EBOOK - O Círculo dos Cinco (Edição Jornada Congelante)

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05.07.2022 Views


O

Círculo

dos

Cinco

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Meus mais sinceros agradecimentos às lendas que ajudaram a tornar

esse

sonho uma realidade, em especial a:

Raul Barbosa de Sousa

Suzy da Cruz dos Santos Oliveira

Joselita Rodrigues de Souza Pacheco

Giliard Vitor Costa

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Aos Guardiões, o dever da proteção;

Aos Sacramentadores, a harmonia do

tempo em suas mãos;

Aos alquimestres, o poder da natureza;

Aos mestres, a magia e sua real nobreza.

Epílogo do Tratado de Paragon, ao solstício da Era de Ouro

para os Elfos, ou ao vigésimo sétimo ciclo após o fim da

Grande Era das Trevas para os humanos e mágicos.

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Capítulo Um

Vultos ao Amanhecer

O fim da madrugada trazia um vento enregelante que assoprava pela extensa

avenida coberta de lajotas reluzentes cor do cobre. Estridentes, como um canto

lúgubre e fantasmagórico, os silvos da brisa gélida percorriam as ruas e vielas do

entorno, por entre as colunas e fachadas das belas construções, e eram capazes de

provocar arrepios na espinha até do mais corajoso dos aventureiros.

Um vulto deslizava pressuroso pela escuridão. Caminhando aos trotes, o homem

envolto em longas vestes negras de veludo agarrou as abas de seu sobretudo,

enroscando-se sob ele.

O sol despontava tímido no horizonte, revelando alguns poucos raios cálidos de

tom alaranjado. As nuances azuladas que cobriam a abóbada celeste empalideciam

preguiçosamente, assumindo um tom purpúreo melancólico. As ruas permaneciam

mergulhadas em uma densa penumbra do final da madrugada.

O homem de preto aproximou-se das ameias da sacada do edifício no extremo

da avenida e seus dedos nodosos tocaram a superfície gélida do parapeito com

delicadeza. Os olhos se demoraram nas crostas finíssimas de gelo que se formaram

ao longo da noite por um bom tempo. Absorto, mergulhava dentro das próprias

preocupações.

Esculpido cuidadosamente pelos esmerados duendes artesãos de Pernítrulis, o

edifício era a construção mais suntuosa de Gradia, a Cidade dos Guardiões, no

extremo oeste das terras do reino de Vervaz. Conhecida como A Casa dos

Guardiões, fora construída para abrigar a mais importante força legisladora dos

cinco continentes: o Conselho dos Guardiões. A construção magnífica inspirava

respeito e hegemonia. O fulgor do dilúculo misturado às chamas dos postes refletia

intensamente sobre a redoma central e as altas pilastras de pedra-âmbar que

drapejavam o edifício. Lá em cima, no pátio aberto da sacada mais alta do Conselho,

o homem de vestes negras aguardava, observando a paciência resvalar pouco a

pouco, contemplando a calmaria das águas cristalinas do Mar de Ágata no

longínquo horizonte a sua frente.

— Uma grande novidade, não?

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Os archotes incandescentes ao redor da sacada circular tremularam com a força

do vento. Uma figura envolvida em uma grande capa azul caminhou elegantemente

em direção ao homem de preto escorado às ameias e posicionou-se ao seu lado.

Levemente mais alto, perdia o olhar na suntuosidade do oceano.

— Sem dúvidas — respondeu o homem de preto, concentrando a atenção em

uma nuvem qualquer no horizonte.

— O que atormenta seu coração? — inquiriu o homem de azul, reparando o

estado aflitivo do outro na sacada.

— Há algo de errado em Purysia! O Conselho fora deveras exaustivo e categórico

quanto a Purysia e tenho total conhecimento de suas peculiares tradições. Mas...

creio que passou da hora de intervirmos...

O mais alto repousou a mão direita sobre as ameias e respirou fundo.

— A situação em Purysia me deixa tão perturbado quanto a ti e essa questão já

está passando dos limites. Irei até lá e descobrirei o que eles tanto escondem de nós

— falou o homem envolto no manto azul; mantinha a voz serena, porém firme.

— Certo... — respondeu o homem de preto, crispando os lábios — Porém, você

sabe e isso ficou muito evidente na assembleia do Conselho desta madrugada: há

mais uma coisa com que devemos nos preocupar e, comparado a tal, Purysia é o

menor de nossos problemas...

O homem de vestes negras voltou a contemplar o horizonte, absorto.

— Se está se referindo à indicação...

— Esta Casa não pode permitir que ele chegue ao poder — disse o homem de

preto, alteava a voz e exalava indignação. — As Leis Primazes estão acima de

qualquer coisa e precisam ser cumpridas!

— O Conselho não vê objeção em sua indicação — falava o homem de azul, os

olhos refletiam o brilho da lua. — Nosso mundo corre perigo se ele...

— Não iremos permitir.

Outra voz irrompeu do extremo oposto da sacada. Um vulto de vestes vermelhas

da cor do fogo caminhou em direção aos dois homens que conversavam ao pé das

ameias.

— O Conselho dos Guardiões é a mais importante entidade mágica de todo o

mundo. Nesta sociedade desgastada e corrompida, o que precisamos fazer é manter

a harmonia e o equilíbrio acima de tudo. Nem que para isso tenhamos que tomar

as rédeas da situação com pulso firme. E o atual momento exige medidas drásticas!

Os dois homens assentiram.

— Sugiro que tome as providências cabíveis sobre as quais já conversamos —

inferiu o homem de vermelho, entregando um envelope pardo ao homem de preto.

— Quanto a Elliotr...

— Há muitos mistérios que ainda permeiam o sumiço de Elliotr. As

circunstâncias de seu desaparecimento, as terras congeladas de Gelor-Torine —

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interrompeu o homem de vermelho — entretanto, há questões mais decisivas em

nossas mãos neste momento e que envolvem o futuro de nosso mundo.

Os três homens se encararam, respeitosamente. No horizonte, o sol finalmente

nascera e rutilava o brilho de seus raios sobre as pupilas cansadas dos três vultos na

sacada. Iluminava as outras construções com um fulgor esplêndido, realçando a

grandiosidade da cidade.

— Nobres cavalheiros, regozijem-se — falou o homem de vermelho e apoiou as

mãos sobre os ombros dos outros dois — Hoje se inicia uma nova era em nossas

vidas. Uma era nunca antes vista, com a plenitude de triunfos, glórias e conquistas.

Esqueçamo-nos das eras sombrias de guerra, de dor e de sangue. Da ausência de

paz, equilíbrio e harmonia. Hoje esta Casa marca para sempre a história. As decisões

deste Conselho ecoarão a partir de agora para toda a eternidade. Um marco nunca

antes ocorrido na história dos Guardiões. Que o Ano da Elegibilidade comece!

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Capítulo Dois

Entre Lendas e Monstros

Uma lufada de vento acompanhado de finíssimas gotas de chuva golpeou as faces

macilentas de Torb Nayar. Esgalgado, de olhos profundos e com um acentuado e

notório cansaço, o jovem alquimestre, de cabelos castanhos que escorriam para os

ombros e intensamente encharcados pela chuva da madrugada, fitava as gotículas

irrisórias que fazia sambar por entre seus dedos magricelos.

Encarrapitado em uma das cruzetas superiores, no alto do mastro de um dos

poucos navios ancorados na costa portuária da marinha de Aralyart, embrenhado

entre uma série de grossas cordas de cânhamo e nós muito bem apertados, os

músculos retesados das pernas e braços pareciam ter-se fundido a elas. Observava

o mar encapelado, suas águas negras revoltosas e as furiosas ondas que, de tempos

em tempos, chocavam-se com violência contra a couraça dos navios lavados pela

chuva intensa. O longínquo horizonte permanecia cinzento e lúgubre, coberto por

densas nuvens negras e carregadas que cobriam toda a abóbada celeste. O sol já

havia nascido em algum lugar, mas a esperança por seus raios cálidos e

reconfortantes se esvaía nas trevas mórbidas trazidas pelo temporal.

Os olhos pesarosos do alquimestre vislumbraram mais uma vez as pequenas gotas

rodopiando na palma da mão. Vez ou outra, fazia com que elas voassem em

círculos, alguns centímetros acima dos dedos. Os filetes uniam-se, formavam uma

grande bolha translúcida, cristalina, e logo se desfaziam, retornando ao seu estado

inicial, acumulando em uma poça em sua mão.

Outra rajada de vento balançou seus cabelos e ele agarrou-se mais uma vez às

cordas encharcadas, aprumando-se sobre a cruzeta. O silêncio descomunal

pressionava seus ouvidos, interrompido pelos estrondos perturbadores das ondas

que rechaçavam contra os navios e as intermitentes trovoadas que ribombavam

pelos ares, raramente acompanhadas por raios que iluminavam os céus com

intensos clarões esbranquiçados.

Num estralar dos dedos, as gotinhas que bailavam acima de sua mão rodopiaram

três vezes no ar e uniram-se, tomando a forma de um cubo transparente. Torb

contraiu as maçãs do rosto. Os olhos demoravam-se no formato cúbico da água

que girava por entre a magreza de seus dedos. Um sorriso aparvalhado desenhou-

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se em seus lábios. Desde quando se entendia por gente, era magro daquele jeito.

Desde quando se entendia por gente, tinha o poder de controlar a água.

Apesar das circunstâncias adversas que o faziam estar ali em meio à avassaladora

expectativa juntamente com o que sobrara da marinha de Aralyart, lembrou-se de

quando descobriu que tinha o poder de controlar a água através da magia.

Rodopiou o cubo cristalino acima do dedo indicador e sua mente o fez viajar para

algum lugar muito distante, bem lá no passado.

Era um dia quente de verão, desses dias que as pessoas aproveitam o calor e saem

para lavar roupas à beira dos rios ou apenas descansam à sombra de uma árvore

frondosa para ler um livro. O sol enchia os ares com seu calor afável do início da

manhã. As florestas de imbuias do longínquo Condado de Arthal, o primeiro dos

Condados Triunos, no extremo norte de Aralyart, farfalhavam ruidosamente com

a força do vento e o gorgolejar dos pássaros se ouvia a quilômetros de distância. O

doce aroma de mangas frescas cortadas, queijo quente e de leite maltado em jarros

dentro de um cesto de vime que repousava sobre uma toalha de seda branca se unia

ao gostoso odor que emanava dos campos de capim-limão. Completando o

esplendoroso cenário, o ruído distante de serenas quedas d’água em algum ponto

da floresta. No centro da clareira, à beira das tranquilas águas do lago, as gargalhadas

de três crianças brandindo suas espadas de madeira se uniam ao coro dos pássaros.

— Quando crescer, quero ser um Guardião! — crocitou um dos garotos,

levantando a espada de madeira o mais alto que podia. Corpulento, porém

atarracado, escorria suor em bicas que se projetavam do pescoço e morriam na gola

empapada de sua camisa de algodão. Os cabelos negros e milimetricamente

divididos ao meio contrastavam com a pele alva como o leite. Cada vez que cortava

o ar com a espada, as bochechas rechonchudas intensificavam seu rubor e ele arfava

ruidosamente, como se travasse uma luta de vida ou morte contra um troll

repugnante.

— Mas você não pode, Caily — inferiu a menina de longos cabelos ruivos.

Mais alta que os outros dois e com muitas sardas bem abaixo de seus olhos, os

cabelos vermelhos como o fogo rutilavam sob o forte brilho do sol, como se

estivessem em chamas. Esguia, de pele brandamente tostada pelo sol, ela atacou o

ar com a espada de mogno polido como se desferisse um golpe mortal em alguma

criatura que só existia em sua imaginação.

— É, não pode. Não! — exclamou o terceiro.

Magricela e de pernas raladas, os cabelos castanho-escuro revoltosos a todo

instante caíam-lhe sobre os olhos. Ele agarrou a espada de angelim-pedra com as

duas mãos e saltou a esmo, tomando impulso sobre uma pequena pedra coberta de

musgo próximo à cesta de vime. Emitindo sons de lâminas dilacerando o couro de

monstros imaginários, caiu graciosamente com os dois pés sobre a grama, dando

duas cambalhotas seguidas para os lados.

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— Por que não? — questionou Caily, aborrecido. Franziu o cenho, contrariado

com a resposta dos amigos.

— Porque você é gordo! — exclamaram os outros dois, em uníssono e

desembestaram a rir.

Cruzando os braços, Caily exasperou-se tão rápido quanto as maçãs

rechonchudas de seu rosto assumiram um intenso tom avermelhado. Arremessou

a espada de madeira para longe, enquanto fuzilava seus dois amigos com os olhos.

Ambos rolavam no chão de tanto rir, segurando os estômagos que doíam ao reboar

suas altas gargalhadas em direção ao céu.

— Sou nada. Vocês é que são magrelos de mais... — crocitou Caily, de braços

cruzados. Em sua têmpora, uma veia saltava com o ódio que estava pelas risadas

debochadas dos dois amigos.

Os risos não pararam, cada vez mais altos e exageradamente histéricos,

sobrepujavam os reclames de um enfezado Caily, que enrubescia ainda mais a cada

segundo que passava.

— Babá Arnila vai ficar sabendo disso, quando ela voltar — ameaçou Caily.

Tentava fingir não se importar com as risadas, cruzando os braços e fazendo cara

de desdém, mas no fundo elas o irritavam profundamente.

A menina ruiva interrompeu as risadas e, ainda tremendo e com as maçãs do

rosto doendo de tanto rir, levantou-se e empertigou-se onde estava. Limpou as

lágrimas de riso que escorriam em direção às bochechas com as costas das mãos e

ajeitou os cabelos cor de fogo. Fincou a espada de madeira sobre a grama, apoiando

o próprio peso sobre ela.

— Você não pode ser Guardião porque você não tem sangue de guardião! —

exclamou a menina, como se aquilo fosse óbvio.

— Como assim? — inquiriu Caily, com uma sobrancelha mais arqueada do que

a outra.

— Para ser Guardião com “G” maiúsculo, ou seja, o Protetor do continente, você

precisaria ser da raça dos guardiões, com “g” minúsculo e, até onde sei, você está

muito, muito longe de ter algum parentesco com qualquer um dos Cinco Grandes...

Torb parara de rir para ver a amiga incendiar ainda mais a discussão. Sentara-se

sobre o gramado, cruzando as pernas e repousando a espada de madeira entre os

joelhos ossudos. A brisa leve agitava seus cabelos e o suor escorria-lhe do pescoço

em direção às costas devido ao calor que se intensificava. Os raios de sol

penetravam por entre as folhagens das árvores e iluminavam a discussão de Caily e

de Lala, sua amiga astuta de cabelos vermelhos.

Dos três, Lala sempre fora a mais esperta e também a mais debochada. Torb sabia

que ela era o tipo de garota que não deixava passar nada despercebido e qualquer

coisa era motivo para zombar de alguém: fosse um nariz grande como o de um

porco, o tamanho da circunferência da barriga do tio bebum ou até mesmo a

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ingenuidade e lerdeza de algum amigo, principalmente se esse amigo se chamava

Caily Rondor. Cansara de contar quantas vezes ela ludibriara o garoto e até mesmo

a babá Arnila, que de tão velha já não possuía a mesma lucidez e agilidade para lidar

com as esparrelas da menina ruiva. A última aprontada por ela fora convencer a

velha babá a comprar melões frescos no Condado de Menuth, há duas horas dali,

tudo para que os três pudessem ficar livres para brincar na clareira como quisessem,

sem as broncas chatas da velha caduca.

— Tenho, sim! — exclamou Caily, exasperando-se, ao observar o sorriso

buliçoso nos lábios de Lala — Eu sou primo do tio do cunhado do sobrinho da

irmã da cunhada da avó do filho do irmão de um primo do Guardião de Eurodian...

Uma nova explosão de risos ribombou pelos ares da clareira. Lala acabrunhouse,

com as mãos firmes na espada de madeira engastada na terra, acabando-se de

rir. Torb rolou duas vezes sobre a grama, às altas gargalhadas.

— EU VOU EMBORA — berrava Caily, bufando de raiva. — VOCÊS NÃO

SÃO MAIS MEUS AMIGOS! — O garoto girou nos calcanhares e seguiu trotando

em direção à floresta, rilhando os dentes, com os punhos fechados e pisando forte

sobre a grama.

Lala e Torb bem que tentavam, mas não podiam evitar os risos e a histeria. Riramse

tanto que nenhum dos dois tinha mais força nos joelhos para correr em direção

ao amigo que fugia rumo às árvores sinuosas e à mata fechada. A única coisa que

conseguiam fazer era rolar pela grama, rindo ao mesmo tempo em que Caily se

distanciava e sumia por entre os ásperos caules das imbuias no outro extremo da

clareira.

— Nós... não podemos... perdê-lo... — falava Torb, intercalando sua frase com

novas risadas. A mão direita segurava o estômago e a esquerda tentava colocá-lo,

inutilmente, em pé, apoiando-se no chão.

— Até parece que você não o conhece, Torb! — exclamou Lala, recuperando o

fôlego — No máximo o “primo-do-tio-do-cunhado-do-sobrinho” vai bater em

alguma árvore e voltar correndo, cheio de medo.

Torb soltou novas gargalhadas, jogando-se mais uma vez ao chão, batendo com

o punho fechado sobre a grama. O maxilar doía e as lágrimas escorriam pelos

cantos dos olhos. As risadas histéricas de ambos se misturavam e se prolongavam

pela clareira.

Riu tanto, mas tanto, que não percebeu que ria sozinho.

Enxugou os cantos dos olhos. Com muito esforço, apoiou-se sobre o braço

direito e sentou-se na grama. A visão estava turva e uma rajada de vento jogou seus

cabelos na direção dos olhos. Meneou a cabeça duas vezes, jogando os longos

cabelos revoltos em direção às costas e esfregou as vistas com as palmas das mãos.

Deparou-se com Lala estática, o rosto lívido e a boca entreaberta; os olhos vidrados

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estavam postos no ponto exato onde Caily sumira, no extremo da clareira. Parecia

embasbacada com qualquer coisa que estivesse vendo por lá.

Emudeceu. Tateou a grama até encontrar sua espada de madeira e reuniu forças

para conseguir ficar de pé, ao lado da amiga ruiva. Um silêncio mortificante

dominava todo o perímetro da clareira, interrompido pelos intermitentes silvos do

vento assoprando em algum canto. Os olhos estarrecidos das duas crianças não

criam no que estava diante deles.

Com presas afiadas de mais de doze centímetros em uma boca cheia de dentes,

sua colossal juba negra refletia o brilho intenso do sol, sendo agitada pela brisa que

balançava as árvores ao redor da clareira. Os olhos frívolos, amarelos como o ouro,

comprimiam-se de modo assassino enquanto a besta observava a expressão

assustada das duas crianças do outro lado, próximas da serenidade das águas do

lago. Ouviram falar das lendas, mas para Torb e Lala aquilo que estava perante os

dois não passava disso: uma simples lenda presente nas histórias que se contavam

ao redor de lareiras na hora do jantar, quando se aguardava a truta assar sobre as

brasas. O Leão Bestial Negro, a grande Besta Selvagem das Florestas de Aralyart.

Oriunda das trevas dos longínquos Vales de Halegun, os contos diziam que fora

o leão de estimação de um antigo e poderoso alquimestre que profanara a pureza

dos elementos, ao tentar ressuscitar o animal utilizando a terra amaldiçoada dos

vales. As lendas diziam que o leão ressurgiu dentre os mortos e, com suas presas

afiadas, devorou o alquimestre que o trouxera de volta à vida. Dizia-se, desde então,

que o Leão Bestial Negro fugira dos Vales de Halegun e encontrara abrigo nas

florestas de Aralyart, escondendo-se sempre durante o dia e saindo apenas à noite,

em meio às trevas profundas das matas do Condado de Arthal, alimentando-se de

desvairados aventureiros e inocentes curiosos que se embrenhavam nas

madrugadas pela floresta.

Assombrados, Torb e Lala permaneciam estáticos, tomados pelo medo. A

criatura continuava imóvel; seu olhar maligno estudava as duas presas à frente,

como se decidindo a quem devoraria primeiro.

O terror dominara Torb por completo. Um calafrio subiu por sua espinha. Os

dedos das mãos enraizaram-se ao cabo da espada de madeira e ele a estendeu, como

se pudesse encarar a criatura com um pedaço de pau. A pele queimava e as orelhas

ardiam como se estivessem em chamas. Até os menores pelos de sua nuca e dos

braços estavam completamente eriçados. De esguelha, notou que Lala parecia ter

congelado onde estava. Os olhos arregalados exalavam o terror que a menina sentia.

Podia ouvir o coração da amiga palpitar àquela distância. Ela não arriscava mexer

sequer o dedinho.

Os poucos segundos em que os dois meninos e a criatura se entreolhavam iam se

arrastando. Então, aquela lenda que o avô do avô de Torb ouvia desde que era uma

criança, de fato, era verdade? Mas se as lendas se confirmavam, por que o Leão

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Bestial Negro surgira, em carne e osso, durante o dia? Ele não era uma criatura das

trevas?

Um turbilhão de perguntas fervilhava na mente do garoto, mas ele tinha quase

certeza de que não viveria para conhecer suas respostas.

O grito estridente de Lala ressoou. O Leão Bestial Negro avançara, se assomando

sobre os dois em um salto ameaçador, patas em riste, garras afiadas à mostra; cobria

o sol que irradiava para dentro da clareira com sua carcaça monstruosa.

Instintivamente, Lala conseguira esticar o braço e puxar a gola do blusão de Torb

e arremessá-lo com uma força sobre-humana na direção do lago.

Um misto de confusão e estardalhaço se desdobrou em uma sequência de fatos

atabalhoados. Torb se viu caindo dentro do lago. Desesperado por oxigênio, suas

narinas foram invadidas pelas águas serenas. Uma dor lancinante na cabeça surgiu

assim que seu cocuruto bateu em uma das pedras do fundo. A visão tornou-se turva

de chofre e o mundo girou lentamente em diversos borrões de nuances verdes,

azuis e pretas.

Algo inesperado acontecera.

A cabeça ainda doía por causa da pancada violenta. Os pulmões pareciam cheios

da água que aspirara sem querer. Torb mirou os próprios pés firmes dentro do lago.

E não havia água.

Os olhos percebiam o que acontecia, mas a mente não queria acreditar: espirais

de água cristalina pairavam no ar em sequência a centímetros de suas mãos que

ainda se mantinham instintivamente em riste, protegendo o rosto. Torb arregalara

os olhos, admirado com a suntuosidade dos trechos de água que flutuavam diante

dele. Boquiaberto, contemplava o rastro de águas estáticas que avançavam,

incólumes, em direção ao céu, como um rodamoinho.

As águas do lago se avolumavam e, quanto mais os olhos acompanhavam a trilha

que seguiam, mais arregalados ficavam. Um gigantesco arco mágico se formava ao

redor da clareira e serpeava pelo perímetro, quase tocando as folhagens das árvores.

Enroscava-se como um caracol, bem no centro, parecendo uma gigantesca cobra

formada por água. A metros de distância de sua cabeça, bem lá no alto, o Leão

Bestial Negro se debatia, furioso, sustentado por um fluxo interminável de águas

torrenciais que se renovavam, subindo e descendo, mantendo a besta nas alturas.

— Como... você fez... isso? — perguntou Lala, aparvalhada, tão ou até mais cética

do que o amigo esgalgado.

— Eu... não... sei... — pronunciou Torb, mirando de Lala para o Leão Bestial que

rugia, flutuando metros acima, e de novo para amiga.

— É inacreditável! — Lala engrolou, animada — Você tinha que ter visto! Assim

que você caiu, as águas se agitaram e logo elas... elas... voaram para o alto e se

juntaram. Aí ficaram rodopiando bem perto das árvores e quase afogaram aquela...

coisa lá em cima. Você é um alquimestre, Torb. Sua magia controla as águas.

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Torb não movia um músculo, ainda estático e atarantado. Uma mistura de

excitação e medo aflorava, sem estar convicto de que fora ele mesmo quem acertara

a criatura com aquele monte de água. As mãos continuavam paralisadas na posição

e ele não ousaria mexê-las nem tão cedo. Não queria que aquela criatura demoníaca

despencasse lá do alto e terminasse por fazer dos garotos sua refeição do dia.

— Certo, mas... O que eu faço agora? — inquiriu Torb.

Lala franziu o cenho.

— Não sei, você é o alquimestre aqui. Você é que tem o dom de controlar as

águas...

Apesar de todo medo e da falta de jeito, Torb respirou fundo e resolveu arriscar.

Não poderia ficar ali para sempre, paralisado e morrendo de medo. Uma hora seus

braços iriam ceder ao cansaço. Com um movimento suave das mãos, ele viu o fluxo

de água se mover lá no alto.

Mas algo inesperado aconteceu. Outra vez.

O Leão Bestial Negro girou para a esquerda, agitando as patas traseiras sobre as

correntes de água e em fração de segundos, Lala e Torb viram a fera despencar do

céu e chocar-se com estrépito contra o chão relvado; a terra ao redor dos garotos

tremeu com a força do impacto. Cambaleando e ainda atordoada pela queda, a besta

conseguiu se reerguer e postou-se sobre as quatro patas. Encarou o garoto e a

garota outra vez, arreganhando os dentes afiados. Os olhos se comprimiam em uma

expressão assassina; a baba viscosa escorria de sua boca arreganhada.

— TOOOOOOORB!

O grito de Lala reverberou nos tímpanos do amigo. Uma gota de suor invadiu

seu olho esquerdo e ardeu como uma brasa viva. Os braços retesados insistiam em

permanecer na mesma posição e as pernas tornaram-se como chumbo sobre as

pedras escorregadias do fundo do lago vazio. O Leão Bestial avançava sem pudor.

As patas grosseiras da fera retumbavam com ímpeto sobre a terra e faziam-na

tremer. As mandíbulas da criatura balançavam de uma forma frenética para

abocanhar as duas presas em seu ataque mortal.

Torb tinha de agir e rápido. Os braços giraram no ar por instinto e as mãos, juntas

formando uma concha, apontaram na direção da fera que avançava implacável em

sua investida feroz.

Um vento atroador assoprou e agitou seus cabelos com a fúria de um tufão.

Filetes de água gelada golpearam-lhe a face e encharcaram suas roupas. Um ruído

ensurdecedor ribombou em seus ouvidos. Os olhos, que imediatamente se

fecharam com a força do vento, iam se abrindo aos poucos, bem a tempo de

contemplar a serpente de água viajar pelos arredores da clareira e golpear a

mandíbula do Leão Bestial, lançando-o contra uma das árvores.

— AFOGUE-O!

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Torb não precisou que a amiga pedisse duas vezes. Ao som do grito escandaloso

de Lala, Torb moveu mais uma vez as mãos e as águas envolveram a fera e a

levantaram novamente em direção aos céus. Agitado dentro de um rodamoinho

pela força das águas, o Leão Bestial Negro se contorcia, movendo as patas

inutilmente na tentativa de escapar do afogamento. Torb não parava de girar as

mãos, como se agitasse roupas lavadas em um balde. A criatura moveu as patas uma

última vez até seu corpo negro parar de se debater dentro do rodamoinho.

— O que está acontecendo?

Caily voltara atônito da floresta. A água controlada por Torb se precipitou sobre

a clareira como uma chuva torrencial repentina, molhando os três garotos. O Leão

Bestial Negro caiu, moribundo, em um baque que estremeceu a clareira. No

segundo seguinte, Lala e Torb observaram o amigo tombar de borco no chão,

desmaiado.

Um trovão retumbou no céu e afastou as memórias da infância de Torb no

mesmo instante. Nuvens carregadas se chocaram, provocando um ruído de dar

arrepios na espinha. Um relâmpago fulgente iluminou as trevas dominantes do

horizonte com um brilho esbranquiçado e lançou uma luz vacilante sobre a encosta

de Aralyart.

O mar encapelado agitava-se, rechaçando contra o cais com estrondos

aterrorizantes. Ondas impetuosas fustigavam a carcaça do navio e faziam-no

envergar, balançando de um lado a outro; as vigas do convés colidiam ruidosamente

com as outras fragatas ao ímpeto das águas. Torb firmou-se entre as cordas da

cruzeta. O sorriso nostálgico não desaparecia dos lábios, estampado em seu rosto

como uma tatuagem; recordava-se aos poucos do sórdido motivo de estarem todos

ali, em uma interminável expectativa e o semblante descaía.

Uma criatura adormecida há milênios emergira das profundezas das Águas de

Crispoles, que banhava toda a encosta sul do continente havia três meses.

Avançando com intrepidez sobre os navios e embarcações no coração do mar, a

criatura devastou um terço de toda a frota marítima na enseada de Aralyart,

arremetendo aos poucos em direção aos portos do reino. Ceifando as vidas de uma

centena de marinheiros e pescadores, destruiu dezenas de casas e vilarejos da

encosta com seus tentáculos colossais. Ondas gigantescas cobriram a costa

portuária, matando centenas de habitantes. O pânico e o terror logo se alastraram

pelas terras do reino e dos condados. Fren, o Intrépido, rei de Aralyart e seus

conselheiros não conseguiam encontrar os motivos de tal criatura ter despertado

de seu sono transcendente e nem mesmo os mais sábios e adivinhos do reino

alcançaram sucesso em determinar as causas desse feito. Uma crise se instaurava na

nação e colocava em xeque a governabilidade do rei. Numa tentativa desesperada

de conter a fúria dos ataques cada vez mais constantes da criatura abissal, Rei Fren

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colocou seus melhores soldados, mestres e alquimestres em um combate direto

com o monstro, no meio do mar.

Tudo em vão. Mais de três mil homens morreram no primeiro embate.

As melhores estratégias elaboradas pelos mais obstinados generais de Aralyart

iam, literalmente, por água abaixo. Soldados, espadachins, mestres, alquimestres,

capitães, generais. Milhares de homens dizimados pelos ataques impetuosos de um

kraken. A enseada do reino se transformava em uma terra fantasma e inóspita. Um

lugar de escombros, destruição e morte e que trazia o infortúnio e a desgraça para

as terras abundantes de Aralyart.

A última esperança do rei contra a fúria de uma lenda demoníaca era confiar na

força de outra lenda.

As histórias corriam os quatro cantos do continente. Desde que Torb descobrira

seu poder de controlar a água e fora recrutado pela Marinha Alquimestre do reino

ainda criança, ele ouvia os murmúrios que circulavam desde os jovens aprendizes

até os almirantes do mais alto escalão. Discorriam, sempre na hora do almoço ou

entre as horas vagas de cada plantão noturno, sobre os feitos de um homem que

dedicara toda uma vida a combater monstros, encarar seres mitológicos bestiais dos

mais variados tipos e salvar as vidas dos menos afortunados. Nas longas histórias

contadas pelos pátios e corredores a fora, comentavam que seu poder era infinito

e também que podia controlar qualquer coisa, até mesmo o tempo. Dizia-se que

sua força era como a de dez mil guerreiros. Ouviu os contos sobre sua aparência e

que seu cabelo era grande e reluzente como o ouro, que tinha mais de dois metros

de altura e músculos que cobriam o corpo dos pés à cabeça, que apenas um único

soco seu era capaz de derrotar uma quimera. Torb jamais conseguira descobrir seu

verdadeiro nome. Uma centena de nomes ouvira em toda sua vida. Entre as muitas

especulações de como de fato ele se chamava, somente uma era unânime entre toda

a Marinha de Aralyart e inclusive como os guerreiros, mestres e alquimestres, elfos,

duendes e anões, conselheiros, nobreza e todos os cidadãos do reino o conheciam:

A Lenda.

Rei Fren escrevera uma carta. Uma única carta em uma tentativa desesperada de

frear os ataques do monstro colossal e destruí-lo de uma vez por todas. Escrevera

de próprio punho uma súplica por socorro. Derramara a cera quente sobre o papel,

selando a carta com o Faisão Auspicioso, roxo e dourado, símbolo do reino de

Aralyart e dos Condados Triunos, contido no anel real. Amarrara a carta às patas

dianteiras de seu grifo mais veloz e soltou–o pelos ares, rumo ao horizonte, na

esperança de que o clamor contido naquele pedaço de papel encontrasse o único

que poderia socorrê-lo.

Outro raio rasgou o céu e iluminou a enseada. Alarmado mais uma vez no

extremo da cruzeta, Torb sentiu os pelos de sua nuca se eriçarem pela primeira vez

desde que subira ao topo do navio, no começo da madrugada. O medo que o

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dominava naquele momento era infinitamente maior do que quando enfrentara o

Leão Bestial Negro em sua infância. Cinco dias se passaram desde que o grifo real

cruzara os céus do reino em busca da ajuda daquele que seria o único capaz de livrar

Aralyart da desgraça em que sucumbiam.

Nenhuma resposta.

Fren não podia ceder e se prostrar perante a ameaça iminente do gigantesco

monstro marinho que subjugava sua nação. Não iria fraquejar e entregar seu povo

como presa fácil. A barba densa e acaju que o rei sustentava assumia intensos tons

grisalhos e as olheiras das noites sem dormir eram negras e profundas. Envelhecera

em três meses o que deveria envelhecer em dez ciclos. Convocou os últimos

alquimestres e guerreiros para um derradeiro ataque, uma última investida que não

poderia falhar.

Mil e setecentos homens, entre mestres, alquimestres, espadachins, lanceiros e

arqueiros. Guerreiros de Aralyart, audazes camponeses dos condados que queriam

defender suas terras, leigos pescadores munidos de arpões, garimpeiros vindos dos

mais distantes vales sustentando suas espadas, mercenários interessados apenas na

recompensa oferecida, tropas e esquadrões de reinos vizinhos. Uma multidão de

homens armados, aguardando, lado a lado com seu rei, que também vestira a

armadura dourada real e se juntara aos últimos valentes de Aralyart para aquela que

poderia ser a derradeira batalha de suas vidas. Espalhados no semicírculo dos

resquícios do que antes fora o mais suntuoso porto do reino, encarrapitados no

topo de uma dúzia de fragatas e navios, na iminência do gigantesco kraken insurgir

das profundezas, Fren e seus ávidos guerreiros esperavam. Com medo, agarrados

às suas armas, lavados pelas torrentes de águas que se precipitavam dos céus e das

ondas que não paravam de se chocar contra as embarcações, eles permaneciam na

expectativa. O coração palpitava no fundo do peito. A adrenalina corria nas veias

de cada guerreiro.

Era a última cartada. Lutar ou morrer.

Um dos marinheiros mais experientes da tropa se oferecera como isca e

aguardava em um bote a alguns metros do porto inóspito, em meio às indomadas

águas do oceano. O suor se misturava à chuva que escorria por suas têmporas e os

pelos da nuca se ouriçavam, ora pelas grossas gotas gélidas da chuva, ora pelo medo

avassalador que o dominava.

Um som atroador reverberou por toda a extensão do porto e a atenção de todos

se aguçou. O silêncio imperou de repente. Os acontecimentos seguintes se

desenrolaram muito lentamente, apesar de ocorrerem em questões de segundos que

passaram despercebidos pela grande maioria.

O barquinho que servia de isca foi cuspido na direção das nuvens, com violência.

Os olhares amedrontados nas ruínas do porto conseguiram visualizar a cena, pois

um raio se desenhou nos céus nesse exato momento, tocando as águas negras de

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forma atroz, lançando uma luz exuberante, de brilho leitoso, sobre os soldados,

pescadores, camponeses e outros guerreiros ansiando pelo monstro ao longo da

orla, desta vez mais do que nunca agarrados às suas armas, como se jamais houvesse

um amanhã.

O mar recuou da orla com velocidade e os navios ancorados rangeram as

madeiras de seus velhos cascos e se dobraram até quase virarem de vez. Uma onda

colossal se assomou em direção aos céus de chumbo. As narinas de todos foram

invadidas por um forte cheiro de sal trazido pela maresia e que se misturava ao odor

pungente das incrustações de peixes podres do fundo das fragatas e corsários.

Um novo raio cortou os céus e olhares assustados se arregalaram ainda mais.

Tentáculos monstruosos incrustados de corais surgiram do meio das águas;

erguiam-se aterradoramente contra as densas nuvens negras. Uma cabeça oval e

reluzente emergiu das trevas intensas do oceano. Um olhar frívolo e sanguinário

brilhava à luz dos clarões dos relâmpagos. Arreganhou as mandíbulas, revelando

uma boca com fileiras de dentes afiados em um sorriso maquiavélico. Encarava não

os seus futuros algozes e sim as suas mais novas presas.

Torb fincara os dedos na cruzeta e fundira-se à velha fragata com o medo

crescente. A boca insistia em permanecer escancarada sem que percebesse.

As águas salgadas não paravam de recuar furiosamente enquanto a criatura se

erguia do oceano. As fileiras de navios rangeram suas velhas madeiras com mais

intensidade e apinharam-se uns nos outros como peças de um dominó que acabara

de ser derrubado. Ao mesmo tempo, o enorme kraken revelava seu corpo

pendendo de crustáceos. Coberto por escamas translúcidas, ao brilho dos

intermitentes relâmpagos, a carcaça monstruosa revelava um tom prateado

chispante. Os seis tentáculos se eriçavam, agitando-se sobre as águas. Os quatro

olhos no topo de sua cabeçorra oval eram mínimas fendas e denotavam um rubro

e vívido fulgor. Para os guerreiros de Aralyart, era a visão do inferno.

Ao brado do rei, dezenas de soldados, munidos com suas espadas, machados e

lanças se lançaram do alto dos navios e fragatas ancorados pelo porto, pulando a

esmo, gritando, fincando suas armas sobre a carcaça rígida do temível monstro. As

lâminas se despedaçavam e sumiam no mar ao tentarem perfurar as duras escamas

dos tentáculos do kraken.

