso sozinha.

— Ele não poderia ter feito nada — eu sussurro.

— Ele poderia estar lá — diz ele. — Ele deveria.

— Talvez — eu digo. — Mas não foi só ele que falhou comigo. Continuei fazendo

planos para visitar e depois cancelando. Eu não podia deixar Libby. E então…

Ele tira minha franja molhada de suor dos meus olhos.

— Você não precisa me dizer.

Eu balanço minha cabeça.

Todo esse tempo, bem no fundo do meu estômago, o monstro sombrio da dor, do

medo e da raiva esteve no canto onde eu o tranquei, mas foi crescendo, novos fios

de raiva atacando em todas as direções, faminto, louco de fome.

Um demônio que vai me devorar de dentro para fora.

— Eu planejei uma visita surpresa. Peguei Xanax, peguei um ônibus porque era

tudo que eu podia pagar, deixei Libby sozinha. Eu poderia dizer assim que o vi que

eu sabia que as coisas haviam mudado. E então, na primeira noite em que estive lá,

acordei em pânico. Eu não sabia onde estava e não conseguia encontrar meu

telefone. Tudo o que eu conseguia pensar era que algo tinha acontecido com Libby.

Eu estava… alucinando, quase. Meu peito doía tanto que pensei que estava

morrendo.

“Jakob pensou que eu estava tendo um ataque cardíaco. Ele me levou para o

pronto-socorro, e eles me mandaram para casa algumas horas depois com uma

conta enorme e alguns exercícios de respiração. Aconteceu de novo na noite

seguinte, e na seguinte. Eu disse a Jakob que precisava ir para casa mais cedo. Ele

me comprou uma passagem de avião e me disse que não voltaria. Ele decidiu ficar.

Eu queria descobrir algo. Libby tinha apenas um ano de ensino médio faltando,

mas pensei que talvez pudesse levá-la para lá conosco. Uma semana depois que

cheguei em casa, ele me disse que tinha conhecido outra pessoa.”

Como se o universo estivesse me punindo, por querer demais, por até mesmo

considerar colocar Libby nisso quando ela estava em seu ponto de ruptura. Ainda

me faz mal pensar nisso.

Os dedos de Charlie deslizam para cima e para baixo no meu braço.

— Eu sinto muito.

— Não é que eu tenha certeza de que ele era 'o cara' ou algo assim. — Fecho os

olhos, coração acelerado. — É só que… desde então, tem sido difícil imaginar deixar

alguém tão próximo assim. Não quando estou tão fodidamente quebrada que não

consigo dormir em qualquer lugar além da minha própria cama. Mesmo aqui é difícil,

com Libby ao meu lado. Eu nunca confiei em mim mesma desde então. — Eu


pressiono meu rosto em sua pele quente enquanto essa dor se abre em meu peito.

— Eu sinto muito. Eu só…

— Não se desculpe — diz ele rudemente. — Por favor, não se desculpe por me

deixar conhecê-la.

— É vergonhoso — eu digo. — Estar tão obcecada em estar no controle que

dormir me deixa em pânico. Eu sou uma bagunça do caralho

Ele me vira para encará-lo, suas mãos entrelaçadas na parte inferior das minhas

costas.

— Todo mundo é uma bagunça — diz ele.

— Você não é.

Ele sorri fracamente, o reflexo das brasas na lareira pegando as manchas de ouro

em sua íris.

— Estou morando no meu quarto de infância.

— Porque você está ajudando sua família — eu digo. — Eu joguei a minha debaixo

do ônibus na primeira chance que tive.

— Ei. — Ele toca meu queixo, levanta-o. — Seu ex te deixou na porra do ermo,

Nora, sozinha, e você fez o seu melhor. Você não é a vilã da história dele. Ele é, e não

porque ele se apaixonou por outra pessoa, mas porque ele saiu do seu

relacionamento no segundo em que você era quem precisava de algo.

Ele embala meu rosto entre as mãos.

— Eu vou te levar para casa quando você quiser — diz ele. — Mas se você quiser

ficar e acordar gritando, tudo bem. Vou me certificar de que você está bem. E se você

quiser ficar e depois mudar de ideia, não me importo de levá-la de volta às quatro

da manhã

Li uma vez que nem todo mundo pensa em palavras. Fiquei chocada, imaginando

essas outras pessoas que não usam a linguagem para dar sentido a tudo e a todos,

que não organizam automaticamente o mundo em capítulos, páginas, frases.

Olhando para o rosto de Charlie, eu entendo. A maneira como uma onda de

sentimentos e impressões leves podem se mover pelo seu corpo, ignorando sua

mente. Como uma pessoa pode saber que há algo que vale a pena dizer, mas não tem

noção do que exatamente é isso. Não estou pensando em palavras.

É um sentimento de não exatamente muito obrigada, não apenas Você me faz

sentir segura, mas algo que dança entre eles.

— Eu quero ficar — eu digo. — Mas acho que não consigo.

Ele concorda.

— Então eu vou te levar para casa.

— Ainda não.

Ele alisa meu cabelo, coloca atrás da minha orelha.

— Ainda não.

Deitamos juntos, minhas costas pressionadas contra seu estômago quente, seu

braço sobre meu quadril, dedos roçando minhas costelas como pequenos

esquiadores seguindo as encostas suaves, até que ele está duro novamente, e eu

estou bêbada com o jeito que ele está me tocando. Nós fazemos sexo lento e

sonhador, e quando acaba, eu me acomodo em seu peito, sentindo seu batimento


cardíaco batendo suavemente contra mim, tão calmo quanto as luzes e zumbidos da

cidade passando pela janela do meu apartamento, um mundo inteiro que continua

girando enquanto você dorme.

Se eu não disser em voz alta, acho que não conta. Talvez nem seja verdade.

Mas é verdade, e não tenho certeza se gostaria de parar com isso, mesmo que

soubesse como: estou me apaixonando por Charlie Lastra.

De manhã, eu pulo minha corrida. Libby e eu nos sentamos em um cobertor

estendido no prado, café na mão, e conto tudo a ela.

Olhos iluminados por dentro, ela diz:

— Ele vai ficar? — e meu coração desmorona sobre si mesmo.

— Por que você não me diz como você realmente se sente?

Ela enfia o nariz no vapor subindo de sua caneca.

— Desculpe, eu não quis dizer isso assim.

— Como você adoraria nada mais do que colocar Charlie Lastra em um navio

destinado a circundar a Terra permanentemente?

— Não é isso! É só… — Ela se mexe na cadeira. — Eu acho que isso muda como

eu o vejo. Ele se qualifica para a lista agora.

— Que útil.

— Nora. — Ela coloca sua caneca na grama. — Se você está realmente tão

empolgada com ele, você deveria explorar. Não consigo me lembrar da última vez

que você realmente se empolgou com alguém. Não, espere, eu posso. Foi há longos

dez anos atrás.

A dor profunda, como um membro fantasma pulsando, não parece tão intensa

quanto geralmente quando penso em Jakob. Eu quis dizer o que disse a Charlie, que

não era sobre sentir tanto a falta do meu ex, mas a solidão de ser incapaz de confiar

em mim mesma com qualquer um.

— Não importa o que nós “exploramos” — eu digo. — Nós sabemos como isso

termina.

Libby aperta meu braço.

— Você não sabe. Você não pode, até que você tente.

— Isso não é um filme, Libby — eu digo. — O amor não é suficiente para mudar

os detalhes da vida de uma pessoa, ou… ou suas necessidades. Não faz tudo se

encaixar. Não quero desistir de tudo.

Eu não posso me permitir fazer isso.

Ainda não há final feliz para uma mulher que quer tudo, do tipo que fica acordada

doendo de fome furiosa, ambição não gasta fazendo seus ossos chacoalharem em

seu corpo.

Meu aconchegante apartamento em West Village com suas enormes janelas. O

café da esquina que conhece meu pedido. Todas as quatro estações no shopping

Central Park.

O trabalho na Loggia, eu acho, a imagem de seus escritórios brancos e pisos de

madeira de balsa brilhando em minha mente.


Saber que minha irmã está bem. Acordar todas as noites acreditando em meu

âmago que estou segura. Que nada pode me pegar.

Como um sentimento vasto e incontrolável como o amor se encaixa nisso?

É uma engrenagem solta em uma máquina delicada.

Quando olho de volta para Libby, seus lábios estão separados, suas sobrancelhas

unidas.

— Amor? — Ela repete a palavra em voz baixa.

Olho de volta para o chalé, brilhando ao sol, cercado por borboletas que giram

preguiçosamente.

— Hipoteticamente. — Eu minto para minha irmã. Ela me deixa.

No início da tarde, Bea e Tala sobem a encosta, Bea de babado rosa e Tala de

macacão azul-marinho. Meu coração dispara, e para surpresa de ninguém, as

lágrimas correm pelos os olhos de Libby enquanto eu a ajudo a sair do cobertor. Elas

gritam mamãe em suas vozes incrivelmente altas e se jogam em suas pernas, onde

ela salpica seus cabelos emaranhados com beijos.

— Eu senti tanto falta de vocês, tanto, tanto — ela diz a elas. Tala parece malhumorada

e ressentida enquanto envolve os braços em volta da perna de Libby, e

Bea, é claro, imediatamente começa a chorar como se estivesse precisando muito de

um cochilo, e então Brendan vem bufando atrás delas, parecendo cerca de vinte e

três vezes mais cansado do que Charlie Lastra já esteve.

Quando os olhos dele e de Libby se cruzam, seus sorrisos são calmos. Não muito

felizes, mas aliviados: como se tivessem voltado para a correnteza e não precisassem

trabalhar tanto.

As últimas gotas de ansiedade que eu estava carregando se dissipam em um

instante. Essas duas pessoas se amam. O que quer que eu pensei que estava

acontecendo entre eles, eles estão bem.

Eles pertencem um ao outro, de alguma forma misteriosa, e ambos parecem saber

disso.

Enquanto Libby termina sua penitência com as meninas, Brendan me puxa para

um de seus famosos abraços laterais desajeitados e dolorosamente sinceros.

— Bom vôo? — Eu pergunto.

— Houve algumas lágrimas — diz ele com cautela.

— Ah, eles estavam passando Mamma Mia! no avião de novo? — Eu digo. — Você

sabe que não pode lidar com nada da Meryl nessa altitude.

Nesse momento, as garotas se afastam de Libby e me atacam, gritando, não

exatamente em uníssono:

— Nono!

— Minhas garotas favoritas no mundo inteiro! — Eu digo, pegando-as.

Tala grita:

— Nós voamos de avião!

— Sério? — Eu a coloco no meu quadril e aperto a mão de Bea. — Quem dirigiu?

Você ou a Bea?


Bia ri. É, muito provavelmente, o som que a terra fez na primeira vez que viu o

sol nascer.

— Nããão. — Tala balança a cabeça, irritada com minha incompetência.

Honestamente, quando ela está mal-humorada, é a coisa mais fofa do mundo. Que

todos os nossos humores azedos sejam tão adoráveis.

Eu as guio pela grama, longe de Libby e Brendan para que eles possam ter um

segundo a sós. Brendan parece que ele poderia usar alguns anos em uma câmara

criogênica, enquanto Libby está agarrando sua bunda como se isso não fosse o que

ela precisa.

— Ei. Eu esqueci —eu digo, levando as meninas em direção às flores aninhadas

ao redor da passarela. — O que vocês acham de borboletas?

Elas têm muitos pensamentos e com certeza gritarão todos eles.


LIBBY ESCOLHEU UM LOCAL para jantar no centro de Asheville, um restaurante

cubano chique com um pátio na cobertura. A tempestade de ontem deixou o ar

fresco e arejado, um grande alívio depois das últimas três semanas suadas.

A cidade está iluminada abaixo de nós, a meio caminho entre a pitoresca vila e a

agitada metrópole, e a comida é divina. Brendan e eu dividimos uma garrafa de vinho

e Libby ainda toma alguns goles, gemendo enquanto os agita em sua boca.

— Parece que estamos em Nova York, não é? — ela diz, olhos enevoados. — Se

você fechar os olhos, apenas os sons de todas essas pessoas e essa sensação no ar.

A boca de Brendan se contorce como se ele estivesse pensando em discordar

dela, mas eu apenas aceno com a cabeça. Não parece Nova York, mas com todos nós

juntos, quase parece em casa.

Sinto uma improvável onda de nostalgia ao pensar em subir ou descer as escadas

até uma plataforma de trem, ouvir aquele guincho metálico, sentir o vento soprar

pela escada e não saber se cheguei a tempo ou se meu trem passou gritando.

Qual é a coisa mais estranha que você sente falta da cidade? Eu mando uma

mensagem para Charlie.

Ele responde: Costumava ter acesso a um Dunkin' Donuts dentro de três

quarteirões o tempo todo.

Eu sorrio para o meu telefone. A proporção de DD por pessoa deve ser de um para

cinco. O quê mais?

Sinto falta de Eataly 9 , ele diz, mas não chamaria isso de estranho.

Se você não sentisse falta de Eataly, nunca mais poderíamos nos falar. Porque você

estaria na prisão, onde você pertenceria.

Aliviado por ter me esquivado dessa bala, ele diz. Também não é estranho, mas

penso muito no primeiro dia da primavera que é meio quente. Como todos saem de

uma vez, e parece que estamos quase bêbados do sol. Pessoas no parque de shorts e

tops de biquíni, comendo picolés, embora esteja uns dez graus lá fora.