Um grito ensurdecedor reverberou por entre as águas; a onda colossal, que se

assomava metros acima desde que o monstro emergiu, rebentou em sua queda e

dois dos quatro tentáculos do monstro rasgaram os céus em um arroubo brutal

contra os navios.

Torb ergueu as mãos. Conseguiu conter o avanço da gigantesca onda como pôde,

usando seu poder, evitando com que o navio em que estava trepado se partisse ao

meio. Mas nem todos tiveram a mesma sorte: os barcos onde estavam os

alquimestres do fogo vieram à pique na primeira investida do monstro. Morte e

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destruição, era tudo o que ele conseguia vislumbrar onde antes havia dezenas de

guerreiros, ávidos por destruírem aquela besta colossal que emergira do oceano.

Gritos ecoavam por todos os lados e se misturavam ao som das rebentações

contra o que sobrara do porto do reino. Os destroços dos navios afetados pelo

ataque do monstro se empilhavam e eram levados para o meio do mar a todo

instante, pelas séries de ondas que iam e voltavam. O kraken impelia os

monstruosos tentáculos contra a orla em uma orquestra de movimentos lentos e

compassados, provocando novas marés colossais que inundavam as pedras e

escombros do que sobrara de um dos píeres e do aglomerado de destroços de

navios. A cada segundo, a criatura avançava em direção ao cais.

A chuva não dava trégua e assolava ainda mais os exauridos remanescentes que

guerreavam inutilmente contra o monstruoso kraken. Torb removeu os cabelos,

lavados pela chuva e pelas marés, que teimavam em escorrer para cima de seus

olhos com as costas das mãos e vislumbrou o cenário estarrecedor: dezenas de

corpos de marinheiros depositados sobre o cais, trazidos pelas inúmeras ondas do

mar em fúria. Afogados, jaziam incólumes, empilhados, sobre as torrenciais chuvas

daquela lúgubre manhã cinzenta.

Entrementes, Torb levantou os olhos e entreviu alguns poucos alquimestres

sobreviventes ainda resistindo. Lançavam incessantes jatos de água sobre a criatura.

Bolas incandescentes voavam a todo o momento das mãos dos alquimestres do

fogo. Cruzavam os céus, deixando rastros crepitantes pelos ares e eram obliteradas

sobre as escamas duras e prateadas do kraken.

Não havia mais esperança.

Aralyart chegara ao fim. A beleza e majestade do antigo reino sucumbiria aos

intentos da poderosa criatura do mar. Os ciclos de fama e glória morreriam naquela

manhã mórbida e chuvosa. O kraken logo chegaria à terra firme e terminaria por

extinguir o reino do mapa.

O alquimestre ergueu a cabeça e encarou as nuvens lúgubres. Naquele dia, o sol

não despontara. Preferia se esconder. Não viera ver o triste fim de Aralyart. Foram

deixados à mercê da própria sorte contra uma besta implacável.

Torb fechara os olhos. Decidira aguardar sua morte iminente.

Um alvoroço descomunal em um extremo do cais se iniciou e passaria

despercebido entre as diversas marés que arrebentavam com fúria contra o píer e

os urros estridentes do kraken em suas investidas incessantes, não fosse por uma

nesga de euforia incontida nas vozes excitadas que não combinava com o terror do

momento.

Não eram gritos de horror, lamento ou súplica. Alaridos de esperança se

sobrepunham aos ruídos das marés e aos estrondos dos trovões.

Abriu os olhos.

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Um raio azul e fluorescente fulgurava, disparando em velocidade, voando no

longínquo horizonte. Por entre as nuvens negras que dominavam a abóbada celeste,

ele se movia obstinado. Torb não conseguia acreditar no que vislumbrava a metros

e metros de distância nos céus e nem mesmo se o que via era de fato real ou uma

alucinação de sua mente cansada.

Novos brados reboaram pelos ares. Os ouvidos exauridos conseguiram captar

dessa vez o que o coro das vozes irrequietas e eufóricas dos últimos e combalidos

guerreiros de Aralyart berravam:

— A Lenda!

— A Lenda!

— A Lenda!

Os ares castigados pela tempestade e pelas investidas do monstro marinho se

encheram de algo que para Torb havia acabado: esperança. O peito ardia

novamente. A euforia mexia com seu âmago. Onde antes havia cinzas, uma chama

de esperança voltava a crepitar aos poucos em seu coração desalentado.

Um súbito e inesperado golpe voraz atingiu as águas, os tentáculos do kraken

golpearam a encosta mais uma vez. Água. Muita água. Borrões difusos em tons de

mogno rodopiando em um nauseante frenesi. Mais água. Desespero por oxigênio.

Um clarão que invade os olhos e quase queima as retinas. Palpitações desenfreadas,

o coração acelerava no fundo do peito de forma incontrolável. Uma intensa e

infindável vertigem. Mais e mais água. Por fim, a paz.

O silêncio pressionou com violência os ouvidos de Torb. O oxigênio de seus

pulmões se esvaía e os primeiros formigamentos nas extremidades de seu corpo

davam um sinal de que precisava correr para sobreviver. O frio se apropriava de

suas emoções; a ausência de luz do fundo do mar enervava a mente e curava as

vistas atordoadas.

A calmaria que apenas a imensidão das profundezas do oceano proporcionava

envolveu-o de repente. A maré gigantesca provocada pela investida da criatura

engoliu os últimos navios que ainda resistiam aos ataques, destruindo-se em

violentas colisões. O baque causticante dos tentáculos do kraken fez a fragata onde

Torb estava romper-se ao meio. As embarcações restantes ao longo da orla voaram

em direção aos céus, trombando-se umas nas outras.

O suave afago das águas salgadas conduzia seu corpo semi-moribundo no fundo

do mar. Os olhos pesarosos permaneciam fechados. Aproveitava o silêncio

reconfortante do oceano e queria continuar assim. Os resquícios de força que o

mantinham vivo instigavam para que voltasse à superfície de imediato em uma

súplica desesperada. Abriu os olhos embaixo d’água e, entre as imagens difusas dos

mastros e couraças das embarcações destruídas que pairavam na imensidão verdemusgo

do mar, ele o viu.

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Era ele. A Lenda. Embora jamais o tivesse visto, algo em seu íntimo afirmava que

era ele.

A poucos centímetros de distância de onde estava, completamente envolvido

pelas águas enregelantes da orla de Aralyart, Torb o contemplava e era exatamente

como sempre imaginou.

Alto, de porte pujante, as muitas histórias a respeito de seus milhares de feitos

heroicos faziam total sentido visto daquele ângulo. Mesmo ali debaixo d’água, os

músculos se avolumavam em uma túnica de seda branca que lhe cobria o pescoço

e ia até o meio da coxa. Um gibão esmeralda longo e aberto, de couro fervido,

pesava sobre seus ombros. Os cabelos longos e lisos batiam no meio de suas costas

e se abriam como os tentáculos poderosos do kraken. Eram muito loiros, quase

brancos, também enlevados pela grandeza do oceano, contrastando com a capa

negra atada ao seu pescoço, que drapejava suas costas. O rosto rígido, de feições

duras, sustentava uma barba rala e dourada e fazia jus à fama de suas lendas: ele não

era alguém novo, mas também não era um ancião. Aparentava ter seus quarenta

ciclos de idade e era o tipo de homem cuja presença impunha respeito. A calmaria

do fundo do mar tornava sua aparência quase etérea, como se ele pertencesse a

outro mundo. No momento em que Aralyart era assolada por um demônio

marinho na superfície, Torb sentiu a esperança arder outra vez.

A Lenda agitou a cabeça e lhe deu um breve sorriso. Transmitia a segurança de

que com ele ali, tudo ficaria bem. Apontou para a superfície com o dedo indicador

e, em um rodamoinho indomável, disparou em direção aos céus. A aura de sua

magia em tom azulado eletrizante preencheu o entorno obscuro do mar onde Torb

estava.

O alquimestre balançou os braços pesados como chumbo e, com o resquício de

força que conseguiu reunir, nadou rumo à superfície.

Sorveu o ar até os pulmões inflarem e doerem. Mergulhou por instinto quando

uma onda arrastou um mastro em sua direção e nadou o máximo que o fôlego

aguentou até a praia. Retornou ao limiar das águas enregelantes, puxando o ar

daquela manhã chuvosa e cinzenta com toda a força que ainda tinha.

Avançava em direção ao cais em largas braçadas. Com o pouco de força que

restara nos braços retesados, Torb tomou um impulso e subiu em um píer, ao som

de outras ondas impetuosas que quebravam em suas costas.

Os olhares dos derradeiros guerreiros e alquimestres ao longo do porto

observavam, embasbacados, a cena que se desenrolava no meio do mar. Uma névoa

azul fluorescente dominava os céus, refletindo sobre as ondas impetuosas e nos

resquícios das anilhas de ferro dos navios destroçados. Rutilando nas pupilas

dilatadas dos olhos arregalados e vidrados de todos, emanava das duas mãos abertas

do homem que era a última esperança para o reino: A Lenda. O monstruoso kraken

24


era envolvido com um poder mágico. A criatura se debatia com ferocidade, os

tentáculos provocando novas marés carregadas de destroços de embarcações.

Lavado pelas chuvas e pelas ondas causticantes, Torb e seus companheiros não

acreditavam no que estava diante de seus olhos. Pairado no ar, flutuando com a

força de sua magia sobre as marés furiosas, A Lenda erguia o monstro aos poucos,

retirando-o do fundo do oceano.

Uma explosão de vivas, uivos e gritos de emoção se espalhou por toda a extensão

do porto. As maçãs do rosto macilento de Torb queimavam. Pululava onde estava,

sem perceber, movido pela excitação de que o sofrimento de seu povo finalmente

chegaria ao fim.

— A água — urrou a Lenda e sua voz trovejou pelos quatro cantos do cais. —

Afastem o máximo que puderem dele!

Os alquimestres da água obedeceram à ordem de imediato. Torb correu

atarantado para junto de outros três alquimestres que criaram um vórtex e

afastavam toda a água ao redor do monstro. As ondas cessaram e as águas

rodopiavam intensamente, se condicionando aos movimentos desesperados dos

quatro alquimestres, balançando suas mãos em círculos. Uma enorme cratera se

formava no meio do mar; as marés cediam espaço a uma faixa circular onde era

possível ver os corpos intactos e sem vida dos soldados que sucumbiram às

ofensivas do kraken em meio aos restos de fragatas e navios e aos estandartes roxo

e dourado com o Faisão Auspicioso, rasgados e destruídos, depositados no fundo

do mar.

Entre os urros estridentes do monstro, A Lenda fez sua voz reboar pelos céus

outra vez.

— Alquimestres do fogo, concentrem seu poder.

Os alquimestres do fogo sobreviventes se uniram e dispararam de onde estavam.

Correndo, nadando, se desvencilhando dos mastros e pedras lavadas dos

escombros, alguns com ferimentos caóticos, com braços e pernas mutilados e o

esgar apático de quem travara uma injusta guerra. Os últimos dez que restaram se

uniram em um extremo do cais. Empenhavam todas as suas energias em concentrar

a magia do fogo que ainda lhes sobrava. As mãos trêmulas faziam as labaredas se

misturarem umas às outras, crepitando acima de suas cabeças, e os olhares

esperançosos observavam A Lenda, envolvido em uma névoa cintilante e azulada

de magia, elevar ainda mais o gigantesco monstro enquanto toda a água do mar

abaixo de ambos se continha através do poder dos alquimestres da água.

A esfera coruscante ia tomando volume. Fumegava, ficando quase do tamanho

de um bote a remo e, a cada minuto, tornando-se mais pesada e quente.

A Lenda soltou umas das mãos que erguia o kraken. O rosto lívido, os olhos

refletindo o brilho azulado de seu poder, ele esticou a mão livre e sua aura de magia

envolveu a esfera de fogo, fazendo-a flutuar sobre os ares.

25


Um clarão dominou a abóbada celeste como um dia quente de verão, iluminando

a extensão da orla. Um estrondo ensurdecedor ribombou em todos os ouvidos e

os últimos guerreiros de Aralyart sentiram os pés desprenderem-se do cais quando

foram arremessados contra o chão com o baque repentino.

Tateando as lajotas do que sobrara do píer, com a vista ainda turva e um zumbido

nos ouvidos, Torb se pôs de pé com dificuldade. Levou um tempo até parar de

cambalear, os pés se firmarem e a audição perceber uma agitação anormal pelas

ruínas do porto. Os sentidos ainda se recuperavam e ele pode se dar conta de que

não era uma simples agitação: os últimos sobreviventes daquela batalha

comemoravam, vibrando à beira das águas que rechaçavam contra os destroços do

cais.

A Lenda derrotara o kraken, explodindo-o pelos ares.

A chuva resolvera não dar uma trégua sobre as terras de Aralyart. Precipitava-se

constantemente das densas nuvens que cobriam os céus sobre as centenas de

telhados oblíquos dos casebres e edifícios dos Condados Triunos. Retumbavam um

plic-plic e ploc-ploc de gotas em cima dos baldes de latão semi amassados das calçadas,

escorrendo em torrentes pelas ruas e vielas sinuosas, lavando as ásperas lajotas que

serviam de pavimento.

Os céus empalideceram brandamente. Abandonaram o tom cinza-chumbo e

cintilavam uma nesga de luz que transparecia entre as nuvens, revelando um cinza

lívido, porém ainda tristonho.

Diferente das ruas assoladas pela forte tempestade, o clima era intenso e

acalorado dentro dos quatro cantos da taverna mais famosa dos Condados Triunos.

Sobre ondas de cantorias alegres, vivas e o tilin-tilin de monstruosas canecas de latão

transbordando do melhor rum envelhecido em barris de carvalho de toda Aralyart,

cuja fama se estendia para muito além das Águas de Crispoles, os guerreiros mais

valentes do reino comemoravam a vitória sobre o kraken.

Uma névoa quase palpável dominava os ares da taverna e pressionava os vidros

quadriculados das janelas, embaçados com a animação das danças no centro do

salão. Duendes e anões, alquimestres do fogo, da água e do ar, mestres e

espadachins e até mesmo alguns poucos elfos do Relicário do Condado de Séquiro,

a quase duas milhas dali, davam-se as mãos em uma dança típica que já tomava

conta do ínfimo espaço do lugar. Com grande entusiasmo, as vozes ébrias

engrolavam versos improvisados na hora:

Sobre ondas e vagas e o escuro sem fim,

Em morte afrontosa, o que será de mim?

Em brilho Lazúli, cortando o céu,

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Rasgando os mares, sem deixar-nos ao léu.

O poderoso kraken, quem pode deter?

A Lenda é seu nome, isso posso dizer.

Gritavam “A Lenda”, levantando as canecas o mais alto que conseguiam,

resvalando a bebida pelo piso de mogno.

Apesar do convite do Rei Fren para um banquete em comemoração no Salão

Principal do palácio com todos os seus conselheiros e a realeza, A Lenda preferira

estar rodeado pelos corajosos guerreiros que o ajudaram a destruir a fera e a todo

povo que festejava, se acotovelando no interior da taverna. Rejeitando as honrarias

e preferindo encher as canecas com as melhores bebidas da periferia de Aralyart, A

Lenda se sentia em casa. Sorrindo, com os cabelos louros amarrados em um longo

rabo de cavalo, saboreava o delicioso rum em grandes goladas. Com o peitoral de

fora e apoiado no encosto de uma grande cadeira de carvalho, A Lenda arreganhava

seu sorriso cheio de dentes e intercalava salvas de palmas calorosas entre as várias

doses de rum e os versos cantados em sua homenagem. Entrementes, Torb Nayar

e dezenas de outros soldados se espremiam para ficar o mais perto possível do

salvador de Aralyart, ao redor de uma grande mesa redonda também de carvalho

polido.

— A Lenda, você pod...

— Por favor, — disse ele, sorrindo pelo canto da boca — meu nome é Heidlich,

do Trono dos Heinhardt, das Suntuosas Terras de Badorian e Segundo Guardião,

protetor também das terras de Aralyart. Parem de me chamar de “A Lenda”. Pareço

ter uns mil ciclos quando vocês me chamam desse jeito e não sou nem tão velho

assim...

Todos desataram a rir. Alguns até de forma exagerada. Os guerreiros se

acotovelavam ao redor dele querendo fazer uma infinidade de perguntas, mas a

grande maioria não tinha coragem suficiente de atrapalhar sua bebedeira. Heidlich

virou uma caneca de uma golada só e, além do poder infinito, parecia ter a

habilidade de ler as mentes de seus colegas de mesa.

— Por que vocês estão tão calados? Querem me fazer alguma pergunta ou

incomoda aos senhores minha presença aqui?

— Não, de maneira alguma — respondeu um anão, de olhos arregalados, alisando

os cabelos grisalhos.

— Como soube do kraken? — perguntou alguém, mas nem todos conseguiram

ver de onde viera a questão.

— A carta de Fren, seu imbecil! — respondeu outro. E ouviram dedos estalarem

no cocuruto de alguém.

27


Heidlich se levantou, entusiasmado. Palmas interromperam a conversa e

encheram o salão quando uma trupe de duendes fez um espetáculo acrobático e

formaram uma pirâmide feita pelas próprias criaturinhas e uma série de truques de

mágica.

— De fato, encontrei o grifo do rei. Ou melhor, ele me encontrou. — Heidlich

riu, ajeitando a cadeira e escorando as costas sobre ela. — Estava em Boralioch, em

grandes apuros...

Ao redor da mesa, vários pares de olhos se entreolharam.

— Enfrentando uma Quimera? — perguntou um alquimestre, curioso.

— Não... — respondeu Heidlich, displicente.

— Matando dragões?

— Destruindo outros krakens?

— Dilacerando minotauros?

— Também não...

— Então o quê? — interrogaram todos, em uníssono.

— Recebendo um prêmio no palácio real! — falou Heidlich, erguendo a caneca

de rum.

Novas risadas encheram os ares ao redor da mesa.

— Prefiro um milhão de vezes matar dez dragões e mil minotauros do que estar

em um palácio cheio de requinte e pomposidade. — Heidlich engrolava; a bebida

já afetava suas faculdades mentais. — Não nasci para tronos reais.

— É verdade que você matou uma Hidra?

— Uma? — Heidlich riu e piscou na direção de uma morena esguia que servia

jarras de vinho próximo ao balcão. — Foram duas!

Uma saraivada de interrogações eclodiu de vários lugares e a quantidade de

pessoas ao redor dele dobrava de tamanho. Dúvidas se Heidlich de fato matara um

monstro elemental de fogo apenas com uma faca e um braço amarrado nas costas;

se o guardião derrubara um ciclope que ameaçava aldeões na Ilha Doret e até se

movera uma montanha do lugar que atrapalhava o caminho entre dois reinos para

além das Águas de Argúrius.

Heidlich ria a cada nova pergunta absurda. A morena deixara as canecas e viera

se sentar em seu colo. A mão do guardião corria pelas costas da mulher com

suavidade, repousando de uma forma lasciva no meio de suas pernas. Ela ria,

mordiscando os lábios.

— Eu cresci ouvindo todas as lendas a seu respeito. — Torb reuniu coragem o

suficiente para falar. Mais para ele próprio do que para o guardião — Foram elas

que me inspiraram a querer ser o melhor alquimestre que Aralyart poderia ter...

Heidlich bebericou de mais uma caneca de rum. O silêncio imperou sobre a mesa

e as atenções dos guerreiros ao redor se voltaram para o alquimestre da água. O

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guardião encarou Torb de forma serena, absorto, e ele podia sentir as bochechas

enrubescerem com tantos olhares em sua direção.

— Eu também acredito em lendas — inferiu Heidlich, empurrando uma caneca

para ele.

— Até na de Farhill, a Ilha Perdida?

— Até em Farhill e não, ainda não consegui encontrar essa maldita ilha —

proferiu o guardião, abrindo um sorriso. — Foram as lendas que me fizeram querer

honrar meu sangue guardião. As lendas são o motivo de querer cumprir à risca a

primeira das Leis Primazes. Até mesmo quando as assolações me provocaram o

maior dos medos, mesmo quando achei que não veria novamente a luz do sol, ou

o brilho no olhar de uma bela jovem de cabelos negros, — E aqui ele fitou a moça

sentada em seu colo e a beijou nos lábios com vontade — eu sabia: jamais desejaria

outra vida que não fosse a de protetor, de Guardião, usando meu poder a favor do

povo. Mesmo que essas lendas provocassem tantas outras lendas absurdas sobre

mim.

Aplaudindo com vontade, a multidão ao redor da mesa retomou a cantoria e as

danças no centro do salão.

O guardião terminava de acariciar os cabelos encaracolados da morena e lhe

beijava o pescoço quando alguém envolto em trajes reais, com um gigantesco elmo

de prata embaixo do braço direito, o chamou. Heidlich levantou-se, vestindo sua

túnica fina e abotoando o gibão. Ladeava o homem de armadura e trajes reais rumo

aos fundos da taverna, passando por um longo corredor estreito drapejado de

tábuas de carvalho áspero, na direção da adega.

— Vida longa ao rei! — exclamou o soldado, fazendo uma longa saudação.

— Eu não sou rei — respondeu Heidlich, sério.

— Lorde Heidlich Heinhardt, eu sinto muito — falou o homem consternado,

tirando do interior das vestes um envelope marfim, com o selo real do Trono dos

Heinhardt.

Heidlich tomou a carta em suas mãos e abriu-a, desesperado. O sorriso

desapareceu e uma lágrima escorreu de seus olhos quando terminou de lê-la.

— Seu pai, o Nobre e Valoroso Rei Cench Heinhardt veio a falecer na noite

passada — sibilou o mensageiro, de cabeça baixa. — O Trono Branco da Suntuosa

Badorian clama urgentemente por seu regresso.

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Capítulo Três

Uma Prosa Acalorada

Quem via as vastas e abundantes terras da Intrépida Miliat, um dos maiores e

mais gloriosos reinos do continente de Aladar destacado de forma majestosa, não

imaginaria o quanto elas eram diferentes muitos séculos antes. Mesmo ao sofrível

findar da atroadora e sanguinária Era das Trevas, quando para os elfos iniciava o

que eles costumam chamar até os dias atuais de A Majestosa Era de Ouro dos

Humanos e Mágicos, as densas florestas cobertas de monstruosas faias, carvalhos

e salgueiros cobriam boa parte do continente e os reis que conseguiam estabelecer

seus reinos em meio à mata selvagem e às terríveis criaturas que ainda a habitavam

eram considerados verdadeiros e destemidos desbravadores. De caules gigantescos

e raízes maiores que duas legiões de homens, se estendiam por milhas e milhas

continente a fora. A floresta sempre fora temida, até mesmo pelos mais corajosos

aventureiros. Ao colocar os pés em Aladar, aqueles que conseguiram erguer seus

reinos à sombra da soturna floresta, conservavam um profundo respeito pelas

lendas e histórias contadas sobre os acontecimentos no coração da mata e, entre os

poucos reinos que iniciaram a colonização do continente, um nome ficou popular

para definir a selva hostil e fechada: a Floresta Demoníaca.

Com o passar dos ciclos, a extensão dos territórios de um reino passou a ser

símbolo de domínio e poder e as temidas criaturas da Floresta Demoníaca foram

perdendo espaço para o avanço dos reis em sua sede por hegemonia sobre o

continente de Aladar. Os últimos drows, ou elfos sombrios, bem como os trolls

remanescentes da guerra que marcou o fim da Era das Trevas, foram exterminados

ou sumariamente banidos da floresta. Os milenares salgueiros e carvalhos foram

derrubados e transformados em vigas e colunas de uma dezena de suntuosos

palácios e fortalezas para abrigar os novos Lordes e Ladies em franca expansão de

seus domínios rumo ao coração do continente. A notícia de que a Floresta

Demoníaca já não era mais tão temida assim, todavia ainda tendo uma boa faixa

dela cortando Aladar de leste a oeste em uma tortuosa diagonal, correu os cinco

continentes. Em pouco tempo, mestres e alquimestres ansiando por dedicar e

aprimorar seus poderes sob juramento de fidelidade ao brasão de alguma nobreza,

homens à procura de aventuras e novos horizontes, artesãos e garimpeiros em

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busca de grandes negócios, elfos, duendes, anões, faunos e centauros

desembarcaram em Aladar.

Ao longo dos séculos, após o período sombrio das grandes guerras, o continente

presenciou dezenas de reis estabelecerem pactos e alianças e realizarem feitos

extraordinários.

Entretanto, ninguém jamais fora tão notável e magnífico quanto Lorde Bertúlios,

dos Ayarza, ou Rei Bertúlios, o Obstinado. Os Ayarza deixaram para trás o frio

atroador que assoprava dos alpes congelados sobre as planícies de Boralioch por

um bocado de novas emoções em terras calorosas e desconhecidas e Bertúlios logo

se destacou mais do que a todos os seus seis irmãos. Não por seu sangue guardião

aflorar e ser incrivelmente poderoso, em que sua magia podia ser sentida a milhas

de distância; era guardião oriundo de uma família tradicionalmente guardiã e seu

poder era grandioso, porém Bertúlios era avesso à magia, mas um grande amante

da guerra. Espadas, sabres, arcos e flechas, lanças. Combates corporais em campos

abertos ou em matas fechadas, batalhas em alto mar sobre o comando de grandes

fragatas e até mesmo embates sobre o dorso de um grifo entre as mais altas nuvens.

Tudo era motivo para uma boa briga. Dizia-se que Vingança Sanguinária de Aladar,

seu sabre predileto, forjado em ouro e temperado vinte e sete vezes com gris-âmbar

puríssimo nas terras de Vaelfar, zunia nos combates pelos ares com imponente

maestria, como se ela fosse um instrumento enlevado de paixão na qual a guerra

era sua orquestra sinfônica. Não apenas Vingança Sanguinária ganhou fama nas

mãos do jovem estrangeiro, Bertúlios era um exímio colecionador e apreciador de

armas; sempre tomava para si as armas de seus mais aguerridos adversários e fazia

delas seus troféus. O hall de entrada do castelo de Miliat passou a exibir as espadas

e escudos que Bertúlios angariou ao longo de suas dezenas de batalhas, assim que

subiu ao trono.

Não demorou muito para que a destreza de jovem Ayarza fosse reconhecida e ele

foi convidado por Lorde Char dos Greenhan, o rei de Miliat àquela época, para

que, juntamente com sua família, integrasse a nobreza do reino. Bertúlios fora

colocado como Grão-General dos Exércitos e Legiões de Miliat, um dos mais altos

postos na corte, abaixo apenas do rei.

Assim que Lorde Greenhan anunciou o casamento de sua filha, a princesa

Moun’Reily, com Bertúlios, Miliat comemorou como nunca. Os festejos duraram

quatro dias. Os céus se encheram de fogos de artifício durante as noites e o palácio

real nunca recebera tantas figuras ilustres como naqueles dias; desde os principais

membros do Conselho dos Guardiões e da Ordem dos Sacramentadores até os

maiores reis e rainhas dos cinco continentes, todos vieram testemunhar o

casamento do século.

Como rei, Bertúlios fora agraciado com o título de Obstinado. Os feitos

tornaram-se ainda mais notórios quando assumiu a coroa. Depois da morte de

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Greenhan, Lorde Bertúlios assentou-se sobre o Trono de Jaspe da Intrépida Miliat

e não se dava por satisfeito com a extensão de suas terras. Nomeou novos generais,

vestiu a armadura e tomou Vingança Sanguinária de Aladar nas mãos mais uma

dezena de vezes até que seus olhos deixassem de contemplar a orla banhada pelas

Águas de Argúrius e enxergassem as planícies lavadas pelas Águas de Crispoles, do

outro lado do continente. Expulsou os últimos trolls que haviam sobre o que sobrara

da Floresta Demoníaca e fundou a Frondosa Namit, a cidade portuária mais

conhecida do reino de Miliat.

Somente um de seus irmãos herdara a mesma paixão acirrada pela guerra que ele

tinha e fora o único que o acompanhou na grande maioria das lutas em que se

embrenhava, principalmente aquelas contra as criaturas abissais que habitavam a

floresta. Nos últimos ciclos de seu reinado, o rei de Miliat nomeou Golmir, o caçula

dos Ayarza, para integrar o Círculo dos Guardiões, como Terceiro Guardião e

protetor do continente de Aladar como uma forma de homenagear seu mais

querido e amado irmão. Aquém a toda essa vida de aventuras e épicas batalhas, Rei

Bertúlios, o Obstinado, teve dois filhos com Lady Moun’Reily, a quem amou tanto

quanto a guerra, aos quais deu os nomes de Bartel e Bernat.

Vinte ciclos depois da morte do mais obstinado dos reis que Miliat já conhecera,

o sol a pino refletia sobre o pináculo das montanhas calcárias que circundavam as

fronteiras entre Neergúria e Miliat e lançava seus raios causticantes do meio da tarde

sobre as extensas planícies de grama muito verde e de raros carvalhos aqui e acolá

que ladeavam a estrada real coberta de lajotas de mármore cintilante que interligava

os dois reinos. A estrada fora construída pelo Rei Bertúlios depois de conquistar o

outro lado do continente. Cinco ciclos foram precisos para que ela saísse dos

portões principais de Miliat e alcançasse os grandes arcos do aqueduto de

Neergúria; as mais finas lajotas de mármore lavrado foram utilizadas durante a

construção em um acordo nunca antes feito com os duendes-artesãos de

Pernítrulis, ao sudoeste de Aladar. A Estrada Real tornara-se um marco de um

pacto inédito de paz e cumplicidade entre os dois reinos após séculos de rusgas e

desafetos entre a nobreza de ambos os tronos e era desde então a principal via de

acesso entre as duas nações.

Uma comitiva de cavaleiros avançava sem pressa. Animados, carregavam a

dourada Fênix Indomável, símbolo da Intrépida Miliat, estampada sobre os

estandartes vermelhos e brancos que flamulavam com a força do vento; rumavam

para o reino vizinho, trotando seus cavalos e corcéis sobre as pedras de mármore

que refletiam o brilho dos raios solares. Entre as altas gargalhadas que intercalavam

em suas prosas acaloradas, contavam antigas histórias de grandes lutas e

memoráveis batalhas de seus antepassados anteriormente citados, como somente

os Ayarza conseguiam fazer — e acreditem, as histórias mais relembradas sempre

eram as de Lorde Jullien, o Louco.

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O atual soberano de Miliat, Lorde Bartel, o Pujante, o primogênito de Bertúlios,

conduzia seu cavalo de pelos acajus. Calvo desde os trinta e dois ciclos de idade,

Bartel não ganhara o título de Pujante graças a seu físico atlético ou a feitos

heroicos. Era grande como o pai e, como grande, não se restringe apenas à nobreza

de seus atos, mas, de fato, a ser alto e corpulento. A robustez do soberano não

estava nos músculos definidos, mas sim no tamanho da circunferência de sua

barriga e das mãos e braços largos. Bartel tinha uma presença marcante, quer fosse

no meio dos conselheiros ou do povo; os olhos cinzentos, penetrantes, o nariz

levemente adunco com algumas poucas sardas e até o sorriso que ia de canto a

canto da boca, onde os lábios se escancaravam de forma autêntica, eram idênticos

ao de Bertúlios, porém, em seu peito nunca ardeu aquela paixão desenfreada pela

guerra e, mesmo sendo de sangue puro de guardiões, jamais precisou pegar em

armas ou estar na frente de qualquer batalha.

O rei de Miliat terminava uma longa e sonora risada que reboava pelos ares das

campinas abertas ao redor da sinuosa estrada real. Sacolejava a barriga proeminente

e apertava os dedos sobre as rédeas de seu cavalo. Se havia uma mania característica

em todos os Ayarza era externar seus sentimentos sempre de forma exagerada.

Riam alto e falavam mais alto ainda; por vezes, comemorações no palácio pareciam

tórridas discussões pelo volume das vozes que preenchiam os cômodos do castelo.

Bernat, o Primeiro-Ministro de Miliat e irmão do rei, também se ria

escandalosamente montado sobre seu corcel branco. Ligeiramente menos gordo

que o irmão mais velho, a calvície ainda não o havia tomado por completo. Os

poucos cabelos de nuances grisalhas, rareando aqui e acolá, eram ralos e sempre

penteados para a esquerda. A pele era queimada de sol, pois, diferente de Bartel,

Bernat adorava a cavalgada, admirava os torneios de espada e os banhos de mar e,

durante a juventude, fora um implacável explorador das Montanhas Agudas, ao

norte do reino. Na risada e no formato do nariz, os dois eram muito parecidos e

por vezes até confundidos.

Os dois puxavam o cortejo lá na frente, como sempre faziam, esquecendo-se do

longo caminho quando se perdiam nas histórias de infância. Logo atrás, vinha Lady

Elma, esposa de Bartel e rainha de Miliat. Com a pele tão alva quanto o leite,

entretia-se em uma conversa com Lady Tressilda e Lady Prisca dos Greenhan no

aconchego de uma carruagem dourada, ladeadas por uma tropa alvirrubra de

guardas reais. Lady Elma era totalmente o oposto do marido; sempre tão serena,

detestava ter que levantar a voz, mesmo que fosse para dar uma ordem. Tentou por

ciclos, sem sucesso, corrigir esse que considerava o maior defeito do rei, até que se

acostumou e cedeu ao comportamento incomum do marido. Tida como muito

justa e majestosamente polida, a rainha era querida pelo povo e pela nobreza,

mesmo não vindo de uma família de sangue puramente guardião. Quando Bartel

conheceu Elma, esta era uma promissora alquimestre do vento.

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Na comitiva da realeza de Miliat, de não mais do que vinte e cinco pessoas, e que

prosseguia pela estrada real entre prosas ao vento cálido da tarde, não havia

ninguém mais entediado em ter que cruzar um quarto de todo o reino rumo à

Neergúria do que Zakkar Ayarza. Filho único da união entre Bartel e Elma e,

portanto, o herdeiro direto do trono da Intrépida Miliat, possuía enigmáticos olhos

da cor de ônix que herdara da mãe e que passavam uma extrema confiança ao passo

que eram, em raros momentos, aterradores. A barba rala dominava-lhe quase toda

a extensão do maxilar e queixo quadrados, salvo algumas pequenas falhas em

função de seus vinte e três ciclos de idade; gostava de manter os cabelos volumosos

e sempre revoltos penteados para trás, mesmo que, quase sempre, tivesse de colocar

uma ou outra mecha que insistia em se precipitar para a testa de volta ao lugar.

No alto de seu cavalo imponente, de pelos negros, trotando e acompanhando o

ritmo dos outros, Zakkar perdia os olhares na extensão de carvalhos e faias

agressivas da Floresta Demoníaca ao longe, lá no horizonte, depois das campinas

peladas que ladeavam a Estrada Real. O farfalhar das árvores frondosas era

exuberante à primeira vista. As folhas longas, os caules sinuosos, o vento agitando

compassadamente a vegetação alta enlevava o espírito de qualquer estrangeiro que

admirava a orla da floresta, principalmente quando vistas do topo da mais alta torre

do palácio de Miliat, onde era possível ver boa parte da extensão da mata.

Para Zakkar, entretanto, nem sempre foi assim. A janela de seu dormitório ficava

no penúltimo andar de uma das torres da ala oeste do castelo, a mais próxima do

trecho mais obscuro da floresta. Quando criança, não conseguia dormir. Os

pesadelos terríveis com a orla misteriosa da mata tiravam-lhe o sono e, por diversas

vezes, seus gritos assustados reverberavam por todo o palácio quando despertava

de mais um sonho ruim. Foi uma época muito difícil. Lady Elma levantava no meio

da madrugada, por diversas noites, enrolada em um grosso robe e atravessava os

corredores do castelo para consolar o filho em sua cama, correndo suavemente os

dedos por entre seus cabelos negros e revoltos até que ele adormecesse. As canções

da rainha ecoavam do quarto do jovem príncipe para além dos corredores e as letras

afáveis entoadas por sua mãe nas madrugadas tenebrosas ficaram guardadas para

sempre em sua mente:

Mesmo estando em trevas,

No infortúnio e na solidão;

Em risco esteja minha vida,

Em meio à escuridão;

Há luz no fim do túnel,

Esperança que posso sentir;

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O Sol desponta no horizonte,

Você está perto de mim.

Então vou fechar os meus olhos,

Esquecer meus medos enfim;

Vou crer até não ter medo,

Vou pensar em você;

Há luz no fim do túnel,

O mal vai desaparecer.

Na adolescência, superado o trauma de dormir à noite, Zakkar podia jurar de pés

juntos ter avistado dezenas de criaturas das trevas perambulando por entre as

árvores, ao longe. Pontos vermelhos e chispantes rutilavam no horizonte, por entre

a mata cerrada, como se fossem incontáveis olhos infernais o vigiando. Certa feita,

em uma noite chuvosa, quando a tempestade lavava as vidraças de seu quarto e a

forte ventania assoprava pelas galerias e torres do palácio, agitando as dezenas de

janelas e portas dos outros aposentos, um vulto negro sobrevoava acima das copas

das árvores. O forte aguaceiro o impedia de discernir o que era, mas ele não tinha

dúvidas de que, no longínquo céu, vislumbrava um dragão das sombras em busca

de abrigo.

Um calafrio correu por sua espinha. Zakkar não sentia mais o mesmo medo e ele

tinha certeza que já não era mais temor, pois podia contemplar a mata hostil a

qualquer hora do dia ou da noite e até aceitaria embrenhar-se na floresta se fosse

preciso, mais uma vez, para desbravar o que seu avô deixara dela; porém ele possuía

um profundo respeito para o que quer que ainda habitasse a Floresta Demoníaca e,

no fundo de seu coração, acreditava que as criaturas da floresta também se

resignavam em permanecer no trecho de mata em que Rei Bertúlios as limitou no

passado.