Charlie, eu respondo. Essas coisas são todas objetivamente incríveis.

Ele demora um pouco em sua próxima resposta. Bandas de mariachi de manhã

cedo, ele diz, ou cantores de ópera, ou qualquer grupo de canto realmente. Eu sei que

9

Eataly é o nome de uma rede de restaurantes de comida italiana.


não é uma postura popular, mas eu adoro quando estou quase dormindo no trem, e de

repente cinco caras estão cantando com seus corações.

Adoro ver as reações de todos. Há sempre algumas pessoas que estão sentindo isso,

e algumas que parecem estar planejando um assassinato, e outras que fingem que não

está acontecendo. Sempre dou gorjeta porque não quero viver em um mundo onde

ninguém está fazendo isso.

Não consigo pensar em um símbolo maior de esperança do que uma pessoa que está

disposta a se arrastar para fora da cama e cantar a plenos pulmões para um grupo de

estranhos presos em um trem. Essa tenacidade deve ser recompensada.

Eu amo, eu escrevo, seu cérebro de pesadelo.

E aqui eu pensei que você estava me usando pelo meu corpo de pesadelo.

E então, um minuto depois, eu também amo seu cérebro. E seu corpo. Tudo isso.

Passei dez anos guiando minha vida para longe desse sentimento, desse desejo

terrível. Bastou três semanas e uma mulher fictícia chamada Nadine Winters para

me puxar de volta.

— Não faça planos para amanhã à tarde — diz Libby, chutando minha sandália

por baixo da mesa. — Tenho uma surpresa para você.

Brendan está olhando para a mesa, quase com culpa. Ou ele não está convencido

de que eu vou gostar da minha “surpresa”, ou Libby o ameaçou de assassinato se ele

der com os dentes.

— Brendan — eu digo, pescando — diga à sua esposa que ela não pode pular de

paraquedas enquanto estiver grávida.

Ele ri e levanta as mãos, mas ainda evita meu olhar.

— Nunca diga a uma Stephens o que ela pode e não pode fazer.

O trabalho de edição na Loggia flutua em minha mente, e a voz de Charlie

dizendo: Se eu tivesse que escolher uma pessoa para ficar no meu lugar, seria você.

Toda vez.

Mais uma vez, Libby me faz amarrar um lenço de seda sobre os olhos durante

toda a nossa viagem de táxi, conduzida, infelizmente, por Hardy, mas felizmente

dura apenas cinco minutos, e então Libby me arranca do carro, cantando

— Chegaaaaamos!

— Excursão não oficial de Once? — Eu acho.

— Não! — Hardy diz, rindo. — Embora vocês realmente tenham que fazer uma!

Vocês estão perdendo.

— Funeral para o cachorro fictício do Velho Whittaker — chuto a seguir.

Libby fecha a porta do carro atrás de mim.

— Frio.

— Funeral para a iguana que interpretou o cachorro fictício do Velho Whittaker

na peça de teatro da comunidade? — Eu ouço por pistas sobre a nossa localização,

mas o único som é a brisa através de algumas árvores, o que poderia nos colocar

aproximadamente… em qualquer lugar.


— Há duas escadas, ok? — Ela me empurra para frente. — Agora em frente, há

uma pequena saliência.

Estico o pé, tateando o espaço até encontrá-la. Uma rajada de ar frio me atinge, e

meus sapatos estalam no chão de madeira enquanto damos mais alguns passos.

— Agora. — Libby para. — Que rufem os tambores.

Eu bato minhas palmas nas minhas coxas enquanto ela desamarra o lenço e o

puxa.

Estamos em uma sala vazia. Uma com piso de madeira escura e paredes brancas

de shiplap. Uma grande janela dá vista para uma moita de pinheiros azulesverdeados,

e Libby entra na frente dela, vibrando com energia ansiosa apesar de

seu sorriso.

— Imagine uma enorme mesa de madeira bem aqui — diz ela. — E alguma planta

de vime sob esta janela. E um lustre escandinavo. Algo elegante e moderno, sabe?

— Okayyyy — eu digo, seguindo-a para a próxima sala.

— Um sofá de veludo azul escuro — ela diz — e, tipo, uma pequena barraca de

lona em um canto para as meninas. Algo que podemos montar, colocar algumas luzes

dentro.

Ela me conduz por um corredor estreito e então eu a sigo por outra porta

enquanto ela acende as luzes para revelar um banheiro amarelo-manteiga: azulejo

amarelo dos anos 50, papel de parede amarelo, banheira amarela, pia amarela.

— Esse… precisa de algum trabalho — diz ela. — Mas veja como é enorme! Quero

dizer, há uma banheira, e há um outro banheiro com um chuveiro enorme. Aquele já

foi reformado.

Ela olha para mim em busca de algum tipo de confirmação de que estou ouvindo.

E estou, mas há um zumbido surdo subindo em meu crânio, como uma horda de

abelhas cada vez mais agitadas pela estranha sensação de erro subindo pela minha

espinha.

— Há uma suíte. Três banhos inteiros, você pode imaginar? — Ela gesticula em

direção a uma mancha de batom no tapete, ao lado de uma mancha do tamanho de

um bule de café. — Ignore isso. Já verifiquei e tem madeira embaixo. Provavelmente

haverá algum dano com os derramamentos, mas sempre adorei um bom tapete.

Ela para no meio da sala e mantém os braços erguidos ao lado do corpo.

— O que você acha?

— Sobre você amar tapetes?

Seu sorriso vacila.

— Sobre a casa.

O sangue correndo pelos meus tímpanos escurece minha voz.

— Esta casa? No meio de Sunshine Falls?

Seu sorriso encolhe.

O zumbido aumenta. Soa como Não, como um milhão de Noras em miniatura

cantarolando, Isso não está acontecendo. Isso não pode estar acontecendo. Você

entendeu errado.

As mãos de Libby embalam seu estômago, suas linhas de expressão se firmando

entre suas sobrancelhas.


— Você não acreditaria como é barato.

Tenho certeza que não. Eu provavelmente cairia morta, e então meu fantasma

assombraria este lugar, e toda noite quando eu me levantasse das tábuas do chão,

eu assustaria os donos perguntando: Agora, quantos armários você disse tem?

Mas não vejo como isso é importante.

Eu balanço minha cabeça.

— Lib, você não poderia viver em um lugar assim.

Seu rosto fica frouxo.

— Eu não poderia?

— Sua vida é em Nova York — eu digo. — O trabalho de Brendan é em Nova York.

A escola das meninas, nossos restaurantes favoritos, nossos parques favoritos.

Eu.

Mamãe.

Cada pedacinho dela. Cada memória. Cada lugar onde ela estava, em alguma outra

vida, uma década atrás. Cada janela que olhávamos, nossas mãos enluvadas juntas,

nós três em fila enquanto observávamos o arco do trenó animatrônico do Papai Noel

sobre um horizonte em miniatura de Manhattan.

Cada passo na ponte do Brooklyn no primeiro dia da primavera ou no último do

verão.

Freeman Books, The Strand, Books Are Magic, McNally Jackson, a Barnes & Noble

da quinta avenida.

— Você adorou aqui — Libby soa incerta, jovem.

Todas aquelas veias de gelo segurando meu coração partido descongelam muito

rápido, pedaços quebrados deslizando como geleiras derretendo, deixando

manchas expostas.

— Foi uma ótima pausa, mas Libby, em uma semana, quero ir para casa.

Ela se afasta. Pouco antes de ela falar, sinto uma pulsação no estômago, um aviso,

uma mudança na pressão barométrica. O zumbido cai.

Sua voz é clara.

— Brendan conseguiu um novo emprego. Em Asheville.

Senti algo vindo, mas isso não me preparou para essa falta de peso, a sensação de

cair de uma grande altura, batendo em cada degrau na descida.

Libby está olhando para mim de novo, esperando.

Eu não sei para quê. Eu não sei o que dizer.

Qual é o curso de ação correto quando o planeta foi empurrado para fora de seu

eixo?

Eu não tenho nenhum plano, nenhuma lista de verificação de conserto. Estou em

uma casa vazia, vendo o mundo se desenrolar.

— É sobre isso que Brendan ficou checando — eu sussurro, o rugido de sangue

em meus ouvidos começando de novo. — Ele estava esperando você me dizer.

Os músculos da mandíbula de Libby flexionam, uma admissão de culpa.

— A lista — eu sufoco. — Esta viagem. Era disso que se tratava? Você está indo

embora e todo esse jogo elaborado de O Mestre Mandou foi a porra de um adeus?

— Não é assim — ela murmura.


— E a advogada? — Eu digo. — Como ela se encaixa nisso?

— O quê?

O mundo oscila.

— A advogada de divórcio, aquela que a Sally conseguiu o número para você.

A compreensão surge em seu rosto.

— Uma amiga dela — ela diz debilmente — que sabia sobre uma boa pré-escola

aqui.

Eu pressiono minhas mãos para os lados da minha cabeça.

Eles estão procurando por escolas.

Eles estão procurando por casas.

— Há quanto tempo você sabe? — Eu pergunto.

— Aconteceu rápido — diz ela.

— Quanto tempo, Libby?

A respiração sai entre seus lábios.

— Desde alguns dias antes de fazermos os planos de vir para cá.

— E não há como escapar disso? — Eu esfrego minha testa. — Quero dizer, se é

dinheiro...

— Eu não quero escapar disso, Nora. — Ela cruza os braços sobre o peito. —

Tomei essa decisão.

— Mas você acabou de dizer que aconteceu rápido. Você não teve tempo para

pensar sobre isso.

— Assim que decidimos que Brendan se candidataria ao emprego, parecia certo

— diz ela. — Estamos cansados de ficar um em cima do outro. Estamos cansados de

compartilhar um banheiro, estamos cansados de estar cansados. Queremos

espalhar. Queremos que nossos filhos possam brincar na floresta!

— Porque a doença de Lyme é muito divertida, não é? — Eu exijo.

— Quero saber que, se algo der errado, não ficaremos presos em uma ilha com

milhões de outras pessoas, todas tentando fugir.

— Eu estou naquela ilha, Libby!

Seu rosto fica branco, sua voz embargada.

— Eu sei disso.

— Nova York é nossa casa. Esses milhões de outras pessoas são... são nossa

família. E os museus, as galerias e o High Line, patinando no Rockefeller Center, os

shows da Broadway? Você está bem apenas desistindo de tudo isso?

Desistindo de mim.

— Não é assim, Nora — ela diz. — Nós apenas começamos a olhar por casas e

tudo se encaixou...

— Puta merda. — Eu me afasto, tonta. Meus braços estão pesados e dormentes,

mas meu coração está batendo como uma bola de boliche em uma montanha-russa.

— Você já comprou esta casa?

Ela não responde.

Eu giro de volta.

— Libby, você comprou uma casa sem nem me dizer?

Ela diz suavemente


— Nós não fechamos a compra até o final da semana.

Eu dou um passo para trás, engolindo, como se eu pudesse forçar tudo o que já

foi dito de volta para baixo, inverter o tempo.

— Eu tenho que ir.

— Para onde? — ela exige.

— Não sei. — Eu balanço minha cabeça. — Qualquer outro lugar.

Reconheço esta rua: uma fileira de fazendas estilo anos cinqüenta com jardins

bem cuidados, montanhas cobertas de pinheiros que se projetam em suas costas.

O sol está derretendo no horizonte como sorvete de pêssego, e o cheiro de rosas

flutua na brisa. Alguns metros adiante, meia dúzia de crianças correm, gritando e

rindo, através de um aspersor.

É lindo.

Eu quero estar em qualquer outro lugar.

Libby não me segue. Eu não esperava que ela fizesse isso.

Em trinta anos, eu nunca me afastei de uma briga com ela – ela foi a pessoa que

eu tive que perseguir, quando as coisas estavam ruins na escola ou ela passava por

um rompimento particularmente difícil naqueles escuros e intermináveis anos

depois que perdemos a mamãe.

Sou eu quem sigo.

Eu só nunca pensei que teria que segui-la tão longe, ou perdê-la completamente.

Está acontecendo de novo. O ardor no meu nariz, os espasmos no meu peito.

Minha visão fica embaçada até os arbustos de flores ficarem turvos e o riso das

crianças gorjear.

Sigo em direção a casa.

Não para casa, eu penso.

Meu próximo pensamento é muito pior: Que casa?

Isso reverbera através de mim, bolas de pânico ondulando para fora. Casa sempre

foi mamãe, Libby e eu.

Casa são toalhas listradas de azul e branco na areia quente de Coney Island. É o

bar de tequila onde levei Libby depois das provas, para dançar a noite toda. Café e

croissants no Prospect Park.

É adormecer no trem, apesar da banda de mariachis tocando a três metros de

distância, Charlie Lastra vasculhando sua carteira do outro lado do vagão.

Só que não é mais isso. Porque sem mamãe e Libby, não há lar.

Então eu não estou correndo em direção a nada. Apenas longe.

Até eu ver Goode Books no final do quarteirão, luzes brilhando contra o céu roxo

machucado.

Os sinos tocam quando entro, e Charlie ergue os olhos dos BEST-SELLERS LOCAIS,

sua surpresa se transformando em preocupação.

— Eu sei que você está trabalhando. — Minha voz sai estrangulada. — Eu só

queria estar em algum lugar…

Seguro?


Familiar?

Confortável?

— Perto de você.

Ele me alcança em duas passadas.

— O que aconteceu?

Eu tento responder. Parece que uma linha de pesca está enrolada nas minhas vias

aéreas.

Charlie me puxa em seu peito, os braços enrolando em volta de mim.

— Libby está se mudando. — Eu tenho que sussurrar para conseguir as palavras.

— Ela está se mudando para cá. Era disso que se tratava. — O resto simplesmente

sai — Vou ficar sozinha.

— Você não está sozinha. — Ele recua, tocando meu queixo, seus olhos quase

cruéis em sua intensidade. — Você não está, e você não vai ficar.

Libby. Bea. Tala. Brendan.

Isso me tira o fôlego.

Natais.

Anos novos.

Excursões ao museu de história natural.

Sentar na frente de um enorme Jackson Pollock no Met, pedindo às garotas que,

por favor, nos tornem ricos além de nossos sonhos mais loucos com suas pinturas a

dedo.

Rindo de algum acaso até que o chantilly saia de nossos narizes. Todas as

memórias, e todos aqueles momentos futuros, todos juntos, com a memória da

mamãe pairando perto.

Está escorregando.

O ardor no meu nariz. O peso no meu peito. A pressão atrás dos meus olhos.

Charlie me puxa de volta para o escritório.

— Estou aqui, Nora — ele promete baixinho. — Estou aqui, ok?

É como se uma barragem tivesse rompido. Eu ouço o som estrangulado na minha

garganta e meus ombros começam a tremer, e então estou chorando.

Maremotos me atingindo, cada palavra obliterada sob uma corrente tão poderosa

que não há como lutar.

Eu sou arrastada para baixo.

— Está tudo bem — ele sussurra, me balançando para frente e para trás. — Você

não está sozinha — ele promete, e por baixo eu ouço o não dito: estou aqui.

Por enquanto, eu acho.

Porque nada, nem o belo e nem o terrível, dura.


AGORA EU ENTENDO POR QUE não chorei por todos esses anos. Eu quero que

isso pare. Quero a dor reprimida, dividida em bolsos gerenciáveis.

Todo esse tempo eu pensei que ser vista como monstruosa era a pior coisa que

poderia acontecer comigo.

Agora percebo que prefiro ser frígida ao que realmente sou, no fundo, a cada

segundo de cada dia: fraca, indefesa, com medo para caralho de que tudo fosse

desmoronar.

Medo de perder tudo. Com medo de chorar. Que uma vez que eu comece, nunca

serei capaz de parar, e tudo o que construí vai desmoronar sob o peso de minhas

emoções incontroláveis.

E por muito tempo, eu não paro.

Eu choro até minha garganta doer. Até meus olhos doerem. Até que não haja mais

lágrimas e meu choro se transforme em soluços.

Até que eu esteja entorpecida e exausta. A essa altura, o escritório já estava

escuro, exceto pelo velho abajur estilo banqueiro sobre a mesa.

Quando eu fecho meus olhos, o rugido em meus ouvidos se desvaneceu, deixando

para trás a batida constante do coração de Charlie.

— Ela está indo embora — eu sussurro, testando, praticando a aceitação como

verdade.

— Ela disse por quê? — ele pergunta.

Eu dou de ombros em seus braços.

— Todas as razões normais pelas quais as pessoas vão embora. Eu só... eu sempre

pensei…

Seu polegar prende meu queixo novamente e ele inclina meus olhos para os dele.

— Todos os meus ex, todos os meus amigos, metade das pessoas com quem

trabalho — digo. — Todos eles seguiram em frente. E todas as vezes, estava tudo

bem, porque eu amo a cidade, e meu trabalho, e porque eu tinha Libby. — Minha voz

vacila. — E agora ela está seguindo em frente também.

Quando mamãe morreu e perdemos o apartamento, foi como se toda a nossa

história tivesse sido engolida. A cidade e uma a outra, isso é tudo que Libby e eu

temos dela.

Charlie dá um aceno firme de cabeça.

— Ela é sua irmã, Nora. Ela nunca vai te deixar para trás.

Afinal, não estou sem lágrimas: meus olhos inundam novamente.


Suas mãos correm sobre meus ombros, apertando minha nuca.

— Não é você que ela não quer mais você, Nora.

— É sim — eu digo. — Sou eu, é a nossa vida. É tudo que eu tentei construir para

ela. Não foi o suficiente.

— Olha — ele diz — sempre que estou aqui, parece que as paredes estão se

fechando sobre mim. Eu amo minha família, eu amo. Mas passei quinze anos

voltando para casa o mais raramente possível porque é muito solitário sentir que

você não se encaixa em algum lugar. Eu nunca quis administrar esta loja. Eu nunca

quis esta cidade. E sempre que estou aqui é tudo em que penso. Eu fico

claustrofóbico para caralho com tudo isso.

“Não deles. Mas de sentir que não sei como ser eu mesmo aqui. De... entrar na

minha cabeça sobre quem eu deveria ser, ou todas as maneiras que eu não me tornei

como eles queriam que eu fosse. E então você apareceu.”

Seus olhos brilham, lanternas correndo sobre a escuridão, procurando.

— E eu finalmente pude respirar.

Sua voz treme, patina pela minha espinha dorsal, e meu coração salta como se

estivesse dentro de uma gaiola de bingo.

— Não há nada de errado com você. Eu não mudaria nada. — É quase um

sussurro, e depois de uma pausa, ele diz: — Você nunca precisou. Não para seus exnamorados

e não para Blake Carlisle, e definitivamente não para sua irmã, que te

ama mais do que qualquer coisa.

Lágrimas frescas ardem em meus olhos. Ele apenas sorri.

— Eu honestamente acho que você é perfeita, Nora.

— Mesmo que eu seja muito alta — eu sussurro em lágrimas. — E que eu durmo

com o volume do meu telefone no máximo?

— Acredite ou não — ele murmura — Eu não quis dizer perfeita para Blake

Carlisle. Eu quis dizer, para mim, você é perfeita.

Parece que uma maquinaria pesada está escavando meu peito. Eu aperto minhas

mãos em sua camisa e sussurro:

— Você acabou de citar Simplesmente Amor?

— Não intencionalmente.

— Você também é, sabe. — Penso no meu apartamento dos sonhos, o sol

brilhando na poltrona sob a janela, a brisa de verão flutuando com o cheiro de pão

assando. Penso em descer do trem, pegajosa com o calor, livros de bolso e toalhas

enfiados em uma sacola, ou manuscritos recém-impressos e canetas Pilot G2s

novinhas em folha.

Minha cidade. Minha irmã. O trabalho dos meus sonhos. Charlie. Tudo isso,

exatamente certo. A vida que eu construiria se fosse possível ter tudo.

— Exatamente certo — eu digo a ele. — Perfeito.

Seus olhos estão escuros, brilhando enquanto ele me estuda.

Meu coração parece um ovo quebrado, nada para protegê-lo ou mantê-lo no

lugar.

— Eu poderia ficar.

Ele desvia o olhar.


— Nora — ele diz baixinho, se desculpando.

Assim, as lágrimas estão de volta. Charlie afasta o cabelo da minha bochecha

úmida.

— Você não pode tomar essa decisão por mim, ou por Libby — ele diz, a voz

grossa e chocalhante.

— Por que não?

— Porque — ele diz — você passou sua vida certificando-se de que ela tem tudo

o que ela precisa, e é hora de alguém ter certeza de que você tem. Você quer aquele

emprego na Loggia. E você ama a cidade. E se precisar economizar, fique com meu

apartamento. Provavelmente é metade do preço do seu. Se é isso que você quer, é

isso que você deve ter. Nada menos.

Eu tento piscar as lágrimas de volta, em vez disso, soltando-as pelo meu rosto.

— Você deveria ter tudo — diz ele novamente.

— E se não for possível?

Ele levanta minha mandíbula, sussurra quase contra meus lábios.

— Se alguém pode negociar um final feliz, é Nora Stephens.

Apesar, ou talvez por causa, da sensação do meu peito rachando ao meio, eu

sussurro de volta:

— Acho que um desses custa apenas quarenta dólares no Spaaaahhh.

Ele ri, beija o canto da minha boca.

— Esse cérebro.

Nenhum de nós sai da loja naquela noite. Não quero deixá-lo, e não quero que ele

se sinta sozinho no escuro e no silêncio. Mesmo que não possa durar, mesmo que

seja apenas por esta noite, quero que ele saiba que eu o tenho, do jeito que ele me

teve. O jeito que ele me tem.

Pela primeira vez, durmo como uma rocha.

De manhã, acordo e reconstruo a noite. A briga, encontrando Charlie na livraria,

caindo nos braços do outro novamente.

Depois, conversamos por horas. Livros, comida, família. Contei a ele como o nariz

da mamãe costumava enrugar como o de Libby quando ela ria. Como elas usavam o

mesmo perfume, mas cheirava diferente em Libby do que nela.

Conto a ele sobre a rotina de aniversário da mamãe. Como todo dia doze de

dezembro, ao meio-dia, íamos à Freeman Books e folheávamos livros por horas, até

que ela escolhesse um livro perfeito para comprar pelo preço integral.

— Libby e eu ainda vamos — eu disse. — Ou costumávamos. Todo dia doze de

dezembro, ao meio-dia- doze, doze, doze horas. Mamãe costumava fazer um grande

negócio com isso.

— Doze é um grande número — disse Charlie. — Qualquer outro número pode

ir para o inferno.

— Obrigada — eu concordei.

Em algum momento, nós adormecemos, e eu acordo agora com a percepção de

que, em nosso sono, começamos a nos mover juntos novamente. Eu o beijo para


acordar, e em uma névoa inebriante, nós cedemos um ao outro, o tempo parando, o

mundo escurecendo ao nosso redor.

Depois, deito minha cabeça em seu peito e escuto seu sangue se mover em suas

veias, a corrente de Charlie, enquanto ele brinca com meu cabelo. Sua voz é grossa e

áspera quando ele diz:

— Talvez possamos dar um jeito.

Como se fosse uma resposta a uma pergunta, como se a conversa nunca parasse.

A noite toda, a manhã toda, cada toque e beijo, tudo era um vai-e-vem, um empurrão

e um puxão, uma negociação ou uma revisão. Como se tudo estivesse entre nós.

Talvez isso possa funcionar.

— Talvez — eu sussurro em concordância. Não estamos olhando nos rostos um

do outro, e não posso deixar de pensar que é proposital: como se, caso olhássemos,

não poderíamos fingir mais e não estamos prontos para desistir do jogo.

Charlie enfia os dedos nos meus e leva as costas da minha mão aos lábios.

— Seja como for — diz ele — duvido que algum dia vou gostar de qualquer

pessoa no mundo tanto quanto gosto de você.

Deslizo meus braços ao redor de seu pescoço e subo em seu colo, beijando suas

têmporas, sua mandíbula, sua boca. Amor, eu penso, um tremor em minhas mãos

enquanto elas se movem em seu cabelo, enquanto ele me beija.

A dor da última página.

A respiração profunda depois de deixar o livro de lado.

Quando ele me leva até a porta algum tempo depois, ele pega meu rosto entre as

mãos e diz:

— Você, Nora Stephens, sempre ficará bem.


LIBBY ESTÁ SENTADA NOS DEGRAUS DA FRENTE, embrulhada em uma das

velhas camisetas de Brendan, duas xícaras de café fumegando no degrau ao lado

dela.

Nenhuma de nós fala enquanto eu me aproximo, mas posso dizer que ela passou

a noite chorando, e duvido que eu pareça melhor.

Ela estende uma caneca.

— Deve estar frio agora.

Eu a pego e, depois de outro segundo tenso, eu sento no degrau, o orvalho

pingando em meu jeans.

— Devo ir primeiro? — ela pergunta.

Eu dou de ombros. Nunca estivemos tão zangadas uma com a outra, não sei o que

vem a seguir.

— Desculpe por não ter contado antes — ela diz, como se estivesse tentando

enfiar as palavras por uma porta muito estreita.

Todo o caminho até aqui, eu me perguntei se confrontá-la me daria algum senso

de controle. Mas não há nenhum resultado para forçar nada aqui. O que eu quero é

escorregadio, inalcançável: aqueles dias em que não havia nada entre nós, quando

pertencíamos mais uma a outra do que a qualquer outro lugar. Quando parecia que

eu pertencia.

— Quando começamos a esconder as coisas uma da outra?

Ela parece surpresa e magoada, quase impossivelmente pequena.

— Você sempre escondeu coisas de mim, Nora — diz ela. — E eu sei que você

estava tentando me proteger, mas ainda conta quando você finge que as coisas estão

bem e não estão. Ou quando você tenta consertar as coisas sem que eu saiba.

— Então é isso que você está fazendo? — Eu pergunto. — Você manteve o fato de

que estava se afastando de mim para que... o quê? Não doer até o último segundo

possível?

— Não era isso que eu estava fazendo. — Novas lágrimas brotam em seus olhos.

Ela enterra seus punhos contra eles, os ombros se contraindo.

— Me desculpa — Eu toco seu braço. — Não estou tentando ser má.

Ela olha para cima, enxugando as lágrimas.

— Eu estava tentando — ela diz, com uma respiração trêmula — conquistar você.