— Ainda procurando dragões, primo, ou apenas esperando que os olhos

vermelhos saiam correndo da floresta para vir te pegar?

A risada de Guilloch ecoou pelo ar.

Muito mais alto que Zakkar e também bastante corpulento, Guilloch era o

afilhado e protegido de Bernat e, para falar a verdade, ninguém em toda Miliat

jamais entendeu muito bem como ele surgiu no castelo. O que todos sabiam era

que ele fora adotado pelo irmão do rei e só. Um dia o menino, com seus dez ciclos

de idade, apareceu no castelo trazido por Bernat que o anunciara como seu afilhado

e um burburinho rapidamente se espalhou como uma avalanche por entre os

corredores e salões e se especulava que Guilloch era fruto de um caso antigo e

proibido do Primeiro-Ministro com uma nobre de sangue guardião da Austera

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Amistelar, no continente de Turmis. Outros, mais audaciosos e criativos, ousavam

comentar que era filho de Lady Alkanara dos Drunírio das Terras Virtuosas de

Candorn e que fora adotado quando a guardiã morrera, vítima de uma poderosa

Hidra no coração das Águas de Argúrius. A verdadeira razão, no entanto,

permanecia um mistério, guardado a sete chaves pelo irmão do rei.

Guilloch emparelhou o cavalo cinzento ao lado direito de Zakkar. De nariz fino

e protuberante, os cabelos ralos e loiros refulgiam à luz do sol, mas não tanto

quanto as generosas entradas do início de uma calvície em suas têmporas. Três

ciclos mais velho do que o príncipe, o que tinha de alto e forte também o tinha de

idiota e arrogante.

— Ah, já sei — prosseguiu Guilloch com um risinho de deboche no canto da

boca — deve estar sonhando acordado com monstros imaginários da floresta!

— Para falar a verdade, não, Guilloch — inferiu Zakkar, encarando o primo com

tanto ou mais deboche estampado em sua face. — Estou aqui me perguntando se,

por um caso, aquilo que você perdeu não estaria no coração da Floresta

Demoníaca...

Guilloch franziu o cenho.

— Como assim ‘aquilo que eu perdi’?

— Sim, aquilo que você perdeu. Esqueceu? — continuou Zakkar, sorrindo

sarcástico.

— O que foi que eu perdi? — arguiu Guilloch, intrigado e exasperado.

— Seu cérebro! — exclamou Zakkar — Ah, me esqueci. Você não nasceu com

um, então nem adianta procurar entre as árvores.

— Imbecil! — disse Guilloch, fechando a cara.

— Ainda com essas piadas de pesadelos e cérebros?

A atenção de ambos se voltou para uma terceira voz que surgiu ao lado esquerdo

de Zakkar. Emparelhando o cavalo malhado com os outros dois, uma jovem esguia

de longos e ondulados cabelos castanho-claros conduzia sua montaria

graciosamente; revirava os olhos para os dois como se tivesse presenciado aquele

tipo de situação uma centena de vezes.

O nome dela era Selena. A mais nova de cinco irmãs, pertencia à nobre família

dos Vycard — uma das duas famílias de guardiões que se aliançara aos Ayarza

quando Bertúlios se tornou o rei de Miliat. Os Vycard tiveram papel fundamental

na expansão do reino rumo ao outro lado do continente e como prova de sua

lealdade à família de guardiões, Bertúlios nomeou o avô de Selena, Amadoris, como

o primeiro governador da cidade portuária de Namit, por todo esmero e empenho

nas batalhas pela propagação das terras de Miliat. De pele aveludada como um

pêssego e algumas sardas um pouco acima das bochechas levemente rosadas, Selena

era filha temporã e dona de uma beleza sem par; a mesma beleza fascinante de suas

irmãs mais velhas, todas casadas e damas da nobreza de Amistelar e Badorian. Na

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contramão do destino escolhido por suas irmãs, Selena não queria ser mais uma

lady da alta nobreza. Detestava vestidos de gala, anáguas, espartilhos, meias calças

e sapatos de salto alto e a simples ideia de casar e viver para ser uma duquesa,

condessa ou rainha lhe causava náuseas. As festas nos salões luxuosos do palácio

eram terrivelmente entediantes, exceto aquelas em que ela e Zakkar decidiam

aprontar alguma coisa. Fosse talvez por isso — e pela idade, já que era somente um

ano mais nova do que ele — que era tão mais próxima do filho do rei do que de

Guilloch que, desde cedo, se encantava com as celebrações dos nobres nos salões

reais. A sua verdadeira paixão era a aventura. Adorava brigas, lutas de espadas e de

gladiadores e principalmente um bom duelo de magia, quer entre mestres,

alquimestres ou mesmo guardiões, fossem eles nas arenas do reino ou mesmo nas

tavernas mais obscuras da periferia de Miliat. O maior de seus entretenimentos era,

sem dúvida, a caçada. Nas Festas da Colheita, era uma das poucas mulheres que

vestia um grosso e pesado gibão de algodão, jogava o arco e uma aljava de flechas

nas costas, montava em seu cavalo malhado e partia rumo à tradicional Caçada da

Nona Hora com os outros cavaleiros. Por três vezes voltara da caçada campeã, com

o maior número de coelhos alvejados por suas flechas, pendurados sobre os flancos

de sua montaria. Não deixava de ser o alvo preferido das críticas das mulheres mais

velhas, que reprovavam o comportamento tão bruto e aventureiro como de um

homem, diferente do restante das jovens de sua idade.

— Não há piada alguma — falou Guilloch, displicente. — Só achei que a visão

de Zakkar estava novamente apurada, a ponto de enxergar dragões sobrevoando o

topo das árvores.

Guilloch desembestou a rir e Selena e Zakkar se entreolharam, como sempre

faziam quando o afilhado de Bernat ria sozinho de suas próprias piadas.

— Que tal falarmos sobre aquele seu pesadelo de...

— Cale a boca, Zakkar! — Guilloch vociferou, interrompendo as risadas e

ficando visivelmente alterado.

— Ué, não vejo problema em comentar que naquela noite chuv...

— Acho que vocês dois estão bem grandinhos para continuar com essas rusgas

de criancinhas — inferiu Selena, interrompendo o início da discussão dos dois. —

Ainda não estamos nem na metade do caminho, pode ser que vocês fiquem sem

motivos para discutir daqui a duas horas, por exemplo...

Zakkar e Guilloch comprimiram os olhos na direção da garota. Selena ria-se,

satisfeita, contemplando de esguelha os dois irritadiços à sua direita.

— E quem é que está discutindo aqui? — arguiu Zakkar, displicente — Quem

adora discussão é o Cabeça-de-Ogro aí, ó!

Uma veia pulsava ferozmente sobre as têmporas de Guilloch.

— Quem é Cabeça-de-Ogro? — berrava Guilloch, exasperado.

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— É tão burro que nem percebe quando estamos falando dele... — com esgar de

deboche, Zakkar sibilava para Selena, como se evitasse que o primo ouvisse o que

dizia.

— EU ESTOU OUVINDO! — bufava Guilloch.

— Pelo menos, percebe-se que não é surdo — crocitava Zakkar. — Somente

burro, mesmo!

— Burro é você, seu imbecil!

— Ui. A menininha ficou ofendidinha.

— Retardado.

— Será que vou ter que repetir que ainda é muito cedo para vocês começarem a

implicar um com o outro? — inquiria Selena, prendendo os cabelos em um rabo

de cavalo — Ainda faltam três horas de cavalgada, preciso dizer novamente que

vocês podem ficar sem ofensas para dizer um ao outro? Hein?

— Sem ofensas para o Cabeça-de-Ogro? Impossível!

— Cabeça-de-Ogro! — retorquiu Guilloch, enfezado — Você parece uma

criancinha de dois ciclos me chamando assim!

— Concordo — completou Selena, displicente — E digo mais, acho que esse

apelido está mais do que ultrapassado para o Cabeça-de-Nós-Todos aí!

— Ei!

— Ufa, por um instante achei que você estava do lado do Cabeça-de-Aladar!

— Babaca!

— Idiota!

— Chorão!

— Melhor pararem — sussurrou Selena. — Sei muito bem como é que isso

termina e não vai ser legal vocês chegarem arrebentados e sangrando em Neergúria.

Dessa vez, não sou eu que vou impedir se vocês quiserem se matar...

— A verdade é que estou cansado dessas homenagens — acrescentou Zakkar,

mirando de Guilloch para Selena. — É a terceira homenagem somente esse mês

para tio Golmir. No mês passado, foram sete. Sete! Sem contar as três festas no

Salão Real em comemoração aos seus feitos como Guardião...

— Não deveria estar falando dessa forma, meu filho.

Não sabia ao certo se tinha falado alto o suficiente, mas, por um instante, todos

os olhos da comitiva pareciam se concentrar na conversa dos três jovens. Lorde

Bartel claramente ouvira as queixas de Zakkar e fez sinal com a mão direita para

que ele, Selena e Guilloch apressassem os cavalos e acompanhassem o rei e o

Primeiro-Ministro na frente do cortejo. Os três estugaram o passo de suas

montarias, avançando por entre a comitiva até emparelharem com Lorde Bartel e

Bernat.

— Pai, sabe que respeito muito tio Golmir. Ele é o único irmão do vovô que

ainda vive e não preciso nem mencionar todos os seus feitos como Guardião, afinal,

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o senhor sempre os contou para mim desde criancinha. Sei de cor todas as batalhas

em que ele se meteu, todos os monstros que enfrentou. Mas, admita, esse monte

de homenagens cansa... — desabafou Zakkar, se justificando.

— Ah, meu filho — crocitou Bartel, paternal. — Você deveria aproveitar essas

épocas de paz e tranquilidade, quando ainda pode ter a companhia da família e dos

amigos, e passear ao ar livre, sentir o frescor da brisa de uma tarde ensolarada e se

deliciar com uma boa prosa. A função de um Guardião não é nada nobre. Não

basta nascer com sangue de guardião e dominar a magia e os elementos da natureza.

Se assim o fosse, você poderia ser um mestre ou até um alquimestre...

Um silêncio se seguiu brevemente em que Zakkar roía as unhas da mão direita e

mirava do chão para as árvores ao longe até que, com uma incontida ansiedade na

voz, engrolou a pergunta que tanto o inquietava:

— Quero saber quando finalmente assumirei o posto de Guardião de Aladar. —

E se atropelou na frase de uma única vez, gaguejando. Consumido de ansiedade,

encarava o fundo dos olhos do pai; sabia que ele estivera na reunião do Conselho

dos Guardiões para tratar desse assunto, mas desde que voltara de Gradia, em

Vervaz, não mencionara um momento sequer sobre sua indicação.

Bartel soltou mais uma de suas características e sonoras gargalhadas.

— Por que não me surpreende termos chegado justamente a esse ponto? —

trovejou Lorde Bartel, dando um tapinha nas costas do filho.

— Talvez seja hora de explicar para meu sobrinho sobre o rito que envolve uma

Sucessão Honrosa, meu irmão — falou Bernat, cordial.

Lorde Bartel empertigou-se sobre o cavalo acaju e pigarreou duas vezes.

Observou as expressões curiosas de Selena, Guilloch e Zakkar com seu corriqueiro

olhar paternal antes de abrir um largo sorriso de orelha a orelha, acentuando ainda

mais as rugas nos cantos dos olhos e as linhas de expressão caricatas.

— Meus meninos, parece que foi ontem que vi os três correndo pelos corredores

e salões do palácio, brincando com espadas de madeira. Hoje, estamos aqui tendo

que conversar sobre assuntos sérios que entrarão para a história de nossa nação.

Pois bem, já que falaremos disso, chega de tanta enrolação.

“Uma Sucessão Honrosa é uma cerimônia marcante para a vida de todo

Guardião, e, como vocês já sabem, é dividida em três grandes momentos: Jubilação,

Indicação e Ordenação. Em suma, é a transição entre o Guardião antigo, quando

este sofre uma Jubilação, ou, em linhas gerais, é afastado de suas atividades de

Guardião do continente por idade ou qualquer outro motivo que o impossibilite de

continuar para que um novo protetor assuma seu posto. Em Aladar e nos outros

continentes, conforme a definição mais atual do Tratado de Paragon, o reinoguardião

deve indicar o substituto do que está sendo jubilado, quando ocorre a

cerimônia de Indicação. Cada reino em seu respectivo continente possui liberdade

para fornecer seus futuros guardiões...”.

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— Por exemplo, — Bernat interrompeu, gesticulando — os Guardiões de nosso

reino são todos indicações do soberano de Miliat. Tio Golmir fora uma indicação

louvável de nosso pai, Bertúlios.

— Exatamente, meu irmão — continuou Bartel, contemplando a euforia

estampada nos rostos de Zakkar, Selena e Guilloch. — Como eu dizia,

imediatamente após a Indicação, ocorre a última cerimônia da Sucessão Honrosa:

a Ordenação. É um evento glorioso, marcado pela presença de todo o Conselho

dos Guardiões, os soberanos do reino que o indicou e os outros reis do continente.

Há uma coroação tão majestosa como a de um rei. Medalhas e anéis são ofertados,

bem como forjadas armaduras e joias élficas especiais e, por fim, lhe é concedido o

título de Guardião de todas as terras e reinos do continente. É feito o juramento

pelas Leis Primazes e pelos Pilares da Magia e o novo Guardião passa a dedicar sua

vida e poder em função do dever da proteção dos mais fracos.

— E vocês conhecem as Três Leis Primazes? — questionou Bernat, ajeitando a

capa em suas costas.

— O mais forte protege o mais fraco... — respondeu Guilloch.

— A vida acima da magia... — completou Selena.

— Harmonia e equilíbrio acima de todas as coisas — finalizou Zakkar,

pressuroso.

— Um Guardião precisa guiar seus passos e traçar seus caminhos sempre,

sempre, meu filho. — E Lorde Bartel apagou o sorriso nesse instante, apertou os

dedos no ombro de Zakkar e encarou o filho como jamais fizera. — Sempre nessas

três leis.

Zakkar arregalou os olhos, assustado. Apertava as rédeas de seu cavalo e respirava

ruidosamente. O pai o encarava de um jeito diferente. Um jeito que ele nunca vira.

Que as responsabilidades do posto de Guardião eram demasiadamente

exorbitantes, disso ele tinha consciência. Toda aquela conversa com seu velho pai,

entretanto, fitando-o com tamanha seriedade, não como um pai tem com um filho,

mas como um guerreiro falando a outro, o fazia se sentir mais maduro e adulto do

que era.

— Quero honrar esse compromisso, meu pai — falou Zakkar, a voz ainda

vacilante. — Pretendo me tornar o protetor que Aladar que a comunidade mágica

e não mágica merecem, sempre alicerçado sobre as Leis Primazes e os Pilares da

Magia. É com isso que sonho todos os dias, desde os meus doze ciclos de idade!

— Isso é verdade! — inferiu Selena — Desde os doze que fala em ser o futuro

Guardião. Mas nos últimos dias, tem ficado impossível. Parou até de ir ao Clube de

Duelos só para estudar mais a respeito dos antigos guardiões. Ninguém aguenta

mais você se gabando que será o futuro protetor de Aladar!

Todos desembestaram a rir.

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— Contudo, — Lorde Bartel alteava a voz, tentando se sobrepor às risadas —

este ano, algo inédito em toda nossa história está para acontecer. O destino

preparou uma grande surpresa para o nosso mundo. Pela primeira vez, teremos o

Ano da Elegibilidade!

A frase do rei ecoou pelos ares e logo atraiu a atenção de todos. Até mesmo os

guardas carregando os estandartes de Miliat apuraram os ouvidos e vidraram os

olhos em Bartel e no que ele estava para dizer.

— O Ano da Elegibilidade é um marco em toda a história do Conselho dos

Guardiões, desde que ele fora fundado e nós estamos vivendo esta época. Somos

parte dela! — Bartel fazia sua voz trovejar. O rei adorava ter os olhos e ouvidos de

todos atentos às suas palavras — É a primeira vez que os Cinco Guardiões sobem

ao posto ao mesmo tempo, desde que o grande Hazer Gundorf foi nomeado o

Primeiro Guardião depois de selado o Tratado de Paragon. Aconteceu, em tempos

passados, em que três e até mesmo quatro guardiões ascenderam à posição de

protetores de seus continentes. Mas desta vez é diferente. Após o anúncio das

Sucessões Honrosas em Miliat e Amistelar, a renúncia de Lorde Saldivar de

Candorn em favor de seu filho mais velho, a morte do antigo Guardião de Snartria

e a renúncia de Lorde Heidlich para assumir o trono de Badorian no lugar de seu

pai, o Conselho declarou aberto o Ano da Elegibilidade.

— Mas o que há de tão especial nesse Ano da Elegilibi... Eleligibi...

— Elegibilidade? — inquiriu Zakkar para Guilloch, que se atrapalhava com as

palavras. Selena tentava, mas não conseguia conter as risadas.

— É, isso aí — continuou Guilloch, alteando a voz e ignorando as gargalhadas

de Selena. — Parece só mais um nome idiota...

— Claro que não, meu sobrinho! — exclamou Bartel com sua característica

euforia incontida — Depois das indicações dos cinco continentes, Cruisand,

Paragon e Gradia sediarão três grandes eventos que vão colocar os novos

Guardiões à prova, definir o futuro Primeiro Guardião, que vai liderar os demais e

coroar o novo Círculo dos Cinco ao final. O mundo de Eirin viverá uma época

inigualável de paz, harmonia e equilíbrio, brindada por uma grande festa com a

escolha de seus novos Guardiões!

— E pelo brilho nos olhos do Zakkar, é bem provável que ele já se imagina lá,

sendo coroado o Primeiro Guardião! — crocitou Selena, deixando um Zakkar

encabulado e ao mesmo tempo exasperado no alto de seu cavalo.

Ao redor, todos voltaram a entreter-se em suas conversas. Lorde Bartel seguia

entusiasmado, tomando uma boa distância dos demais outra vez, guiando seu corcel

à frente da comitiva ao lado do irmão. Zakkar, Selena e Guilloch diminuíram o

passo de suas montarias sem se darem conta, falando e rindo às altas gargalhadas.

Lady Elma continuava envolvida em sua prosa suave com as irmãs Greenhan.

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— Aproveitando a oportunidade, meu irmão — começou Bernat, tirando das

longas vestes de veludo vinho um papel esmaecido cheio de anotações — preciso

lhe informar, antes que esqueça, que fechamos um acordo com a Forja Élfica para

a fabricação das novas espadas e escudos banhados em mahit, que Sua Majestade

solicitou. É provável que no próximo mês elas já estejam em Miliat, ou até mesmo

antes.

— Excelente! — exclamou Bartel, entusiasmado — Assim, realizamos o sonho

de nosso pai de equipar o exército do reino com armas puramente élficas.

Finalmente, vamos nos livrar daquelas espadas de papel forjadas pelos duendes.

Os dois riram, um para o outro.

— A propósito, — Bernat interrompeu os risos e assumiu um esgar sombrio

abruptamente — sei que isso ainda está sendo tratado pelo Conselho a portas

fechadas, mas é inevitável. Notícias voam e os comentários tem se espalhado mais

rápido do que folhas secas nas ventanias do Outono: tens mais informações sobre

o infortúnio que atingiu Snartria? Toda a nobreza está comentando sobre o

assunto...

— Sim — falou Bartel, acabrunhado. — O infortúnio que se estabeleceu sobre

as Terras Serenas de Snartria foi o assunto mais discutido pelo Conselho, visto que

ele foi duplamente sentido através das mortes do rei do Trono dos Bravior,

Maximo, e o desaparecimento de seu filho Guardião, Elliotr, nas Montanhas

Congeladas de Gelor-Torine, ainda completamente sem explicação. O Conselho o

declarou morto, mas eu tenho minhas dúvidas. Para piorar, Elliotr deixou um

herdeiro. Canelas peladas, pouca idade... é o que sei a seu respeito. Sobre seus

ombros estão agora uma colossal responsabilidade e uma dura decisão.

— De fato, perdas lastimáveis — falou Bernat, emudecendo.

Ambos se calaram por alguns instantes e o único som em meio às campinas

abertas era o do trotar dos cavalos da comitiva e das risadas de Zakkar, Selena e

Guilloch em algum lugar lá atrás; Bernat estava inquieto e decidiu interromper o

silêncio, prosseguindo com a conversa.

— Retornando ao assunto sobre o futuro de nosso continente, acredito que

Zakkar pode ser um grande Guardião — falou o Primeiro-Ministro, mirando das

lajotas reluzentes para a gola empapada de suor de seu irmão Bartel. — Ele é afoito,

irrequieto, por diversas vezes lembra nosso pai...

— Sem dúvida — afirmou Bartel e seu semblante tornara-se subitamente

preocupado. — Mas ainda estou receoso quanto a indicação de meu filho e por

dois vieses, o primeiro muito mais preocupante do que o segundo. — Fez-se um

silêncio momentâneo em que Bartel vislumbrou por cima do ombro se o filho não

estava perto o suficiente e então continuou. — Zakkar é irrequieto, sem dúvidas, e

afoito como o avô, como você disse... mas também é muito imaturo e

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inconsequente. Meu erro e de Elma foi tê-lo mimado de mais. O pior dos meus

temores é perdê-lo em uma dessas batalhas pelo bem do continente...

Bernat franziu a testa.

— Meu irmão, Aladar não é mais o mesmo antro de criaturas diabólicas que fora

no passado. Nosso pai se encarregou de exterminar uma boa parte que ainda

assolava nossas terras. Há quanto tempo não vemos mais dragões? E por acaso

você ainda se lembra quando fora a última vez que avistara um troll ou um

minotauro? Bartel, ainda que meu sobrinho seja imaturo, ele aprenderá com o peso

da responsabilidade de ser um Guardião a como moldar seu caráter e se tornará um

grande homem... — falou Bernat, ficando subitamente reticente — Mas dissestes

que há um segundo viés de seu receio... Qual seria?

Lorde Bartel respirou fundo e se aprumou sobre o cavalo; estufava o peito e

expirava com força, como se estivesse contrariado.

— Salazar meneou a cabeça várias vezes durante a reunião e fez objeção quanto

à indicação de Zakkar perante o Conselho, embora os demais conselheiros em si

não se opuseram quanto ao meu filho. Temo que seja por ele não ser de puro sangue

guardião...

— Bartel, se a grande maioria do Conselho dos Guardiões aprovou a indicação

do meu sobrinho, não há nada que Salazar Stanhorne possa fazer, mesmo sendo o

líder do Conselho dos Guardiões. Essa questão de sangue puro é uma grande

baboseira, todos nós sabemos — argumentou Bernat, balançando a cabeça para o

irmão. — Fique tranquilo. Você tem o meu apoio, de tio Golmir e com certeza de

uma boa parte dos outros conselheiros em sua sábia indicação. O que podemos

fazer é buscar esses conselheiros para persuadir Stanhorne.

Os dois irmãos sorriram um para o outro e se cumprimentaram. Lorde Bartel

estava bem mais tranquilo; sabia que podia sempre contar com o apoio de seu irmão

e amigo. Prosseguiram com a viagem através da Estrada Real, rindo e conversando

sobre dezenas de outros assuntos, desde os novos negócios do reino até às velhas

histórias das bravuras de Lorde Bertúlios, o rei mais ousado que Miliat conhecera.

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Capítulo Quatro

Difíceis Decisões

O céu estava branco. Não aquele tom branco de um corriqueiro dia ensolarado

de verão, em que o sol desponta no horizonte e ilumina a abóbada celeste com toda

sua claridade majestosa, em que mesmo as nuvens são obrigadas a recolher-se em

sua insignificância e dar espaço na imensidão para a estrela maior reinar. Era uma

brancura pálida e melancólica desta vez, daquelas em que as alvas nuvens carregadas

de flocos de neve se juntam e aglutinam umas nas outras em um ponto onde não é

mais possível dizer onde uma nuvem termina e outra começa e tampouco se

consegue enxergar a vivacidade do azul do céu ou em que ponto de toda a

imensidão o sol está imperando. Nas vastas terras da Serena Snartria, todo

snartriano sabia que esse fenômeno marcava a chegada do inverno no continente

de Anlevor e que, a qualquer momento, uma densa cerração dominaria os campos

vastos e os grandes vales, bem como as cadeias de montanhas mais íngremes e

ainda sobre as avenidas, ruas e vielas do reino e embaçaria as vidraças dos casebres,

casarões, tavernas, palacetes e palácios; viria, após isso, a intensa e característica

Chuva do Solstício.

O pátio do Palácio de Ônix da Serena Snartria estava tomado por um mar de

cadeiras de carvalho polido tão negras quanto o mármore lustroso que cobria o

pavimento. Perfeitamente arrumadas em inúmeras fileiras, as cadeiras circundavam

o imenso pátio, fazendo companhia aos dois caixões negros e incólumes,

posicionados bem no centro do lugar, tendo entalhada em prata sobre as tampas a

Harpia Voraz, o símbolo real. Centenas de pessoas de todas as partes do reino e do

continente haviam passado por ali horas antes e mesmo os reis de Gelor-Torine e

Aamiz e a rainha de Dothansa, Lady Marini, atravessaram o continente para dar um

último adeus e prestar suas homenagens ao antigo rei da Serena Snartria, Maximo

Bravior e seu único filho, Elliotr, em um momento tão adverso. Humanos, mágicos

e não mágicos, elfos, centauros, anões, duendes e faunos, todos cruzaram o grande

pátio circular e, enlutados e com lágrimas nos olhos, tocavam os caixões,

depositavam buquês de lírios e orquídeas ou simplesmente derramavam suas

lágrimas e iam embora.

Naquele momento, Petr Bravior estava só.

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Uma pequena e insignificante gota de chuva se precipitou dos céus. Caiu por

entre as pernas cruzadas de Petr e se rechaçou sobre o granito negro do pavimento,

marcando o chão. Absorto, o garoto acordou dos muitos devaneios que o

enlevavam e morosamente inclinou a cabeça para o piso espelhado, apoiando os

cotovelos sobre os joelhos magricelos.

Os olhos cor de mel contemplavam um adolescente de treze ciclos de idade.

Rosto magro, nariz arrebitado, queixo protuberante. Os cabelos castanhos e

desarrumados cobriam-lhe a testa, alcançando as sobrancelhas grossas e também

castanhas. Observava a si mesmo no reflexo: abatido e esgotado.

Outra gota caiu sobre o piso. Quente e salgada, essa não era uma gota de chuva.

Ergueu a cabeça. As bochechas queimavam e as maçãs do rosto ardiam com

voracidade. Relutava para não se derramar em lágrimas outra vez. Detestava que o

vissem chorar e, mesmo estando completamente sozinho em uma infinidade de

cadeiras vazias, os dedos gélidos enxugaram com vontade os resquícios da lágrima

de seus olhos fundos e pesarosos.

Um vento enregelante assoprou e os cabelos da nuca de Petr se eriçaram. Puxou

rapidamente a capa verde-musgo para cima e se aconchegou sob ela, cobrindo o

pescoço e parte da cabeça. Vislumbrou de relance as chamas das tochas sobre o

topo das colunas ao redor vacilarem com a força da ventania. Era um indício de

que a primeira chuva do inverno logo chegaria, lavaria as elevadas torres negras do

palácio do reino e o dia terminaria mais nebuloso e lúgubre do que já estava.

Uma dor que não era física atormentava seu coração. Seria isso o que chamavam

de saudade? Um vazio devastador o consumia. A vontade que tinha era de correr.

Correr sem rumo, pelas ruas e vielas da capital do reino e sumir entre as árvores ou

embarcar em algum navio e desaparecer em alto-mar, na esperança de que isso

fizesse toda sua angústia acabar de vez. A única coisa que de fato queria era arrancar

do peito a tristeza e, naquele instante, outra lágrima escorreu de seus olhos e ele

não se importou em enxugá-la. Deixou que ela percorresse seu rosto e morresse

sob a gola das vestes.

O garoto inclinou a cabeça para o lado e observou a imensa floresta de pinheiros

centenários ser agitada pela ventania enregelante, além dos pilares do grande pátio.

Fechou os olhos por um instante e sentiu outra lágrima teimando em querer escapar

pela tangente. Longe do iminente frio atroador, as lembranças de um maravilhoso

dia de primavera emergiram em sua mente, marcadas pelo calor ameno do sol que

irradiava por entre as folhas cintilantes das árvores e o frescor da brisa que vinha

do mar com seu típico aroma salgado. Recordava de trotar sobre um pônei

caramelo. Usava uma blusa fina de seda branca aberta até a altura do peito e uma

capa marrom por cima dos ombros. Nas costas, carregava uma aljava de couro

curtido com dezenas de flechas. Com a mão direita empunhava as rédeas de sua

montaria e com a outra segurava do jeito que podia o arco de madeira de carvalho

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que fora esculpido pelos anões de Aamiz, feito sob medida para comemorar seu

aniversário de dez ciclos. Cheios de animação, os olhos focavam a figura imponente

do avô que seguia logo à frente, guiando seu cavalo negro, desvencilhando-se dos

galhos mais baixos da trilha por entre as árvores da floresta. A coroa dourada e

cravejada de esmeraldas reluzia ao brilho dos raios solares e uma felpuda pele de

lobo branco pulsava sobre os ombros largos a cada galope de sua montaria real. E

a capa. Ah, a capa vermelha do rei. Era deslumbrante e majestosa. Longa e pesada,

ela se agitava com ímpeto e esvoaçava pelos ares com a velocidade em que

cavalgavam. Avô e neto avançavam, galgando uma distância considerável do

palácio, embrenhando-se na floresta.

Seguiram pela trilha até que se acharam em uma clareira, aos pés das Montanhas

Azaziv. Era o local preferido dos dois. O refúgio onde avô e neto podiam escapar

de toda agitação da nobreza e aproveitar o tempo livre que tinham. Pelo menos

duas vezes por semana, deixavam o alvoroço e a correria do dia a dia no palácio, se

aventuravam por entre as árvores e cavalgavam até ali. Os lírios desabrochavam

aqui e acolá, cobrindo o perímetro, exibindo seu tom leitoso e crisântemos

amarelos, roxos e vermelhos se abriam ao longo da terra fofa e relvada à orla da

Grande Lagoa, onde as quedas d’água se precipitavam da encosta rochosa das

montanhas.

O rei desceu de seu cavalo, fez um último afago sobre a crina do animal e deixouo

descansando como quisesse. Colocou a coroa sobre a grama orvalhada e

pendurou a longa capa vermelha em um galho mais baixo de um pinheiro. Tirou

das costas sua própria aljava de flechas e o arco de madeira de cerejeira que era

quase de seu tamanho. Ajeitou as luvas de couro nas mãos e empunhou o arco,

testando a tensão da corda.

— Me espera, vô!

Petr desmontou do pônei, atrapalhando-se com as flechas e o arco; caminhava

trôpego pelo gramado para onde o avô se preparava. Ergueu também seu arco e

puxou a corda o máximo que pôde, até que ela vibrasse em tons graves de tão

tensionada e sua madeira estralasse ruidosamente.

Imitava todos os gestos de Lorde Maximo, inclusive aqueles mais singulares como

flexionar bastante as pernas ou colocar a língua para fora involuntariamente para

mirar em um alvo ao longe. Mesmo no auge de seus setenta e cinco ciclos de idade,

Lorde Maximo ainda era um homem arrojado. O peso dos ciclos se refletia nas suas

muitas rugas, nas olheiras e na vasta cabeleira branca, mas a disposição para a

aventura continuava a mesma de quando subiu ao trono aos vinte e dois ciclos de

idade.

— Já preparou seu arco, Petr? — questionou Lorde Maximo, observando

minuciosamente a postura do neto.

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— É claro! — exclamou o garoto, segurando a flecha sobre o arco entre o dedo

médio e o anelar — Já tenho o alvo na mira.

A clareira ao pé da montanha sofrera uma série de modificações realizadas por

avô e neto desde que ambos descobriram o lugar. Em suas visitas frequentes para

brincar, treinar ou mesmo tomar um banho na cachoeira serena do Grande Lago,

Maximo e Petr construíram bonecos com troncos retorcidos e galhos secos e

desenharam diversos alvos nas dezenas de pinheiros que cobriam o perímetro.

Maximo apoiou-se sobre o arco e avaliou bem a postura do garoto. Naquele

instante, em que seus dedos longos alisavam a barba e bigodes grisalhos e os olhos

comprimiam-se e se arregalavam estudando Petr, seus lábios foram tomados por

um sorriso cheio de dentes.

— Com esses joelhos tão inclinados assim, quase se encostando à grama, tenho

certeza que essa sua flecha vai voar pelas copas das árvores e acertar em cheio as

Montanhas Congeladas de Gelor-Torine.

O garoto riu, encabulado e Lorde Maximo comprimiu as maçãs do rosto,

arreganhando ainda mais seu largo sorriso.

— Você é um guerreiro, Petr. Um Bravior de puro sangue guardião. Não vai

querer Lorde Marvan torrando nossa paciência porque uma flecha passou voando

sobre a janela congelada de seu quarto. Sabe que qualquer coisa é uma desculpa

para ele sair correndo de Gelor-Torine e ficar meses nos perturbando, em algum

aposento real de Snartria. Principalmente nessa época de Primavera, em que os dias

são bem mais acalorados do que as geleiras que dominam as terras dele.

O garoto soltou uma gargalhada alta; seu estômago doeu com a risada histérica.

— Ok, vamos lá. — O rei empunhou novamente seu arco e pegou uma flecha

da aljava. Inclinou a cabeça e com um olho mirava o alvo desenhado sobre a última

árvore da orla, a mais distante de todas. Vislumbrou ao longe os diversos buracos

das muitas flechas que atiraram sobre ele.

A flecha cortou os ares, zunindo ao cruzar toda a orla bem na altura do nariz de

Lorde Maximo e acertou em cheio o centro do alvo com um baque surdo. Petr

arregalou os olhos, embasbacado e por um momento deixou cair a flecha que

segurava entre os dedos. A mira de seu avô sempre fora milimetricamente apurada.

A idade avançada nunca afetara a agilidade que possuía com o arco; pelo contrário,

o passar dos ciclos incrementava sua destreza com a arma e tornava-o cada vez

mais habilidoso.

— Agora é sua vez — falou o rei, fincando uma ponta do arco sobre a grama.

O garoto hesitou.

Aparvalhado, agachou-se e tomou nas mãos a flecha que deixara cair sobre a

grama. Empunhou o arco. Os dedos tremiam, como bambus agitados pelo vento.

Os olhos compenetrados do avô visualizando seu desempenho deixavam-no

acuado. Não queria desapontá-lo. Aliás, não podia desapontá-lo. Acertar era sua

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obrigação. Ofegante, não conseguia se concentrar. E se não acertasse? E se a flecha

zunisse pelos ares e de fato fosse parar na janela do castelo de Lorde Marvan de

Gelor-Torine e ele se enfezasse com o avô e com todos em Snartria? As pernas

também tremiam e uma gota de suor escorria-lhe das têmporas em direção ao olho

esquerdo, o único aberto, tentando mirar o mesmo alvo que mantinha firme a

flecha atirada por Lorde Maximo.

Os dedos soltaram a corda e a flecha voou pela clareira como que em velocidade

reduzida. O coração de Petr pulsava acelerado e ele acompanhava o trajeto da flecha

absorto. Prendeu a respiração. Vislumbrava de esguelha o esgar sereno, porém

embevecido do avô. A flecha resvalou o alvo e acertou outro pinheiro mais

afastado.

— Eu nunca vou conseguir! — exclamou Petr, pesaroso. Jogou o arco sobre o

chão e fechou os olhos por longos segundos, decepcionado consigo mesmo.

Sem se dar conta de que ficara de olhos fechados por um bom espaço de tempo,

contemplou Lorde Maximo ajoelhado à sua frente assim que levantou as pálpebras.

Os olhos azuis do rei o encaravam com seu jeito sereno e paternal. Aguardando um

duro sermão do avô pelo seu fracasso com o arco e flecha, as palavras não foram

exatamente o que imaginara.

— Jamais diga que não conseguirá alguma coisa. — Lorde Maximo encarou o

neto com seu olhar penetrante — Você é um Bravior. Repita comigo: Eu...

— Eu...

— Sou...

— Sou...

— Um Bravior.

— Um Bravior!

Lorde Maximo acariciou os cabelos de Petr e encarou-o ainda mais no fundo de

seus olhos.

— Petr, você pode qualquer coisa. Lembra-se de quando não tinha altura para

subir em uma sela, mas queria aprender a montar? Você arrumou um jeito. Subiu

em uma cerca do estábulo, saltou para cima do corcel e montou sobre ele. Se atingir

um alvo é a sua dificuldade, treine mais, se esforce mais, se empenhe mais e você

vai conseguir. Eu não quero, nunca mais, ouvi-lo repetindo essas palavras. Ouviu

bem, mocinho?

Petr aquiesceu.

— Agora, enquanto você ainda não é melhor arqueiro do que eu — falou Lorde

Maximo, descalçando as luvas, rindo pelo canto da boca — Sua tia-avó Eilene disseme

que você possui outras habilidades. Quero pô-las a prova aqui!

Petr sorriu. Sabia bem a que o avô se referia.

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— Vou preparar uma nova flecha — inferiu o rei, mexendo na aljava — e quando

colocá-la sobre o arco, espero ver um pássaro elemental de gelo sobrevoando

livremente pelos ares.

O garoto não pensou duas vezes. Com um giro rápido das mãos, fez surgir entre

seus dedos um gigantesco pássaro de gelo translúcido. A ave elemental abriu as

asas, soltando pequenas lascas congeladas pela grama e alçou voo por entre as copas

das árvores, distanciando-se cada vez mais em direção às nuvens. Outra flecha

zarpou rumo aos céus atirada do arco de cerejeira e acertou o pássaro de gelo; ele

explodiu em mil pedacinhos congelados que caíram lá do alto bem devagarzinho,

flutuando como flocos de neve.

— Quero uma ave de fogo agora — ordenou Lorde Maximo já preparando uma

nova flecha. — Vamos ver se você é tão bom assim tanto quanto dizem no palácio.

Uma águia em chamas abriu longas asas crepitantes e adejou em direção ao topo

do paredão rochoso, bem perto de onde as águas da cachoeira se precipitavam em

suas quedas. A segunda flecha do rei torrou nas asas coruscantes do animal de fogo

e despencou lá do alto, caindo em brasas sobre o Grande Lago. Os dois ouviram

um duradouro tsss da flecha queimada quando ela tocou as águas tranquilas da

cachoeira e foi levada pelas suaves correntezas.

O rei aplaudiu com veemência. Petr estufava o peito, cheio de orgulho. Fez o

pássaro em chamas sobrevoar lá nas alturas, dar dois ou três rasantes nos céus e

cruzar o meio das quedas da cachoeira; as asas da ave de fogo evaporaram as águas

cristalinas que se precipitavam e formaram ondas de vapor que subiam contra as

nuvens. Percebeu então que o avô já não prestava mais atenção em suas proezas.

Estacara a meio metro do espelho d’água da lagoa; o olhar estava vidrado em algum

ponto do céu, a leste. Denotava o mesmo esgar absorto de sempre: os dedos finos

alisando novamente a barba branca, os lábios balbuciando palavras inaudíveis e os

olhos azuis, profundos, sequer ousavam piscar em sua contemplação

compenetrada.

— O que houve, vô?

— O velho ditado sobre o leste... — balbuciou Lorde Maximo; Petr apurou os

ouvidos e pôde finalmente entender o que o avô dizia.

Lorde Maximo permanecia imóvel e taciturno. Não ignorava a pergunta do neto,

mas arrazoava sobre qual seria a melhor resposta a se dar para uma criança de dez

ciclos de idade. Pois, se você ainda não sabe, provavelmente virá a descobrir mais

à frente que a resposta que o rei das Serenas Terras de Snartria daria a Petr é, sem

dúvida nenhuma, o maior ditado entre todos os ditados dos Cinco Continentes.

— Nada que venha do leste é bom, Petr... — falou Lorde Maximo, arrumando

os cabelos bagunçados do neto. — Arrume suas coisas e monte em seu pônei.

Infelizmente, teremos que abreviar nosso momento de diversão na clareira. Uma

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nuvem negra se forma ao leste: mais uma daquelas tempestades surpresa se

aproxima.

Logo, avô e neto juntaram as flechas, vestiram as próprias capas e pularam para

o dorso de suas montarias. Regressavam ao palácio pela trilha entre a floresta de

pinheiros mais rápido do que poderiam dizer “tempestade devastadora” e,

enquanto prosseguiam por entre as árvores, galopando e desviando de galhos mais

baixos ou raízes mais altas, Petr lançava olhares intrigados para o céu, onde antes o

avô vidrara os olhos em algum ponto a leste. Uma nuvem pintava de cinza-chumbo

o intenso azul do céu com rapidez e avançava impetuosamente, cobrindo o

horizonte com nuances sem vida, se assomando na direção em que seguiam.

— Grave isso para sua vida, meu neto. — Lorde Maximo fazia a voz reboar por

entre as árvores, firme sobre as rédeas de seu cavalo. — Nada que vem do leste é

bom. Absolutamente nada.

Um sorriso tímido e nostálgico estampava seus lábios quando Petr voltou à

realidade. Continuava sozinho, de frente para os dois caixões negros. Curvado, com

os cotovelos pressionando os joelhos e as mãos balançando a esmo no ar, o frio

atroador do inverno agitou outra vez a longa capa esmeralda. A saudade o

engolfava, mas era nas melhores lembranças da infância com seu avô que ele

encontrava algum conforto.

— Nada que vem do leste é bom — repetiu Petr, fechando os olhos e rindo-se

debilmente.

— Depende do ponto de vista...

Uma voz grave interrompeu os devaneios do garoto e ele rapidamente se

aprumou sobre a cadeira. A mão firme de Salazar Stanhorne segurou em seu ombro

esquerdo, fazendo-o se sobressaltar. Envolto em um longo sobretudo preto

drapejado de duas fileiras de botões dourados na altura do abdômen, os ventos

fortes no pátio agitavam os cabelos castanhos e curtos repartidos ao meio de seu

corte militar. Não eram cem por cento castanhos: muitos fios acima das orelhas

estavam completamente brancos e prosseguiam avançando rumo ao restante do

couro cabeludo. De estatura mediana e sempre rígido e extremamente cordato,

possuía olhos cinzentos que quando comprimidos lembravam muito os de uma

águia. O nariz era levemente torto para a direita e tinha aquele aspecto inexplicável

das narinas, que pareciam amassadas contra o próprio rosto por um martelo. O

queixo duro e quadrado puxava para baixo as linhas de expressão nas laterais de

seus lábios e davam a ele um ar de corriqueira insatisfação, quando na verdade nem

sempre era. Para toda a comunidade mágica e não-mágica, o homem parado ao lado

de Petr, com a mão direita apoiada em seu ombro, era Salazar dos Stanhorne da

Austera Amistelar, o líder do Conselho dos Guardiões: uma das autoridades mais

conhecidas, respeitadas e prestigiadas entre todos os reinos do mundo e amigo

pessoal de seu falecido avô. Contudo, acima de sua proeminência que ia para muito

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além dos Cinco Grandes Reinos, desde a primeira vez que o vira, Petr passou a

chamá-lo de... o Cara de Coruja.

— Posso me assentar? — inquiriu, fazendo trovejar sua voz possante.

— É claro — disse Petr, meio sem jeito, apontando uma das cadeiras.

Salazar Stanhorne puxou uma cadeira ao lado do garoto e se sentou.

Imediatamente, esfregou as mãos uma na outra para afugentar o frio que dominava

o lugar.

— Como disse, vir do leste é tudo uma questão de ponto de vista, se é que você

me entende. Prosseguindo de Gradia, cruzando Vervaz e passando por Vaelfar e

Aamiz, de fato, estarei vindo do leste. E como você mesmo afirmou e como seu

avô sempre fazia questão de repetir...

— Nada que vem do leste é bom! — repetiram os dois em uníssono.

Eles se entreolharam, sorrindo um para o outro até o esgar de ambos murchar ao

voltarem seus olhos outra vez para os caixões negros logo à frente.

Pela primeira vez, a presença do líder do Conselho dos Guardiões não era um

incômodo. Não que Salazar Stanhorne fosse uma péssima companhia ou alguém

que o tratasse mal quando vinha a Snartria. Pelo contrário, como disse antes, o líder

do Conselho era alguém rígido, porém deveras cordial e educado e que se portava

como um cavalheiro nas mais diversas situações. Sorria de forma afável para o

garoto nos muitos jantares de gala em que participou e, mesmo nas costumeiras

Festas da Vinha Madura ou no grandioso Festival da Primavera, Stanhorne

mostrava-se animado e verdadeiramente feliz em estar presente nas comemorações

e não apenas cumprindo sua agenda de visitas a Anlevor. A melancolia no coração

de Petr diminuía ligeiramente. O rosto extenuado e os olhos de águia de Salazar

grudados nos caixões exalavam o desalento real de quem perdera um amigo de

verdade. Ele não precisava sustentar uma postura de imponência ali, nem se manter

tão comedido como sua função exigia. Não havia ninguém olhando desta vez. Um

dos homens mais importantes do mundo podia ser, naquele dia, quem ele realmente

era e Petr jurou, ao observá-lo de soslaio, que os olhos penetrantes de Salazar

estavam carregados de lágrimas.

O vento impetuoso, assoprando sobre as torres mais altas do palácio e correndo

por entre as colunas, era a única coisa que interrompia o silêncio que recaíra

abruptamente sobre o grande pátio. Petr e Salazar continuavam, lado a lado,

taciturnos. O garoto não sabia o que dizer e, sinceramente, não queria dizer nada.

Ansiava que dissessem que tudo ia ficar bem, mas ele sabia que não ia. Queria que

lhe dissessem que acharam seu pai e que ele logo retornaria e colocaria o reino

novamente nos eixos, mas mesmo para isso suas convicções vacilavam. As

Montanhas Congeladas de Gelor-Torine foram a última missão de seu pai e,

embora todos afirmassem que ele jazia sob as brancas camadas de gelo, uma ínfima

chama de esperança em seu peito teimava em acreditar que Elliotr não sucumbira

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no reino congelado. Mas ele mesmo não tinha o que dizer. Havia o que lamentar,

havia o que chorar. E ele decidiu sustentar o silêncio. Quieto, continuou curvado,

dedos cruzados e olhares perdidos enquanto as memórias do avô e do pai a todo

instante ressurgiam em sua mente.

— Creio que deva passar pela sua cabeça se, de fato, seu pai realmente morreu.

— Salazar interrompeu o silêncio, o queixo apoiado sobre os polegares e os olhos

vidrados nos caixões negros.

Petr virou os olhos para ele, atônito, mas não ousou fazer nenhuma pergunta.

Perdeu os olhares novamente em ponto algum e preferiu apurar os ouvidos.

— Elliotr era muito poderoso. Um dos melhores guardiões que já vimos nos

últimos ciclos. Dedicado, era um valoroso guerreiro, extremamente habilidoso com

sua magia e, não por acaso, o Primeiro Guardião, o líder do Círculo dos Cinco.

Desde que recebemos a trágica notícia de seu desaparecimento, iniciamos

imediatamente as buscas por ele. O frio é rigoroso em Gelor-Torine, mesmo no

verão, como você bem sabe, e no inverno, o frio extremo torna as Montanhas

Congeladas impossíveis. Durante um mês, fizemos tudo o que podíamos para

encontrá-lo: enviamos comitivas de buscas, unimos alquimestres e mestres para

incursionar nas montanhas e mesmo Lorde Saldivar, o Quarto Guardião, arriscouse

sobre as geleiras tonitruantes do lugar. Tudo em vão. A única coisa que achamos

foi uma capa de pele de urso que pertencia ao seu pai, a qual entregamos a Lorde

Maximo.

Petr balançou a cabeça. Ainda era recente em sua mente o dia em que um

representante do Conselho dos Guardiões adentrou os portões do palácio.

Pesaroso, trazia consigo uma longa capa branca de pele de urso com muitas

manchas de sangue. Foi a partir daquele fatídico dia que seu avô adoeceu. A dor da

perda do único filho era demais para seu corpo velho e cansado. Os olhos de Petr

marejaram; sentia um nó na garganta.

— Orgulhe-se de seu pai, Petr. — Salazar encarou o garoto, respirando fundo.

— Não sabemos o que o levou às Montanhas Congeladas, mas esse caixão vazio à

frente é uma forma de honrar a memória dele e tudo o que ele representou para

nós. Os feitos magníficos, a coragem e seu modo de ser devem ser sempre

lembrados; não apenas como guerreiro ou guardião, mas, acima de tudo, como seu

pai e amigo. Ele te amava muito e viveu uma vida dedicada a usar a própria magia

para proteger os mais fracos e a manter a harmonia e o equilíbrio em toda Anlevor.

As lágrimas escorreram de seus olhos com ímpeto e Petr escondeu o rosto nas

palmas das mãos com rapidez. Chorava de soluçar. De saudade, de medo, de

angústia, derramava lágrimas que resvalavam entre os dedos retesados. O braço de

Salazar o envolveu de súbito, consolando-o; ressaltou-se com o gesto inesperado e

a mão direita do líder do Conselho dos Guardiões apertando seu ombro com

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carinho relembrou muito a forma como seu avô o abraçava, sempre puxando o

garoto contra o peito, afagando-o e isso aumentava ainda mais a dor que sentia.

— Chore, garoto — disse Salazar, sua voz vacilando. — Chorar faz bem, leva os

sentimentos ruins e traz algum alento ao coração.

Continuou chorando sem se dar conta do tempo, sob o abraço do velho amigo

de seu avô. Jamais fora tão paternal quanto naquele momento, mas uma força

inesperada brotava em seu interior e Petr estava decidido que não queria mais

chorar. Enxugou os olhos na barra da manga do capão, interrompendo os prantos,

entretanto se negou a levantar o esgar choroso e encarar Salazar Stanhorne outra

vez.

— Ainda há uma decisão, Petr — inferiu Salazar, forçando-se a manter a voz

firme. — Uma dura decisão que, em meio ao infortúnio que recaiu sobre Snartria,

precisa ser tomada.

O garoto levantou os olhos. Stanhorne o encarava. Impassível, o queixo mais

duro do que nunca e as linhas de expressão ao redor dos lábios puxando-os para

baixo como jamais vira.

— Uma decisão? — arguiu Petr, confuso e com a voz embargada.

— Sim, garoto. Ainda há uma decisão.

Salazar tirou de dentro das vestes uma carta com o símbolo do Conselho dos

Guardiões marcado em cera quente. Segurou-a sobre a palma das mãos sem inclinar

o rosto para baixo uma única vez.

— Você é poderoso, Petr. Um guardião de guardiões cuja magia é imensamente

mais forte do que a de qualquer outro que já ascendera ao seleto Círculo dos Cinco.

Lembro-me de quando seu avô, seu pai e eu descobrimos isto. As circunstâncias de

seu nascimento, à época, não eram favoráveis para a princesa Hanna dos

Zanotchka, sua mãe. Estava debilitada. Grávida de você e acometida de uma grave

doença, ela não resistiu às vinte e três horas de parto e veio a falecer. Isto é para

nós até os dias de hoje uma grande tragédia, a perda inestimável de nossa antiga e

poderosa Primeira Guardiã que abdicou de tudo para casar-se com seu pai, o

Príncipe Elliotr, para viver a bela história de amor que conhecemos e poder realizar

o sonho de ser mãe.

“Mas mesmo em meio ao caos, garoto, há sempre uma chama de esperança.

Havia magia em suas mãos quando Hanna deu à luz a você; uma magia que fluía

de suas palmas pequeninas e espiralava pelo ar, enchendo todo o lugar, envolvendo

você e a todos os presentes naquele aposento. A intensidade do seu poder era

grande e comprovamos isso com o quasar de litch, quando nele vimos que sua gama

de magia estava muito acima até mesmo da de Lorde Hazer Gundorf, o Guardião

mais poderoso que já existiu em toda a nossa história.

“E é por isso que também estou aqui: o Conselho dos Guardiões emitiu um

comunicado, mostrando-se favorável à sua indicação como o Guardião que o

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continente de Anlevor necessita, de forma unânime, cumprindo-se à risca o que

manda nossas leis, sugerindo dentre todos o mais forte.”

Salazar entregou o envelope nas mãos de Petr, que rapidamente destacou o selo

do Conselho e tirou de dentro a carta. As assinaturas dos vinte e cinco conselheiros

estavam registradas ali, clamando para que aceitasse com urgência o pedido do

Conselho em se tornar o novo Guardião de Anlevor. A assinatura de Hamm Louis

Zanotchka, o avô materno que jamais conheceu, também constava lá.

— Buscamos ser justos e optamos sempre pela liberdade de escolha dos Cinco

Grandes Reinos — prosseguiu Salazar; os olhos de Petr ainda vidrados na carta. —

Os reinos guardiões são livres para escolher, como quiserem, seus novos

Guardiões, Petr. Entretanto, as circunstâncias atuais exigem medidas drásticas e

pressurosas. É imperativo que Snartria indique um novo Guardião e

imediatamente.

No silêncio que se seguiu, em que Stanhorne contemplava-o do alto de seus olhos

ansiosos, aguardando alguma resposta pronta e positiva: uma aceitação de seu

pedido ou os belos juramentos que os Guardiões faziam quando eram convocados

pelos soberanos dos Cinco Grandes Reinos, Petr só conseguia pensar que havia

outra decisão tão difícil quanto esta. Desde o desaparecimento de seu pai e a doença

que se acometeu o avô, o relacionamento com sua avó ficou impossível. Lorde

Maximo sempre foi o exemplo do soberano que as serenas terras de Snartria

mereciam: cordial, justo, valente, longânime e altruísta. O rei que todos amavam e

veneravam como grande líder da nação. O que ninguém jamais conseguiu

compreender foi como ele tivera um casamento tão duradouro com a rainha. É

inevitável dizer que Lady Asturias dos Wallensig, em sua juventude, fora a mais bela

dentre todas as donzelas da nobreza e que seu rosto e corpo esculturais encantavam

a todos na corte, o que bastava para justificar a tórrida paixão do jovem Maximo

Bravior, o sucessor do trono à época. O tempo acabou mostrando que o que a

rainha tinha de deslumbrante, também tinha de esnobe e mesquinha; totalmente o

oposto de Lorde Maximo. O desaparecimento do único filho, Elliotr e o

agravamento da doença do rei serviram apenas para mostrar quem de fato era Lady

Asturias. Da noite para o dia, exigiu que fosse declarada a única e legítima soberana

sobre toda a Snartria e ordenou o afastamento e a prisão de diversos conselheiros

contrários às suas decisões. A notícia dos feitos tresloucados da rainha se espalhou

pelos quatro cantos do reino e uma crise quase se instaurou entre os condados e a

capital. Governadores, magistrados e conselheiros de toda Snartria se reuniram em

uma audiência, às pressas, no palácio. A rainha fora sumariamente proibida de

participar. Um antigo decreto real foi trazido à tona, determinando que somente o

herdeiro direto do trono possuía o poder de arbitrar sobre o futuro soberano de

Snartria. A difícil decisão de quem subiria ao trono estava nas mãos de Petr Bravior.

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— Agradeço, Sr. Stanhorne, por tamanho voto de confiança do Conselho dos

Guardiões, mas... — Petr titubeou. As lembranças da última discussão de Lady

Asturias com seu avô, um dia antes de ele morrer, ainda estavam muito recentes

em sua mente. — Eu... não posso aceitar tamanha responsabilidade e deixar o reino

nas mãos de...

— Sua avó! — completou Salazar, ao que Petr arregalou os olhos em sua direção.

— Não se surpreenda. Os últimos acontecimentos que antecederam a morte de seu

avô chegaram aos meus ouvidos, garoto. Eu também estaria preocupado se alguém,

mesmo sendo da minha família, quisesse usurpar o poder estando o rei ainda vivo.

Sei, porém, que a corte real de Snartria se opõe à postura tomada por sua avó e

desejam que você suba ao trono imediatamente, mesmo tendo apenas treze ciclos

de idade.

— Sr. Stanhorne, eu...

— Chame-me apenas de Salazar. — O líder do Conselho o interrompeu, dando

uma batidinha no joelho de Petr. — Fica menos formal...

— Salazar, — falou Petr, achando esquisito chamá-lo pelo primeiro nome —

confesso que não sei o que fazer. Não sei o que pensar...

— Não sei se você ouviria o conselho de um velho, mas talvez haja uma solução

para isso.

— Qual? — inquiriu Petr, desesperado.

— As questões sobre Anlevor são delicadas e decisivas. Há uma fragilidade

política nos reinos adjacentes fragmentando as relações com Snartria e perigos

iminentes surgindo a todo instante sobre a vastidão do continente. Não apenas o

Conselho dos Guardiões clama por um novo Guardião, mas também Snartria e

Anlevor. A unanimidade do Conselho não é em vão: você é poderoso como seus

pais e justo como seu avô. E não pense que você é novo de mais para essa função.

O Conselho o considera poderoso o suficiente para suplantar, inclusive, sua pouca

idade. A experiência virá com o passar do tempo. Essa decisão, sobre quem

governará as terras de Snartria, está em suas mãos. Embora a corte insista para que

você suba ao trono, eis o que posso sugerir: assuma como Guardião e indique um

soberano. Um regente. Alguém de sua inteira confiança que tenha capacidade para

assumir as terras do reino sob sua supervisão e aconselhamento, até que a harmonia

e o equilíbrio voltem a imperar e você possa indicar um novo Guardião e retornar

como o grande rei que Snartria merece. Dessa forma, você satisfaz o desejo da

capital e dos condados que clamam por um novo soberano e de todo o continente,

que aguarda dos Bravior a decisão sobre o futuro Guardião de Anlevor.

Um longo e agudo silvo do vento assoprando entre as pilastras do grande pátio

invadiu os ouvidos de Petr no silêncio que se seguiu entre ambos. As palavras de

Salazar Stanhorne martelavam bem lá no fundo de sua mente naquele momento,

onde a voz possante do líder do Conselho dos Guardiões ecoava sem parar;

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entretanto, ele ainda não tinha cabeça para pensar. Não queria decidir nada naquele

instante. Queria apenas ficar só e relembrar os momentos felizes com seu avô.

Petr levantou-se e ajeitou a capa verde sobre os ombros, indicando que a conversa

chegara ao fim. Salazar Stanhorne fez o mesmo: empertigando-se, ajeitou as luvas

negras nas mãos e passou um dedo sobre os cabelos bem aparados. Aguardava uma

decisão do garoto.

Parados um de frente para o outro, foi Petr quem falou primeiro.

— Salazar, — ainda achava engraçado chamá-lo assim, depois de tantos ciclos

chamando-o simplesmente de Sr. Stanhorne — preciso de tempo. É uma decisão

difícil e... acabei de perder meu pai e meu avô. As coisas não estão bem para mim,

se é que o senh... você me entende...

Ao contrário do que Petr esperava, Salazar lhe sorriu de forma afável.

— É claro, garoto. Tenha o tempo que precisar para pensar. Quando perdi minha

mãe, eu era apenas um ciclo mais velho do que você. Fiquei arrasado por muitos

ciclos, mas foi a morte dela que me fez acordar e me motivar a querer viver para

ser um Guardião.

Salazar estendeu-lhe a mão direita em um cumprimento e Petr apertou-a.

— Saiba que, independentemente de sua decisão, você tem meu total apoio e o

de todo o Conselho dos Guardiões. — Ele fez uma pausa, ajeitou a lapela do capão

e então prosseguiu: — Que as lembranças dos feitos do seu avô e de seu pai possam

motivá-lo a querer dedicar a sua vida em função dos mais fracos e a usar seu poder

para ser o Guardião que estas terras merecem.

Acenando a cabeça, Petr assentiu. O líder do Conselho girou nos calcanhares e

caminhou elegantemente em direção aos portões de saída do pátio.

O frio intenso que se acirrava fez o garoto enroscar ainda mais os braços contra

o peito. Não quis mais continuar ali sozinho. Atravessou o pátio circular,

desviando-se das cadeiras negras e vazias e alcançou a escadaria de pedra engastada

sobre a encosta. A imensidão de pinheiros da floresta logo abaixo era agitada com

a força dos ventos e uma melancólica cerração cinzenta dominava as árvores e

ocultava as cadeias de montanhas que demarcavam a fronteira entre Snartria e

Gelor-Torine. Uma fina camada de orvalho impregnava os degraus entalhados e

tortuosos que seguiam num semicírculo perfeito até os jardins baixos, contíguos ao

palácio. Lá, ele avistou alguém que trouxe algum conforto para a tristeza que

perturbava seu coração.

Desviando das muitas parreiras do jardim e das diversas rosas vermelhas e azuis

que adornavam uma série de canteiros ao longo do lugar, ele encontrou seu amigo

Chermont tentando cortar uma rosa excepcionalmente grande e desabrochada, aos

pés de um dos corredores que dava acesso às cozinhas do castelo. Embora

existissem dezenas de rosas ali, Petr sabia, aquela não era qualquer rosa.

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— Ainda intrigado com essa flor? — questionou Petr, pegando o rapaz de

surpresa.

No susto com a presença inesperada do garoto, Chermont deixou a tesoura que

carregava cair e levou a mão ao coração.

— Por que você sempre faz isso? — perguntou o rapaz, atônito.

Recuperando a tesoura caída no chão, Petr ria com o susto que dera no amigo.

Não o fazia por querer, mas sabia que tinha de se livrar desse hábito terrível de se

aproximar sem ser notado e perguntar as coisas como se já estivesse ali há bastante

tempo. Mesmo assim, adorava ver a reação do amigo toda vez que era

surpreendido. Entrementes, era sempre a mesma: se sobressaltava, arregalava os

olhos, jogava qualquer coisa que estivesse em suas mãos para o alto e deixava

escapar pela boca um ruído característico. Petr desatava a rir com a cena todas as

vezes. Contudo, Chermont era um rapaz bacana e um grande amigo. Com vinte e

dois ciclos de idade, era um habilidoso alquimestre do vento e um dos muitos

mordomos que cuidavam do palácio, porém um dos poucos que conseguira criar

um vínculo tão forte com Lorde Maximo e principalmente com Petr. Magrelo e

esguio, mantinha os cabelos negros sempre penteados para trás e tinha os trejeitos

mais engraçados dentre todos os empregados no castelo e também os hábitos mais

incomuns, como checar as inúmeras trancas das portas do palácio antes de dormir

ou inspecionar se cada uma das velas dos candelabros ao longo da mesa de jantar

estavam perfeitamente alinhadas e com a mesma altura. Quando encontrava uma

mais baixa, tratava logo de perseguir alguma vela pelo castelo que combinasse com

as demais e não descansava até encontrar. Para Petr, ele era um fiel amigo e

conselheiro, o irmão mais velho que nunca tivera. Depois de seu avô, era um dos

poucos em quem confiava no palácio.

— Desculpe-me, — falou Petr devolvendo a tesoura, sem conter a risada —

prometo que vou parar com isso...

— Deve ser a vigésima vez que você me dá um susto e a vigésima vez que

promete parar com isso — crocitou Chermont, zangado, tomando a tesoura outra

vez. — E se essa tesoura cai no meu ou no seu pé? Já imaginou o estrago? E ainda

seria capaz de sua avó me acusar de querer assassiná-lo...

Petr desatou a rir.

— Pois é, já imaginou você no calabouço? Não ia mais poder conferir as trancas

dos quartos, só da sua cela. Como você ia viver com isso?

Os dois riram.

— Onde estava? — perguntou Chermont, displicente. Ergueu a tesoura com uma

mão e com a outra afofou a terra. Mirava, com seu olhar curioso, a rosa abissal no

canteiro.

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A figura imponente de Salazar Stanhorne sentado à frente de Petr minutos antes,

repetindo o conselho sobre nomear alguém como regente e assumir o posto de

Guardião de Anlevor, retornava com ímpeto em sua cabeça.

— No pátio, com Salazar Stanhorne — sibilou Petr, absorto.

A tesoura tornou a cair das mãos de Chermont sobre o piso do jardim. O rapaz

imediatamente parou tudo o que estava fazendo, boquiaberto e com uma nítida

expressão de espanto para o que Petr acabara de dizer.

— Com o líder do Conselho dos Guardiões? — questionou o mordomo,

embasbacado.

— Sim, com ele.

— E o que ele queria com você?

Petr puxou a carta com o símbolo do Conselho de dentro dos bolsos internos do

capão e entregou ao amigo. Chermont abriu o envelope em um frenesi de

curiosidade e correu os olhos rapidamente sobre o pedido contido na carta e suas

vinte e cinco assinaturas.

— O Conselho dos Guardiões está recrutando você? — o rapaz engrolou a

pergunta, ainda mais apalermado do que já estava.

— Não diria recrutando... — falou Petr, imaginando qual seria o melhor termo

para o que o Conselho pedia naquele papel. — Diria... suplicando que eu aceite me

tornar o Guardião de Anlevor...

Denotando um esgar que misturava confusão e ansiedade, Chermont guardou a

carta no envelope e entregou-o novamente ao seu dono. Pegou a tesoura mais uma

vez de onde ela estava e finalmente guardou-a no bolso do avental laranja.

— Mas... e quanto ao trono de Snartria? — perguntou Chermont, sem entender.

— Não sei o que fazer, Chermont — desabafou Petr. Sentou-se sobre um banco

próximo a uma grande parreira. — Snartria não tem um rei, Anlevor não tem

Guardião. Eu só gostaria que meu avô estivesse aqui. Ele me olharia do alto da sua

cabeleira branca, piscaria um olho para mim e diria que tudo ia se resolver como

num passe de mágica.

O mordomo franziu os lábios. Tirou o avental e, dobrando-o, sentou ao lado do

garoto. Vasculhou alguma coisa entre os bolsos das calças e tirou um pequeno

tablete de chocolate.

— Tome. — Chermont quebrou a barra ao meio e entregou ao garoto. — Está

meio frio e acho que esse chocolate vai te fazer bem.

Petr sorriu para o amigo e comeu o pequeno doce.

— Você é novo demais para tomar decisões tão difíceis, Petr. — Chermont dizia

enquanto abria novos pedaços de chocolate e comia junto com o garoto. — Decidir

sobre o futuro do reino ou ainda de Anlevor é um peso muito grande para seus

ombros. Você só tem treze ciclos!

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— Eu sei — falou Petr, cabisbaixo. — Mas o destino quis assim e agora eu

preciso encarar essas responsabilidades e, pior, ainda preciso aturar minha avó que

vai tentar me convencer a torná-la rainha e lhe conceder o poder que tanto cobiça.

Sabe, Chermont, neste momento, não há harmonia e equilíbrio para os Bravior.

O mordomo levantou-se de um salto. Agitou os braços acima da cabeça e, de

suas mãos, conjurou um grande falcão de vento. A ave abriu as longas asas

elementais e alçou voo sobre o jardim, pairando acima das parreiras. Sobrevoava

bem rente aos janelões do paredão negro do castelo real, em voos ligeiros e rasantes.

— 'Petr, eu quero ser rainha. Petr, me dê o trono ou te coloco de castigo!’ —

falava Chermont, com a voz nasalizada, guiando o pássaro de vento sobre o topo

das árvores.

— O que é isso? — inquiriu o garoto, rindo. Acompanhava cada movimento da

ave elemental controlada por seu amigo, lá no alto.

— Não reconheceu? É a sua avó, ué. Não ouviu sua voz grunhindo ameaças? —

disse Chermont, cínico — Acho melhor você fazer um arco elemental e atirar uma

flecha antes que ela roube o trono de você. Se você for capaz, é claro...

Um arco e flecha de fogo elemental crepitaram entre as mãos de Petr, que ria aos

montes. A flecha em chamas estava firme entre seus dedos e ele esticou a corda de

fogo do arco. Arqueou as pernas, fechou um dos olhos e colocou a língua para fora.

O falcão de vento em movimento estava travado em sua mira, ziguezagueando de

um lado a outro entre as nuvens.

— ‘Ou me dá o trono ou fica sem sobremesa, moleque’ — Chermont continuava

imitando Lady Asturias, fazendo o pássaro rodopiar no céu.

A flecha chamuscante irrompeu do arco em chamas. Subiu com ímpeto por entre

as roseiras e parreiras e deixou os jardins para trás. Acertou em cheio o coração da

ave de vento que logo foi tomada pelas labaredas vermelhas e laranjas, se

incendiando por completo e provocando um enorme espetáculo pirotécnico no céu

até apagar-se lentamente com a força dos ventos enregelantes.

Chermont aplaudiu a performance de Petr, entusiasmado. Curvava-se para saudálo

com certo exagero. O garoto abriu um largo sorriso e que murchou tão rápido

quanto apareceu.

— Pena que meu avô não viveu para me ver fazendo isto.

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Capítulo Cinco

Incertezas

As chamas elementais crepitavam no alto das tochas douradas ao longo de toda

a extensão da grande sacada retangular. O brilho azul e intenso dos archotes refletia

sobre as altas pilastras do grandioso Palácio de Marfim e preenchia o perímetro

com nuances marcantes e que inspiravam uma serenidade ímpar que se

intensificava através do fulgor deslumbrante da lua cheia sobre os céus abertos e

límpidos da Magnífica Mistral e do cântico doce e sereno das ninfas da floresta em

algum lugar para além das montanhas.

Os melhores alquimestres do fogo eram incumbidos pessoalmente pelo rei de

manterem as chamas naquele intenso tom de azul. Assim, todos os dias ao

crepúsculo, eles se dirigiam à grande sacada e acendiam com fogo mágico cada uma

das tochas. Quando as sombras da noite surgiam sobre a abóbada celeste ao

término do pôr do sol e o negrume das colinas se assomava sobre o castelo, as

torres se iluminavam de uma forma arrebatadora e a paz e a tranquilidade

imperavam nos domínios reais.

Ao pé das ameias da ampla varanda, duas xícaras de porcelana repousavam sobre

uma pequena mesa de madeira, próximas a uma chaleira também de porcelana fina.

A fumaça translúcida do chá de camomila quente espiralava pelos ares da noite,

subindo em direção aos céus.

Com as pernas cruzadas e muito bem aconchegado em uma poltrona de carvalho

estofada, Lorde Argus Norhein bebericou de sua xícara de forma comedida,

deliciando-se com a serenidade do início da noite. Aproveitava o aroma e o sabor

adocicado da bebida quando escondeu um sorriso inesperado sobre as bordas da

xícara. Admirava como a luz bruxuleante do luar e o azul vívido do fogo

acentuavam ainda mais a beleza de sua amiga elfo sentada na poltrona à frente.

Alta e incomumente estonteante, Ada Alezeia Turim era uma lenda viva da

Ordem dos Sacramentadores. Além da aparência extasiante, da pele morena

perfeita e dos cabelos deslumbrantes, eram as histórias de seus incríveis feitos como

sacramentadora que ecoavam por toda extensão do reino e do continente. Como a

protetora da malha do tempo nas eras em que esteve à frente do pilar de Serenidade,

sua poderosa magia impediu que mais de uma dezena de desastres varressem

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Mistral e outros reinos do mapa ao longo dos ciclos, como a Furiosa Tempestade

de Alevan e a Grande Tormenta de Argúrius, em que uma tempestade vinda do

oceano causou grandes temores em vários reinos do continente até ser totalmente

obliterada pela elfo. Feitos tão grandiosos, que nem mesmo os guardiões seriam

capazes de reproduzir. Majestosamente polida e de grande sabedoria, ela sustentava

a fisionomia de uma jovem de vinte e cinco ciclos de idade, mesmo já tendo mais

de duzentos, porque os elfos vivem quatrocentos e vinte ciclos a mais do que a

média dos humanos e têm o incrível poder de manter sua jovialidade por muitas

eras, como vocês bem sabem. Com um rosto angelical, como se esculpido com

delicadeza ao longo do tempo, era o símbolo quase etéreo da perfeição: nariz fino

e levemente arrebitado e grossos lábios que pareciam desenhados cuidadosamente

pela natureza; os cabelos castanho-escuros, muito lisos, possuíam um brilho natural

fascinante, escorrendo pelos ombros até a altura dos quadris. Não obstante o rosto

extasiante, os grandes olhos de íris da cor do vinho eram hipnóticos, de um

magnetismo capaz de deixar qualquer um de queixo caído e perdidamente

apaixonado por aquela bela elfo sentada com tanta elegância, sustentando o pires

com a mão esquerda e a xícara de chá entre os dedos delicados da outra mão.

Entretanto, a formosura arrebatadora de Alezeia era como a de uma fabulosa

escultura exposta em um museu: perfeita para se admirar e nada mais. Lorde

Norhein, mais do que todos, sabia muito bem disso. A amizade com a antiga

sacramentadora de suas terras vinha de muitas gerações dos Norhein de Mistral e

tivera início havia muitos ciclos, numa era em que iminentes flagelos ameaçavam a

harmonia do tempo sobre o continente. À época, Alezeia iniciava sua carreira como

sacramentadora e, rapidamente, graças a seu carisma e presença, veio a se tornar

uma grande amiga e conselheira do jovem príncipe Simus, bisavô de Argus. Quando

Simus ascendeu ao trono e tornou-se o soberano de Mistral, fortaleceu um grande

laço de amizade com a nova sacramentadora e deu início a uma tradição que se

estendeu por muitos ciclos, até a morte do rei: as prosas e conselhos à luz do luar

sobre a grande sacada no Palácio de Marfim. A tradição continuou mesmo após a

morte do rei. Lorde Pramis, o filho de Simus, via em Alezeia o ponto de equilíbrio

e sabedoria de que precisava para poder reinar com justiça e consolidar a harmonia

que o reino conquistara através de seu pai, até se deixar levar pelo maior dos erros

que um humano poderia cometer: apaixonar-se por uma elfo. Enlevado pela beleza

de Alezeia, o rei dera ouvido a seus mais profundos desejos carnais e apaixonara-se

perdidamente pela sacramentadora, ao ponto de querer abandonar o trono, a

esposa e seus dois filhos. Mas Alezeia era dona de princípios rígidos. Consciente de

que o rei possuía uma família e, acima de tudo, convicta de que humanos e elfos

eram de naturezas muito distintas, ela repudiou duramente o sentimento de Pramis.

Obstinado, o rei não admitia não poder possuir o único bem que tanto desejava.