— Libby, em que universo você precisa me conquistar? Sinto muito por fazer você

se sentir incapaz. Eu estava tentando ajudar, mas nunca pensei que você precisasse

ser consertada. Nunca.

— Isso não é o que quero dizer — diz ela. — Eu queria te conquistar…

Ela acena para o prado e as passarelas salpicadas de sol, os arbustos floridos

balançando com a brisa e a densa floresta de pinheiros cobrindo as colinas

ondulantes.

E então o resto clica. A lista não era sobre Libby testando coisas em sua nova vida,

e não era sobre dizer um adeus espetacular ou fazer um último esforço para me

salvar de uma vida de dormir sozinha com meu laptop.

Era um discurso de vendas.

— Brendan queria que eu lhe dissesse imediatamente — ela continua. — Mas eu

pensei que talvez, se você viesse aqui, se você visse como poderia ser… Eu queria que

você viesse conosco. — Sua voz falha. — E eu pensei que se você percebesse o que a

vida poderia ser aqui, talvez até conhecesse alguém, você iria querer isso também.

Mas então você começou a passar um tempo com Charlie e... Deus, faz tanto tempo

que não a vejo assim, Nora. Eu ia deixar tudo passar, mas então você disse que ele ia

ficar… e parecia… que você poderia querer isso também. Como se eu pudesse ter

tudo isso... e você.

Eu me sinto tão vazia, torcida, como se estivesse procurando por água por

semanas apenas para perceber que o rio era uma miragem.

Esta é Libby, que nunca pediu nada até um mês atrás, admitindo o que ela

realmente quer.

Que eu a siga.

E eu quero dar a ela o que ela quer. Eu sempre quero que ela tenha tudo o que ela

quer.

Todos os compartimentos organizados em minha mente desabaram ontem à

noite e, pela primeira vez, vejo tudo claramente. Não a versão organizada e

controlada das coisas, mas a bagunça disso, quando tudo se solta.

Libby e eu fomos pegas em uma lenta fervura de mudanças por um longo tempo,

um caminho se dividindo em dois. Não há menos espaço no meu coração para ela do

que no dia em que ela veio gritando ao mundo.

Mas há menos tempo. Menos espaço em nossas vidas diárias. Outras pessoas.

Outras prioridades. Somos um diagrama de Venn agora, em vez de um círculo. Posso

ter tomado todas as minhas decisões por ela, mas agora que estou aqui, amo minha

vida.

— Fui convidada a me candidatar a outro trabalho de edição — eu digo.

Libby pisca rapidamente, lágrimas grudadas em seus brilhantes olhos azuis.

— O-o quê?

Olho para a linha das árvores além do prado.

— O trabalho do Charlie na Loggia — eu digo. — Eles querem alguém local, e ele

vai ficar aqui. Então ele mencionou isso para a editora de Dusty. Eu estaria

assumindo parte da lista dele e então começaria a adquirir a minha também.

— É o seu sonho — diz Libby sem fôlego.


Algo sobre essa palavra dispara fogos de artifício pelo meu corpo.

— Eu… — Nada mais sai.

Ela pega minhas mãos, apertando-as com força, sua voz falhando

— Você tem que fazer isso.

Meu peito dói enquanto a estudo, o único rosto que conheço melhor que o meu.

— Você precisa — diz ela entre lágrimas. — É o que você quer. É o que você

sempre quis e... não adie de novo, Nora. É o seu sonho.

— Não é algo que eu… — Eu aceno minha mão em uma espiral vaga.

— Tenha feito antes? — ela diz.

— E se não der certo…

— Você consegue — ela me diz. — Você consegue, Nora. E se você falhar, quem

se importa?

— Bem — eu digo. — Eu.

Seus braços enrolam em volta do meu pescoço. Ela treme com algo a meio

caminho entre mais soluços e risadinhas.

— Você vai ter o melhor quarto de hóspedes do mundo aqui — ela chora. — E se

tudo der errado lá, você vai ficar com a gente. Eu cuido de você, ok? Vou cuidar de

você como você sempre, sempre cuidou de mim, Nora.

Eu quero dizer a ela como essas últimas três semanas foram perfeitas.

Eu quero dizer a ela que este é o mais feliz que eu me lembro de estar em tanto

tempo, e também é a pior dor que eu já senti.

Porque todas essas lacunas entre nós finalmente se foram, mas o impacto da

colisão sacudiu todos os últimos resquícios de gelo soltos, deixando nada além de

uma sensibilidade macia e polpuda.

Então tudo o que posso fazer é chorar com ela.

De alguma forma, nunca me ocorreu que isso fosse uma opção: que duas pessoas,

no mesmo abraço, pudessem se separar. Que talvez não seja nosso trabalho manter

uma coluna de aço.

Que nós duas podemos sobreviver a essa dor sem que a outra a carregue.

— Eu não sei como ficar sem você, Nora — Libby guincha. — Nunca pensei que

ficaria. E eu sei que isso é certo para mim e Brendan, mas... porra, eu pensei que você

e eu sempre estaríamos juntas. Como é possível que duas pessoas que pertencem

juntas pertençam a dois lugares diferentes?

— Talvez eu nem consiga o emprego — digo.

— Não — Libby responde com força. — Não tente consertar. Não me escolha em

vez de você, ok? Fazemos isso há anos, e quase nos quebrou. É hora de sermos

apenas irmãs, Nora. Não conserte. Apenas fique aqui comigo e diga que isso é uma

merda.

— Isso é. — Eu aperto meus olhos com força. — É uma merda pra caralho.

Eu não conhecia o poder daquelas palavras. Eles não consertam nada, não fazem

nada, mas apenas dizê-las é como fincar uma estaca no chão, nos prendendo juntas

pelo menos por este momento.

É uma merda, e não posso mudar isso, mas estou aqui, com minha irmã, e de

alguma forma vamos superar isso.


Você pode levar a pessoa da cidade para fora da cidade, mas a cidade sempre

estará nela. Acho que é o mesmo para as irmãs. Em qualquer lugar que formos, não

nos deixaremos. Não poderíamos nem se quiséssemos. E nós não queremos. Nós

nunca vamos.

Brendan encontra o inspetor da casa na casa, mas Libby e as meninas ficam

comigo, dando a ele um sossego muito necessário depois de suas semanas como pai

solo.

Eles não estão se mudando completamente até novembro, um mês antes da data

de chegada do Número Três. Até lá, Brendan vai ir e voltar, preparando a casa.

Dois meses e meio. Esse é o tempo que nos resta juntas, e vai contar.

Passamos a manhã vagando pela floresta, tentando manter as garotas na trilha e

pesquisando “como é a hera venenosa” a cada 45 segundos, nunca chegando mais

perto de uma resposta concreta.

Nós as levamos até a cerca, e os cavalos se aproximam ansiosos para serem

acariciados, apesar da nossa falta de isca.

— Acho que sabemos onde você e eu estamos — Libby brinca enquanto os

dedinhos das meninas deslizam pelo focinho rosa de uma égua castanha.

Depois, levamos os baldes de lata do armário do chalé para o matagal de amoras

na beira do prado e colhemos e comemos frutas gordas até nossos dedos e lábios

ficarem manchados de roxo e nossos ombros queimados de sol.

Quando chegamos em casa, com os joelhos manchados de sujeira, Tala está

totalmente adormecida em meus braços, pegajosa e quente, e nós a colocamos no

sofá para continuar cochilando. Bea nos leva para a cozinha para explicar a arte de

assar uma crosta de torta para as amoras, ela e Brendan assistiram muito ao Great

British Baking Show este mês, e eu ainda me sinto como uma pessoa da cidade, por

completo, mas talvez seja possível ter mais de uma casa. Talvez seja possível

pertencer de cem maneiras diferentes a cem pessoas e lugares diferentes.


AS GAROTAS ESTÃO DEITADAS NO colchão de ar no quarto do andar de cima

(fui transferida para o sofá dobrável), mas Brendan, Libby e eu ficamos acordados

até tarde, catando as sobras da torta de amora de Bea.

Alguém bate na porta, e Brendan beija a testa de Libby em seu caminho para

atender.

— Nora? — ele chama. — Para você.

Charlie está parado na porta, seu cabelo úmido e suas roupas perfeitamente lisas.

Ele parece como um milhão de dólares. Na verdade, mais como seiscentos, mas

seiscentos dólares muito bem apontados.

— Vamos dar uma volta? — ele pergunta.

Libby me empurra para fora da minha cadeira.

— Ela definitivamente vai!

Do lado de fora, nós vagamos pelo prado, nossas mãos pegando e segurando. Faz

anos que não seguro a mão de alguém além da de Libby, Bea ou Tala. Isso me faz

sentir jovem, mas não de um jeito ruim. Menos como se eu fosse impotente em um

mundo indiferente e mais como… como se tudo fosse novo, brilhante, desconhecido.

Do jeito que mamãe via Nova York, é assim que eu vejo Charlie.

Quando chegamos ao mirante iluminado pela lua, ele me encara.

— Acho que precisamos considerar um final alternativo.

Eu recuso.

— Já enviamos as notas. Dusty esteve trabalhando em edições a semana toda. Ela

está...

— Não para Frigid — Ele levanta nossas mãos, segura-as contra o peito, onde

posso sentir seu coração acelerado. Seus olhos perfuraram em mim. Olhos de buraco

negro. Olhos de armadilha pegajosa. Olhos de sobremesa decadentes.

— Nós nos revezamos visitando um ao outro — diz ele seriamente. — Uma vez

por mês, talvez. E quando você pode, você vem aqui de férias. E quando você não

pode, eu faço minha irmã e o marido dela voarem e ficarem com meus pais para que

eu possa ir para Nova York. Fazemos videochamadas, mensagens de texto e e-mails

o máximo que podemos, ou se isso for demais, não sei, talvez pulemos tudo isso.

Quando você está na cidade, você está trabalhando, e quando estamos juntos,

estamos juntos.

Meu estômago parece estar cheio de vaga-lumes bêbados e brilhantes.

— Como um relacionamento aberto?


— Não. — Ele balança a cabeça. — Mas se é isso que você prefere… Não sei. Nós

poderíamos tentar. Eu não quero, mas eu vou.

— Eu também não quero isso — digo a ele, sorrindo.

Ele solta um suspiro.

— Obrigado, porra.

Meu coração se contorce.

— Charlie…

— Apenas considere isso — ele pressiona baixinho.

Não funcionou para Sally e Clint. Para mim e Jakob. Charlie e Amaya. Mesmo que

eu consiga superar minha ansiedade de viajar, mesmo que Charlie não se importe

em me acalentar na calada da noite, como vou lidar com o medo constante de perdêlo?

A ansiedade toda vez que ele cancela uma ligação ou uma visita não dá certo?

Esperando o outro sapato cair, pelo dia em que ele finalmente disser, eu quero algo

diferente.

Não é você.

Eu quero alguém diferente.

Um desgosto lento e excruciante se desdobrando pouco a pouco por semanas.

Eu preferiria uma decapitação rápida a uma morte por mil cortes de papel, todas

as vezes.

— Longa distância nunca funciona — eu digo. — Você mesmo disse isso.

— Eu sei — diz ele. — Mas nunca fomos nós, Nora.

— Então nós somos a exceção? — digo, cética. — As pessoas para quem funciona.

— Sim — diz ele. — Pode ser. Não sei.

Seus olhos vagam sobre mim enquanto ele se reagrupa.

— O que mais podemos fazer, Nora? Estou aberto a notas. Diga-me o que você

mudaria. Pegue a porra da sua caneta, rasgue tudo e me diga como isso deve

terminar.

Realmente dói sorrir. Minha voz soa como se estivesse raspando em vidro

quebrado.

— Aproveitamos esta semana. Passamos o tempo que quisermos juntos, e não

conversamos depois, e então eu vou embora, e não me despeço. Porque eu não sou

bom com despedidas. Eu nunca disse uma, e não quero começar com você. Então,

quando eu te beijo pela última vez, nenhum de nós presta atenção nisso. E então…

Pego um avião e vou para casa, incrivelmente grata pelo homem gostoso que

arruinou minha vida com quem uma vez passei um mês na Carolina do Norte.

Ele olha para mim, seus olhos focados e testa franzida enquanto ele absorve o

que eu disse, seus lábios fazendo beicinho. É sua expressão de edição e, quando ela

desaparece, ele balança a cabeça e diz:

— Não.

Eu ri, surpresa.

— O que?

Ele se endireita, aproxima-se.

— Eu disse que não.

— Charlie. O que isso significa?


— Significa — diz ele, os olhos brilhando — que você terá que fazer melhor do

que isso.

Eu sorrio apesar de mim mesma, a esperança se debatendo na minha barriga

como um passarinho muito determinado com uma asa quebrada.

— Espero notas até sexta-feira — diz ele.

O resto da semana passa voando. Libby está trabalhando no baile de angariação

de fundos. Brendan está terminando as fases finais do processo de hipoteca. Charlie

está no caixa, e Sally entra e sai sem parar, preparando tudo para o clube do livro

virtual com Dusty.

Há uma nova placa na vitrine, dizendo FAÇA BOAS ESCOLHAS, COMPRE LIVROS

GOODE, e um pôster do rosto de Dusty anuncia tanto o clube do livro quanto o Baile

da Lua Azul de Once In A Lifetime.