Logo, sua obsessão pela beleza da elfo o levou à loucura e Mistral quase definhou

61


ante a insanidade de seu rei. A sabedoria de Alezeia fez com que entendesse que

aquele era o momento de afastar-se da Magnífica Mistral e de sua amizade com os

humanos e, por muitos ciclos, dedicou-se unicamente a Purysia e à Ordem dos

Sacramentadores. Somente quando Lorde Grandus, o filho de Pramis, reinava havia

trinta e sete ciclos e Argus, seu filho mais velho, aguardava na iminência de ascender

ao trono em virtude da idade avançada do pai, Alezeia aproximou-se outra vez de

Mistral. Argus lembrava-se bem do dia em que a conheceu. Era o Baile dos Quatro

Reinos e, naquele ano, o Palácio de Marfim estava mais reluzente e deslumbrante

do que nunca. Decorado para os festejos em comemoração à aliança entre os

principais reinos de Eurodian, o castelo cintilava com as cores intensas da

primavera. As cidades e condados do reino estavam igualmente decorados e os

cidadãos de Mistral festejavam o resultado das colheitas pelas ruas, comemorando

a chegada dos reis, rainhas e demais nobres de Badorian, Sombroceano e Boralioch.

O palácio se apinhava de nobres por todos os lados, bebendo e conversando e,

quando ela irrompeu pelos portões do Salão Principal, tudo pareceu se transformar.

Vinha acompanhada de outras elfos, sacramentadoras como ela, em uma visita

oficial, como a representante da Ordem ao reino, também para comemorar. Argus

não sabia explicar o porquê, mas havia um magnetismo que fazia com que os

olhares se voltassem unicamente para Alezeia, a mais deslumbrante de todas. O sol

forte do meio da tarde entrava por entre as vidraças do palácio e refulgia em seus

longos cabelos, cintilando sobre a tiara de diamantes no topo de sua cabeça. O

longo vestido azul de seda pura flutuava conforme ia avançando pelo grande salão.

Havia um brilho magistral nela, impossível de se explicar. Era como se ela emanasse

aquele fulgor, como se ela fosse a estrela maior que viera iluminar Mistral. Não

tinha muita certeza se deixara transparecer de mais sua admiração, mas lembravase

claramente do duro discurso de seu pai quando a festa ia se aproximando do fim,

tarde da noite, nos jardins suspensos do palácio.

— Vejo a mesma irracionalidade que havia em seu avô! — trovejava Lorde

Grandus sob a luz das estrelas.

— Do que o senhor está falando? — arguiu Argus, franzindo as sobrancelhas. Lá

no fundo, porém, ele sabia ao que seu pai estava se referindo.

— Não se finja de idiota! — esbravejou Lorde Grandus, cerrando os punhos —

Eu vi como você olhou para a sacramentadora. Seus olhos pareciam saltar das

órbitas. Todos os ministros e conselheiros do palácio me perturbaram a noite

inteira com sua reação. Agora eles temem que você aja como seu avô...

— Mas eu só estava admirando a beleza dela... — crocitou Argus, exasperado.

— Será que você esquece que este reino quase desapareceu graças a uma paixão

irracional de seu avô? — Lorde Grandus gritava então e uma veia saltava de suas

têmporas.

— Não, mas...

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— Entenda de uma vez por todas que você está comprometido com a princesa

Iamira e se você não está apaixonado por ela, sugiro que convença a mim e a todos

os ministros deste reino de que está. Mistral não pode sofrer novamente com um

rei fraco que se deixa levar por paixonites...

— EU NÃO SEREI UM REI FRACO! — berrou Argus, bufando de raiva.

— Então, aprenda, de uma vez por todas, — Lorde Grandus agarrou os braços

do filho e olhou no fundo de seus olhos — a beleza dos elfos não pertence aos

humanos. Seja o rei que Mistral precisa e não se deixe trair pelos seus sentimentos.

Os ciclos passaram desde aquela conversa. Lorde Argus subiu ao trono, casado

com Lady Iamira, que lhe deu três belos filhos. Uma de suas primeiras medidas foi

retomar a tradição antes perdida pela insana paixão de seu avô e que o levou à

loucura: as conversas com Alezeia, com quem aprendeu a extrair dessas prosas os

melhores conselhos para poder reger Mistral com justiça. Descobriu então que os

elfos, principalmente os que dedicam suas vidas à sacramentação, não se deixam

levar por coisas tão corriqueiras para os humanos como paixões, amores levianos

ou decisões geradas pela emoção.

Alezeia tomou mais um gole do delicioso chá e inclinou o rosto para além das

ameias da grande sacada. O Palácio de Marfim se erguia ao pé da Cordilheira Burcos

e a varanda retangular em que estavam possuía uma vista espetacular. A vegetação

densa que cobria cada milímetro da montanha se espalhava em inúmeras

ramificações entre as raízes tortuosas das árvores de troncos brutos e ásperos e

galhos sinuosos com grandes folhas. A gigantesca cachoeira jorrava suas

indomáveis águas cristalinas do sopé da montanha e cintilava à luz do luar. A

extensa sacada ficava na torre mais alta do palácio e, mesmo quem se inclinasse

sobre o parapeito não conseguiria enxergar em que lugar do pé da montanha as

águas desembocavam. Contudo, a vista era deslumbrante e o som das águas

borbotando incessantemente proporcionava um ambiente de perene tranquilidade.

A sacramentadora inspirava o ar puro da noite com vontade, soltando o ar dos

pulmões vagarosamente, esquecendo-se de suas iminentes inquietações. Adorava

os momentos que passava ali, admirando o céu estrelado, a encosta e sua gloriosa

cachoeira. O cheiro agradável do mato molhado invadia suas narinas e a luz azulada

dos archotes iluminando o trecho da cordilheira e a sacada onde estavam traziam à

tona sentimentos que há muito não experimentava. Uma sensação de paz

reconfortante envolvia seu coração e ela sentia-se aconchegada, ouvindo e

aconselhando seu amigo Argus sobre questões decisivas a respeito do reino, mas,

principalmente, podendo fugir do caos que havia se instaurado em Purysia.

Alezeia tomou um pouco mais de sua bebida e respirou fundo outra vez. A

calmaria resvalava de seu interior, indo embora tão rápido quanto expirava o ar da

noite. Um sentimento próprio dos humanos crescia em seu âmago. Ela não queria

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ter de voltar à ilha dos Sacramentadores carregando dentro do peito aquilo que os

homens chamavam de ansiedade.

— Argus, você é um grande amigo. Uma pessoa em quem confio minha própria

vida. Sei que não é costume dos sacramentadores comentar o que se passa dentro

da Ordem e... — titubeava, mas precisava prosseguir: — Posso estar infringindo

muitas de nossas leis, porém... as coisas estão estranhas em Purysia e isso muito me

perturba.

O rei franziu as sobrancelhas diante das palavras de Alezeia. Inclinou-se para

frente e depositou a xícara vazia em cima da mesa, apoiando o braço direito sobre

o joelho. Era estranho perceber como, para ela, Argus lembrava tanto o primeiro

amigo humano que fizera nas terras de Mistral, quando ainda era uma jovem e

inexperiente sacramentadora. O porte pujante, os olhos azuis e enigmáticos da cor

do oceano, a barba loira, bem aparada rente ao rosto e os longos cabelos dourados

com algumas poucas mechas grisalhas eram idênticos aos do pai. Entretanto, era o

jeito com que olhava para ela e como se posicionava para escutar suas palavras,

quer fossem conselhos ou mesmo um segredo inquietante à luz das tochas, que

faziam-na recordar de Lorde Simus e isso lhe deu mais segurança para seguir com

seu desabafo. Argus era um dos poucos humanos e amigos com quem fazia questão

de se esforçar para manter um linguajar menos rebuscado. As palavras floridas e os

discursos eloquentes e elaborados eram corriqueiros entre os elfos, que se

habituaram a essa forma de se expressar. Com ele, sentia prazer em utilizar palavras

mais simples e discursos sinceros, palavras que fossem diretas, sucintas, sem tantos

floreios.

— Alezeia, você tem a mim e a toda a Magnífica Mistral como servos seus por

tudo o que fizestes em favor destas terras. Pode confiar que as palavras ditas aqui

jamais sairão deste lugar e farei o que estiver ao meu alcance para poder ajudá-la. O

que quer dizer com ‘coisas estranhas em Purysia’? — inquiriu Argus, solícito. As

palavras de seu amigo rei lhe deram coragem para prosseguir. Era a primeira vez

que ela transparecia uma preocupação não contida.

— Há algo estranho acontecendo em Purysia, meu amigo — engrolava, arfando

ao pronunciar cada palavra como se não soubesse por onde começar, com um

medo latente em sua fala. — Eu não saberia explicar, pois, como você sabe, nós

elfos somos sensíveis ao que acontece ao nosso redor. Apesar de tudo parecer

dentro da normalidade e todos manterem suas rotinas e responsabilidades para com

a sacramentação do tempo, eu sinto uma perturbação, há algo fora do lugar na

Ordem. Além do que...

Alezeia hesitou.

Não estava convicta se deveria dizer o que queria dizer. As palavras estavam a

ponto de serem pronunciadas, mas seguir adiante era perigoso. Argus mantinha os

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olhos vidrados nos dela e os ouvidos aguçados para o que ela falava; o esgar assumia

o mesmo tom de preocupação que o da sacramentadora.

— Há dois meses não vejo Menfesis!

Argus arregalou os olhos, espantado.

Um silêncio momentâneo se seguiu entre ambos e as recordações de Alezeia

afloraram com ímpeto. Lembrou-se da última vez que o vira, antes de o Primeiro-

Líder da Ordem dos Sacramentadores desaparecer de vez do convívio com os

demais. Era uma semana de grandes decisões sobre as agitações que perturbavam

a malha do tempo e os líderes de Infortúnio, Perspicácia e Solidão regressavam de

seus postos à ilha constantemente, buscando decisões concisas de suas análises

sobre o que alvoroçava seus pilares. Entretanto, acima de tudo, aguardavam a

palavra final do líder da Ordem. No começo da semana, ele havia se trancado no

Acervo Sacramental e pediu que não fosse importunado. Proibiu qualquer um de

cruzar as portas da grande biblioteca de Purysia e colocou dois guardas alquimestres

para proteger o lugar. Ninguém entendia o porquê, mas respeitaram sua decisão.

Ao longo da semana, sua ausência fora sentida e notória nas reuniões da Ordem.

Os sacramentadores ansiavam pelas decisões que afetavam seus pilares. A grande

cadeira dourada do Supremo Chanceler permanecia vazia durante as sessões e

Alezeia, a cada dia, ficava mais inquieta pela falta de respostas sobre o que tanto

Menfesis fazia enfurnado lá dentro. Ao fim da semana, as portas do Acervo se

abriram e um Menfesis impassível saiu de lá. Taciturno, reuniu todos os

sacramentadores uma única vez, em frente às grandes portas de carvalho da

biblioteca de Purysia para ler um decreto, escrito e assinado por ele mesmo.

— A partir de hoje, o Acervo Sacramental de Purysia está selado por uma era e

sendo unicamente revogado apenas pelo Supremo-Chanceler da Ordem dos

Sacramentadores.

Ao final, enrolou o documento em suas mãos e se retirou. Um burburinho

generalizado dominou as bocas das dezenas de elfos confusos presentes no salão

do Acervo. Não havia lógica na decisão do grande líder em selar o Acervo

Sacramental. As obras de mais de uma centena de sacramentadores a respeito da

harmonia do tempo estavam presentes ali, além das profecias e antigas histórias de

quando os elfos ainda habitavam as florestas. Alezeia, depois de uma semana

conturbada com a ausência de seu antigo amigo sacramentador, estugou o passo

em sua direção na busca por explicações.

— Menfesis, o que significa isso? — questionou, segurando o braço do Primeiro-

Líder.

Menfesis virou-se e ali ela percebeu que algo estranho estava acontecendo. Ele

lançou um olhar frívolo para a expressão confusa de Alezeia e dali para os dedos

da amiga segurando seu braço esquerdo.

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— Será que vou ter que lhe ensinar o que é um decreto ou você esqueceu? Estou

selando o Acervo por cem ciclos até que julgue necessário revogar minha decisão.

— Mas, Menfesis, você não pode tomar esse tipo de decisão, qual motivo de...

O Supremo-Chanceler empurrou a mão de Alezeia e virou-se de frente para a

elfo. Uma fúria crescente dominava seu rosto, os olhos comprimiam-se em fendas

mínimas.

— Posso tomar as decisões que considerar necessárias. Sou o líder da Ordem dos

Sacramentadores e minha decisão não será revogada. A Guarda Sacramental já está

instruída a não deixar ninguém cruzar aqueles portões, sob a pena de ter uma morte

dolorosa. — E girou nos calcanhares, subindo a escadaria da torre da Grande

Bússola.

Desde então, ninguém mais vira Menfesis.

— Mas vocês convivem juntos na ilha. — As palavras de Argus interromperam

os devaneios de Alezeia. O rei estava obstinado a compreender as motivações para

um sumiço tão repentino. — Você sempre me disse que Menfesis era sensato,

sociável com os demais elfos e nem precisa mencionar que fora o principal

protagonista na grande proximidade que existe hoje entre a Ordem e o Conselho

dos Guardiões. Acredito eu que algo o perturba e, talvez, depois de tantos ciclos

tentando uma aproximação dos sacramentadores com o Conselho, ele precise de

um tempo sozinho. E você, o que acha que poderia ser?

Alezeia bebericou do chá, absorta.

— Deveras, Argus. Acredito também que seja isto...

Mas, no fundo, Alezeia não acreditava na teoria de seu amigo rei. Havia muita

coisa em Purysia ainda sem explicação e a letargia do Supremo-Chanceler, sua

irritabilidade e o desejo de estar sozinho não eram em vão. Menfesis descobrira

alguma coisa e a estava ocultando de todos. Queria acreditar que não, mas uma

nesga em seu interior insistia em crer que algo associado à máxima dos temores de

qualquer sacramentador, desde que a Grande Era das Trevas terminara, estava para

acontecer: a Era do Caos.

Um calafrio percorreu a espinha de Alezeia que voltou à realidade, com o rei

Norhein terminando de ponderar sobre os diversos motivos de um líder querer

estar sozinho. Ela estava consciente que jamais poderia compartilhar esse temor

com ele. Argus não compreenderia. Teria de buscar respostas por si só ou aguardar

unicamente que Menfesis retornasse de sua clausura na torre mais alta da fortaleza

de Purysia.

— Eu realmente não consigo compreender os motivos — falou Alezeia,

depositando a xícara sobre a mesa. — Quando se vive tanto tempo, Argus,

buscamos o caminho mais curto para uma decisão imediata: o caminho da lógica,

do pensamento. Não há tanta filosofia e tantos devaneios entre os elfos quanto há

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entre os humanos. Ao notarmos dificuldades, buscamos decisões conjuntas. Que

Menfesis está com algum problema, isto é notório. Contudo, sua demora em

encontrar uma solução e o afastamento do convívio com quem poderia ajudá-lo

nessa busca está provocando questionamentos em todos os Cinco Continentes.

Argus assentiu. Ouvira um boato qualquer sobre algo estranho em Purysia

tempos antes, mas não dera muita importância. Confiava que, qualquer que fosse o

distúrbio do tempo, Alezeia e a Ordem eram capazes de oferecer uma solução

rápida.

— Os sacramentadores de todo mundo estão insatisfeitos com Menfesis. —

Alezeia estava visivelmente acabrunhada, como se precisasse compartilhar sua

inquietação com a ausência do grande líder de Purysia. — Antes de seu

afastamento, ele cometeu uma sucessão de erros que provocou intensa discórdia na

Ordem. Há quatro meses, ele quebrou uma de nossas principais leis e destituiu

todos os sacramentadores dos Oito Pilares antes que completassem uma era,

alegando que eles perderam a capacidade de manter o equilíbrio na malha do tempo

em suas regiões. À época, Menfesis convenceu a todos que havia sabedoria em sua

decisão de afastar os atuais líderes. Então, com seu afastamento inexplicável, os

antigos sacramentadores vêm à ilha constantemente questionar Menfesis do que

acreditam ser uma precipitada decisão sua e são sempre barrados pelos guardas no

salão da Bússola, que tem ordem expressa de não deixar ninguém passar. Quando

me questionam o que está havendo, minha resposta é sempre a mesma: eu não sei.

Não ter respostas quando uma iminente crise parece querer se instaurar é a pior das

aflições. Os novos sacramentadores indicados por ele já estão se preparando para

assumir seus postos e eu sequer sei os nomes de todos. Não obstante, Argus, os

trigêmeos da Forja Élfica não param de enviar suas cartas à Purysia. Estão

aborrecidos com a ausência de encomendas de artefatos mágicos forjados para a

ilha...

Alezeia terminou e notou que jamais parecera tanto com um humano como

naquele momento: o desabafo ao pé da cachoeira a ajudava a manter a cabeça no

lugar. Norhein mantinha os olhos fixos na amiga. Nunca a vira daquele jeito. Ao

fim de sua confissão, ele não conseguia pensar no que dizer. Palavras de conforto

talvez não fossem suficientes. A situação era muito pior do que sequer podia

imaginar.

— Argus, desculpe-me por essas palavras, eu...

— Alezeia, — o rei interrompeu a amiga elfo que se mantinha cabisbaixa e

desolada — desabafar é bom. Um pouco de sentimento, às vezes, em um mar de

tanta razão é necessário.

Alezeia sorriu pelo canto da boca. As palavras de seu amigo lhe trouxeram algum

conforto e acalmaram seu coração conturbado. Mas o sorriso logo desapareceu.

— Não sei o que será de Purysia se as coisas continuarem assim...

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Capítulo Seis

Apuros em Paragon

— Vira!

— Vira!

— Vira!

— Vira!

— Quem ganhou?

— Gavor!

— Impossível! Revanche!

— Vira!

— Vira!

— Vira!

— Vira!

— E agora?

— Você!

— É! Desce mais uma rodada para comemorar!

Aos brados eufóricos e risadas histéricas, oito canecas se ergueram no ar. Fizeram

um sonoro tim-tim entre elas e quase se quebraram com a violência do brinde, em

meio aos ares ébrios da taverna. Uma tênue névoa cinzenta preenchia os quatro

cantos do recinto. Com um odor agridoce e que incomodava as vistas num primeiro

momento, era um conjunto de ervas de fumo queimadas lançadas às baforadas para

o alto, misturado com carne de carneiro que assava sobre brasas, bem lá nos fundos,

nas cozinhas da taverna, cuja fumaça estorricada invadia o salão contíguo,

mantendo o clima carregado, mas perfeito para uma comemoração inconsequente.

Pequenos grupos se acomodavam em suas cadeiras aqui e ali, aproveitando as

bebidas geladas magicamente que sambavam nas canecas. Os mais barulhentos,

como sempre, eram os tórridos anões, que tomavam canecões cheios de rum como

se fossem tonéis de água e estivessem mortos de sede. As barbas loiras e acajus se

encharcavam, por vezes, com a bebida e ecoavam estrondosas gargalhadas pelo

salão, batendo os cabos de seus machados ou cajados contra o assoalho.

Diferentemente da extravagância dos anões, dois elfos, altos, belos e de longos

cabelos brancos, degustavam suas taças de vinho delicadamente. E era notório que

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ali não era o melhor ambiente para sujeitos tão comedidos e que papeavam sem

nenhuma pressa, como se nada estivesse acontecendo.

No meio do salão, em volta de uma mesa redonda coberta de pequenas manchas

— também redondas das muitas canecas molhadas que estatelavam ali, oito jovens

terminavam de virar suas bebidas e faziam estrepitar as canecas sobre a superfície

da mesa, limpando os bigodes de espuma abaixo dos narizes com as costas das

mãos, sem o menor pudor, partindo de imediato para a próxima rodada.

— Onde nós estávamos com a cabeça quando deixamos o Dean escolher esse

lugar? — falou um dos oito, levantando uma das sobrancelhas enquanto contraía a

outra, em um sincero esgar de desaprovação. O nome dele era Bald. Corpulento e

atarracado, tinha cabelos escorridos da cor de palha velha e inúmeras sardas que se

concentravam logo acima do nariz e se espalhavam pelas maçãs do rosto.

— Ei, nem venha querer me culpar agora — falou Dean, esgalgado e de ombros

largos, cujos cabelos muito lisos repousavam, divididos, em cada um dos seus

ombros. — Vocês disseram que queriam tomar uma boa cerveja para comemorar

e não há lugar mais fétido e podre para se tomar uma cerveja artesanal do que a

Taluna Taverna!

— Eu quero saber da tal Feiticeira Vaginal...

— Lá vem você de novo com essa história.

— Parem de brigar! — interpelou Jano, o mais sensato de todos. — Importante

é que depois de tantos dias, finalmente estamos em Paragon, a mais badalada cidade

do mundo. Berço de toda população mágica. A cidade que abriga um dos Pilares

da Magia. Aliás, vocês sabiam que...

— Paragon nunca dorme — repetiram todos, em uníssono.

Jano segurou o queixo quadrado e passou um dos dedos sobre os cabelos muito

encaracolados, observando cada um dos rostos risonhos de seus sete amigos que

caíam na gargalhada.

— Acho que repito isso demais... — ponderou Jano.

— Deve ser a cerveja afetando seu cérebro — concluiu Mark, enchendo

novamente as canecas. Era a décima nona garrafa que esvaziavam.

— Aposto que é muito mais do que a cerveja. Essa fumaça toda afetou minha

mente e com certeza deve ter afetado a dos anões ali também. Estão agindo como

loucos faz tempo e não param de bater com aqueles cajados e machados no chão.

Logo, logo abrem um buraco no piso — completou um jovem de cabeça raspada

e pele azeitonada. Ropher era seu nome e apontou para o grupo de anões que

iniciava uma alegre e retumbante cantoria, a terceira seguida.

Uma das canecas se ergueu novamente ao ar. O braço em riste, cambaleante e

notoriamente bêbado, Herm se segurou na borda da mesa e depois no encosto da

cadeira para evitar cair por cima das diversas garrafas e do restante das canecas. Os

outros sete riam sem parar do amigo de cabelos loiros e dentes acavalados.

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— Quero dizer, hic, que não podemos esquecer... — Herm franzia as

sobrancelhas, como se tentasse lembrar o que não podiam esquecer — não

podemos esquecer... o que é que eu estava dizendo mesmo?

Os sete desembestaram a rir novamente.

— Ah, é. Isso. Isso mesmo. Isso aí. — Herm balançava para frente e para trás,

apontando para alguém invisível que o fizera lembrar o que precisava dizer. — Não

podemos esquecer que hoje é uma data especial e que finalmente estamos

comemorando nessa magnífica e pútrida espelunca, os vinte e sete ciclos de idade

do nosso querido safado, digo, amigo... é... Quem mesmo? Ah, é: Louk.

Uma salva de palmas eclodiu na taverna, puxada pelos oito ao redor da mesa e

que logo contagiou os demais, exceto os dois elfos ao fundo, que lançavam olhares

desaprovadores para o bando de bêbados tresloucados aplaudindo a esmo.

Arrastando a cadeira e colocando-se de pé lentamente, Louk fez tilintar sua caneca

com as dos demais outra vez, ao passo que as maçãs do rosto queimavam e ele via

sua própria aparência refletida no líquido dourado que saboreava lentamente, sem

muita vontade: olhos azuis que por vezes pareciam cinzas e que denotavam uma

mescla de excitação e uma ínfima ponta de cansaço; no topo da cabeça, os cabelos

ruivos desgrenhados, com metade das mechas ainda pendendo para o lado

esquerdo no resquício do que antes fora um belo e arrumado penteado. Havia aqui

e ali uma ruga ou outra linha de expressão que demonstravam que, de fato, o tempo

começava a castigá-lo.

Assim que cessaram as palmas — e acreditem, elas se arrastaram por longos

segundos, pois, aparentemente, nem todos os anões bebuns tinham se dado conta

de que a mesa que começara a aplaudir tinha parado havia muito tempo e partia

para uma nova leva de bebidas, Louk chafurdou na cadeira e bateu o copo sobre a

mesa, fazendo com que todos se sobressaltassem. Estampava no rosto a notória

expressão de quem acabava de ter uma brilhante ideia e Gavor, o campeão de “Vira-

Vira” de cerveja da noite logo desconfiou da conhecida expressão no rosto do

amigo. Coisa boa, provavelmente, não era.

— Como vocês sabem, nós estamos em Paragon, a cidade onde os sonhos viram

realidade — disse Louk, animado — e eu não posso sair daqui sem antes realizar

um sonho meu de infância.

— Lá vem... — crocitou Gavor, levantando uma das sobrancelhas.

Louk pigarreou alto e deixou escapar um muxoxo, comprimindo os olhos na

direção do amigo.

— Não esqueçam que hoje é meu aniversário, vocês são meus melhores amigos

(e primos) — E mirou Jano e Mark brevemente — e precisam, ou melhor, estão

intimados a ajudar a realizar meu sonho.

— Temo até perguntar qual é esse sonho, mas como sei que ele vai dizer de

qualquer forma... — sibilou Mark.

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— Qual é, gente? — Louk retrucava. — Nós estamos no Paraíso das Realizações

e eu não posso voltar para Amistelar e assumir o posto de Guardião de Turmis no

lugar de Lorde Dorner dos Ottonis sem antes fazer uma grande loucura nesse lugar.

— Uma grande loucura? — indagou Jano, alarmado.

— Sim!

— Mas como assim? — perguntou Gavor — Que tipo de loucura?

— Há inúmeras possibilidades — respondeu Louk, entusiasmado. — Invadir o

Palácio do Governador e passar um trote nele é uma delas. Soltar os touros das

fazendas do oeste da cidade pelas ruas e observar as pessoas correrem como loucas

de um lado a outro também é uma opção. Por favor, precisamos fazer história nesse

lugar. Imagina quão chato deverá ser contar para meus filhos no futuro que minha

maior realização foi sempre ser o ‘bom moço’ e ‘soldadinho do Conselho’ porque

papai mandou e...

— Não estou muito certo, Louk — falou Jano, tamborilando os dedos sobre a

mesa e alisando uma barbicha que não tinha. — Tio Leoris quase não permitiu que

viéssemos a Paragon comemorar. Acho que ele não confiava que fôssemos nos

comportar. Não acha que seria muito arriscado? Afinal, se algo der errado e formos

descobertos, seu posto de Guardião pode ficar comprometido e seríamos proibidos

de sair de Turmis, quiçá até de Amistelar.

— Eu quero que se dane, Jano — disse Louk, mesmo não estando muito certo

disso; talvez fosse o efeito da bebida, dando-lhe uma coragem que não lembrava

ter. — Estou fazendo vinte e sete ciclos de idade hoje e antes de ter de viver em

função da lei, preciso, ao menos, uma vez na vida, transgredi-la. Quero ter histórias

para contar no futuro e não apenas de que viemos a Paragon e bebemos,

comportadamente, junto com um bando de anões tresloucados e dois elfos

esnobes. Então? Quais são as nossas opções?

Cinco deles engrolaram dezenas de ideias para Louk, uma mais louca que a outra,

atropelando uns aos outros enquanto falavam, cuspindo mirabolantes sugestões a

torto e a direito do que poderiam fazer para entrar para a história. Somente dois

mantinham-se calados: Jano, que sustentava no rosto sua expressão de

descontentamento, observando os demais amigos e balançando a cabeça a cada

nova ideia e Herm, que de tão bêbado apenas sorria para os amigos quando eles

anunciavam suas insanas propostas e agitava a cabeça entre as goladas de cerveja

que tomava — o que para Louk era praticamente um sinal de aprovação. Mas foi

de Ropher a melhor — ou mais ensandecida — ideia e que fez com que todos se

empolgassem, exceto Jano.

— E se nós subíssemos ao ponto mais alto do Pilar da Magia. Digo, no cume da

torre? — inquiriu Ropher, vislumbrando os olhares carregados de excitação dos

demais.

— Claro! — crocitaram todos, descompassadamente.

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— Vocês enlouqueceram? — questionou Jano, pondo-se de pé — A Torre da

Magia é um marco histórico de nossos antepassados. Paragon só existe por causa

dela. É um dos monumentos mais importantes de Eirin e se o Conselho descobre

que nós profanamos aquele espaço, eu nem imagino o que é que pode acontecer

com todos nós. Sabe que seu tio Salazar pode até querer cortar nossas cabeças,

Herm!

Herm contraiu o rosto num esgar de dúvida e logo arreganhou os dentes, sorrindo

abertamente; agitando o indicador para Jano, ingeriu mais duas grandes goladas de

cerveja. Recordava que Salazar Stanhorne era seu tio, mas sequer se dava conta do

que eles estavam falando.

— Não seja um chato-estraga-prazer, Jano! — retrucou Louk, também se

levantando e encarando o primo — Você sempre quer estragar nossos planos.

— Claro! Desde criança que seus planos sempre terminam com a gente em

apuros e eu perdi a conta de quantas vezes fomos castigados por sua culpa. Mas

parece que agora você enlouqueceu de vez! — exclamava Jano, enfurecido.

— Isso é verdade! — concordou Mark, arrazoando.

— Até você? — confrontou Louk, exasperado.

Mark sobressaltou-se, atrapalhando-se com sua caneca de cerveja e algumas

garrafas vazias.

— Não, digo, é... Só a parte dos seus planos dar errado quando éramos crianças...

Louk comprimiu os olhos na direção de um assustado Mark que ainda tentava

não deixar as garrafas rolarem para fora da mesa, abraçando-as. Imediatamente,

voltou o foco para o pivô da discussão: seu outro primo.

— Ninguém está te obrigando a ir, Jano — falou Louk, cerrando os punhos —

Se não quiser nos seguir, fique. Aproveite sua estadia em Paragon nesta pocilga,

com esses anões sujos e embriagados. Nós vamos deixar nossa marca na Torre da

Magia.

Os outros seis também ficaram em pé, encarando Jano com o mesmo trejeito

petulante de Louk, desafiando-o. Somente Herm continuava sentado, ainda

entretido demais com sua caneca semivazia para prestar atenção na discussão dos

demais amigos.

Jano contorcia o cenho, contrariado. Sempre que perdia uma discussão para o

primo, sua série de tiques aflorava e olhava para cima e para baixo diversas vezes,

procurando uma alternativa que fosse agradável para todos, mas, desta vez,

nenhuma ideia brotava em sua mente.

— Ok. Vocês venceram. Mas que fique bem claro: se algo de ruim acontecer, sou

o primeiro a negar que conheço vocês. E eu vou fugir sem titubear.

— Certo, mas... — Dean abriu os braços, impedindo que todos se levantassem

— Nós não podemos ver a Feiticeira Vaginal primeiro?

— Dean, vai tomar no meio do seu...

72


— Não, sério — interpelou Ropher, revelando uma autêntica curiosidade. — O

que raios é uma Feiticeira Vaginal?

— E lá vamos nós de novo...

— Uma Feiticeira Vaginal é uma bruxa do sexo. São muito raras nos dias de

hoje...

— Isso nem existe... — balbuciou Jano no pé do ouvido de Ropher.

— Shiu! — Dean levou o dedo em riste até os lábios, em sinal de reprovação. —

Não fale do que você não sabe. Como eu ia dizendo, uma Feiticeira Vaginal é uma

bruxa do prazer. Dizem que ela tem uma magia clitoriana que faz o orgasmo durar

uma hora e meia completa. Já pensou?

Ropher levou a mão à cabeça e deu um tapa na face de Dean, que fez o rapaz

rodopiar.

— Espero que esse tapa recupere, em forma de agressão física gratuita e

espontânea, os vinte segundos perdidos da minha vida, ouvindo esse besteirol

narrado por você. Agora, vamos!

Cinco jovens irromperam pelas portas da taverna em direção às ruas de Paragon,

seguidos por outros três retardatários que engoliram, pressurosos, o que ainda

restava de cerveja em suas canecas. Por sorte, Jano lembrou-se de pagar pelas vinte

e sete garrafas e meia que consumiram e saiu, cambaleando e quase caindo por cima

de uma cadeira.

O frescor do inverno de Paragon permeava as ruas da cidade e, diferente de

Anlevor e seu inverno congelante, a brisa gélida não era tão atroadora; na maioria

das vezes, era bastante agradável, principalmente perto do cais, onde as correntes

marinhas traziam um sopro ameno das Águas de Crispoles. Em todos os lugares,

desde os mais badalados até aqueles mais escusos e soturnos, os ventos enregelantes

da agitada noite da cidade faziam reverberar longos e assombrosos zunidos entre

as dezenas de torres e palacetes ao redor e este mesmo vento era o que golpeava as

maçãs do rosto de Louk naquele momento. Os olhos contemplaram a lua cheia

reinando com toda sua exuberância, assim que saíram da taverna. O céu estava

límpido, coberto de estrelas cintilantes e não havia nuvens ameaçando estragar seus

planos de quebrar as centenas de regras que fora obrigado a decorar durante muito

tempo. Só queria diversão naquela noite sem arrependimentos. O brilho do luar

banhava, com seu aspecto leitoso, o mar de telhados, oblíquos e retos, aplainados

e tortuosos, das inúmeras construções colossais e milenares de Paragon e Louk,

acuado junto à porta de entrada da taverna, se via obrigado a dar um novo passo

para o lado, toda vez que um de seus amigos irrompia pela portinha de carvalho.

Atabalhoados, os oito jovens se acotovelavam, espremidos e acossados por uma

multidão festeira, em polvorosa, que dominava o perímetro externo. Fantasiados,

usando máscaras espalhafatosas e roupas de cores extravagantes, a multidão

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cantava e dançava pelas ruas, jogando serpentinas e confetes mágicos e

multicoloridos para o ar, brindando aqui e ali, com garrafas de cerveja e vinho nas

mãos. Dragões elementais surgiam no ar e sobrevoavam por cima das cabeças de

todos. Coruscando em um vermelho vivo, soltavam rajadas de fogo contra os céus.

Subiam em direção aos telhados mais altos e se aninhavam nas torres, descendo em

uma espiral incandescente. E aquela caravana animada e barulhenta seguia pelas

ruas, por todo canto, arrastando qualquer um que estivesse no caminho, rumo ao

coração da cidade.

— O que é que está havendo? — crocitou Mark, tentando se fazer ouvir em meio

aos berros histéricos da cantoria da multidão.

— É o aniversário do governador, seu animal — gritou Jano de volta, depois de

um silêncio de quase três minutos, em que os oito acompanharam um homem

vestido de arqueiro chapar um longo e demorado beijo em uma mulher enquanto

enfiava a mão por debaixo de seu vestido de pavão, bem na frente deles.

— Ele está dando uma... festa? — questionou Mark novamente, ainda

embasbacado com a cena que vira.

— É o Baile Anual à Fantasia do Governador — retrucou Jano, enfezado. — Te

falei mil vezes sobre ele enquanto cruzávamos as Águas de Crispoles... mas eu

achava que seria amanhã. Creio que confundi as datas...

— Como sempre... — sibilou Ropher para Louk.

— Todos eles devem estar a caminho da Praça do Tratado — concluiu Jano,

soberbo.

— E o que nós ainda estamos fazendo aqui? — perguntou Louk para os outros.

— Ainda acho que sua ideia é uma loucu...

— Não me interessa o que você acha, Jano. Você acha que com essa multidão de

gente bêbada e fantasiada, alguém vai reparar que nós subimos na Torre da Magia?

Olha quantas pessoas estão na cidade hoje...

— É verdade! — responderam todos em coro, concordando com Louk.

— Mas eu estou com um mal pressentimento...

— Ah, agora você virou vidente? — questionou Louk, irritadiço, virando-se para

Gavor.

— Não, é que... talvez Jano tenha razão...

— Mais um que vai amarelar...

— Eu não vou amarelar!

— Já chega! — falou Louk. — Eu não estou obrigando ninguém a me seguir.

Estou fazendo isso por minha conta e risco. Nenhum de vocês é mais criança e eu

não sou pai de vocês. Quem não quiser me seguir, que fique. Ah, e aproveite e tome

conta do Herm porque ele está seguindo aquela loira ali.

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Ropher voou na direção de Herm e o agarrou pelo colarinho, bem a tempo de

impedi-lo de colocar as duas mãos nos peitos de uma loira fantasiada de ninfa das

florestas.

Desvencilhando-se da multidão agitada, empurrando um grupo de jovens que

cantava aos berros, erguendo garrafas de rum para o ar e quase atropelando um

casal que se comia em um beco adjacente à taverna, Louk partiu em direção à Torre

da Magia. Espremidos pelas caravanas fantasiadas e que entoavam velhas cantigas

da cidade, vinha Mark, Ropher, Bald, Dean, Gavor e, bem lá atrás, Jano, que ia

arrastando um desolado Herm, choramingando por não ter conseguido agarrar os

peitos da mulher-ninfa. Os oito seguiram pelo beco, se apertando entre a multidão

irrequieta, esquivando-se aqui e ali. Por inúmeras vezes, se enfiavam por baixo das

pernas de um sem fim de homens e mulheres de fantasias exageradas, esgueirandose

por onde dava, aproveitando cada nesga de espaço em que conseguiam se meter

até que se depararam com uma extensa, porém estreita ladeira coberta de lajotas

escuras. Ofegante de tanto se apertar aqui e ali, derramando suor em bicas e com a

gola da camisa empapada, Louk se pôs a correr. Não havia tanta gente na ladeira

quanto nas ruas em que passaram, somente duas mulheres de longos vestidos

rodados, caindo de bêbadas, se apoiavam nas paredes de uma loja de souvenires

fechada. Ambas riram histericamente e caíram no chão quando os oito seguiram

correndo — Herm riu de volta, tão alto e histérico quanto elas.

Banhados pelo luar e pelas coruscantes chamas no topo dos postes ao longo da

ladeira, Louk ergueu os olhos para o alto e ao redor de onde estavam, observando

a arquitetura da cidade e suas construções antigas. As sinuosas avenidas, ruas, becos

e vielas de Paragon eram cobertas de grandes lajotas cintilantes, lavradas em ônix

e, mesmo sendo uma cidade milenar, as pedras perfeitamente entalhadas e

esculpidas reluziam à luz do luar e das lanternas nos postes. Mesmo estando

completamente apagados e com as portas e janelas devidamente trancadas, as

dezenas de lojas, casarões e casebres, sobrados e palacetes no caminho, pareciam

despertados sobre o relevo escalonado dos morros e vales da cidade, como se

decidindo se seria a hora correta para adormecer ou não, acompanhando com

intensa curiosidade, os oito jovens que corriam desabalados pelas ruas, elucubrando

o velho ditado exaustivamente repetido por Jano de que Paragon nunca dorme.