Voluntários transformam a praça da cidade e, tecnicamente, eu cancelei a

semana, mas algumas coisas não vão esperar, então eu faço o meu melhor para

espremer pedaços de trabalho entre dar carona às meninas e arrumar meu currículo

para Loggia.

Sempre me considerei uma criatura de sobrevivência, mas ultimamente tenho

sonhado acordada. Sobre um novo emprego. Sobre Charlie. Sobre ter tudo, tudo de

uma vez.

Então, talvez esse lugar tenha me transformado. Mas não em uma garota que ama

tranças flanela e maria-chiquinhas.

Quando estamos juntos, Charlie e eu não mantemos distância ou circulamos um

ao outro com cautela. Nós cedemos a cada momento que podemos, mas não falamos

sobre o futuro. Quando estamos separados, porém, continuamos a história por meio

de ligações e mensagens de texto.

Você vai passar o Natal em Sunshine Falls e eu vou passar o Réveillon na cidade, ele

diz.

Acordamos cedo e vamos de trem em trem até encontrarmos uma banda de

mariachis, digo.

Vamos às reuniões da prefeitura e nos envolvemos em brigas públicas, depois

voltamos para o chalé e fazemos sexo a noite toda, diz ele. E faremos um teste de gosto

de todas as pizzas de um dólar da cidade.

Chegaremos ao fundo da salada de presunto em cubos no VC, digo.

Acredito muito em você, Nora, diz ele, mas nem mesmo você pode desvendar o

segredo desse grande mistério.

Estarei muito ocupada, eu o lembro. Nos primeiros meses, quando eu voltar, estarei

com Libby e as garotas o máximo de tempo que conseguir, e, se eu conseguir o emprego

na Loggia, diminuirei meu trabalho de agente, despachando meus clientes para outra

pessoa. Em seguida, haverá a curva de aprendizado para entrar em uma nova função.

Ocupada não me assusta, diz Charlie.

Isso, eu acho, é o que é sonhar, e finalmente entendo por que mamãe nunca

poderia desistir, por que meus autores não podem desistir, e estou feliz por eles,


porque esse querer, é bom, como uma contusão que você precisa pressionar, um

lembrete de que há coisas na vida tão valiosas que você deve arriscar a dor de perdêlas

pela alegria de tê-las brevemente.

Às vezes, escrevo para Charlie, o primeiro ato é a parte divertida, e depois tudo fica

muito complicado.

Stephens, ele responde, para nós, tudo é a parte divertida.

Dói, mas deixo o sonho continuar por mais algum tempo.

Ninguém nunca vai me convencer de que o tempo se move em um ritmo

constante. Claro, seu relógio segue algum comando invisível, mas parece que está

jorrando aleatoriamente minutos em qualquer intervalo que lhe convier, porque

esta semana é um pontinho, e então chega a noite de sexta-feira.

Outra onda de calor quebra, inaugurando o clima de outono, e montamos a

barraca e o colchão de ar novamente. Enquanto Libby e Brendan vão até a cidade

pegar quatro pizza stagioni, as meninas e eu deitamos de costas, vendo o céu

escurecer.

Bea me conta tudo que ela e Brendan fizeram nas últimas semanas. Tala nos

regala com um conto que é ou as divagações sem sentido de uma criança ou uma

releitura fiel de um romance de Kafka.

Depois de comermos, Libby sugere que Brendan tome a cama king-size para si

esta noite, e ele diz, bocejando:

— Ah, graças a Deus.

Quando ele dá um beijo de boa noite nas meninas, elas estão tão sonolentas que

mal reagem, exceto por Tala estendendo os bracinhos em direção ao rosto dele por

um segundo antes de deixá-los cair de bruços.

Ele beija Libby por último, então me dá um abraço de lado (o pior abraço do

mundo), e eu sinto uma paixão maior por ele do que no dia em que ele se casou com

minha irmã.

— Que diabos — Libby sussurra, rindo. — Você está chorando?

— Cala a boca! — Eu jogo um travesseiro para ela. — Você quebrou os músculos

dos meus olhos. Não posso parar agora.

— Você está chorando porque você ama muito Brendan — ela brinca. — Admita.

— Eu amo muito Brendan — eu digo, rindo em meio às lágrimas. — Ele é legal!

A risada de Libby aumenta.

— Cara, eu sei.

Tala resmunga e rola, seu braço arremessando sobre os olhos.

Libby e eu nos deitamos lado a lado e seguramos as mãos uma da outra enquanto

estudamos o número improvável de constelações.

— Sabe de uma coisa? — Libby sussurra.

— Provavelmente — eu digo — mas fala.

— Mesmo que você não possa vê-las em Manhattan, todas essas estrelas estarão

sobre você também. Talvez todas as noites, olhemos para o céu ao mesmo tempo.

— Toda noite? — digo, duvidosa.


— Ou uma vez por semana — diz ela. — Nós pegamos o telefone, olhamos para o

céu e então saberemos que ainda estamos juntas. Onde quer que nós vamos.

Eu engulo um caroço crescente.

— Mamãe vai estar com você também — eu digo. — Só porque você está

deixando Nova York, isso não significa que você está deixando ela para trás.

Libby se aconchega mais perto, descansando a cabeça no meu ombro, o cheiro de

amoras esmagadas ainda permanecendo em seu cabelo.

— Obrigada.

— Pelo que?

— Só — ela diz — obrigada.

Pela primeira vez, eu não sonho com mamãe.


O CENTRO DA CIDADE É um paraíso de luzes de cordas e bandeirinhas, mesas

compridas cobertas com lindas toalhas xadrezes e cheias de tortas. Uma pista de

dança fica na praça e um caminhão da marca Coors vende cerveja atrás do gazebo.

Ao lado, Amaya e a Sra. Struthers vendem vinho doado, cada taça servida com mão

pesada. Duvido que eles tenham permissão para a maioria dessas coisas, mas,

novamente, Libby fez parecer que quase todos naquela reunião da prefeitura

estavam envolvidos de uma maneira ou de outra para fazer isso acontecer, então há

uma pequena chance de tudo isso ser honesto.

Brendan, Libby, as meninas e eu paramos na Goode Books para assistir ao evento

de Dusty, mas o lugar está lotado e não demoramos muito. Charlie e Sally

organizaram todos os móveis novos, junto com as velhas cadeiras dobráveis, em

fileiras no café, com a videoconferência de Dusty projetada na parede oposta e seu

áudio tocando nos alto-falantes da loja para que até mesmo os visitantes pudessem

ouvir enquanto faziam compras.

As garotas estão transbordando energia, então nós as levamos até a loja de

refrigerantes na Mug + Shot para tomarem vacas rosa.

— Isso é um grande erro — observa Libby enquanto passa as misturas de

refrigerante vermelho e sorvete mais chantilly para Bea e Tala.

— Um delicioso, no entanto — eu aponto.

— E — acrescenta Brendan, baixando a voz — elas sempre caem depois de uma

blitz de açúcar.

De volta à praça da cidade, nos empanturramos: de pipoca, de torta de chocolate

e ruibarbo, de nozes polvilhadas com açúcar que me fazem pensar nas manhãs frias

do Central Park e de um vinho local que deve ser o pior que já tomei, junto com outro

que é realmente muito bom.

Nós dançamos com as garotas ao som de músicas pop que Bea de alguma forma

sabe melhor do que Libby ou eu, e à medida que a noite passa e a escuridão total cai,

trazendo um leve arrepio, Tala adormece nos braços de Brendan enquanto ele e

Clint Lastra estão conversando sobre pontos de pesca recreativa.

Brendan nunca pescou em sua vida, mas ele está determinado a tentar, e Clint

está feliz em ajudá-lo.

Libby vai ser feliz aqui, penso enquanto os observo à distância. Ela vai ser muito

feliz, e isso fará com que a distância seja quase suportável.


Ela e Bea saem para ver se encontram alguns moletons ou cobertores no carro

alugado de Brendan, mas eu fico para trás, observando Gertie e sua namorada, o

casal briguento da prefeitura e uma dúzia de outros pares balançando

sonolentamente na pista de dança.

Eu localizo Shepherd em uma brecha na multidão, e ele me dá um sorriso tímido

e acena antes de caminhar.

— Ei — diz ele.

— Ei — eu digo.

Depois de um momento constrangedor, eu começo:

— Sinto muito por… — bem quando ele está dizendo — Só queria dizer...

Ele sorri de novo, aquele sorriso bonito de protagonista.

— Você vai primeiro.

— Me desculpe se eu enganei você — eu digo. — Você é um cara legal.

Ele dá outro sorriso caloroso, embora vagamente desapontado.

— Só não é o seu tipo de cara legal.

— Não — eu admito. — Eu acho que não. Mas se você estiver em Nova York e

precisar de uma guia turística, ou de uma ajudante para te arrumar alguém…

— Eu vou te procurar. — Ele reprime um bocejo com as costas da mão. — Não

estou acostumado a ficar acordado tão tarde — ele diz se desculpando. — Eu deveria

ir.

Claro que ele é uma pessoa matinal. A vida com Shepherd seria muito sexo lento

e romântico com contato visual intensamente amoroso, seguido de assistir ao nascer

do sol sobre o vale. Ele, sem dúvida, fará parte do final feliz de alguém. Talvez ele já

pertença a alguém, de uma forma que não pode ser explicada.

Para outra pessoa, ele será fácil da melhor maneira.

Como se o pensamento o tivesse conjurado, Charlie aparece alguns metros atrás

de Shepherd, e meu coração se eleva, caloroso e confiável como o Velho Fiel.

Shepherd me pega olhando para longe, um girassol encontrando sua fonte de luz.

Ele segue meu olhar direto para Charlie e sorri conscientemente.

— Tenha um bom voo, Nora.

— Obrigada — eu digo, corando um pouco com a minha própria transparência.

— Fique bem, Shepherd.

Ele se afasta, parando por um momento para falar com Charlie a caminho da

praça da cidade. Sorrisos são trocados, Charlie está um pouco cauteloso, mas não tão

cauteloso quanto naquele dia do lado de fora da Goode Books. Shepherd lhe dá um

tapinha no ombro enquanto diz alguma coisa, e Charlie olha para mim, aquele gêiser

de afeto em erupção no meu peito novamente com seu sorriso fraco.

Com mais algumas palavras, eles se separam, Shepherd fazendo o seu caminho

para as margens da multidão e Charlie vindo em minha direção com seu sorriso cada

vez mais largo.

— Ouvi dizer que você pode estar com frio — diz ele baixinho. Ele estende uma

camisa de flanela embrulhada que eu não tinha notado que ele carregava. Olho para

onde Libby e Bea se juntaram a Brendan, e Libby me dá um sorriso rápido.

— Uau — eu digo. — As palavras viajam rápido por aqui.


— Uma vez, no ensino médio — diz ele — eu fui a um barbeiro por capricho e

raspei minha cabeça. Meus pais descobriram antes de eu chegar em casa.

— Impressionante — eu digo.

— Loucura. — Ele ergue a flanela e eu me viro, me sentindo como uma delicada

socialite em um filme antigo em preto e branco enquanto ele a desliza sobre meus

braços, então me vira de volta para ele e começa a abotoá-la.

— É sua? — Eu pergunto.

— Absolutamente não — diz ele. — Eu comprei para você. — Para minha

surpresa, ele ri. — Estava na sua lista. Eu comprei uma para Libby também. Ela

gritou quando eu entreguei a ela. Achei que ela ia entrar em trabalho de parto.

Por alguns momentos, apenas sorrimos um para o outro. É o contato visual

prolongado menos estranho da minha vida. Parece que nós dois nos inscrevemos

para a mesma atividade, e é isso: existir, um no outro.

— Como estou? — Eu digo.

— Como uma mulher muito gostosa — diz ele — em uma camisa medíocre.

— Tudo o que ouvi foi gostosa.

Sua boca se divide em, possivelmente, meu favorito de seus vários sorrisos,

aquele que faz parecer que há um segredo escondido em um canto de sua boca.

— Você quer dançar, Stephens?

— Você quer? — Eu pergunto, surpresa.

— Não — ele diz — mas eu quero tocar em você, e é um bom disfarce.

Pego sua mão e o puxo para a pista de dança, sob as luzes cintilantes, enquanto

“Carolina in My Mind” de James Taylor toca como se o universo só quisesse me

provocar.

Charlie dobra minha mão em sua palma quente e eu descanso minha bochecha

contra seu suéter, fechando meus olhos para focar em como me sinto. Eu imprimi

cada detalhe dele na minha mente: o cheiro de BOOK e cítrico, com a nota quase

especiada que é toda dele; a lã macia e fina e o peito firme por baixo; a batida ávida

e polpuda de seu coração; sua bochecha roçando minha têmpora; a indescritível

sensação de arrepio quando ele aninha sua boca no meu cabelo e me respira.

— Você está animada para comer? — ele diz baixinho.

Abro os olhos para estudar suas sobrancelhas grossas e sérias.

— Já comi. Eu comi torta de janta.

Ele meio que balança a cabeça.

— Quero dizer, quando você voltar para a cidade.

— Ah. — Eu pressiono minha bochecha em seu ombro, os dedos se curvando,

tentando mantê-lo, ou eu, aqui por mais algum tempo. — Não precisamos falar sobre

isso.

Suas mãos aumentam suavemente a pressão por um momento.

— Eu não me importo.

Fecho os olhos contra as lágrimas e, depois de uma pausa, digo:

— Estou desejando comida tailandesa.

— Há um ótimo restaurante tailandês na esquina do meu apartamento — diz ele.

— Eu vou te levar algum dia.


Eu me permito imaginar de novo: Charlie no meu apartamento, seu laptop na

frente dele, seu rosto severo enquanto ele lê no meu sofá. Gelo escondido nos cantos

da vidraça atrás dele, flocos de neve derretendo no vidro, luzes de Natal em volta

dos postes de luz na rua abaixo, pessoas carregando sacolas de compras enormes.

Deixei-me imaginar esse sentimento duradouro. Imagino um mundo dentro de

um mundo só para Charlie e eu, movendo as paredes de pedra alguns metros para

trás para encaixá-lo dentro delas, e não gastando cada segundo procurando as

rachaduras.

Isso, penso novamente, é o que é sonhar.

E então, porque eu tenho que, porque se alguém merece honestidade, é Charlie,

eu convido a verdade para substituir a história.

Eu trabalhando 12 horas por dia, tentando despachar meus clientes, depois me

estabelecendo em um novo emprego. Charlie exausto de longos dias na livraria, fins

de semana em consultas de fisioterapia com seu pai, horas de pesquisa no Google

sobre como consertar pias com vazamento e substituir telhas soltas.

Chamadas perdidas. Textos não respondidos se acumulando. Feridas. Mágoas.

Saudade. Visitas canceladas por emergências de trabalho ou familiares. Nós dois

esticamos muito, nossos corações abrangendo muitos estados, a tensão

insuportável.

Meu peito aperta tanto que dói. Ele me disse que alguém precisava ter certeza de

que eu tinha o que eu preciso, mas ele merece isso também.

Meu coração dispara e meu corpo parece que está prestes a desmoronar.

— Charlie.

Há um longo silêncio. Sua garganta balança enquanto ele engole. Sua voz é um

sussurro rouco e rouco.

— Eu sei. Mas não diga isso ainda.

Não olhamos um para o outro. Se olharmos, saberemos que esse jogo de faz-deconta

acabou, então nos agarramos um ao outro.

Seu relacionamento à distância foi o pior ano de sua vida. O meu quase me

quebrou. Ele está certo de que é diferente, que somos nós e nos entendemos, mas é

por isso que não posso fazer isso.

— Há uma semana — digo — gostei tanto de você que gostaria de tentar fazer

isso funcionar. — Eu engulo um caroço irregular do tamanho de um punho, mas

ainda assim minha voz tem que raspar para sair. — Mas agora acho que posso te

amar demais para isso.

Estou surpresa ao me ouvir dizer isso. Não porque eu não soubesse como me

sentia, mas porque nunca fui a primeira pessoa a dizer a palavra com A. Nem mesmo

com Jakob.

— Você não tem que dizer nada — eu me apresso em acrescentar.

Sua mandíbula flexiona contra minha têmpora.

— Claro que eu te amo, Nora. Se eu te amasse menos, estaria tentando convencêla

de que você poderia ser feliz aqui. Você não tem ideia do quanto eu gostaria de ser

o suficiente.

— Charlie… — eu começo.


— Eu não estou sendo auto-depreciativo — ele promete suavemente contra o

meu ouvido. — Eu só não acho que é assim que funciona na vida real.

— Se alguém pudesse ser o suficiente — eu digo — acho que pode ser você.

Seus braços se apertam ao meu redor, sua voz caindo para um arranhão suave.

— Estou feliz que tivemos nosso momento. Mesmo que não tenha durado tanto

quanto queríamos.

As lágrimas são tão grossas em meus olhos que a pista de dança se dissolve em

faixas de cor e luz.

— Mas — eu finalmente saio, meus olhos se fechando — foi realmente perfeito

para caralho.

— Você vai ficar bem, Nora — ele sussurra contra a minha têmpora, suas mãos

afrouxando. — Você vai ficar melhor do que bem.

Assim como eu pedi, não há adeus. Quando a música termina, ele dá um último

beijo na curva da minha mandíbula. Meus olhos se fecham.

Quando eu os abro, ele se foi.

Mas eu ainda o sinto em todos os lugares.

Eu sou Heathcliff.

Enquanto fujo em direção à borda escura da praça da cidade, mando uma

mensagem para Libby e Brendan, dizendo que os encontrarei em casa.

— Você está indo?

Eu não apenas grito de surpresa, mas jogo minha bolsa. Ela bate em um vaso.

— Não quis te assustar. — Clint Lastra está sentado em um banco, seu andador

ao lado dele, algumas mariposas perdidas circulando no alto.

Pego minha bolsa, enxugando os olhos o mais discretamente que posso.

— Vôo cedo amanhã.

Ele concorda.

— Eu também não me importaria de ir para a cama, mas Sal não me deixa fora de

vista dela. — Ele me lança um olhar irônico. — É difícil envelhecer. Todo mundo

trata você como uma criança novamente.

— Eu daria qualquer coisa para ver minha mãe envelhecer. — Saiu antes que eu

percebesse que não era apenas uma nota no meu cérebro.

— Você está certa — diz Clint. — Estou com sorte. Ainda assim, não posso deixar

de sentir que estou falhando com ele.

Eu sinto minhas sobrancelhas se erguerem.

— Quem? Charlie?

O canto de sua boca se encolhe para baixo.

— Não era para ser assim. Ele não deveria estar aqui.

Eu hesito, dividida por um momento sobre o quanto, se é que deveria, falar. Eu

mal falei com Clint nas semanas que estive aqui.

— Talvez não — eu digo com firmeza. — Mas significa muito para ele, estar aqui

para você. É importante para ele.


Clint olha melancolicamente para a multidão na pista de dança, onde Charlie e eu

estávamos juntos momentos atrás.

— Ele não vai ficar feliz.

Não tenho certeza se é tão simples. Não é como se eu não estivesse feliz se

estivesse aqui com Libby. É mais como se eu estivesse pegando emprestado o jeans

de alguém. Ou como se eu estivesse dando um tempo na minha própria vida, como

se esse fosse um período de tempo em que eu saí do meu próprio caminho por um

tempo.

Já fiz isso antes e nunca me arrependi, exatamente. Sempre houve coisas pelas

quais ser grato.

Isso é a vida. Você está sempre tomando decisões, tomando caminhos que o

afastam do resto antes que você possa ver onde eles terminam. Talvez seja por isso

que nós, como espécie, amamos tanto as histórias. Todas aquelas chances de

recomeços, oportunidades de viver a vida que nunca teremos.

— Ele quer estar aqui para você e Sally — eu digo. — Ele está trabalhando muito

duro para ser o que ele acha que você precisa.

O Confirmado Cara Legal Clint Lastra limpa sua bochecha. Suas mãos tremem um

pouco quando descansam contra sua perna.

— Ele sempre foi especial — diz Clint. — Como a mãe dele. Mas às vezes… bem,

acho que Sally sempre gostou de se destacar um pouco.

Sua boca se torce.

— Acho que meu filho passou a maior parte de sua vida se sentindo solitário. —

Clint olha de soslaio para mim, avaliando, aquela mesma sensação de raio-X que seu

filho é tão bom em evocar. — Ele está diferente nas últimas semanas.

Clint ri para si mesmo.

— Sabe, eu costumava tentar ler um livro por mês com ele. Fiz isso no ensino

médio e na faculdade também. Eu pedia recomendações, a última coisa que ele tinha

lido e amado, então sempre teríamos algo para conversar, que importasse para ele.

Ele provavelmente tinha quatorze anos quando li um de seus livros pela primeira

vez e pensei: Merda. Esse garoto me superou.

Quando vou começar a discutir, Clint levanta a mão.

— Eu não quero dizer isso de uma forma autodepreciativa. Eu sou um homem

inteligente o suficiente, do meu jeito. Mas estava maravilhado com meu filho. Eu

poderia ouvir aquele garoto falar por muito mais tempo do que ele jamais faria,

sobre praticamente qualquer coisa. A primeira vez que Sal e eu o visitamos em Nova

York, tudo fez sentido. Era como se ele estivesse vivendo na metade do volume até

aquele momento. Não é isso que um pai quer para seu filho.

Metade do volume.

— Ele está diferente nas últimas semanas. — Na contração de sua boca, vejo

sombras de seu filho, biológico ou não. — Mais confortável. Mais ele mesmo.

Eu também tenho sido diferente.

Eu me pergunto se eu tenho vivido na metade do volume também. Com

agenciamento. Com namoro. Tapeando-me de uma forma que parecia robusta e

segura, em vez de certa.


— Sabe — eu digo cautelosamente, não querendo desmascarar Charlie de forma

alguma, mas também precisando estar do seu lado, para não escolher polidez ou

simpatia ou conquistar alguém sobre ele — talvez você esteja tentando provar que

não precisa dele, porque você acha que ele não quer estar aqui. Mas não aja como se

ele não estivesse fazendo nenhum bem, ou como se ele não pudesse ajudar. Este

lugar já deu a ele motivos suficientes para sentir que ele era o tipo errado de pessoa,

e a última pessoa de quem ele precisa sentir isso é você.

Seus olhos se arregalaram. Ele abre a boca para protestar.

— Não importa se é assim que você se sente ou não, se é assim que parece para

ele — eu digo. — E se você deixar ele te ajudar, ele vai fazer isso. Melhor do que você

esperava.

Com isso, eu me viro e vou embora antes que mais lágrimas possam cair.


QUANDO EU SAIO DO PRÉDIO NA fria tarde de setembro, uma enxurrada de

rosa e laranja se lança em mim. O cheiro de limão e lavanda de Libby envolve meus

ombros enquanto ela grita:

— Você conseguiu!

— Se com conseguiu — eu digo — você quer dizer “completou a primeira etapa

de um processo de entrevista que pode não levar a lugar nenhum” então com certeza

eu consegui.

Ela se afasta, radiante. Seu cabelo desbotou quase inteiramente de volta ao loiro,

mas suas roupas estão mais coloridas do que nunca.

— O que eles disseram?

— Eles entrarão em contato — eu respondo.

Ela enfia o braço no meu e me vira na calçada.

— Já é seu.

Os nervos se acotovelam no meu estômago.

— Sinto como se fosse o primeiro dia de aula, estou nua e esqueci a combinação

do meu armário. Espere, não, é o último dia de aula e eu nunca fui para a aula de

matemática, além de todas essas outras coisas.

— A incerteza é boa para você — diz ela. — Você realmente quer isso, mana. É

uma coisa boa. Agora vamos, estou faminta. Você tem a lista?

— Ah, você quer dizer esta lista? — Digo, mostrando a folha laminada que ela fez

com tudo o que precisamos para comer, beber e fazer antes de ela ir embora.

Na maioria dos dias, eu a vejo. Para o almoço, ou uma caminhada até o parquinho

perto da casa dela, ou para sentar no chão da sala embalando bichos de pelúcia e

macacões minúsculos em caixas de papelão. (Às vezes choro por causa dos macacões

pequeninos que pertenciam a Bea, depois a Tala, e em breve serão herdados pelo

Número Três.)

Num sábado, levamos as meninas ao Museu de História Natural e passamos duas

horas e meia na sala com a enorme baleia. Outra noite, Brendan, Libby e eu nos

encontramos na nossa pizzaria favorita em Dumbo e ficamos no pátio conversando

até que a equipe começasse a fechar o lugar.

Pagamos a mais para ter nossas caricaturas desenhadas no Central Park.

Pedimos a um turista que tirasse uma foto da nossa família na Fonte de Bethesda.


Nós nos encontramos para comer crepes, domingo após domingo, no lugar favorito

de Libby em Williamsburg.

E então chega novembro.

Eles partem em uma quinta-feira, brilhante e cedo. As garotas estão com tanto

sono que conseguimos colocá-las no U-Haul 10 sem muito alarde, e secretamente

estou desapontada. Me mata ouvi-las chorar com as palavras tia Nono, mas não ouvilas

pode ser pior.

Brendan e eu nos abraçamos, e então ele sobe no caminhão alugado para dar a

mim e a Libby um pouco de privacidade.

— Corre! — Eu sussurrei brincando para Libby, e ele me deu um sorriso antes de

fechar a porta.

Libby já está chorando. Ela disse que acordou chorando. Eu não, mas, novamente,

não tenho certeza se dormi.

Na terceira vez que acordei de repente, entrei na internet e marquei consultas

com um terapeuta e um especialista em sono, depois encomendei quatro livros que

prometiam ter “ajudado milhões na [minha] situação exata!”

Era quase bom ter outra coisa para focar na calada da noite.

— Nos falaremos o tempo todo — promete Libby. — Você vai se cansar de mim.

Há uma frieza no vento, e eu levanto seus dedos gelados para soprar calor neles.

Ela revira os olhos, rindo em lágrimas.

— Ainda uma mãe tão absoluta.

— Você quem fala. — Eu me inclino para beijar sua barriga. — Seja bom, Número

Três, e a tia Nono lhe trará um presente quando ela visitar. Uma motocicleta, talvez,

ou alguma droga de festa.

— Eu não sei o que dizer. — A voz de Libby falha.

Eu a puxo para um abraço.

— Isso é uma merda.

Ela relaxa em meus braços.

— Isso realmente é uma merda.