Reiterava a antiga impressão de que a cidade era um grande organismo vivo e

pulsante.

— Para onde agora, Jano? — berrava Louk. A sua frente só havia lojas e outras

construções negras em constante subida e uma grande encruzilhada.

— Sempre reto! — gritou Jano de volta, sua voz quase um sussurro ofegante ao

longe.

As pernas de Louk latejavam de dor. Os joelhos estavam prestes a ceder a

qualquer instante. A ladeira íngreme não parava de subir e subir. Confiava em um

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ditado sempre repetido por seu pai de que tudo que sobe, uma hora tem que descer,

ansiando que, a qualquer momento, seus olhos estariam finalmente diante da

majestosa Torre da Magia.

Atravessou o cruzamento, enxugando o suor que escorria em bicas de suas

têmporas com as costas das mãos. Não havia uma viva alma que não fosse a dos

oito correndo obstinados. Contemplou os amigos de esguelha, se obrigando a ir o

mais depressa possível, quase morrendo de cansaço. Mark já não estava logo atrás

dele. Era quase o último, muito próximo de Jano que carregava Herm nas costas

— provavelmente desmaiado, de tanto beber. Ropher seguia confiante, com um

brilho travesso no olhar. Se existia alguém que poderia estar mais louco do que

Louk para subir na Torre e marcar aquele dia na história, este alguém era Ropher.

Desde criança, seu amigo esgalgado e de pele morena sempre foi o mais

inconsequente do grupo e o único que topava qualquer loucura sugerida por ele,

sem nem mesmo perguntar porque ou avaliar as consequências. Mesmo quando os

demais concordavam que alguma ideia era muito insana, ele sempre arrumava

meios para tentar convencer o restante do contrário. Bald, Dean e Gavor seguiam

atrás de Ropher, mas não com o mesmo fôlego do amigo. Quando Louk atingiu o

ponto mais alto da ladeira, ele estacou.

Do alto da viela íngreme, os olhos avistaram o esplendor refulgente da Torre da

Magia de Paragon, um dos símbolos máximos de toda comunidade mágica de Eirin,

o marco do Tratado de Paragon e um dos monumentos mais famosos do mundo.

Bem ao centro da Praça do Tratado, a luz flamejante de sua chama eterna de

nuances azuladas iluminava o perímetro de casarões e palacetes em seu entorno,

ofuscando todo e qualquer edifício ao redor, até mesmo o palácio do governador,

que se sobrepunha às demais construções em beleza e excentricidade. As pessoas

lá embaixo pareciam formigas aglomeradas ao redor de um monstruoso doce

reluzente. Imperando como um gigantesco farol, a Torre da Magia de Paragon

lançava seu fulgor em direção aos céus e sua chama resplandecente sumia na

vastidão da abóbada celeste. Dizia-se que das Torres da Magia de Paragon e

Cruisand a vida se originou, quer mágica ou não mágica e que aquele colossal

cilindro em chamas apontando para o alto emanava o poder mágico do núcleo que

havia nas profundezas do planeta. Contava-se também que as tais chamas eternas

poderiam dar plenos poderes a quem conseguisse absorvê-las e uma antiga lenda

dizia que, um dia, um poderoso guardião conseguiu absorver parte das chamas e

que somente assim ele conseguiu derrotar os gigantes e drows durante a Era das

Trevas, mas tudo isso não passavam de velhas fábulas. Louk jamais acreditou em

boa parte dessas histórias contadas por seus pais e principalmente pelos avós

quando era criança, contudo, mesmo assim, a magnitude e exuberância do Pilar da

Magia o fascinavam.

— Uau — exclamou Ropher, embasbacado.

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Um a um, os outros sete paravam ao lado de Louk no cume da ladeira. Exaustos,

arfavam ruidosamente e apoiavam as mãos sobre os joelhos, curvados de tanto

cansaço. Mas todos reagiam da mesma maneira quando erguiam as cabeças para o

horizonte: fascinação. Os olhos dos oito amigos vidraram no fulgor do grande

monumento e as forças se renovavam, diante daquele vislumbre tão magnífico.

— Agora, precisamos descer e marcar nossos nomes na história — crocitou

Louk, entusiasmado, enchendo os pulmões de ar.

Os oito se puseram a correr, de súbito, ladeira abaixo. Com a brisa da noite

golpeando-lhes a face e agitando suas roupas, alcançaram rapidamente a multidão

fantasiada que se dirigia, bebendo, cantando e dançando, em direção ao centro da

Praça do Tratado. Esgueirando-se por entre a aglomeração mais uma vez, eles

seguiam em fila indiana, abrindo caminho por entre as pessoas que abarrotavam

todo o círculo da grande praça. Louk seguia na liderança dos demais e, quando

terminava de se esquivar de um trio que jorrava jatos de água elemental para os

ares, sentiu uma mão puxá-lo pelo colarinho para um canto.

— Ei!

— Acho melhor nós desistirmos. — Era Jano, desta vez com uma expressão

assustada, berrando acima das cantorias da multidão.

Louk franziu o cenho mais uma vez.

— Você quer novamente estragar nossos planos? — disse Louk, exasperando-se

outra vez — Já disse e vou repetir: não estou te obrigando a vir comigo. Eu vou

fazer isso, você querendo ou não.

— Louk, deixa de ser burro. Dá uma olhada no que tem lá.

Com o dedo indicador esticado, Jano apontava em direção ao centro da praça.

Ao redor da torre fortificada que cercava e protegia a parte de baixo do grande Pilar

da Magia, Louk avistou um extenso cordão de isolamento formado pelos Protetores

Mágicos, o esquadrão de alquimestres que guardava a Torre da Magia. Equipados

com armaduras de quartzo negro e capacetes, caminhavam de um lado a outro em

sua ronda ao redor da torre, mantendo os olhos de águia pelo perímetro, afastando

qualquer um que chegasse perto de mais, para fazer exatamente aquilo que os oito

estavam dispostos a fazer.

— É melhor desistirmos — continuou Jano, meneando a cabeça. — Era loucura

de mais mesmo...

Contudo, os olhos de Louk permaneciam vidrados no horizonte, nos muros da

fortaleza ao redor da Torre da Magia. Havia neles um brilho descomunal ou talvez

o reflexo dos fogos elementais que explodiam pelos ares. Mas Jano conhecia aquele

olhar. Não era o brilho natural, refletido sobre as irises de quem admira explosões

artificiais acima de sua cabeça. O rutilar notório em seus olhos significava uma coisa

e Jano estremecia só de imaginar o que o primo iria sugerir a seguir, o que não

demorou muito para acontecer.

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— Tenho um plano!

Louk arrastou os outros sete para uma viela próxima. Formaram um círculo e

apuraram bem os ouvidos, acima de toda balbúrdia dos arredores, para ouvi-lo falar.

— É o seguinte — falava Louk, com a língua num canto da boca, tentando não

se esquecer de nenhum detalhe do plano — Precisamos nos dividir.

— Definitivamente, não. — Jano interrompeu, imediatamente.

Os sete encararam o amigo. Crispavam os lábios e seus olhos destilavam um ódio

mortal.

— Enfim, — Louk prosseguiu, ignorando Jano — como ia dizendo... Os

Protetores Mágicos... os Protetores... Eles estão cercando a Torre da Magia. Isso

dificulta um pouco nossos planos. Eles estão armados. Muito armados. Armados

até os dentes, colocando para fora qualquer suspeito que se aproxime demais do

perímetro dos muros.

“A minha ideia é muito simples: precisamos nos separar. Até porque, se oito caras

chegarem perto o suficiente deles, é bem óbvio que coisa boa não é. Logo,

precisamos adotar uma estratégia de guerra. De vida ou morte e...”

— Ele não consegue ser direto, né? — sibilou Dean para Mark.

— Eu ouvi isso! — exclamou Louk, comprimindo os olhos para o amigo.

— Desculpe.

— Então, onde eu estava? Ah, é. Vamos nos dividir ao redor da Torre.

Louk desenhou no ar, com sua magia elemental, um mapa da Praça do Tratado.

Com a Torre da Magia bem ao meio, fazia brotar de seus dedos pequenas linhas

sinuosas que serpenteavam, flutuando nos ares, e assumiam seus lugares como as

ruas e vielas do mapa de Paragon.

— A Praça é muito grande. Enorme, para falar a verdade, e nos arredores dela há

essas quinze ruas que convergem para a Torre. Eu preciso que escolham uma dessas

ruas e se posicionem. Ao meu sinal, nós oito sairemos ao mesmo tempo, na direção

dos guardas. Gavor e Bald, — E Louk apontou para os dois e em seguida para uma

viela de seu desenho flutuante — preciso que vocês criem uma distração neste

ponto. Pode ser uma explosão elemental, uma chuva torrencial, algo que chame a

atenção dos guardas. Só não me venham com um urso bestial porquê da última vez

que você fez isso, Bald, minha mãe quase morreu. Entendido?

— Ok — responderam os dois amigos, quase ao mesmo tempo.

— Mark e Dean, vocês dois podem vir por aqui — Louk apontou para outra viela

cintilante de seu mapa no lado oposto das de Gavor e Bald — e também precisam

criar uma boa distração. Mais uma vez, sem ursos bestiais ou qualquer outro animal

elemental. Certo?

— Certo, certo — responderam Mark e Dean, descompassadamente.

— Ropher, você vem comigo por aqui. — Louk apontou para uma rua próxima

ao palácio do governador. — Quando eles criarem a distração, nós dois vamos

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escalar os muros e deixar nossa marca no topo da Torre, em um ponto onde todos

possam ver.

— Perfeito! — exclamou Ropher.

— Ok — continuou Louk, desfazendo o mapa elemental. — Agora cada um

pode assumir suas posições e...

— Ei, calma aí. — Jano interrompeu, exasperado — Por que Herm e eu não

estamos no seu plano?

— Não sei se você reparou, Jano, mas tem pelo menos uns vinte minutos que

Herm está estirado bem ali.

Os olhares dos sete se voltaram para um canto onde Herm repousava, dormindo

com a tranquilidade de um bebê, aos roncos retumbantes.

— É, verdade. — Jano ponderou e continuou — Mas e quanto a mim? Porque

não estou em nenhuma rua, criando uma distração, subindo na Torre...?

— Você? — inquiriu Ropher, surpreso — Subindo na Torre?

Todos desataram a rir e Jano fechou a cara.

— É CLARO QUE SUBIRIA... SUBIREI...

— Jano, — falou Louk, interrompendo a crise de riso generalizada — nós

sabemos que você sempre dá para trás. Vai por mim, fique aqui e não deixe

ninguém, sei lá, sequestrar o Herm.

Louk sentia o ódio destilado nos olhares frívolos do primo, que acabou acatando

seu conselho e sentou ao lado de Herm, com os braços cruzados, aquém a toda

festa ao redor.

— Ok. Quando chegarem aos seus postos, desenhem as iniciais de seus nomes

no ar. Mas só executem o plano quando eu der o sinal. Lembrem-se: tudo o que

acontece em Paragon, fica em Paragon. Todos entenderam? Então, vamos!

Os seis saíram do beco em que se encontravam. Seguindo a ideia mirabolante,

cada par designado foi para um lado. Atropelando a multidão, esquivando-se por

entre as pessoas, eles seguiram sorrateiros na direção oposta à Torre, rumo aos

pontos orientados por Louk de onde deveriam ficar, até que fosse dado o sinal,

seguindo à risca o que mandava o plano.

Desviando-se como podia, Louk também rumava para o local combinado,

seguido logo atrás por Ropher. A adrenalina tomava conta de seu corpo e as veias

pulsavam com o ímpeto das sensações que o impeliam a prosseguir. Nem mesmo

a leve brisa que corria pela extensão da praça conseguia fazê-lo parar de transpirar.

Cachoeiras de suor jorravam de suas têmporas, por vezes invadindo seus olhos,

fazendo-os arderem e a grossa camisa verde de algodão grudava em seus braços e

nas costas. Passaram afoitos por um grupo de garotas fantasiadas de ogros e

trombaram com três anões agitando garrafões de cerveja escura de um lado a outro.

Louk e Ropher pararam derrapando no lugar marcado e aguardaram o sinal.

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Vislumbravam a numerosa multidão, entretida demais com as comemorações, as

cantigas e os fogos de artifício que reboavam pelos ares, contrastando com a imensa

Torre da Magia, reinando bem no centro da praça e os guardas reais atentos a

qualquer movimento suspeito. Não havia o menor sinal do que combinaram

minutos antes de alcançarem suas posições.

Um M e um D surgiram de súbito no céu, cintilando em um tom púrpura

fluorescente, em um quadrante da praça, à direita de onde estavam. Indicava que

Mark e Dean haviam chegado ao lugar marcado. Segundos depois, Ropher cutucou

Louk para um gigantesco G e um B, brilhando num verde vivo em outro ponto.

Gavor e Bald estavam em suas posições afinal.

— Ok. — Louk respirou fundo, com o coração a mil. — Pronto?

— Nasci para fazer isso — crocitou Ropher, sacudindo as palmas das mãos e

estalando os dedos.

— Sem pressa, sem pressa. Ao meu sinal...

Uma fumaça azul subiu até os céus, emanando das mãos de Louk. Um grande L

e um R se desenharam, reluzindo acima das cabeças de todos. Admirados com o

brilho de duas letras aleatórias, uma série de eventos bizarros se desenrolou em

cascata.

Ao mesmo tempo em que Louk e Ropher dispararam por entre a pessoas em

direção à Torre da Magia, um monstruoso urso escarlate surgiu no meio da

multidão. Gigantesco, com olhos vermelhos e assassinos, observando as centenas

de homens e mulheres fantasiados, ele soltou um urro ensurdecedor, com os braços

em riste e garras afiadas, o que foi suficiente para fazer sumir com toda e qualquer

cantoria ao longo da praça. No lugar de música e alegria, gritos e berros

desesperados ribombaram de onde o urso apareceu, instaurando um caos

generalizado no quadrante de Gavor e Bald.

— Mas qual a parte do ‘não faz um urso elemental’ o Bald não entendeu?

Contudo, nem bem terminara de concluir sua frase, correndo na contramão das

pessoas desesperadas ao redor da praça, uma serpente verde, colossal e

incandescente, se assomava do quadrante oposto ao de Gavor e Bald. Erguia-se

aterradoramente contra a multidão, com olhos como mínimas fendas ameaçadoras

e dentes afiados à mostra. A serpente agitava com ferocidade o chocalho no

extremo de sua cauda. A aglomeração do outro lado da praça se atropelava, gritando

de forma histérica, desesperados para fugir da presença da serpente bestial que não

parava de se esticar, preparando-se para dar o bote.

— Genial. Era disso mesmo que precisávamos. Por que não pensamos nisso

antes? Faltava mesmo mais uma besta elemental para nos ajudar.

— Ei, Louk — gritava Ropher, enquanto tentava continuar seguindo o amigo,

no meio da multidão agitada que se dispersava na direção contrária. — Parece que

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deu certo. Os Protetores Mágicos daqui estão correndo para enfrentar as bestas

elementais.

Ropher estava certo.

Os protetores mágicos, próximos da rua onde antes estavam, partiram,

desesperados e assombrados, disparando bolas de fogo e rajadas de vento e gelo,

na direção do urso e da serpente gigante que ameaçavam a multidão.

Parecia que o plano dera certo.

Não saíra exatamente como queria. Não eram bem duas bestas elementais se

assomando contra todo mundo o que ele imaginava, quando pediu que seus amigos

elaborassem uma distração. Ao menos, a mágica de seus amigos afugentara os

guardas de seus postos, deixando o caminho livre para que pudessem subir na torre.

Só não sabia por quanto tempo seus amigos conseguiriam controlar as feras

elementais, antes de serem descobertos.

— Temos que ser rápidos — inferiu Ropher, lendo os pensamentos de Louk. —

Não acho que Gavor e Bald tenham energia para sustentar aquele urso por muito

tempo.

— Sim — berrou Louk, desviando de dois caras com orelhas pontudas falsas e

perucas loiras, fantasiados de elfos. — Vamos por ali.

Apontando para um canto onde não havia tanta gente, Louk e Ropher se

lançaram sobre os muros da fortaleza que cercava a Torre da Magia e iniciaram a

escalada rumo ao ponto mais alto, subindo pelas fendas e lacunas das pedras do

paredão.

— Já tem ideia do que vai escrever... ou onde...?

— Talvez — falava Louk, escalando as pedras farpadas do grande muro. — Tem

que ser lá em cima, de frente para a janela do governador. Ele tem que ver nossa

marca para saber que nem os Protetores Mágicos conseguem nos parar.

— É isso aí! — berrava Ropher, entusiasmado.

Os ventos fortes agitavam os cabelos ruivos de Louk. A vista panorâmica da

cidade de Paragon era estonteante da altura em que alcançara. As cadeias de morros

e vales em constante subida e descida, as casinhas antiquadas de telhados oblíquos,

os palacetes e casarões suntuosos dos nobres paragoneses e as demais construções

esplêndidas, banhadas pelo brilho leitoso do luar. Inclinando a cabeça, viu que as

luzes dos cômodos do palácio do governador estavam todas acesas. Era a garantia

de que o homem mais importante de Paragon estava presente para registrar aquele

momento ímpar. Então, percebeu que um estranho silêncio pairava no ar, quando

ambos estavam próximos do ponto mais alto da fortaleza.

— O que vocês estão fazendo aí? — gritava um dos guardas lá de baixo.

O urso e a serpente elemental sumiram sem deixar vestígios e a multidão

aterrorizada se atropelava, dispersa, fugindo por todas as ruas e vielas nos arredores

da praça. Lá do alto, Louk avistou Mark e Dean disparando por uma das ruas,

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empurrando e colidindo com uma centena de pessoas pelo caminho, enquanto um

grupo de Protetores seguia em seus encalços. Gavor e Bald irrompiam por uma

viela no lado oposto, aos trancos e barrancos, apertados por outra caravana festeira

que corria no pandemônio que havia se instaurado, com uma tropa de guardas logo

atrás deles, lançando magias que pipocavam por todos os lados, tentando detê-los.

No centro da praça, quando quatro guardas estavam prestes a perseguir os fujões

que conjuraram um urso e uma cobra, um deles girou a cabeça e olhou para o alto.

— Rápido. Ali. Peguem aqueles dois vândalos lá em cima!

Disparando como os rojões dos fogos de artifício, mas dessa vez em direção ao

chão, Louk e Ropher desistiram de subir. Regressavam às ruas de lajotas vazias nos

arredores da Torre da Magia, pondo-se a correr, sem hesitar, para não serem presos.

Quatro protetores mágicos cruzavam a grande praça no encalço dos dois, gritando

e lançando magias na direção deles.

— Vai por ali, que eu vou por aqui!

Ropher se esgueirou para uma viela no exato segundo em que Louk deu a ordem,

correndo sem ousar olhar para trás. Louk avistou dois dos protetores mágicos

acompanharem o percurso de seu amigo, em alta velocidade, enquanto mantinha o

foco em seu trajeto de fuga improvisado. Um misto dos brados de ordem dos

guardas da Torre invadia seus ouvidos, mandando-o parar imediatamente e se unia

aos gritos aterrorizados da multidão fantasiada da cidade, ainda assustados com os

monstros elementais. Apesar de Louk se obrigar a disparar por entre a aglomeração

de fantasiados fugitivos correndo a esmo, a adrenalina e o calor do momento

dominavam seu corpo, o que lhe dava ainda mais energia para continuar sua rota

de fuga, mesmo não tendo tanto certeza se os joelhos contribuiriam com essa

jornada.

Alcançou uma dezena de homens e mulheres fantasiados que se escondiam entre

os prédios das vielas e travessas paralelas à rua por onde seguia. Os cabelos de Louk

se eriçaram assim que mergulhou em um dos muitos becos: uma imensa bola de

fogo lançada por um dos protetores acertara um dos prédios, explodindo uma das

colunas do edifício. Um dos escombros quase não o derrubou por muito pouco.

Subindo por uma ladeira íngreme, Louk contemplava os protetores mágicos

obstinados, bem atrás dele. Precisava urgentemente despistá-los. As pernas

cansadas uma hora iriam ceder ou talvez seus pulmões explodiriam, de tanto

arquejar. A energia que restava ia aos poucos se exaurindo e uma dor lancinante

brotava no fundo de seu estômago: não sabia ao certo se de fome ou de medo.

Uma série de becos e vielas surgiu em seu percurso e Louk se embrenhava em

cada um deles, respirando ruidosamente, na tentativa desesperada de tirar os

guardas de seu caminho, sem ter a mínima noção de onde ia parar ou para onde

estava indo. Precisava de tempo, para reunir novamente os amigos, que seguiram

cada um por um caminho, e pensar em como iriam se livrar dessa enrascada.

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Vislumbrava Jano rindo-se, satisfeito, em sua mente, com a nímia expressão de “eu

te avisei”, segurando um Herm ainda desmaiado de bêbado.

Sacudiu a cabeça, tentando tirar do imaginário a imagem nefasta que insistia em

permanecer por lá, mas ainda em dúvida se Ropher, Gavor, Bald, Mark e Dean

estariam bem ou se os protetores mágicos os tinham alcançado.

Os guardas começavam a exalar a mesma exaustão que o abatia, mas não

deixavam de persegui-lo pelos caminhos insanos que tomava e, depois de subir por

uma nova ladeira íngreme, Louk dobrou em outro beco, dessa vez em constante

descida. Cortou por um grande portal e embrenhou-se em outra viela, disparou por

um beco extremamente estreito e quase passou por cima de um gato preto e, no

segundo em que estava prestes a adentrar uma viela sinuosa, sentiu o pé tropeçar

em alguma coisa. Projetando-se diretamente contra o chão, rolou por alguns metros

pelas lajotas ásperas até que sua cabeça colidiu, por fim, em um enorme paredão

com um baque oco.

A vista turva e uma dor de estremecer o cocuruto, Louk tateou o chão. O mundo

rodava ao redor e ele não conseguia firmar os pés e se levantar. Apurou a visão e

vislumbrou o que parecia uma mão estendida em sua direção.

— Você está bem?

Uma voz serena arguiu. Titubeou em esticar a própria mão, imaginando se não

havia mulheres entre os protetores e se uma delas não estava oferecendo ajuda para

poder prendê-lo. Assim que seus olhos focaram o mundo novamente, ele a viu.

Um rosto angelical se iluminou em meio à dor lancinante na cabeça e nos

músculos retesados por correr tanto. De semblante alvo como a neve e delicado

como uma pluma, as tenras bochechas rosadas contrastavam de uma forma

estonteante com seus olhos castanhos escuros que brilhavam intensamente. Não

estava certo se possuíam luz própria ou se a mente fora tão afetada que enxergava

um brilho vivo no fundo daqueles grandes olhos de cílios perfeitos, tão abertos em

uma expressão de profundo espanto e preocupação. O nariz era redondo e

pequeno, graciosamente esculpido em um rosto perfeito de queixo quadrado e

feições permeadas por uma seriedade ímpar. Os lábios desenhados se moviam,

como se ela quisesse perguntar algo, mas ainda não conseguisse. Quem sabe era seu

estado deplorável, encharcado de suor e estirado sobre o chão que não permitiam

tal criatura esplendorosa formular qualquer questionamento. Os cabelos castanhos

e ondulados, balançando com suavidade com a leve brisa davam o toque final

àquela obra de arte que se apresentava a sua frente. Não era a primeira vez que os

via. Visitavam Amistelar ou Frandar, Líria e Zavir, os reinos vizinhos com

frequência, para tratar de assuntos relacionados ao tempo, os quais ele nunca

conseguiu — ou quis — entender. Possuíam uma característica marcante, além da

rara beleza e da longevidade: as orelhas pontudas. Ela era uma elfo. A mais linda de

todas que ele já vira, sem sombra de dúvidas.

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— Será que ele está ouvindo? — inquiriu, preocupada, virando-se para trás.

Uma comitiva de elfos a acompanhava, observando Louk caído com o mesmo

espanto que ela sustentava em sua face. Altos, belos — mas não tanto quanto ela

— e de orelhas pontudas, todos vestiam longos roupões reais dourados, finos

lenços no alto de suas cabeças e nos pescoços e com mantas cintilantes drapejando

seus ombros, além de tiaras brilhantes de joias raríssimas. Arabescos e outros

desenhos, que deviam significar alguma coisa na cultura dos elfos, estampavam as

bochechas e testas de todos eles, em um verde esmeralda extremamente brilhante.

Repousando acima dos cabelos castanhos da elfo a sua frente, um diadema cravado

de rubis cintilava à luz do luar.

— Estou... sim... — respondeu Louk; o maxilar latejava de dor.

— Acho que você tropeçou — dizia ela, muito cordata, deixando escapar um leve

sorriso — e colidiu diretamente com este muro.

— É... — respondeu Louk, levantando-se, enquanto ela o ajudava a se pôr de pé.

— Eu...

— Ali está ele!

Além da comitiva de elfos que os cercavam, os protetores mágicos haviam

encontrado Louk. Ainda sendo socorrido pela bela elfo, que o ajudava a se

recompor, os demais elfos ao redor viraram-se, assustados e curiosos com o grito

repentino dos guardas. Louk balançou a cabeça, mas só conseguia enxergar uma

única opção para se ver livre da prisão iminente.

Os guardas se assomaram por entre os elfos com voracidade, empurrando dois

deles para os lados, ofegando ruidosamente, banhados de suor e sedentos para pôr

as mãos no delinquente bem diante deles. Louk agiu mais rápido que seus captores.

Agarrou um dos braços da elfo que o amparava e se postou atrás dela, fazendo-a

de refém.

Todos estacaram em suas posições de imediato. Os dois elfos que foram lançados

ao chão se colocaram de pé, com os olhos arregalados para a cena. Um deles

desmaiou segundos depois, chocando-se com estrépito no chão do beco. Os

guardas estavam atarantados e instintivamente puxaram as espadas da bainha,

fazendo crepitar em suas mãos pequenas chamas elementais. Outros três elfos da

comitiva, que ainda permaneciam em pé, tremiam dos pés à cabeça e se espremiam

para trás dos protetores.

— Qualquer movimento e eu mato ela! — disse Louk e de uma de suas mãos

uma chama azulada surgiu.

— Enlouquecestes, por acaso? — vociferava a elfo feito refém — Como ousas

fazer tal coisa?

Mas Louk não ouvia o que ela dizia. Preocupava-se com o movimento dos

protetores mágicos, tensos, com as mãos arraigadas às suas espadas e com a própria

liberdade em risco. A despeito dos elfos assustados ao redor, eram dois guardas a

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postos contra ele sozinho. Estava em desvantagem. Um movimento errado e não

sairia do beco com vida.

— Não ousem fazer nenhuma gracinha ou eu mato a... a... a...

— Sequer sabeis quem sou?

— Não, eu...

— Não, não sabes. — E ela sorria, satisfeita, mesmo não estando em posição

favorável.

— É claro que sei — argumentou Louk, exasperado.

— Não, tu não s...

— Ora, parem de discutir. Ela é Dhara Lovrens, a sacramentadora do octaedro

de Hegemonia, seu idiota! — crocitou um dos protetores mágicos, impaciente.

Dhara fuzilou o guarda com os olhos, enquanto Louk arreganhou um largo

sorriso.

— É claro que é. Uma sacramentadora de primeira linha — falou Louk, abrindo

um sorriso de orelha a orelha — Agora, sugiro que guardem suas espadas ou mato

ela na frente de vocês.

— Não tendes tamanha coragem e presunção para tal! — exclamou Dhara,

lutando para se livrar dele.

— Senhora, não testai a loucura deste humano — disse um dos elfos da comitiva

— Ele é deveras tresloucado... ou pelo menos parece...

— É isso aí — dizia Louk, a mão com a chama elemental para cima, tremendo

enquanto apontava de um guarda para outro. — Não me provoquem. Eu sou

louco, ouviram?

No silêncio breve que se fez, na tensão entre Louk e Dhara, a comitiva de elfos

que a acompanhavam e os dois guardas prontos para atacar, o jovem ruivo avaliou

as possibilidades de fugir dali. O beco em que estava encurralado era apertado,

iluminado pelo brilho de alguns archotes e da fraca luz da lua que entrava por entre

os edifícios. Atrás da comitiva e dos guardas, dois palacetes de mármore, de

telhados oblíquos e escarlates, com janelas altas de vidros escuros se assomavam

contra a escuridão da noite, mas foi no gigantesco muro do prédio em construção

em que estavam escorados que ele vislumbrou a saída de que precisava.

A chama azulada na palma da mão de Louk serpeou para o alto em um

movimento ligeiro e se converteu em uma fumaça densa e negra que espiralou na

direção dos guardas como um furacão indomável, fazendo-os caírem por cima dos

elfos acuados atrás deles. Rodopiando Dhara e soltando o seu braço, Louk agarrou

a elfo pela cintura, quase colando seu rosto no dela.

— O que estais a fazer? — gritava, cética com o que acontecia.

— Salvando a minha pele.

Uma corda em chamas brotou de chofre da mão livre de Louk, que disparou e se

enroscou em uma roldana no alto do edifício em construção, fazendo os dois

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voarem em direção aos céus, aos gritos desesperados de Dhara, avançando céleres

para o topo dos telhados.

— Só podes estar louco de verdade! — falava Dhara, tomando cuidado onde

colocava o pé.

— Hoje é meu aniversário — disse Louk, também pisando com cautela por entre

as telhas, torcendo para que nenhuma delas cedesse. — Não é muito legal ser preso

no dia do próprio aniversário, não é mesmo?

A sacramentadora lançou-lhe um olhar fulminante, que mesclava ódio e uma

pitada de medo.

O vento agitava as vestes elegantes de Dhara e ela tentava manter o equilíbrio no

topo do edifício, entre as poucas telhas fixas no extenso telhado inclinado. Louk

continuava tenso e inquieto. Lá de cima, observava os protetores mágicos e sua

insistência em capturá-lo. Iniciavam uma escalada por entre as armações de madeira

que serviam como andaimes para a construção, obstinados até as últimas

consequências. Era hora de buscar uma nova saída sobre o mar de telhas diante de

seus olhos e não demorou muito até que vislumbrasse um caminho para a salvação.

Agarrado à mão de Dhara como se seus dedos fossem raízes encravadas sobre a

terra, Louk fez sair uma finíssima corda azulada da ponta de seus dedos e ela

amarrou-se ao redor dos pulsos de ambos.

— O que é isso? — perguntava Dhara, aparvalhada.

— Eu sou a sua única chance de sair daqui... e você é minha única chance de fugir

daqui — disse Louk, encarando-a no fundo dos olhos — Venha e pare de reclamar.

Disparando pelos telhados, ouvindo o crack-crack das centenas de telhas

quebradas que deixavam para trás, com o vento frio do início da madrugada

agitando as vestes e cabelos dos dois, a elfo e o guardião corriam sobre os topos

dos edifícios e casarões, saltando de telhado em telhado, fugindo para longe do

alcance dos protetores mágicos que os perseguiam naquele instante, a todo custo,

tentando apanhar o fugitivo Louk e sua refém sacramentadora no pináculo das

maiores construções.

— Por acaso tendes nome? — perguntou Dhara, correndo e saltando, sem

conseguir se desvencilhar da mão de Louk, para o telhado de um sobrado onde

ficava uma importante loja de doces.

— Para que você quer saber? — questionava Louk, rindo, decidindo para qual

novo edifício deveriam seguir.

— Se porventura estás me sequestrando e, em tese e indiretamente, estou

livrando-o de uma iminente e inevitável prisão, não conjecturas que devo saber o

nome do meu... sequestrador?

— Conjecturas? Bem, talvez sim, talvez não. Não sei quais são suas intenções...

Ofegantes e suados, pulando e correndo por entre telhados, lajes e chaminés,

Louk observou que o número de guardas acelerando pelo cume dos edifícios ao

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redor, no encalço dos dois, havia mais que quadruplicado. Uma tropa implacável

os perseguia, lançando magias de fogo, de gelo, vento, rajadas de água, explodindo

telhas e algumas torres pelo caminho, fazendo tijolos e pedaços de vigas e colunas

voarem.

— Vestes de algodão e linho fino, um cordão e um anel real... — dizia Dhara,

correndo ao seu lado, enquanto o analisava dos pés à cabeça, sem deixar de prestar

atenção por onde seus pés passavam. — Com roupas e adornos tão caros, posso

afirmar que não és um plebeu qualquer...

Os dois saltaram para um palacete alguns metros abaixo, antes que uma bola de

fogo os atingisse. Parte do telhado explodiu, lançando telhas e escombros pelos

ares, assim que pousaram na laje mais abaixo.

— Esses guardas endoidaram? — inquiriu Louk, aparvalhado.

— Não duvido que vossa mercê tenha feito algo extremamente terrível para têlos

deixado assim, tão irritados...

— Digamos que eu tentei entrar para a história...

— ...desafiando-os para uma luta?

— Não, deixando minha marca na Torre da Magia!

Dhara deixou escapar uma leve risada irônica.

— Com a cidade apinhada de visitantes? Só podes ser louco mesmo... ou burro.

— Eu não estava sozinho. Tive ajuda — dizia Louk, zombando da cara da elfo.

— E o plano teria dado certo se...

— Se não tivesse dado errado — completou Dhara, erguendo uma das

sobrancelhas. — E agora estás a tentar fugir de uma legião inteira de protetores

mágicos altamente treinados, levando uma sacramentadora como refém. Deveras,

não sei dizer-lhe qual plano é pior.

Louk virou-se rapidamente para a elfo, comprimindo os olhos em sua direção.

— O plano era brilhante. Se meus amigos tivessem me ouvido, teria dado certo.

Agora, preciso arrumar um meio de escapar dessa furada.

— Imagino que tua família em Amistelar não ficaria satisfeita se soubessem que

tua estirpe fora presa, acusada de vandalismo a um patrimônio da comunidade

mágica e pelo sequestro de uma importante autoridade da Ordem dos

Sacramentadores...

— Como sabe que sou de Amistelar?

— O Leão Indômito cravado no anel que carregas o revelou — disse Dhara,

triunfante. — Então, és um Savya, Stanhorne, Gundorf ou Ottonis? Vais dizer-me

quem és ou terei de lograr êxito em descobri-lo sozinha?

— Para que quer saber? — questionou Louk, observando-a de rabo de olho,

sorrindo pelo canto da boca — Vai me denunciar? Ou será que está pensando em

me fazer uma visita na Austera Amistelar? E sabe de uma coisa, seu linguajar é

estranho, sabia? Parece uma velha falando.

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Dhara fechou a cara.

Pularam para outro telhado mais baixo e Louk sentiu cheiro de água salgada. O

cais devia ser ali perto. Não tinha se dado conta da direção que tomavam, ele apenas

corria para salvar a própria pele das magias lançadas pelos protetores mágicos,

impulsionado pelo frescor da madrugada, como se houvesse algo mágico no ar que

conduzia seus passos naquela direção. Até que ambos se viram de frente para um

gigantesco paredão, sem perceber, do principal forte à beira-mar de Paragon.

— Acho que você não tem mais para onde fugir — falou Dhara, quando os dois

estacaram de frente para a fortaleza colossal diante deles.

Ofegante, Louk entreviu uma dúzia de guardas irromperem por um corredor a

um canto de onde estavam, parando ao redor dos dois, as espadas para cima e as

mãos prontas para disparar magias elementais contra ele. Outra dúzia de protetores

mágicos surgiu no lado oposto, assumindo suas posições, também

desembainhando suas lâminas, conjurando bolas de gelo e fogo nas pontas dos

dedos. Estavam cercados por todos os lados.

— Afinal, meu recado foi compreendido...

— Como? — questionou Louk, virando-se para a elfo.

— Achaste que eu estava mesmo com o desejo de manter o fio de uma prosa

com sua pessoa? — perguntou Dhara. — Ao passo em que corríamos sem rumo

em sua jornada insólita, utilizei de meus poderes para fazer com que os ventos

guiassem nosso caminho até aqui. Quando percebi que tinhas adentrado no curso

da atmosfera, mandei um recado para os protetores através da vibração do ar até as

ninfas dos ventos. Elas se encarregaram de entregar a mensagem para o chefe da

guarda da cidade. Não tendes mais para onde fugir.

— Não há escapatória, filho. — O chefe da guarda surgiu entre os demais — Se

entregue agora mesmo ou sofrerá com as consequências.

Louk estava aparvalhado. Graças à elfo, estava encurralado ao pé do monstruoso

paredão sem saída. Os protetores mágicos os cercavam por todos os lados,

apontando suas armas e magias na direção deles, aguardando a decisão de Louk de

se entregar. Dhara permanecia presa a seu pulso pela corda mágica que lançou assim

que a sequestrou no beco e era a única coisa que não a impedia de sair correndo

dali e também de não ser atacado por todos os lados e obliterado pelos guardas.

Fora ludibriado pela mágica esquisita dos elfos. Devia ter suspeitado dos ventos

que pareciam tão agradáveis que o impeliam a seguir por ali. Mas como poderia

saber? Ela fora mais rápida e sagaz do que ele. Estava em uma sinuca de bico.

Precisava pensar e agir rápido, se quisesse sair dali.

— Não há escapatória — sibilou Dhara, sorridente. — Eles são muitos e atrás

de nós só há o mar...