— Mas também é legal — eu aponto. — Você vai ter uma casa grande, e janelas

que não dão para aquele velho que nunca usa calças, e você vai ter um jardim e usar

aqueles vestidos caríssimos quando for dar aquelas festas no jantar com arranjos

florais frescos em todas as superfícies, e suas filhas vão ficar fora até tarde pegando

vaga-lumes com as crianças vizinhas, e Brendan provavelmente vai aprender a, tipo,

cortar lenha e vai ficar definido e carregar você como se estivesse em um romance.

— E então você vai visitar — Libby interrompe. — E nós vamos ficar acordadas a

noite toda conversando. Vamos beber muito gim-tônica, e vou convencê-la a cantar

Sheryl Crow comigo na noite de karaokê do Vovô Cócoras, e vamos a uma verdadeira

fazenda de árvores de Natal, não apenas uma tenda em um beco, e vamos mostrar

às meninas Núpcias de Escândalo, e elas vão dizer, Ei, estou enganada, ou Cary Grant

é meio idiota? Por que ela não ficou com Jimmy Stewart?

10

U-Haul é uma marca americana de aluguel de reboques, caminhões e self-storage.


— E nós vamos ter que dizer a elas que algumas pessoas simplesmente têm mau

gosto — eu concordo solenemente.

— Ou que, às vezes, não há um, mas dois homens gostosos disputando seu

coração, e você tem que girar em círculo e escolher um ao acaso, depois casar o outro

com o colega de trabalho dele.

— Amor? — Brendan chama do caminhão, fazendo uma careta de desculpas.

Libby acena com a cabeça em compreensão e nos afastamos, ainda segurando os

antebraços uma da outra como se estivéssemos nos preparando para girar em

círculos a toda velocidade e não queremos que a inércia nos separe. Bem preciso, na

verdade.

— Isso não é um adeus — diz ela.

— Claro que não — eu digo. — Nadine Winters nunca se lembra de dizer olá ou

adeus.

— Também somos irmãs — diz ela. — Estamos presas juntas.

— Isso também.

Ela me solta e sobe na caminhonete.

Quando eles se afastam, meus olhos se enchem. Pelo menos as lágrimas

aguentaram tanto tempo. Pelo menos eu as mereci.

O branco e o laranja do U-Haul se fundem até parecer que estou olhando para

uma pintura em aquarela que foi deixada de fora na chuva, minha família se

desintegrando em listras coloridas. Eu vejo o borrão deles encolher. Um bloco. Então

dois. Então três. Então eles se viram e se vão, e parece que eu sou uma laje de

concreto que acabou de ser rachada ao meio, apenas para perceber que minhas

entranhas nunca endureceram.

Eu estou acabada.

Estou chorando muito agora. Não são fungadinhas fofas. Respiração ofegante

feia. As pessoas passam na calçada. Alguns me dão um amplo espaço. Outros me

lançam olhares solidários. Quando uma mulher da minha idade passa, ela estende

um lenço de papel para mim sem diminuir o ritmo e eu o agarro como um cobertor

de bebê, incapaz de fazer qualquer coisa além de chorar mais e rir, meu abdômen

ricocheteando entre os dois.

É como mamãe costumava dizer: você não é um verdadeiro nova-iorquino até

que esteja disposto a sentir suas emoções abertamente, e só agora, tendo tomado a

firme decisão de ficar, cruzei esse último limite.

Eu caio na varanda de Libby, sua antiga varanda, rindo e chorando tão

histericamente que não consigo mais distinguir um do outro. Só quando meu

telefone começa a tocar eu consigo me controlar.

Eu fungo, limpando algumas das minhas lágrimas, enquanto tiro meu telefone do

bolso e leio a tela.

— Libby? — Eu respondo. — Está tudo bem?

— E aí? — ela diz.

— Nada? — Eu passo as costas das minhas mãos em meus olhos. — Vocês?

— Não muito — ela suspira. — Só senti sua falta. Pensei em ligar e dizer oi.


Calor enche meu peito. Ele rasteja em meus dedos das mãos e dos pés, até que há

tanto, que dói. Estou cheia. Nenhuma pessoa deveria ter tanto amor em seu corpo

ao mesmo tempo.

— Como está Nova York agora? — ela pergunta.

Eles se foram há oito minutos.

— O pé de Brendan caiu no acelerador ou algo assim?

— Apenas me diga — ela diz. — Quero ouvir você descrevê-la.

Olho em volta para a agitação, as árvores lançando seus primeiros jorros de

vermelho e amarelo em suas folhas. Um homem descarregando caixotes de frutas na

bodega do outro lado da rua. Uma velhinha com cabelos pretos sob um chapéu de

cowboy branco com strass folheando os DVDs à venda na mesa dobrável de um cara.

(Libby e eu demos uma olhada antes de nos separarmos e percebemos que oitenta

e cinco por cento da coleção apresentava Keanu Reeves, o que levanta a questão:

esse homem e Keanu Reeves tiveram um grande término?)

Sinto cheiro de kebab cozinhando na rua, e ao longe as buzinas dos carros soam,

e uma mulher que pode ou não ser uma atriz que eu vi em SVU passa apressada com

enormes óculos escuros, andando com um Boston terrier minúsculo e empinado.

— E então? — Libby diz.

Parece como lar.

— O mesmo de antes. Sem novidades.

— Eu sabia. — Eu posso ouvi-la sorrindo.

Ela queria que eu fosse com ela, mas ela está feliz que estou conseguindo o que

quero.

Eu queria que ela ficasse, mas espero que ela encontre tudo o que procura e muito

mais.

Talvez o amor não deva ser construído sobre uma base de compromissos, mas

talvez também não possa existir sem eles.

Não do tipo que força duas pessoas a formas em que não se encaixam, mas do

tipo que afrouxa suas garras, sempre deixa espaço para crescer. Compromissos que

dizem, haverá um espaço em forma de você no meu coração, e se sua forma mudar,

eu me adaptarei.

Não importa para onde vamos, nosso amor vai se estender para nos abraçar, e

isso me faz sentir... como se tudo estivesse bem.


NO DIA DOZE DE DEZEMBRO, às onze e vinte, vou até a Freeman Books.

É o único dia do ano que eu sempre tiro na agência, e assim que entrei na Editora

Loggia, pedi o décimo segundo dia de folga lá também.

A curva de aprendizado é brutal, mas depois de tantos anos sabendo exatamente

como fazer meu trabalho, o desafio é emocionante. Eu vasculho cada um dos

manuscritos dos meus autores recém-herdados como uma arqueóloga em um local

de escavação recém-descoberto.

É possível ser uma fanática pela edição de livros?

Se sim, é isso que eu sou.

Quase odiei não ir ao trabalho hoje, mas se vou estar fora do escritório, pelo

menos ainda estarei cercada de palavras.

Levo o meu tempo andando, desfrutando de um raio de sol surpresa que derrete

a neve em pedaços lamacentos na calçada, o fraco calor penetrando no meu casaco

de espinha de peixe favorito.

Na lanchonete onde mamãe costumava trabalhar, compro uma xícara de café e

um folhado. Faz muito tempo desde que alguém me reconheceu aqui, mas tenho

certeza de que o mesmo caixa que atendeu Libby e eu no último dia 12 de dezembro,

e isso é o suficiente para me encher com uma agradável sensação de pertencimento.

E então a dor aguda, como se eu tivesse roçado a parte empolada do meu coração:

Charlie deveria estar aqui. Não evito pensar nele, como costumava fazer com Jakob.

Mesmo que doa, quando ele brilha em minha mente, é como lembrar de um livro

favorito. Um que te deixou estripado, claro, mas também um que te mudou para

sempre.

Passo por uma floricultura com uma barraca de plástico aquecida em volta da

vitrine e me agacho para comprar um buquê de pétalas vermelhas salpicadas com

folhas verdes prateadas e pequenas flores brancas. Não conheço os tipos de flores,

mas para que floresçam no inverno, devem ser resistentes, e eu as respeito por isso.

Às onze e quarenta e cinco, ainda estou a dois quarteirões de distância, e meu

telefone vibra no bolso do meu casaco. Colocando o buquê na dobra do meu braço,

eu procuro no meu bolso, então tiro minha luva com os dentes para destravar o

telefone e ler a mensagem de Libby.

Feliz Aniversário! ela escreve, como se estivesse mandando o texto direto para a

mamãe.


Feliz aniversário, eu escrevo de volta, meu peito ardendo. É difícil estarmos

separadas hoje. É a primeira vez que tenho que fazer isso sem ela.

FaceTime mais tarde? ela escreve.

Claro, eu digo.

Ela digita por um minuto enquanto corro pelo último quarteirão. Já recebeu meu

presente?

Desde quando mandamos presentes para o aniversário da mamãe? Eu escrevo.

Desde que temos que nos separar durante ele, ela diz.

Bem, eu não te dei nada.

Tudo bem, ela diz. Você fica me devendo. Mas você ainda não pegou o seu?

Não, eu escrevo. Estou fora de casa.

Ah, ela diz. Já está na Freeman's?

Em cerca de três segundos. Abro a porta com o ombro e entro no familiar calor

empoeirado.

Eu vou deixar você ir, ela diz. Mas mande uma foto quando o presente chegar, ok?

Eu respondo com um polegar para cima e um coração, então coloco meu telefone

e luvas nos bolsos, liberando minhas mãos para navegar.

Vou direto para as prateleiras de romance. Este ano, comprarei duas cópias do

que escolher e enviarei uma para Libby. Ou, melhor ainda, levar comigo quando eu

for visitá-la nos feriados e no nascimento do Número Três.

Enquanto ando ao longo das centenas de espinhas imaculadas, o tempo se

desenrola ao meu redor, a corrente diminui. Eu não tenho onde estar. Nada a fazer

além de ler resumos e tirar citações em sobrecapas, folheando algumas últimas

páginas e deixando outras sem ler. De novo e de novo, eu pergunto: E este, mãe? Você

gostaria desse?

E então, eu gostaria desse? Porque isso também importa.

Sempre que estou na frente de uma fileira de livros, é como se eu pudesse ouvir

a risada alta da mamãe, sentir seu cheiro quente de lavanda. Em uma ocasião, Libby

e eu estávamos tão absortas em nosso processo de 12 de dezembro que, por uns dez

minutos, não notamos o homem de sobretudo ao nosso lado fazendo o seu melhor

para se expor.

(Quando isso aconteceu, e eu finalmente percebi, eu me ouvi calmamente,

desinteressadamente, dizer, um livro ainda na minha mão, Não. O olhar em seu rosto

me deu a maior onda de poder que eu tive até hoje, e Libby e eu rimos por semanas

sobre o que de outra forma poderia ter sido uma experiência bastante

traumatizante.)

Então, embora eu esteja ciente de que algumas outras pessoas estão circulando

na minha periferia, eu não reconheço exatamente nenhuma delas até que eu pegue

o romance Curmudgeon de January Andrews, apenas para encontrar outra pessoa

alcançando no mesmo momento.

A maioria das pessoas, eu acho, deixaria escapar, Desculpe! O que sai da minha

boca é:

— Agh!


Nenhum de nós larga o livro, pessoas típicas da cidade, e eu giro em direção ao

meu rival, sem vontade de recuar.

Meu coração para.

Ok, tenho certeza que não.

Eu ainda estou viva.

Mas isso, eu percebo, é o que eles querem dizer, todos aqueles milhares de

escritores que tentaram descrever a sensação de seguir o rastro de sua vida por

anos, apenas para esbarrar em algo que a muda para sempre.

A maneira como a sensação atinge você, do centro para fora. Como você sente

isso na boca e nos dedos dos pés de uma só vez, uma dúzia de pequenas explosões.

E então um desenrolar de calor da clavícula para as costelas, para as coxas, para

as palmas das mãos, como se apenas vê-lo tivesse desencadeado algum tipo de

crisálida.

Meu corpo passou do inverno para a primavera, todos aqueles brotinhos

desgrenhados brotando através da neve. Primavera, viva e desperta na minha

corrente sanguínea.

— Stephens — Charlie diz suavemente, como um palavrão, ou uma oração, ou um

mantra.

— O que você está fazendo aqui? — Eu respiro.

— Não tenho certeza por qual resposta começar.

— Libby. — A realização salta através de mim. — Você é... você é meu presente?

Sua boca se curva, provocando, mas seus olhos permanecem suaves, quase

hesitantes.

— De certa forma.

— De que forma?

— Goode Books — diz ele com cuidado — está sob nova direção.

Eu balanço minha cabeça, tentando limpar a névoa.

— Sua irmã veio?

Ele balança a cabeça.

— A sua veio.

Minha boca se abre, mas nenhum som sai. Quando eu a fechei novamente,

lágrimas nublaram meus olhos.

— Não entendo.

Mas uma parte de mim sim.

Ou quer acreditar que sim.

Ele espera. E essa esperança se registra como um nó ardente de fio dourado e

brilhante, emaranhado demais para fazer sentido.

Charlie desliza o livro preso entre nossas mãos de volta para a prateleira, então

se aproxima, suas mãos pegando as minhas.

— Três semanas atrás — ele diz — eu estava na loja e nossa família apareceu.

— Nossa família? — Eu repito.

— Sally, Clint, Libby — ele diz. — Eles trouxeram um PowerPoint.

— Um PowerPoint? — Eu digo, minha testa enrugando.

O canto de sua boca se curva.