Uma luz brilhou bem lá no fundo da mente escassa de opções do jovem guardião.

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Contemplou de relance o rosto em expectativa dos guardas ao redor, atentos a

todo e qualquer movimento seu e também o do chefe da guarda, com seu queixo

rígido e o olhar vidrado nele e na elfo a seu lado. Inspirou profundamente e o ar

carregado de sal queimou levemente suas narinas. O céu estava um tom de azul

mais claro, porém ainda repleto de estrelas e, em algum ponto no horizonte, sua

intuição dizia que o sol logo, logo nasceria. Ouvia as ondas quebrando contra a

fortaleza bem atrás dele e a brisa fria agitou seus cabelos uma última vez. Num

ligeiro movimento, Louk girou Dhara para seu colo e lhe deu um longo e vigoroso

beijo nos lábios. Cortando a fita mágica que prendia seu pulso no da elfo, ele a

encarou no fundo dos olhos, espantados com tal reação inesperada.

— É Louk!

— Como? — dizia, atarantada e sem fôlego.

— Meu nome é Louk, do trono dos Savya. Grave esse nome.

Dizendo isso, apontou as palmas das mãos abertas para o chão e delas surgiram

jatos espiralados de uma fumaça branca que o impulsionaram e ele saiu voando,

rápido como um balaço de canhão, em direção aos céus.

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Capítulo Sete

Entre Irmãos

Estalando os pés descalços sobre os degraus da tortuosa escadaria em espiral,

quatro crianças corriam contra o tempo. O suor jorrava em cascatas, empapando

suas roupas e com o coração a mil, subiam em direção ao topo da maior torre da

cidade, a do grande mercado.

— Se não formos mais rápido, não vamos conseguir vê-lo.

A torre do mercado era escura e úmida. Era uma construção muito velha, erguida

há muitas eras, quando Candorn ainda era reconhecida pelo seu simples entreposto

comercial à beira-mar e suas muitas minas de carvão inexploradas. Dezenas de

rachaduras se espalhavam ao longo da estrutura da torre e algumas davam arrepios

na espinha de tão profundas que eram e, claro, um emaranhado infindável de teias

de aranhas colossais, translúcidas, reluzindo a uma nesga de luz que entrava por

ínfimos vãos entre os antiquados blocos de tijolos no topo do edifício e os buracos

no telhado.

Estugados e correndo sem parar, os joelhos vacilavam nos últimos degraus. Um

misto de cansaço repentino e exacerbada excitação estampava o rosto de cada um.

Cansaço pelo pique ininterrupto desde as vielas da Rua Quinze, próximo ao porto,

passando pelas centenas de barracas e ambulantes em alvoroço no mercado,

desvencilhando-se das muitas galinhas e cabras em gaiolas e dos incontáveis

abacaxis, avelãs e laranjas em exposição nas barracas até aos tortuosos degraus da

velha escadaria da ainda mais velha torre. A inquietação incontida suplantava até

mesmo a fadiga que perturbava os joelhos das quatro crianças, pelo grande

espetáculo que estavam prestes a assistir. Esbarrando uns nos outros abruptamente,

estacaram no cume da torre, atropelando-se enquanto interrompiam suas corridas.

— Ai.

— Cuidado aí!

— O que está acontecendo?

— Diz para mim que nós chegamos, diz, por favor... Chegamos?

— Ainda não.

Os quatro estavam diante de uma rústica porta de carvalho, assolada pelo tempo

e pelas muitas intempéries que a afligiram.

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— A porta está emperrada — retrucou a líder do bando, após agarrar a maçaneta

e sacudi-la três vezes para baixo, com violência.

Encabeçando o grupo, a menina tinha a pele morena como um jambo maduro

recém-colhido e longos cabelos negros e encaracolados que batiam no meio de suas

costas. Usava um vestido vermelho, drapejado de pequenas pedras de um tom

esverdeado reluzente e calças bege com muitas manchas cinzentas, molhadas de

suor. O nome dela era Mashaine, a mais velha dos quatro e a segunda mais alta do

grupo, perdendo em estatura apenas para o último garoto da fila, esgalgado e

ofegante, ao pé do antepenúltimo degrau.

— Eu dou um jeito! — crocitou o segundo menino, se adiantando. Atarracado e

de cabelos cor de palha, arrepiados, ele arfava de uma forma esdrúxula.

Mais rápida do que todos, Mashaine meteu o pé na porta num solavanco

repentino e as dobradiças enferrujadas estalaram ruidosamente, antes de voarem

pelos ares e desabarem em queda livre no vão da torre. A velha porta de madeira

estatelou-se no lado oposto de onde estavam, caindo como o peso morto que era.

O sol a pino de meio dia invadiu suas retinas sem pedir licença, quase cegandoos

com seu fulgor, após dez minutos de uma exaustiva subida no negrume intenso

da velha torre. Os ventos cálidos do verão de Erthorgen, a capital de Candorn,

tinham uma característica peculiar: sempre traziam minúsculas partículas das areias

do litoral ao crepúsculo de cada dia. Por esta razão, quase sempre, os telhados das

casas mais baixas e até mesmo o pináculo das torres dos palacetes e do castelo real

estavam sempre cobertos de finíssimas camadas de uma areia tão fina e branca,

como se pequenos cristais migrassem das praias, toda noite, para cobrir a cidade

com um manto delicado e cintilante, como se nevasse em pleno verão. A este

fenômeno, nesta época do ciclo, dava-se o nome de Virações Cristalinas. Ali no

telhado, não era diferente.

Os quatro retornaram ao frescor das ameias do telhado do mercado, com as

vestes agitando à força do vento. Ofuscados pela claridade dominante, eles

apuraram os olhos e observaram um longo e sinuoso caminho à frente, atabalhoado

de tralhas como pedaços de madeira apodrecida e queimada pelo sol, telhas

quebradas e empilhadas e outras quinquilharias como velhos jarros destruídos que

alguém, algum dia possivelmente, tentou roubar, roupas esgarçadas que voaram de

um varal em algum canto e que, por um acaso, caíram ali e ali ficaram esquecidas;

todas cobertas de minúsculas camadas de cristais de areia das Virações.

— Rápido, por aqui. Lá na frente há uma vista espetacular — falou Mashaine e

todos se puseram a correr outra vez, seguindo a amiga.

A terceira do bando esfregou bem os olhos antes de retomar sua corrida. Lorine

era ruiva e queimada de sol, com sardas pequeninas e avermelhadas que tomavam

boa parte de suas bochechas. Enxergava o antigo telhado oblíquo do mercado

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dominando o lado esquerdo, enegrecido pelo tempo, com diversas telhas ausentes

e tantas bugigangas perdidas por ali quanto pelas ameias que percorriam naquele

momento e do outro, a visão de um mar de outras dezenas de telhados,

sobrepondo-se uns aos outros.

“Espero que essa vista seja realmente boa, porque daqui só vejo entulho e tralhas”

— Lorine pensava, enquanto os calcanhares latejavam de dor.

Mashaine seguia obstinada. Ofegando, uma pontada aguda despontava do lado

direito do estômago. Uma dor que sua mãe comumente chamava de “dor de correr”

e que acontecia justamente pelas bruscas corridas em que se metia ao longo das

ruas e vielas de Erthorgen, nas brincadeiras de pique-esconde com seus amigos. Ou

no pique-bandeira, em que era a maior recordista, por saber que havia uma

portinhola esquecida no Ourives da Rua Baixa, que quase nunca era usada e que

era a passagem ideal para o esconderijo secreto onde o grupo rival mantinha sua

bandeira. Quando perguntavam como ela conseguia encontrar a bandeira, sem que

os outros membros do grupo a vissem, ela se recusava a revelar seu maior segredo.

Assim, mantinha-se a maior campeã do jogo. Contudo, ela não estava metida em

nenhuma competição. O objetivo era muito maior desta vez.

Fora seu irmão quem falara daquele lugar e ele havia jurado, de pés juntos, que

das ameias do velho mercado estava a mais suntuosa vista de toda capital, quiçá até

mais deslumbrante do que a da torre mais alta do palácio do reino. Mesmo jamais

tendo pisado ali, ela acreditava piamente nas palavras dele, ainda que, de vez em

quando, suas maiores mentiras eram realmente convincentes. Precisava encontrar

logo um ótimo ponto de vista: o evento mais aguardado dos últimos ciclos em

Candorn estava prestes a acontecer e a paciência de seus amigos ia se esgotando

conforme avançavam.

Os quatro pularam por uma dezena de telhas quebradas e se esgueiraram por um

velho pedaço de madeira podre apoiado em uma chaminé, até que chegaram ao

local que tanto ansiavam. Naquele extremo das ameias, deixaram as telhas

enegrecidas dos velhos prédios da cidade e vislumbraram a gigantesca e suntuosa

Ágora do Princípio. Aos pés do palácio real, a praça era o marco histórico e um dos

principais monumentos do reino. Construída ao término da Grande Era das Trevas,

fora um presente dado pelos elfos de Vaelfar, quando ainda mantinham uma

relação amigável com os duendes artesãos de Pernítrulis. Uma obra de arte

magnífica e deslumbrante. Vinte e sete estátuas, dos últimos reis de Candorn, se

alinhavam perfeitamente, dispostas ao longo de uma praça circular, de calçamento

cuidadosamente trabalhado em topázio-esmeralda. O Corcel Alado, o símbolo do

reino, adornava seis mandalas esculpidas no chão ao longo do perímetro. No

centro, uma fonte prateada jorrava suas águas cristalinas em direção ao céu.

Uma multidão alvoroçada nos prédios ao redor e na extensa avenida lá embaixo

agitava pequenos chocalhos de madeira, que se enroscavam ao redor de seus pulsos.

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Outra aglomeração, a um extremo do principal acesso à cidade, flamulava enormes

bandeiras verde e prata, com o Corcel Alado costurado a mão, agitando-se contra

o vento. Milhares de candornianos lotavam as ruas, atiravam fitas verdes e prateadas

pelos ares e soltavam fogos de artifício. Pessoas dos mais variados tipos, vindas de

todos os condados do reino e até mesmo de reinos vizinhos como Legur, Sincar,

Poyares e Turvoreio, gritavam em coros na avenida e agitavam os brasões de suas

nações. Uma infinidade de homens, mulheres, elfos, anões, duendes e centauros se

espremia sobre as sacadas dos edifícios ao redor, buscando encontrar o melhor

lugar para contemplar o que estava por vir. Os exércitos do reino ocupavam as ruas,

formando um cordão de isolamento bem no centro da avenida, pressionado pelas

multidões em êxtase. Todos, sem exceção, aguardavam com intensa expectativa

presenciar um marco lendário da história recente da Virtuosa Candorn: o retorno

de seu rei.

E tão repentina quanto inesperada, uma enorme gritaria eclodiu em uma

extremidade da avenida e as multidões que abarrotavam os dois lados da rua se

alvoroçaram freneticamente, pressionando ainda mais o cordão de isolamento da

guarda real, por um triz de se arrebentar, mas que ainda resistia à intensa agitação.

Mashaine e seus amigos se penduraram sobre as ameias e apuraram os olhos para

além do mar de telhados da praça.

Lá no final de onde sua visão podia alcançar, ele surgiu.

As pessoas ao redor gritavam em uma histeria tresloucada. Mesmo o calor intenso

da hora do almoço não conseguia deter a monstruosa aglomeração, celebrando com

imenso vigor sobre a principal avenida de Erthorgen.

Acompanhado de sua comitiva, Saldivar sentia o suor escorrer por baixo do

capacete. Correndo por suas têmporas, sumia vagarosamente em algum ponto da

barba grisalha. Havia tempos que não utilizava aquele elmo e nem mesmo a sua

velha armadura — que comprimia seu corpo de um jeito nada confortável e o

forçava a andar de peito estufado e barriga encolhida. Ambos, assim como a espada

que carregava na bainha de seu cinturão, foram presentes que recebera havia mais

de vinte ciclos, quando fora nomeado Guardião de Elstoen. Moldada em Vaelfar,

pela Forja Élfica, era um excelente e requintado trabalho de elfos artífices, forjado

em artuno puro e banhado em ouro. À época, suas olheiras não eram tão profundas

e o vigor da juventude era enorme. A magia fluía por suas veias e sentia-se capaz

de derrotar dez mil dragões, se fosse preciso. O que restava então era o cansaço,

uma enorme pança e a expectativa de ver o filho mais velho assumindo o posto que

lhe fora confiado há tanto tempo. Aos trotes do cavalo, e com o gosto de bile nas

papas da língua, Saldivar contemplava a enorme festa que o povo fazia nas ruas por

causa de seu regresso. Arriscava falar uma coisa ou outra com a multidão, mas a

armadura comprimindo suas banhas mal permitia respirar, por isto limitava-se a

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arreganhar um sorriso simpático, cheio de dentes e a erguer a mão em breves

acenos.

Mashaine subiu em um beiral das ameias do telhado para poder contemplar

melhor, acima dos trilhões de papéis picados que voavam pelos ares, as bandeiras

colossais e pelos estrondosos e cintilantes fogos de artifício ribombando nos céus.

Além de sua armadura — que já não parecia tão boa para o físico avantajadamente

acima do peso, Saldivar exalava a fadiga dos ciclos. O tempo não fora nada

agradável com ele, castigando sua cútis negra: enormes linhas de expressão

ocupavam o topo da testa e as laterais de seu nariz bulboso. A barba grisalha estava

desgrenhada, com aspecto de malcuidada, como se ele jamais a tivesse penteado ou

mesmo passado um fio de navalha. Os olhos, porém, eram gentis. Cativavam à

primeira vista, mesmo com os profundos pés de galinha, e seu sorriso era sincero,

verdadeiro. Ele não era mais o mesmo guerreiro que seus pais tanto lhe narraram

em toda sua infância, o que via lá embaixo era uma sombra do que um dia fora e

que habitava o imaginário pelas histórias que tanto ouviu. Dentre os vários contos

a seu respeito, o que mais lhe impressionava era a Batalha de Amartarat, quando

Saldivar, sozinho, derrotou um Lobo Infernal monstruoso, explodindo-o por

dentro, obrigando um exército de bárbaros que tentava invadir Poyares a sair em

disparada do continente, de mãos abanando. Entretanto, a carreira de Saldivar fora

marcada não apenas pelos dias de glória como o herói da nação: a morte de sua

esposa por motivos escusos, quando seus filhos ainda eram muito pequenos e o

sumiço de Sâmia, sua irmã mais nova, eram partes conturbadas e mal explicadas de

sua história. À época, os burburinhos se espalharam pelas ruas e vielas dos

condados de Candorn e perduraram por muitos ciclos, mas se desgastaram com o

tempo, jamais tirando a admiração do povo por seu rei, que então retornava.

Acima das lendas e contos a respeito de sua vida e trajetória, o rei da família

Wullith retornava de forma triunfal, transmitindo uma felicidade patente aos olhos

de todos, comemorada com um entusiasmo vibrante.

O sol escaldante castigava seus cocurutos, quando Mashaine se empertigou ainda

mais nas ameias e levantou os olhos. Saldivar avançava lentamente, sendo

ovacionado por seu povo e pelos povos vizinhos, no topo de seu cavalo branco,

também adornado com uma armadura própria, carregando o brasão de Candorn

nos flancos. A menina mirou na outra ponta da avenida, bem no meio da Ágora do

Princípio, próximo ao chafariz, onde um palco havia sido montado.

Denotando uma impaciência incontida, os Drunírio e os Campwell, as duas

famílias de guardiões aliadas dos Wullith, aguardavam no extremo canto esquerdo.

Dizia-se que esta era a aliança mais antiga entre guardiões de toda Eirin e que

perdurava até os dias atuais, mesmo após as Batalhas Sombrias de Sahtrine, o último

grande evento que envolveu parte dos continentes e que expulsou os derradeiros

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minotauros sanguinários de Elstoen, Aladar e Eurodian, onde muitas famílias de

guardiões deixaram de lado o individualismo e se aliaram para formar os maiores

impérios da atualidade.

Bem no centro, sempre em posição de destaque nos eventos do reino, estava

Deelya Wullith. Corpulenta e costumeiramente mais espalhafatosa do que todos, o

longo vestido amarelo-manga drapejado de joias que exibia reluzia à luz do sol,

como se ela fosse um imenso farol cintilando no centro da praça. Ela não parava

de sorrir, arreganhando os dentes para todos, mantendo a pose empertigada, sem

deixar de transparecer um esgar afoito e uma leve nota de nervosismo em seu rosto.

Uma mão ajeitava os longos cabelos negros no topo da cabeça, enrolados como

uma cobra em seu coque justo e a outra cravava as unhas no ombro de sua terceira

filha, Layla, que pulava em seu lugar a cada novo aperto da mãe.

As quatro filhas de Deelya estavam ali: Talline, a mais velha e sensata das quatro;

Nidya, a saliente e tresloucada; a insípida Layla e Malya, a caçula. O esgalgado e

bebum Lorde Trawlin, marido de Deelya, se postava ao seu lado parecendo um

tanto entediado. Mashaine acompanhava os olhares buliçosos de Nidya para Cal ou

Chest Drunírio, os gêmeos, filhos do pujante Lorde Feizar. Nenhum dos dois

jamais dera bola para Nidya, mesmo com todas as tentativas da filha de Lady Deelya

de se jogar no colo de ambos. Ninguém sabia ao certo se era pelo fato de sua fama

de pervertida correr os quatro cantos de Elstoen ou se pelo interesse comum de

todos os jovens da realeza em Becca Drunírio, a exuberante filha mais velha de

Lorde Derrick, um dos membros mais antigos do Conselho dos Guardiões.

Longe de comparações, Becca era realmente a mais bela das damas do reino. Era

alta, de longos cabelos negros e encaracolados, pele morena e porte de Lady. Claro,

tanta beleza, definitivamente, herdada da mãe, Betine, prima de Saldivar. Porque,

entrementes, se havia algo que Derrick não herdara do clã dos Drunírio era a beleza:

era calvo, pançudo e tinha também um nariz esquisito, adunco, levemente torto

para a direita.

Por fim, na fileira dos Wullith, Drunírio e Campwell, não faltava ninguém.

Mastenion e Airis empinavam os narizes, com os três filhos à frente deles, como

era o costume em apresentações reais, bem ao lado de Deelya, Trawlin e suas filhas.

Lady Lolleene e Lorde Hallzer também marcavam presença, acompanhados dos

filhos. Lady Betine, Lorde Derrick e família também sorriam para a multidão. Como

de praxe, não poderia faltar também a megera Lady Janesse e seu inconveniente

marido. Ambos exalavam sua antipatia pelo povo e Mashaine tinha quase certeza

de que dos lábios de Janesse saía algum tipo de maldição para toda a “corja” ao seu

redor. Kevan, o filho mais velho do casal, também comparecia ao evento, a todo

momento lançando olhares para o trajeto por onde vinha Saldivar e para Becca, a

seis pessoas de distância dele. Lorde Callan Campwell também estava lá. O solitário

95


general dos exércitos de Candorn portava o costumeiro esgar de duras feições, mas

em seu olhar cansado, havia uma felicidade verdadeira pelo retorno de seu rei.

Quanto mais Lorde Saldivar se aproximava da Ágora do Princípio, mais

empertigados ficavam os Drunírio, os Wullith e os Campwell e mais fortes eram os

gritos das multidões que abarrotavam as ruas da capital. Mashaine e os amigos

viram Lady Betine sair de seu lugar, pousar as mãos com o carinho de uma mãe

sobre os ombros de Vegor e Rudi e conduzi-los até o topo do palco, bem ao centro

da praça, bastante emocionada, e imediatamente voltar à companhia de seus filhos

e marido.

Esquecendo a afobação dos amigos ao redor, que brigavam pela melhor vista no

topo das ameias, Mashaine concentrou os olhos nos filhos de Saldivar, a frente de

todos na praça. Como eram parecidos e ao mesmo tempo tão diferentes. Parecidos

por possuírem muitos traços do pai: algumas pintas escuras abaixo dos olhos, o

modo como sorriam, puxando os lábios levemente para a direita, os olhos

marcantes e cativantes. Dizia-se que Vegor, o mais velho, era uma cópia autêntica

de Saldivar com a atual idade do filho: vinte e nove ciclos. Porte atlético, braços

robustos, cabelos curtos e encaracolados. Contudo, longe das atenções de todos, as

diferenças entre ambos eram gritantes.

Mashaine relembrava das muitas vezes em que desceu aos Campos de Ordanes

para levar almoço aos irmãos mais velhos e aproveitava esses momentos para

acompanhar o treinamento dos soldados. Entre os muitos guerreiros que duelavam

com espadas, arqueiros atirando flechas em alvos à distância, alquimestres e mestres

que aprimoravam suas magias em trincheiras, lanceiros em seus treinamentos de

guerra, ela o via. Enfurnado entre os soldados, fosse sob sol escaldante ou chuvas

torrenciais, Rudi permanecia empenhado. Ignorando o sangue real e a linhagem

nobre, o filho mais novo de Saldivar treinava junto com os demais, empunhando

espadas e escudos nas simulações de batalhas, atirando com arco e flecha,

rastejando sobre a lama ou nas brigas de fim de expediente, usando nada mais do

que os punhos. Mesmo com apenas vinte e dois ciclos de idade, sua força e destreza

eram impressionantes.

Num desses dias, Mashaine se escondera sobre a relva ao entardecer, bem

próxima a Rudi, quando avistou Lorde Callan vindo, trotando com seu cavalo, até

o ponto mais baixo dos Campos de Treinamento, lá onde a lama chafurdava nos

calcanhares. Ele desceu de sua montaria, tirou o capacete e sorriu para o que viu.

— Parece que está fácil de mais, não é, senhor Rudi?

Rudi levantou os olhos.

Sujo da cabeça aos pés, terminava de derrubar o sétimo soldado sobre o lamaçal

enquanto o sol se punha em algum lugar no horizonte. O lusco-fusco e a lama preta

impediam-no de reconhecer quem o abordava.

— Sr. Callan?

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— Sim, sr. Rudi. — Callan sorria, chapinhando suas botas sobre a lama. Analisava

o cenário com atenção. — Então é você quem está abatendo meus soldados ao pôr

do sol?

Rudi riu.

— Abatendo? Jamais. Apenas fiz uma aposta. Disseram que eu não era forte o

suficiente para uma luta mano a mano, sem magias. Prometi duzentos candolins para

quem me derrubasse primeiro!

— Deixe-me adivinhar, sr. Rudi, − E Lorde Callan fez uma pausa para contar os

corpos − este é o sétimo imbecil que não conseguiu obter duzentos candolins do

senhor. Estou certo?

Rudi limpou a lama do rosto e jogou o soldado desmaiado para longe do “palco”

da luta.

— Na verdade, não, sr. Callan. Este é o décimo primeiro que eu derrubo.

Somente estes sete quiseram uma revanche, os demais foram embora mesmo.

E Rudi arreganhou o sorriso torto tão parecido com o de seu pai.

— O senhor, por acaso, não saberia de alguém forte o suficiente para me derrotar

em uma boa luta, no velho estilo, por dezuentos candolins, saberia?

Lorde Callan levou a mão ao queixo e arqueou as sobrancelhas.

— Deixe-me pensar... Será que um legítimo guardião, o melhor espadachim deste

continente, quiçá de toda Eirin, general dos exércitos da Virtuosa Candorn e

herdeiro dos Campwell estaria a sua altura ou vossa realeza gostaria de alguém mais

poderoso?

— É. — Rudi fez um muxoxo, sorrindo com confiança. — Acho que o senhor

dá para o gasto.

E, enquanto Lorde Callan descalçava as luvas de couro e jogava o gibão sobre a

lama, falou:

— Mas, antes que eu lhe dê uma surra e te deixe completamente desmaiado, diria

mesmo semimorto e pague suas despesas médicas, e quem sabe um pouco de rum

para mim, com os duzentos candolins que ganharei de você, preciso que preste

bastante atenção para a lição que vou lhe dar hoje, ok?

— Lição? — Rudi se aprumava, os punhos já em riste aguardando o rival.

— Sim. — Lorde Callan também erguia os punhos.

— Qual? — perguntou Rudi, curioso.

— Jamais confie em ninguém.

Uma bola de lama voou de súbito sobre os olhos de Rudi.

O que Mashaine viu de onde estava foi deplorável. Lorde Callan massacrou o

filho mais novo de Saldivar, levando-o desmaiado em seu cavalo assim que a luta

terminou. Seguiu morro acima, puxando as rédeas de sua montaria, cantarolando

tudo o que faria com o que sobrasse dos duzentos candolins, assim que quitasse as

despesas médicas e o barril de rum.

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Se as histórias que Mashaine conhecia de Rudi eram tão divertidas, as de Vegor

eram lastimáveis. A menina jamais vira Vegor de perto, não pelo menos durante o

dia. O primogênito de Saldivar não andava entre o povo, nem era do tipo que faria

uma visita ao grande mercado, aos campos de trigo ou algodão, ou mesmo aos

demais condados do reino para cumprimentar seus compatriotas, nem mesmo

treinar com soldados como fazia o irmão. Vegor não era do tipo que queria saber

algo sobre guerra, lutas ou treinamento ou mesmo, algum dia, tornar-se o futuro

Protetor de Elstoen. Das histórias que a irmã mais velha de Lorine contava, Vegor

só queria saber de uma coisa: farra. Numa dessas aventuras, que Mashaine e Lorine

ouviram, bisbilhotando através de uma fresta da janela, Vegor e seu fiel amigo de

festas e encrencas, Kevan, se embrenharam pelas ruas do Cais do Velho Farol, altas

horas da madrugada e sumiram por duas semanas. O palácio inteiro entrou em

colapso e tentou abafar o caso, afirmando que ambos haviam viajado até Anvor-

Elíada a passeio. Tudo mentira! Lady Janesse quase teve um infarto durante aqueles

dias e andava pela cidade desesperada e com grandes olheiras das noites sem

dormir, procurando pelo filho perdido. Diziam até que a sempre dócil Lady Betine

perdeu as estribeiras com Lorde Loubor e Lady Janesse e ameaçou dar uma sova

na mãe de Kevan se ela não parasse de lhe dar ordens para enviar incursões pelos

vinte condados à procura de seu filho e de Vegor. Um belo dia, no meio da

madrugada, os dois foram deixados aos pés da escadaria principal do castelo por

quatro misteriosas mulheres, completamente alcoolizados e seminus. Os boatos

diziam que o chefe da guarda real vira a cena, completamente estarrecido, e resolveu

abordar as mulheres antes que sumissem na escuridão da noite.

— Estávamos procurando por eles há duas semanas. Onde os encontraram?

— Nos bordéis do Cais — falou uma delas, abrindo um sorriso de dentes podres.

— Nos... bordéis? — O chefe da guarda arregalou os olhos. — Então, vocês

são...

— Prostitutas — responderam as quatro em coro.

O chefe da guarda levou a mão ao coração e chamou alguns soldados, que não

continham as risadas, para carregar um Vegor e um Kevan totalmente apagados

sobre os degraus.

— Peço a gentileza de não contarem nada a ninguém sobre este... este... momento

deplorável — suplicou o chefe da guarda, envergonhado. — Vocês sabem, eles são

da realeza e isso é...

— Claro que não vamos contar, bobinho — disse uma delas. Faltava-lhe um tufo

de cabelo no topo da testa. — Nossa boca é um túmulo.

Pelos dentes estragados das duas da frente, o chefe da guarda não duvidava nada

de que a boca de ambas fosse realmente um túmulo. E antes que fossem embora,

ele interpelou-as uma última vez, consumido pela curiosidade.

— Esperem... Há algo que ainda me intriga... Por que os trouxeram de volta?

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Elas sorriram e a loira de dentes podres da frente apressou-se em responder.

— Acabou o dinheiro deles, amorzinho!

Ainda observando a expressão dos dois irmãos, ansiosos e na expectativa de rever

o pai, o olhar altivo de Vegor e a expressão acanhada de Rudi, Mashaine tinha

certeza que, se um deles deveria assumir o posto de Guardião, o filho mais novo

do rei era o mais preparado de ambos, mesmo que isso contrariasse as tradições.

Saldivar alcançou o centro da Ágora do Princípio com dores no maxilar de tanto

sorrir e com o braço cansado dos muitos acenos para a multidão. O frenesi que

dominava os candornianos ao redor se intensificava e os coros de vivas e o

estardalhaço dos chocalhos ficavam mais ensurdecedores. Hallzer, Mastenion e

Derrick haviam deixado suas posições ao lado das esposas e filhos e se

posicionavam à frente, aguardando a chegada do rei, ao lado de Vegor e Rudi no

topo do palanque: Lorde Hallzer por ter assumido a coroa interinamente quando o

pai de Saldivar, o antigo rei, morreu, havia onze ciclos; não era dos mais queridos

regentes e nem mesmo um dos membros mais simpáticos dos Wullith, mas era

alguém frio para os negócios e que sabia conduzir as questões políticas de Candorn

com muita sobriedade; Lorde Derrick estava ali por ser o mais antigo representante

dos Wullith no Conselho dos Guardiões e também por ser quase um irmão mais

velho para Saldivar; era de longe o melhor amigo do rei; Lorde Mastenion era o

ministro de confiança de Lorde Hallzer e o conde do maior condado do reino:

Alziria; mas a grande maioria dos Campwell e Drunírio acreditava que ele gostava

mesmo era de estar em evidência, principalmente por quase ter sido cunhado de

Saldivar, na juventude. Mesmo tendo grandes responsabilidade em Alziria,

Mastenion e sua família mantinha residência no palácio de Erthorgen.

Desmontando do cavalo, Saldivar acariciou a crina de sua montaria uma última

vez. Removeu o capacete e o vento da tarde agitou seus cabelos grisalhos e

desgrenhados. O frescor da brisa tratou de apagar os últimos resquícios de suor que

escorria de suas têmporas e do pescoço e ele foi tomado por uma sensação de alívio.

O velho sentimento de aconchego o invadia e era sempre assim, toda vez que

retornava ao seu lar. Contudo, aquele dia era diferente. Havia um gostinho especial

depois de dois ciclos distante. Retornava para nunca mais ter de partir. Regressava,

triunfante, para assumir o posto que fora de seu pai e, antes, do avô.

Entregou o capacete a um oficial da guarda real e caminhou até onde estavam os

Wullith, os Campwell e os Drunírio, logo atrás do palanque. Cumprimentou Lady

Lolleene, a cunhada, e seus respectivos filhos, Wigan e Hal. Ainda que o tempo

tivesse adicionado algumas linhas de expressão e poucas rugas aqui e ali, ela

continuava exuberante. Mesmo sendo a caçula dos quatro irmãos, era a mais

parecida com sua falecida esposa, Lolla. Hal lhe apertou a mão com energia e um

largo sorriso, idêntico ao do pai. Foi aí que Saldivar se deu conta de como os ciclos

99


passaram rápido: não havia nem muito tempo, recordava-se de vê-lo criança,

brincando com Rudi pelos corredores do palácio, correndo de um lado a outro.

Saldivar seguiu cumprimentando os demais. Recebeu um abraço sincero e

esmagador de Lady Betine, aquele que ela sempre lhe dava toda vez que voltava de

suas viagens. Deu dois beijinhos em Deelya, como de praxe, e avaliou como a

expressão aduladora da irmã de Derrick não mudara em nada e até parecia contagiar

as filhas mais novas, que o abraçaram com um entusiasmo um tanto exacerbado,

tanto que Saldivar sentiu a coluna estralar em três pontos diferentes. Passou pela

sua cabeça que aquelas meninas não podiam ser filhas de Deelya, sendo as quatro

tão belas, tendo pais tão bizarros. Guardou os pensamentos para si e seguiu com

os cumprimentos. Apertou a mão de Loubor e concluiu que Janesse continuava a

mesma rabugenta de sempre: empinava ainda mais o nariz exageradamente altivo e

denotava a velha expressão de insatisfação, sabe-se lá com o quê. Cumprimentou

Callina e Feizar e deu um abraço apertado no general dos exércitos de seu pai,

Callan, que ficou um pouco acanhado, mas logo lhe devolveu um abraço tão

verdadeiro e cheio de sentimento quanto o de Betine. Poucas vezes Saldivar o via

expressar-se tanto como naquele abraço. Por fim, Saldivar abraçou Lorde Danrel e

Teonar, respectivamente os reis de Turvoreio e Sincar, deu um beijo em Lady Yisi,

a monarca de Legur e apertou as mãos de Lorde Brenrar e Grenbolth, os reis de

Poyares e Mondrária. Virou-se para o palanque, enquanto o povo ao redor

continuava em êxtase, aos berros e vivas, aglomerando-se no centro da Ágora para

ouvir o novo rei na iminência de seu discurso. Vegor se aprumou e estufou o peito,

ao passo que Rudi não conseguia parar de encarar os próprios pés.

— Meus filhos! — exclamou Saldivar; seus olhos brilhavam enquanto

contemplava Vegor e Rudi. — Dois ciclos se passaram desde que tive de partir de

Candorn e quanta coisa mudou.

Rudi levantou os olhos para o pai e sorriu. A voz de Saldivar já não era mais a

mesma para ele: revelava estafa e o peso dos ciclos, mas ressoava também uma nota

de alívio; talvez fosse por, finalmente, abdicar de sua função como Guardião depois

de tanto tempo dedicado com afinco e distante de casa.

— Vegor!

Saldivar agarrou o filho mais velho e lhe deu um longo abraço.

— Como você está forte! — O rei contemplava o primogênito de alto a baixo.

— Vejo tanto de mim em você, quando tinha a sua idade...

Vegor soltou um sorrisinho maroto pelo canto da boca e as feições mudaram

para a velha expressão soberba e arrogante, toda vez que alguém lhe dizia parecerse

com o pai. Sendo o próprio Saldivar lhe falando isto naquele momento, os

trejeitos eram mais prepotentes do que nunca. Rudi detestava isso no irmão mais

velho.

100


— Ah, pai — falou Vegor, com uma falsa modéstia. — O senhor sabe o que

dizem: os filhos mais velhos sempre parecem mais com o pai...

Rudi revirou os olhos.

— Mas vejo que estás bem forte, meu filho. Pelo visto, tem treinado arduamente

para me suceder.

Rudi deixou um risinho escapar e logo sentiu um pisão de Vegor em seu pé.

— Claro, claro... — retrucou Vegor, estugado. — Malho todos os dias, tenho

torneado os braços e peitoral como pode perceber.

Saldivar deu dois tapinhas nos ombros de Vegor e apressou-se a abraçar Rudi

logo em seguida, afagando seus cabelos.

— Rudi, meu caçula! — Havia uma lágrima no canto dos olhos de Saldivar. —

Lembro-me de você tão pequeno e agora és um homem feito. Sorte a sua ter

herdado a beleza de sua mãe e não as minhas trágicas feições.

Foi a vez de Vegor soltar um risinho e Rudi pisar o pé do irmão.

Saldivar cumprimentou Lorde Hallzer na sequência, com um cortês aperto de

mão. O antigo regente sequer lhe sorriu, como de praxe. Hallzer era linha dura e

acostumou-se a esse jeito rabugento de ser. Mas, se o antigo regente fora tão

insípido, não se podia dizer o mesmo dos outros dois ao lado: Mastenion e Derrick,

seus velhos amigos, o abraçaram como se não o vissem há décadas.

O Guardião de Elstoen tomou o centro do palanque para discursar ao término

dos cumprimentos e uma explosão de comemorações retumbou das multidões. Os

fogos de artifício, os chocalhos, os papéis picados e as bandeiras a flamular se uniam

em uma festa de mil cores sobre as ruas da cidade. Saldivar abria os braços, todo

sorridente, festejando junto com o povo seu retorno em definitivo. Ao som de

trombetas da orquestra real, o silêncio finalmente pairou por toda Erthorgen para

que Saldivar pudesse discursar.

— Compatriotas candornianos, amigos de Poyares, Sincar, Turvoreio, Legur,

Nogaza, Mondrária e Anvor-Elíada, eu vos saúdo. É motivo de grande alegria

poder discursar a todos vocês e desfrutar do carinho e da hospitalidade com que

sempre me recebem em meu país. Apesar dos ciclos distante, defendendo nosso

tão amado continente, meu coração sempre esteve aqui, nessas terras acolhedoras,

com um povo de amor inestimável. Hoje, não regresso mais com a alcunha de

Guardião, mas agora como vosso rei!

Uma explosão de vivas e palmas dominou as multidões outra vez, sendo somente

interrompida pelas trombetas, mais uma vez, para que Saldivar pudesse retomar o

discurso.

— Em minha juventude, como manda a tradição em nossas terras, fui indicado

ao cargo de Protetor através de uma Sucessão Honrosa, onde meu pai abdicou de

seu posto em meu favor. Hoje estou aqui, com a sensação de dever cumprido e

com tudo que estava ao meu alcance sendo consumado. Estabelecemos a união

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entre os reinos vizinhos e criamos um grande conselho para tratar dos assuntos que

permeiam a nossa eterna amizade. Com muito zelo e com o fervor de mim

requerido, tudo foi realizado para que a harmonia e o equilíbrio em todos os reinos

e condados fosse patente, apesar de minha imensa frustração em relação aos povos

bárbaros, que ainda assolam nossos reinos amigos, sendo impelido pelo Conselho

dos Guardiões a buscar soluções diplomáticas, mas que, infelizmente, ainda em

nada resultaram. Entretanto, apesar de todos os pesares que ainda nos assolam,

Elstoen e os Cinco Continentes vivem a expectativa de um momento histórico,

nunca antes concebido em nosso mundo: O Ano da Elegibilidade.