— Foi muito organizado — diz. — Você teria adorado, porra. Talvez eles enviem

uma cópia para você por e-mail.

— Eu não entendo — eu digo. — Como você está aqui?

— Eles montaram uma lista — diz ele. — “Doze Passos para Reunir Almas

Gêmeas”, que, a propósito, envolveu várias citações de Jane Austen. Não tenho

certeza se era Libby ou papai. Mas o que estou querendo dizer é que eles fizeram

alguns pontos convincentes.

Lágrimas inundam meus olhos, meu nariz, meu peito.

— Tais como?

Um sorriso cheio e brilhante; uma tempestade elétrica atrás de seus olhos.

— Tais como estou desesperado para ver sua bicicleta Peloton na vida real — diz

ele. — E eu preciso saber se o seu colchão merece o hype. E o mais importante, estou

tão fodidamente apaixonado por você, Nora.

— Mas... mas seu pai…

— Terminou a fisioterapia mais cedo — diz ele. — O PowerPoint dizia “com

honras”, mas tenho 88% de certeza de que não é uma coisa real. E Libby assumiu a

loja. As meninas brincam lá todos os dias, e Tala faz queda de braço com quem tenta

sair sem comprar nada. É lindo. Libby também disse para lhe dizer que ela e Brendan

são “Indigententes em Manhattan, mas ricos na Carolina do Norte” então depois que

o bebê nascer, a diretora Schroeder vai ajudar enquanto Libby tira uma licença,

então quando ela estiver pronta para voltar ao trabalho, ela vai contratar uma babá,

então você pode parar de se preocupar antes mesmo de começar.

Eu rio molhado, balanço minha cabeça novamente.

— Você disse que sua mãe nunca deixaria alguém de fora da família administrar

a loja.

Seus olhos pousam no meu rosto, sua expressão ficando séria.

— Acho que ela espera que Libby não fique fora da família para sempre.

É isso. A represa se rompe, e eu começo a fungar, chorando de felicidade

enquanto Charlie emoldura meu rosto com suas mãos.

— Eu disse aos meus pais que não poderia deixá-los se eles precisassem de mim,

e você sabe o que eles disseram?

— O que? — Minha voz falha cerca de quatro vezes nessa sílaba.

— Eles disseram que eles são os pais. — Sua voz é úmida, estrangulada. —

Aparentemente, eles não precisam de “merda nenhuma” de mim, exceto que eu seja

feliz. E eles não se importariam com uma nora gostosa e sexy.

Eu não sei se rio ou choro um pouco mais, ou talvez apenas grito a plenos

pulmões. Um grito excitado, não grito assustado. (É assim que você deveria dizer

Spaaaahhh?)

— Citação exata de Sally? — Eu digo.

Ele sorri.

— Parafraseando.

O nó está se desfazendo, se desenrolando em mim, subindo pela minha garganta

e descendo pelo meu estômago enquanto ele continua.


— Nora Stephens — ele diz — eu quebrei meu cérebro e isso é o melhor que eu

posso fazer, então eu realmente espero que você goste.

Seu olhar levanta, tudo sobre ele, sobre seu rosto, sobre sua postura, sobre ele

feito de bordas afiadas e pedaços irregulares e sombras, tudo isso é familiar, tudo

isso é perfeito. Não para outra pessoa, talvez, mas para mim.

— Volto para Nova York — diz ele. — Eu recebo outro trabalho de edição, ou

talvez me torne agente, ou tento escrever novamente. Você trabalha na Loggia, e nós

dois estamos ocupados o tempo todo, e em Sunshine Falls, Libby administra o

negócio local que ela salvou, e meus pais mimam suas sobrinhas como os netos que

eles querem desesperadamente, e Brendan provavelmente não fica muito melhor na

pesca, mas consegue relaxar e até tirar férias remuneradas com sua irmã e seus

filhos. E você e eu... saímos para jantar. Onde você quiser, quando quiser. Nós nos

divertimos muito sendo pessoas da cidade e estamos felizes. Você me deixa te amar

tanto quanto eu sei que posso, enquanto eu sei que posso, e você tem tudo pra

caralho. É isso. Isso é o melhor que eu poderia pensar, e eu realmente espero que

você diga…

Eu o beijo então, como se não houvesse alguém lendo um dos romances de

Bridgerton a um metro e meio de distância, como se tivéssemos acabado de nos

encontrar em uma ilha deserta depois de meses separados. Minhas mãos em seu

cabelo, minha língua presa em seus dentes, suas palmas deslizando atrás de mim e

me apertando contra ele no apalpamento público mais completo que já fizemos.

— Eu te amo, Nora — diz ele quando nos afastamos alguns centímetros para

respirar. — Acho que amo tudo em você.

— Até minha Peloton? — Eu pergunto.

— Ótima peça de equipamento — diz ele.

— O fato de eu verificar meu e-mail depois do horário de trabalho?

— Apenas torna mais fácil compartilhar histórias eróticas do Pé Grande sem ter

que atravessar a sala — diz ele.

— Às vezes eu uso sapatos muito impraticáveis — acrescento.

— Nada impraticável em te deixar gostosa — diz ele.

— E a minha sede de sangue?

Seus olhos ficam pesados quando ele sorri.

— Isso — diz ele — pode ser minha coisa favorita. Seja meu tubarão, Stephens.

— Eu já era — eu digo. — Sempre fui.

— Eu te amo — ele diz novamente.

— Eu também te amo. — Não preciso forçá-lo a passar por um nó ou por minha

garganta apertada. É simplesmente a verdade, e exala de mim, um fio de fumaça, um

suspiro, outra flor flutuando em uma corrente carregando bilhões delas.

— Eu sei — diz ele. — Eu posso ler você como um livro.


SEIS MESES DEPOIS

HÁ BALÕES NA JANELA, uma placa de quadro-negro na frente. Através do brilho

suave no vidro, você pode ver a multidão se aglomerando, brindando com taças de

champanhe, conversando, rindo, navegando.

Para os não iniciados, pode parecer uma festa de aniversário. Há, afinal, uma

menininha de cachos loiros avermelhados, com quatro anos recém completados,

que roubou um bolinho da torre de cupcakes nos fundos da loja e agora corre em

oitos vertiginosos em volta das pernas dos adultos, batendo em cadeiras e

prateleiras, glacê roxo espalhado em torno de seus lábios.

Ou a multidão poderia estar celebrando sua irmã mais velha e magra, com a

franja reta e cinzenta, que finalmente, depois de alguma luta, aprendeu a ler. (Agora

ela passa quase todos os dias dobrada no pufe verde dentro da sala de livros infantis

com um livro no colo.) Ou pode ser tudo para o bebê no quadril da mulher de cabelo

rosa. Ela engatinhou pela primeira vez há apenas nove dias (embora para trás, e

apenas por um segundo), e você pensaria que ela ganhou o Prêmio Nobel, pelos

gritos na videochamada de sua mãe e sua tia. (“Faça de novo, Kitty! Mostre à tia Nono

como você é a bebê mais ágil e atlética de todos os tempos!”)

Há motivos para celebrar o marido da mulher de cabelo rosa também. Depois de

semanas acompanhando o Clube de Pesca Recreativa, ele finalmente pegou alguma

coisa naquela manhã, enquanto a névoa ainda estava espessa do outro lado do rio,

mesmo que fosse apenas um sutiã muito grande.

A ladra de cupcakes de quatro anos passa por suas pernas e se choca com o

homem alto que usa a bengala. Ela ri enquanto ele acaricia seu cabelo. Alguém dá

um tapinha em seu braço e o parabeniza por finalmente se aposentar.

— Mais tempo para limpar as calhas em casa — diz ele.

Talvez todos estejam aqui para homenagear a mulher com os olhos doces e

enrugados, que se move em uma nuvem de jasmim e maconha, duas de suas pinturas

acabaram de ser aceitas em uma exposição coletiva.

Ou podem estar comemorando que a loja que deu a festa acabou de ter seu mês

mais lucrativo em oito anos.


Pode ser que, depois de meses trabalhando como freelancer, o homem de

sobrancelhas grossas e sorriso amuado tenha acabado de aceitar uma oferta de

emprego na Wharton House Books, uma posição vários degraus acima do que

quando trabalhou lá pela primeira vez. Ou tudo isso pode ter algo a ver com a

pequena caixa de veludo que ele não consegue parar de virar no bolso do paletó.

(Não há nada dentro dela; ela mencionou uma vez que se ela se casasse, ela mesma

escolheria o anel.) Ou que a mulher com o cabelo platinado encostada nele já sabe

há semanas o que ela vai dizer. (Ela fez uma lista de prós e contras, mas acabou

escrevendo o nome dele em prós e possivelmente usar uma joia que eu não escolhi

para a vida inteira???? em contras.)

A festa em questão também pode ser para a mulher com óculos fundo de garrafa,

segurando uma taça de champanhe enquanto se aproxima do microfone no centro

da livraria, uma pilha de livros cinza ardósia dispostos em uma mesa ao lado dela,

uma sala de leitores calados, extasiados, esperando que ela falasse, para apresentar

esta nova história a um mundo que estava esperando por ela.

— Para quem quer tudo — ela começa — que você encontre algo que seja mais

do que suficiente.

Ela se pergunta se o que vem a seguir poderia corresponder às expectativas.

Ela não sabe. Você nunca pode.

Ela vira a página de qualquer maneira.


Toda vez que escrevo um livro, a lista de pessoas a quem preciso agradecer aumenta,

enquanto as chances de eu acertar todos que merecem uma menção sincera

diminuem. Mas vou tentar mesmo assim, porque a verdade é que eu não estaria aqui

neste livro que você está segurando sem a ajuda essencial de tantas pessoas.

Obrigada em primeiro lugar à minha amada família Berkley: Amanda, Sareer,

Dache', Danielle, Jessica, Craig, Christine, Jeanne-Marie, Claire, Ivan, Cindy e todos os

outros. Eu amo muito fazer parte dessa equipe e realmente me sinto a escritora mais

sortuda do planeta por ter aterrissado entre amantes de livros tão inteligentes,

talentosos, apaixonados e motivados como vocês. Um enorme agradecimento

também a Sandra Chiu, Alison Cnockaert, Nicole Wayland, Martha Cipolla, Jessica

McDonnell e Lindsey Tulloch.

Também tenho que agradecer à minha incrível equipe do Reino Unido na Viking,

especialmente Vikki, Georgia, Rosie e Poppy.

Gratidão imensa a Taylor e toda a equipe da Root Literary—incluindo, mas não

se limitando a Holly, Melanie, Jasmine e Molly. Vocês todas são a metade mais

organizada, mais experiente e mais pragmática do meu cérebro, e eu estaria perdida

neste negócio sem vocês. Muito obrigada também a Heather e ao resto da Baror

International por colocar meu trabalho nas mãos de leitores de todo o mundo, e à

minha incansável agente cinematográfica, Mary, assim como Orly, Nia e o resto da

equipe da UTA.

A editora tem muitos padrinhos mágicos, e quero agradecer a alguns dos meus

últimos anos: Robin Kall, Vilma Iris, Zibby Owens, Ashley Spivey, Becca Freeman,

Grace Atwood e Sarah True.

Além disso, eu não estaria onde estou hoje sem o Book Of The Month Club e minha

livraria independente local Joseph-Beth Booksellers, para não mencionar todas as

outras lojas independentes nos EUA e além que tão graciosamente me apoiaram e

hospedaram encontros virtuais ao longo destes últimos dois anos estranhos. Vocês

trabalharam tanto para encontrar maneiras de conectar autores e leitores em meio

a uma pandemia global, e eu não poderia estar mais grata.

Uma das minhas coisas favoritas sobre publicar neste espaço é quantas pessoas

gentis, generosas, engraçadas, inteligentes e empáticas eu tive a sorte de cruzar.

Alguns (mas certamente não todos) incluem Brittany Cavallaro, Jeff Zentner, Parker

Peevyhouse, Riley Redgate, Kerry Kletter, David Arnold, Isabel Ibañez, Justin

Reynolds, Tehlor Kay Mejia, Cam Montgomery, Jodi Picoult, Colleen Hoover, Sarah

MacLean, Jennifer Niven, Lana Popović Harper, Meg Leder, Austin Siegmund-Broka,

Emily Wibberley, Sophie Cousens, Laura Hankin, Kennedy Ryan, Jane L. Rosen, Evie

Dunmore, Roshani Chokshi, Sally Thorne, Christina (e) Lauren, Laura Jane Williams,

Jasmine Guillory, Josie Silver, Sonali Dev, Casey McQuiston, Lizzy Dent, Amy


Reichert, Abby Jimenez, Debbie Macomber, Laura Zigman, Bethany Morrow, Adriana

Mather, Katie Cotugno, Heather Cocks, Jessica Morgan, Victoria Schwab, Eric Smith,

Adriana Trigiani e (minha narradora de audiolivros absolutamente perfeita, amiga

e colega autora) Julia Whelan.

O resto dos meus amigos e minha família: Você sabe quem você é, e eu te amo

muito. Obrigada por seu amor, apoio e paciência. Não há ninguém com quem eu

prefira ficar em quarentena.

E, por último, o maior obrigada a todos que leram, revisaram, compraram,

tomaram emprestado, emprestaram e postaram sobre meus livros. Vocês me deram

um presente incrível, e eu nunca deixarei de apreciá-lo.

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