“Pela primeira vez, os Cinco Guardiões de Eirin ascenderão ao posto ao mesmo

tempo e o Conselho dos Guardiões celebrará a aurora desta nova era de paz em

nosso mundo com três grandes eventos, que acontecerão em Cruisand e Paragon,

os Pilares da Magia e em Gradia, a Cidade dos Guardiões.

“Como é sabido, o Conselho permite a livre escolha de cada continente na

indicação de seu futuro protetor, sempre levando em consideração o que mandam

as Três Leis Primazes de que precisamos garantir comissionar o nosso guardião

mais forte e preparado para a proteção dos mais fracos. Assim como foi entre mim

e meu pai, seguindo as antigas leis candornianas, orgulho-me em chamar aqui à

frente meu sucessor, meu primogênito: Vegor!”

Uma salva de palmas arrebatou as multidões, aplaudindo calorosamente. A

orquestra real entoou o hino nacional de Candorn acima dos assobios e aplausos,

enquanto Vegor estufava o peito o máximo que conseguia e caminhava em direção

ao local em que seu pai se postava. Saldivar abraçou Vegor mais uma vez,

emocionado, e seus olhos vislumbraram de relance uma expressão contrariada no

rosto de Rudi. Vegor ergueu o braço direito, saudando o povo, que explodiu em

novos vivas e fogos de artifício pelos céus. O silêncio instaurou-se, assim que o

primogênito de Saldivar pediu a palavra.

— Quero dizer que será uma honra para mim, pai, poder servir ao Conselho dos

Guardiões e ao povo de Elstoen como seu futuro Protetor, empenhando-me e

demonstrando a mesma garra que o senhor ao longo desses ciclos. — E antes que

o povo pudesse aplaudir novamente, Vegor concluiu, sorridente: — Claro, só

espero que eu não utilize a mesma armadura que o senhor, não é? Afinal, esta já

não serve nem para ferro velho.

Rudi revirou os olhos outra vez e levou a mão à testa. Kevan soltou uma

gargalhada reboante lá atrás, antes de ser atingido por um tapa muito audível de

Lady Janesse, sua mãe. Aparentemente, ninguém ao redor gostou muito da piada

infame de Vegor e Saldivar cortou o silêncio constrangedor que pairou no ar.

— Vaelfar sempre terá uma armadura nova e exclusiva, forjada para um novo

Guardião, meu filho. Não há com o que se preocupar.

102


O novo rei de Candorn ergueu a mão do filho para os ares e uma nova onda de

palmas encheu a praça.

— Neste momento ímpar que estamos vivendo, — prosseguiu Saldivar, assim

que as palmas diminuíram — para que não fiquemos somente em minhas palavras,

diante dos reis amigos de Candorn e dos Campwell, Wullith e Drunírio, a mais

antiga aliança entre famílias de guardiões, meu filho Vegor fará uma demonstração

do grande poder dos Wullith e, obviamente, de sua incrível magia, para que não

haja dúvidas de sua força e capacidade.

Vegor franziu o cenho e Rudi contraiu as sobrancelhas, sem entender.

A um aceno de Saldivar, de um canto extremo da praça, uma imensa jaula coberta

por um pano surgiu entre as aglomerações. Dando espaço para os soldados

passarem, eles arrastavam, com dificuldade, a gaiola de ferro que se agitava e

comprimia as quatro pequenas e frágeis rodas de madeira contra o chão. Urros

aterradores e intermitentes ecoavam, vindos debaixo do pano cinzento, cheio de

grandes manchas de musgo. Os berros assustadores enchiam os ares cálidos da

Ágora do Princípio, fazendo todos ao redor estremecerem. Era o único som que a

multidão, então emudecida e alarmada, se propunha a ouvir.

— Guardas, retirem o pano — ordenou Saldivar, com um enorme sorriso de

satisfação nos lábios.

Um dos soldados puxou o pano e uma intensa gritaria reboou pelos ares.

Assombradas, as milhares de pessoas ao redor trataram de fugir para longe da gaiola

da criatura grotesca que se apresentava. Um gigantesco troll urrava a plenos

pulmões, agitando as grades de sua prisão até quase quebrá-las ou arrancá-las dali

com as mãos enormes de unhas pontiagudas como lâminas mortais. Aparentava ter

quase quatro metros de altura e exibia dentes amarelados e afiados como pontas de

lanças, em uma expressão demoníaca. A baba verde e viscosa escorria entre os

dentes e pelos lábios, morrendo ora no chão de madeira da jaula, ora em sua densa

pelagem cinzenta. A criatura contida na jaula não estava nada satisfeita em ficar

enfurnada ali, limitada pelas grades e, para Rudi, o troll assassino comeria a multidão

ao redor em questão de segundos, se pudesse se soltar de suas cadeias.

— Compatriotas de Candorn, não se preocupem — berrou Saldivar, tentando

sobrepor a voz acima dos urros da nefasta criatura e do povo que fugia, assustado.

— Este simples troll que capturei em minha última viagem pelas colinas de

Turvoreio é irrisório para o poder de meu filho Vegor. Com um mero tostão de

seu poder, ele esmagará este monstro como se pisasse em palha seca.

Vegor arregalou os olhos para o pai. Rudi, lá atrás, também ficou alarmado.

— É... pai... — sussurrou Vegor e encarou a criatura berrando na jaula, os olhares

assustados do povo lá embaixo e, por fim, a expressão confiante de seu pai bem à

sua frente — porque o senhor não me avisou que faria essa... hum... surpresa? Eu

teria me preparado melhor e...

103


Saldivar franziu o cenho.

— Se preparar?

— Sim... é... pai... Sabe, eu teria...

Saldivar agarrou o rosto do filho de chofre e contraiu as sobrancelhas.

— Vegor, você está com medo?

— N-não, pai... claro que n-não, eu só... só...

Saldivar deu dois passos para trás e comprimiu os olhos, atestando o que

suspeitava.

— Você está com medo.

— Claro que não! — exclamou Vegor, inflando os pulmões.

E Vegor girou nos calcanhares no mesmo instante. Desceu do palanque e

caminhou em direção ao imenso troll, torcendo para que ninguém reparasse em sua

nítida expressão de terror.

— Soltem a criatura! — berrou Saldivar, cheio de orgulho do próprio filho.

Vegor cruzava a praça, os braços arqueados e o medo estampado em seu rosto,

quando os soldados puxaram as correntes que prendiam a gaiola e a multidão ao

redor silenciou. Prendiam a respiração em grande expectativa. A porta da jaula

despencou sobre as lajotas da avenida principal de Erthorgen com um baque surdo

e o troll estava finalmente livre, com seu olhar assassino e dentes à mostra, diante

de um amedrontado Vegor que o encarava, caminhando em direção a ele para

enfrentá-lo.

Num infinitésimo de segundo, o inesperado aconteceu.

O gigantesco troll rugiu e os dentes afiados ficaram ainda mais aterradores,

cuspindo sua baba gosmenta em todas as direções. Vegor estacou, protegendo o

rosto e soltou um grito histérico de terror. No instante seguinte, o primogênito de

Saldivar voou pelos ares e caiu desmaiado sobre o chafariz no centro da praça, com

o incrível golpe que levou da criatura.

O que aconteceu a seguir foi ainda mais aterrador.

As multidões ao redor gritaram desesperadas e começaram a correr de um lado a

outro, tentando fugir da criatura demoníaca solta nas ruas da capital. Os soldados

desembainharam suas espadas e lanças, tentando conter o monstro que mantinha

seus olhos frívolos no único ser que ela queria trucidar e arrancar até a última tripa:

Vegor. Saldivar permanecia estupefato, estacado aos pés do palanque em que havia

discursado, contemplando a cena sem querer acreditar. Mastenion, Derrick e

Hallzer quase faziam os olhos saltarem das órbitas, tamanha era a descrença no que

viam. Os demais reis vizinhos e os Campwell, Wullith e Drunírio permaneciam

boquiabertos, assustados e embasbacados com o pandemônio a sua frente.

O caos estava instaurado.

Agitando seu poderoso braço peludo, o troll derrubou o esquadrão de lanceiros

que tentava jogá-lo novamente para a jaula como se fossem pedaços de papel. Os

104


arqueiros corriam de um lado a outro e já se posicionavam em pontos estratégicos

para abater a fera e os espadachins contemplavam suas espadas se partirem ao meio

quando tentavam cravá-las sobre o couro intransponível da criatura. A aglomeração

ao redor se dissipava, com as multidões correndo para o mais longe possível de

onde o monstro atacava. Mas o troll não queria saber de ninguém, seus olhos se

concentravam em Vegor. Avançava, implacável, por entre os soldados que

tentavam, inutilmente, contê-lo.

O troll havia derrubado uma legião de espadachins que o impedia de seguir até

seu alvo, quando algo ainda mais inesperado ocorreu. Prestes a dar o último golpe

em Vegor, um imenso braço de pedra se chocou violentamente contra os punhos

em riste do troll assassino, fazendo-o ricochetear e tombar para trás, destruindo o

chão de lajotas.

A gritaria ensandecida desapareceu e deu lugar a um silêncio absoluto e repentino.

Olhares curiosos se voltaram para a frente do chafariz, de onde a criatura fora

arremessada. Ninguém ao redor acreditava, exceto Mashaine que, do alto do

telhado do velho mercado, assistira tudo: enquanto o troll se preparava para esmagar

Vegor, ainda desmaiado e ensopado dentro do chafariz, Rudi voou do palanque e,

com sua magia, conjurou um braço de pedra colossal que colidiu instantaneamente

com os dedos nodosos da criatura.

Mas o troll ainda não estava morto.

Consumido pelo ódio, o monstro encarava seu mais novo alvo. Rugiu contra os

céus, rilhando os dentes, expelindo ainda mais saliva viscosa, se assomando em

direção a Rudi com toda fúria do mundo.

Rudi mantinha a calma, aguardando o ataque iminente.

Lady Deelya correu para tapar os olhos de Nidya e Malya; Dana e Layla

suspiravam com a atitude corajosa do irmão de Vegor.

O troll avançou mais uma vez na direção de Rudi. Vegor havia sumido. Despertara

do desmaio e desaparecera do chafariz, para algum lugar muito longe do monstro

e de toda aquela confusão.

Voando em direção aos céus, Rudi se desvencilhou do golpe mortal da criatura,

que tropeçou no beiral da fonte e caiu sobre o chafariz. Encarando o monstro, o

filho mais novo de Saldivar ergueu os punhos.

— Ei, idiota, eu estou aqui — gritou Rudi.

Virando-se em direção ao garoto, a criatura berrou outra vez. Pulou da fonte de

volta às ruas e correu novamente para atacar Rudi, em uma nova investida.

O jovem guardião esperou. O medo tentava dominá-lo, mas ele não podia deixar

que a criatura fizesse um estrago com tantas pessoas ao redor. O monstro fazia o

chão tremer com suas pisadas.

Aguardou mais um pouco.

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O troll seguia célere, ribombando o chão de lajotas e mostrando as garras e dentes,

salivando sem cessar.

Rudi estava sereno e permaneceu estático, esperando.

E num giro rápido, quando o troll estava a centímetros de atingi-lo, dois punhos

de fogo elemental abissais surgiram no ar e prensaram a cabeçorra da criatura,

nocauteando-a instantaneamente. O monstro apagou e tombou sobre a praça,

estremecendo o chão.

Ao redor, ninguém acreditava. Diante dos pés de Rudi, a criatura jazia, desmaiada,

enquanto ele arfava ruidosamente. Fora uma completa loucura, mas seu plano afinal

dera certo.

Um segundo de silêncio e estarrecimento invadiu a Ágora do Princípio.

Era isso mesmo? O filho mais novo de Saldivar abatera um troll das montanhas?

Descrentes com o que viram, uma explosão de vivas, uma saraivada de fogos de

artifício e esfuziantes salvas de palmas encheram os ares. Saldivar estava cético, bem

como Mastenion, Hallzer e Derrick, ainda boquiabertos e embasbacados. Mas,

naquele momento, o povo aclamava a plenos pulmões e em uma só voz o nome de

seu novo e preferido Guardião: Rudi Wullith.

106


Capítulo Oito

Conflito à luz de velas

Um vento forte assoprou, assobiando sobre as copas das árvores e agitou seus

cabelos.

Escondido atrás de uma imbuia frondosa e com o coração dando cambalhotas

no peito, Zakkar se escorava sobre o tronco da árvore, tentando conter a respiração

ruidosa inutilmente. O cabelo estava bagunçado, encharcado com tanto suor que

colava sobre a fronte e cobria a testa, quase invadindo seus olhos, escorrendo para

a camisa já empapada. A adrenalina corria nas veias de uma forma eletrizante,

pulsando em seu corpo e o tomando de excitação. A qualquer momento, a criatura

o encontraria, ou ele encontraria a criatura.

Era uma batalha pela honra, por assim dizer, e somente o mais astuto sairia

vencedor.

Às margens do vale no meio da floresta de Gezir, muito além das vultosas

construções de Oldar, a mais bela cidade de Neergúria, Zakkar aguçava os ouvidos,

atento até mesmo ao menor dos ruídos ao redor, balançando a cabeça a cada nova

suspeita de um ataque surpresa. Mordia os lábios por seguidas vezes e prendia a

respiração; tentava, sem sucesso, evitar os ruídos estridentes provocados pelo

movimento intermitente de seus pulmões, o que poderia acabar entregando sua

posição. O barulho no meio da mata, para além de onde estava, não apresentava

tantas variações. Conseguia distinguir a ventania agitando as copas das árvores,

balançando os galhos mais altos. Pássaros gorjeavam em um lugar ou outro e uma

meia dúzia de falcões cortava os céus, pipilando alto de um modo tresloucado,

comunicando que estavam apenas de passagem no meio daquele palco de guerra.

O som de quedas d’água preenchia o vale em outro ponto e trazia, de certa forma,

uma paz momentânea.

Zakkar vislumbrou de relance as próprias mãos, na iminência de ser surpreendido

a qualquer instante. Duas esferas de fogo crepitavam sobre as palmas abertas e

ardiam em sua pele de leve, mas sem o queimar. As chamas se adensavam entre

seus dedos, tomando volume a cada instante, pulsando em suas veias tanto quanto

a adrenalina da expectativa, como se quisessem pular dali e voar ao encontro de seu

alvo. Conjurar os elementos através de seu poder era um pouco mais difícil do que

107


manipulá-los de uma fonte existente. Fazer surgir chamas mágicas do nada exigia

estudo e muito treino. Desde que aprendeu com doze ciclos de idade, não deixou

de aprimorar sua magia um dia sequer.

— Não adianta se esconder. Uma hora meu minotauro de terra vai te encontrar

e teremos picadinho de Zakkar — berrava Selena; ria de forma maquiavélica e

sarcástica como só ela fazia nesses duelos.

Zakkar a observava, escondido, por uma ínfima brecha entre dois galhos

retorcidos.

No topo das pedras da encosta, onde a cachoeira desabava suas águas torrenciais,

Selena esquadrinhava o entorno, obstinada. Movimentava as mãos com destreza,

controlando seu monstro elemental que corria de um lado a outro pelos campos

abertos do ermo, à procura de Zakkar. Comprimindo os olhos, ela vasculhava cada

centímetro do vale. Mas, de onde estava, não enxergava sua presa escondida atrás

da árvore. Uma coisa era certa: Selena era extremamente competitiva e detestava

perder. Encarrapitada na parte mais íngreme, ela permanecia irrequieta, fazendo o

monstro devastar tudo ao redor atrás de seu alvo. Zakkar até acreditava que ela

seria capaz de destruir todas as imbuias do perímetro do vale e até extinguir a

cachoeira apenas para achá-lo e ganhar o jogo.

Correndo risco de ser detectado, Zakkar vidrava os olhos na silhueta de Selena.

Como ela estava sexy daquele ângulo. A blusa de algodão marfim pendia para um

lado por causa de seus movimentos e mostrava parte de seu ombro esquerdo; as

calças de couro completavam aquela visão estonteante, acentuando as curvas

sensacionais de seus quadris e pernas. E que belo par de pernas!

Algo correu abruptamente nas veias de Zakkar e ele sabia que não era mais a

adrenalina. O corpo estremeceu de repente e as chamas em suas mãos quase

explodiram em direção aos céus.

— Aí está você!

Os olhos dela encontraram os dele.

O minotauro desviou seu curso do outro lado do vale no mesmo instante,

correndo fugaz pela grama e se assomando para onde o guardião estava refugiado.

Não tinha mais como fugir.

Deixando as sombras das imbuias, ele entrou em rota de colisão com o

minotauro. Ribombando as terras do vale, a criatura bufava pelo focinho de touro,

inclinando os chifres afiados para acertá-lo. Zakkar abriu os braços, avivando as

chamas em direção aos céus.

Não havia mais tempo, o monstro estava a poucos metros de golpeá-lo.

Zakkar pressionou um punho contra o outro em um movimento instintivo. Abriu

bem as mãos e as chamas se uniram em uma intensa esfera coruscante. Uma rajada

incandescente disparou de seus dedos, atingindo com estrépito o rosto de terra do

minotauro.

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— Você não vai ganhar desta vez — berrou Selena. Descendo rapidamente do

cume da montanha, pulando entre as rochas cobertas de musgo, ela estugava o

passo para o foco da batalha, posicionando-se logo atrás de seu monstro.

A criatura ergueu os braços, a um gesto da guardiã, tentando proteger a cabeçorra

de touro das chamas incessantes que emanavam das mãos de Zakkar. Fogo contra

terra, ambos arreganhavam os dedos, inclinando-se para frente, empenhando sua

magia ao máximo. Nenhum dos dois queria sair perdedor desta batalha. O jato de

fogo impedia o avanço do minotauro e seus braços de terra iam, pouco a pouco, se

tornando barro cozido, empedrando e se esfacelando devagar.

Selena percebeu que era tarde de mais. Aumentou a intensidade de seu poder o

quanto pôde, avançando alguns centímetros na direção de Zakkar, mas as forças se

esgotavam. Acrescentou mais terra sobre o monstro elemental, tentando revestir as

partes que se quebravam com o fogo. Contudo, ele não resistiu ao calor das chamas

de seu rival. Desabou sobre a grama do vale em centenas de blocos de barro

fumegantes.

Ofegando, os dois se entreolharam.

— Sério que você... queria me vencer... com... um... minotauro... de terra? —

falava Zakkar e pausava repetidas vezes, com a mão no peito, respirando com

dificuldade. — É o melhor que pode fazer?

Selena fitou-o, com um olhar fulminante. Ele conseguira, afinal, provocar a fera.

— Acho que tenho algo especial aqui para você, então...

Uma ínfima esfera chamuscante brotou das mãos da guardiã. Selena virou a palma

da mão para o chão e a bolinha de fogo aninhou-se de forma tênue sobre a grama

esmeralda e lentamente foi tomando volume, se assomando em direção aos céus,

crescendo entre os dois. Zakkar crispou os lábios num primeiro instante, sem

entender. Logo, os olhos castanhos do guardião quase saltaram das órbitas com o

que emanava diante dele.

— Se é guerra que você quer, é guerra que você vai ter. — Selena sorria pelo

canto da boca, satisfeita. — Então, senhor Guardião, ainda tem medo de dragões?

A esfera vermelha se contorceu e um rosto demoníaco e cintilante o encarou. Os

olhos assassinos, como mínimas fendas verticais de íris escarlates, miraram

profundamente o terror que exalava nos olhos de Zakkar. O pescoço coberto de

escamas faiscantes se projetou contra o lusco-fusco e iluminou o ermo ao redor. A

boca cheia de dentes afiados se arreganhava: o dragão elemental se preparava para

o ataque.

Girando sobre o próprio eixo, Zakkar desembestou a correr a esmo. As chamas

do monstro logo arrebatariam a grama ao redor e precisava estar o mais longe

possível quando isso acontecesse. Não queria virar carvão ou pior: perder a batalhar

para sua oponente com sede de vitória.

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Selena balançava as mãos com maestria, como quem conduz uma marionete com

as pontas dos dedos ou a batuta de uma grande orquestra. No seu belo e delicado

rosto, de longos cabelos castanho-claros desgrenhados e cobertos de pequenas

partículas de barro cozido que voaram do minotauro, ela mantinha a típica

expressão docemente diabólica, a mesma que fazia sempre que uma ideia

mirabolante surgia em sua cabeça.

E Zakkar permanecia em sua rota de fuga.

A cabeça triangular do dragão alcançara o ponto máximo que o longo pescoço

flamejante permitia. A bocarra escancarou-se e uma labareda em espiral se

precipitou, lançando-se voraz sobre a relva, como uma enorme serpente que se

desenrosca em alta velocidade, na iminência de dar o bote em sua presa fugitiva. As

chamas avançaram sobre o vale como torrentes escarlates e chispantes,

chamuscando a grama e consumindo tudo o que estava em seu caminho.

Longe de ter uma estratégia melhor, algo passou na mente de Zakkar, que

estacou bruscamente e rodopiou cento e oitenta graus em seu próprio eixo. Frente

a frente com a criatura e seu mar flamejante, viu a onda escarlate implacável perto

de alcançá-lo. Um frio correu por sua espinha, estupefato com o dragão e seu ataque

voraz. Selena conseguira recriar, com perfeição, um monstro idêntico ao de seus

piores pesadelos. Levantando uma das mãos e respirando fundo, Zakkar ergueu um

bloco de terra do vale, fazendo-o se assomar contra as chamas, formando uma

imensa parede. O fogo arrasador colidiu em um estrondo com o escudo

improvisado de terra e pedras. Parte das chamas fugiu pelas tangentes do paredão

e o guardião só teve tempo de se abrigar junto ao bloco, abraçando os próprios

joelhos, para não sofrer nenhuma queimadura de segundo ou terceiro grau.

— Parece que o jogo virou, não é mesmo? — crocitou Selena, desvairada.

Escondido atrás do muro de pedra, Zakkar vasculhou a clareira ao redor. O calor

das chamas intensas do dragão investindo contra ele começava a arder em sua pele.

O escudo de terra que o protegia não aguentaria por muito tempo e esfacelaria

como barro cozido sobre o vale, assim como o primeiro monstro mágico que

Selena produzira. Precisava encontrar uma saída ou viraria churrasquinho.

Vislumbrava o perímetro ao redor, na busca desesperada por uma solução. Não

queria morrer queimado e muito menos perder a batalha para Selena. Procurando

uma alternativa viável entre as árvores e no sopé da cachoeira, seus olhos vidraram

de súbito em um único ponto. Uma ideia ocorreu de repente. Deixando o casulo

de terra que desmoronava para trás, na hora em que uma bola de fogo cuspida pelo

dragão explodiu os blocos de barro, Zakkar seguiu desabalado pela grama, temendo

pela própria vida. O rastro quente das labaredas do monstro esturricava suas

roupas; ao longe, a risada debochada de Selena ecoava pelos ares em algum lugar.

— Não adianta se esconder — crocitou Selena. — Renda-se ao meu poder agora!

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O fogo começava a consumir a barra das calças de Zakkar, quando ele se atirou

por cima das pedras e mergulhou de cabeça sobre as águas do rio que atravessava

o vale, bem onde a cachoeira desembocava.

— Finalmente, teremos sopa de Zakkar.

Selena estugou o passo, correndo para o mais próximo possível do local onde seu

amigo imergira. O dragão elemental seguia sua criadora, avançando pela grama,

aproximando-se da margem do rio; brandindo as patas colossais sobre o vale, a

terra tremia a cada passo da criatura. Zakkar desaparecera do campo de visão,

totalmente submerso sobre as águas revoltas do extenso rio.

O monstro de fogo empertigou-se, abrindo a mandíbula cheia de dentes rubros,

ficando de pé sobre as patas traseiras. Selena arfava a cada gesto, conduzindo sua

fera poderosa que crestava a grama com suas patas abissais. Gastava os resquícios

de suas energias em um último golpe mágico.

Um brilho repentino coruscou sobre o céu púrpuro do início da noite.

O dragão produzia uma imensa esfera de fogo entre os dentes, quando Zakkar

irrompeu do fundo do rio. Abrindo os braços, completamente ensopado, uma aura

escarlate emanava ao redor de seu corpo. Selena observava o amigo, assustada. Não

acreditava no que estava diante de seus olhos. Conforme a aura de Zakkar se

intensificava, tornando-se tão avermelhada quanto o fogo que o dragão estava

prestes a cuspir, as águas torrenciais ao redor do guardião invertiam seu curso,

pouco a pouco, correndo em sentido contrário, para o ponto exato onde Zakkar

estava parado, como se uma força impelisse as ondas a se moverem em sua direção.

A aura do guardião tornava-se cada vez mais rubra. Embasbacada com aquela visão,

Selena sequer ousava respirar. As mãos erguidas, o dragão permanecia estagnado,

pronto para a ofensiva.

As águas do rio correram violentamente na direção de Zakkar e desapareciam

sobre a redoma escarlate que o envolvia. Ele absorvia rapidamente toda a água que

desembocava da cachoeira.

Estupefata, os olhos de Selena se arregalavam, sem conseguir compreender.

Aos poucos, o nível das águas foi abaixando, abaixando, até que ela entreviu os

pés do jovem guardião fincados sobre um lamaçal enegrecido onde antes estivera

o rio. Nem mesmo a indomável cachoeira sobrara para contar a história. Estacado

em meio ao barro, ele absorvera toda a água do ermo.

Num arroubo, Selena berrou e investiu contra seu oponente. O dragão voou em

direção às copas das árvores, agitando a cabeçorra contra o que sobrara do rio,

batendo as imensas asas de fogo. A gigantesca esfera flamejante se converteu em

uma densa coluna de fogo que rasgou os céus e se precipitou ligeira na direção de

Zakkar. Juntando as palmas das mãos abertas, direcionando seu poder, a aura

escarlate do guardião explodiu, fazendo os galhos das imbuias do entorno se

envergarem e quase quebrarem bruscamente. A força das águas emanou de seus

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dedos de imediato, em um jato extraordinário de alta pressão, que voou dos

resquícios do que antes fora um rio, em direção aos céus.

Água e fogo se encontraram, chocando-se com estrépito. Uma coluna de vapor

esbranquiçado emanou no momento em que os dois elementos colidiram, emitindo

um som retumbante de água entrando em ebulição. Zakkar comprimiu os olhos,

inclinando-se para frente. Flexionou os dedos, os pulsos colados um no outro,

sentindo a força das águas irrompendo pela própria magia, fluindo de suas mãos.

Aumentava a cada instante a intensidade de seu poder. Era o momento de vencer

esta batalha. Não queria ver o sorriso da vitória estampado no rosto de Selena e

muito menos ser a chacota de Miliat e de Guilloch, por ter perdido um duelo para

uma garota.

Selena intensificou seu poder o quanto ainda suportava, voando a meio metro do

chão. Os cabelos da guardiã se eriçavam com o vapor e o suor escorria em cascatas

por seu pescoço. Não aguentaria por muito tempo. A magia que utilizava para fazer

o dragão sustentar aquele embate consumia rapidamente sua energia. Era como se

tivesse corrido uma maratona inteira ou lutasse incansavelmente por horas, até

mesmo dias, contra hordas de soldados em campo de batalha. Mas não admitia a

derrota para Zakkar. A última vez em que tiveram um duelo de magia, a batalha

terminara em um empate. Nenhum dos dois aguentou mais do que meia hora

sustentar seus ogros elementais na arena real. Era sua vez de desempatar essa briga.

Mesmo que o corpo implorasse por descanso, seguia firme no duelo.

Um segundo jato de água surgiu nos céus de súbito. Selena arregalou os olhos,

sem forças — e nem mesmo tempo — para reagir. Um terceiro e um quarto jato

apareceram e atingiram os flancos do dragão, levantando imensas colunas de vapor.

Zakkar caminhou lentamente para fora do lamaçal, sustentava o embate com

apenas uma das mãos. Da mão livre, direcionava golfadas de águas torrenciais,

acertando o monstro da oponente em diversos pontos.

Selena não tinha reação. Inutilmente, tentava aumentar o próprio poder, avivando

as chamas de sua criatura, mas as colunas de água de Zakkar brotavam de todos os

lados e envolviam o dragão, embaçando o vermelho vivo da criatura com as densas

nuvens brancas a cada nova investida.

A nuvem de vapor que inundava o ermo se esvaiu e Selena finalmente enxergou.

As águas revoltosas envolviam o dragão em uma grandiosa esfera translúcida.

Milésimos de segundos depois, a guardiã observou o monstro de fogo se dissolver

por completo, convertendo a gigantesca bolha d’água em uma enorme coluna de

vapor que Zakkar fez sumir entre as nuvens no céu.

Ao som dos urros de triunfo de Zakkar, Selena tombou sobre a relva. Exausta, a

guardiã ofegava intensamente, com um palmo de língua para fora; decidiu-se curtir

a maciez da grama que ainda sobrava e o frescor da brisa invadindo o vale e ignorar

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os berros tresloucados do amigo. As estrelas fulguravam sobre a abóbada celeste

diante de seus olhos e a lua ascendia, ainda tímida, a um extremo no horizonte. Os

ares acalentadores do início da noite assopravam sobre o ermo e ela inspirava

profundamente, sorvendo tanto oxigênio quanto possível; precisava recuperar as

energias. Zakkar então abrira uma pequena vantagem, infelizmente. Mas ela estava

convicta de que isto seria por pouco tempo. Haveria uma nova chance de reverter

esse placar. Ainda devaneando com a próxima batalha, Selena nem percebeu que

seu amigo guardião se atirara ao seu lado, também deitando sobre a grama e

cruzando os braços por trás da cabeça.

— Não consigo entender — dizia Selena, também cruzando os dedos e apoiando

a cabeça sobre as mãos.

— Como eu te venço sempre? — proferiu Zakkar — Eu te explico...

— Idiota!

— O que você não entende?

— Não entendo como você consegue absorver a água... desse jeito! — Selena o

encarou, apoiando-se sobre o cotovelo esquerdo. — Digo, guardiões manipulam

elementos e os absorvem, é óbvio. Isso é muito comum, eu mesma já fiz... mas

sempre, repito, SEMPRE, o elemento absorvido envolve seu absorvedor... Era para

você ficar gigante, um monstro de água colossal sobre o vale, pronto para lançar

toda cachoeira em meu dragão. Mas parece que você... some com a água e depois

faz surgir como se tivesse conjurado do nada...

Zakkar riu, olhando no fundo dos olhos de sua amiga; reparava em como ela era

atraente também daquele ângulo, mesmo cansada e coberta de sujeira da batalha.

— Eu também não entendo, Selena. — Zakkar desviou os olhos, torcendo para

que a garota não tivesse percebido um olhar lascivo em sua direção, voltando a

mirar as estrelas. — Acredito que isso seja da minha herança genética. Você sabe:

meio-guardião e meio-alquimestre. Acho que minha magia... absorve os elementos

ou algo assim. Em vez de me envolver, os elementos me tornam mais fortes e

intensificam meu poder de produzir água. Talvez seja por isso que meu jato

derrotou a coluna de fogo do seu dragão... Ou, quem sabe, porque você é realmente

mais fraca do que eu... Mas isto é só uma hipótese, claro.

Selena fitou-o de esguelha, fuzilando-o com os olhos.

— Você esvazia a cachoeira do vale e ainda espera que eu consiga evaporar toda

aquela água com um mísero dragão? — Selena ria pelo canto da boca. — Você sabe

que, em tese, seu ataque não foi nada justo e se fosse um duelo formal, eu teria sido

a vencedora.

— Mas nem nos seus sonhos — inferiu Zakkar.

Os dois riram e ficaram um bom tempo deitados lado a lado, em silêncio,

admirando o brilho das estrelas que pontilhavam a imensidão e a lua imperar em

definitivo sobre o céu enegrecido.

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— Até que enfim, a última noite em Neergúria. — Selena quebrou o silêncio,

liberando sua estafa. — Não aguento mais esse monte de festas para o tio Golmir.

Todo dia tendo que entrar em enormes vestidos, dezenas de anáguas, uma

infinidade de maquiagens e joias, dançar com quase todos os nobres do palácio,

ouvir meia dúzia de idiotas disputar quem tem o pau maior. Isso tudo para receber

homenagens do rei anão de Pernítrulis em um dia, jantar com o elfo-narizempinado-por-favor-não-olhe-nos-meus-olhos-estou-muito-acima-de-vocês

e ter

de aturá-lo por horas a fio explicando como a magia do tempo deles é muito,

excessivamente, estratosfericamente, superior à nossa e por fim, o próprio rei de

Neergúria completamente embriagado, exibindo seus mamilos rosados todos os

dias, deixando todo mundo constrangido. Eu me pergunto: o que temos para hoje?

Jantar com trolls?

Zakkar estava distante. Ouvia cada palavra, mas não escutava nada. Entretia-se

na multidão de seus pensamentos.

— Hoje é o jantar com o Conselho dos Guardiões — proferiu ele, soturno. —

Ou com parte dele...

— Ah — acrescentou Selena, emudecendo.

Desde que chegaram à Neergúria, Zakkar não conseguia pensar em mais nada

além desse jantar. Selena sabia como esse assunto o deixava irrequieto, apesar de

ele não ter mencionado nada ao longo desses dias. O silêncio de Lorde Bartel desde

que voltara da reunião do Conselho era perturbador para ele, ainda mais porque

seu pai parecia estar-lhe escondendo alguma coisa, sempre fugindo do assunto

quando questionado. Por várias vezes, ela observou Zakkar sentado sozinho,

contemplando o horizonte das janelas do palácio, taciturno e com a mente

conturbada com este maldito assunto. Para Selena, que sempre possuiu um grande

afeto por Lorde Bartel desde a morte de seu próprio pai, o rei de Miliat tentava

revelar ao filho, mas sem saber como, algo que ele não estava pronto para ouvir.

— Selena, — Zakkar quebrou o silêncio que perdurou entre ambos — você acha

que o Conselho... aprova... a minha indicação para Guardião de Aladar? Digo, você

sabe... Essa questão de não ser ‘puro-sangue guardião’ e tudo mais... Acha que isso

atrapalharia... minha escolha?

Selena inspirou profundamente e soltou o ar pela boca com violência.

— Sinceramente, acho todo esse assunto de ‘mestiços’ e ‘puro-sangue guardião’

uma tremenda babaquice. A verdade é que não há ninguém que seja totalmente

puro, na minha opinião. Antes do Conselho existir, tenho certeza que os guardiões

casavam com mestres, alquimestres, não mágicos e por aí vai. Nada nunca foi

comprovado. Lady Elma é uma exímia alquimestre tanto quanto Lorde Bartel é um

poderoso guardião. A relação dos dois jamais interferiu em seus poderes, Zakkar.

Você domina todos os elementos com tanta maestria quanto qualquer outro

guardião. Essa tradição de ‘guardião só casa com guardião’ é uma grande baboseira,

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se quer saber. Isso só serve para criar mais divisões em nosso mundo, como se

fôssemos uma classe mágica acima das demais. Há grandiosos mestres que são

extremamente dedicados por aí que derrotariam uma dezena de guardiões que só

querem encher a pança de cerveja e se esbaldar com prostitutas.

— Hoje você está afiada, hein? — Zakkar sorriu. — Quero ver falar isso na cara

do Conselho, na mesa do jantar.

— Eu bem que gostaria — inferiu Selena. — Mas, você sabe, a harmonia e o

equilíbrio não deixam que eu diga umas boas verdades para aqueles velhos babões.

— Babões? — inquiriu Zakkar — Você tem quantos ciclos? Cinco?

Os dois riram e voltaram a mirar as estrelas.

— Não podemos nos atrasar. Este é o jantar mais importante de todos. Que

horas você acha que devem ser? — questionou Selena.

— Não sei — respondeu Zakkar, displicente.

— Acha que o Conselho já chegou ao palácio?

— Não sei.

— ‘Não sei’. — Selena esganiçou a voz, sentando-se sobre a grama. — É só isso

que você sabe dizer?

Zakkar também se sentou sobre a grama e encostou os lábios o mais próximo do

ouvido da garota.

— Sei dizer também que nós nunca transamos sob a luz das estrelas!

Uma onda de excitação tomou Selena de repente. Depois de sussurrar, Zakkar

aproximou-se ainda mais da guardiã e mordiscou de leve sua orelha. Embrenhou

os dedos por entre os cabelos castanhos da garota com uma das mãos e puxou-a

para si, em um longo beijo desesperado em seus lábios. Selena enroscou-se na nuca

de Zakkar e se entregou aos beijos, movendo os dedos pelas costas do guardião.

— Para sua informação — cochichava a garota, arrancando a camisa de Zakkar,

que corria os lábios pelo pescoço dela — já transamos à luz das estrelas...

— É mesmo? — perguntou, despindo a blusa de Selena, descendo a boca para

os seios da guardiã — Não me lembro.

— Sim — dizia, sentindo correntes de prazer percorrendo seu corpo — Mas

nunca em uma clareira, no meio da floresta.

Num assomo, Selena enfiou a mão por dentro das calças de Zakkar. O guardião

sugava os seios da garota com vontade e ela gemia de excitação, instigando Zakkar

de forma intensa.

Agarrando-a pelos quadris, Zakkar deitou-a sobre a grama e abaixou suas calças.

Descendo dos seios e lambendo o abdômen de leve, ele enfiou a língua quente por

entre as pernas de Selena. A guardiã cravara os dedos no chão; a voz reboava sobre

o vale, urrando de prazer.

Zakkar puxou as próprias calças num arroubo, agarrando-a pelos quadris e

penetrou-a ali mesmo, com ímpeto.

115


— Não! — dizia a guardiã, entre os gemidos incessantes — É a minha vez de

ficar por cima.

Selena segurou os braços de Zakkar e jogou-o para o lado, atirando-o de costas

para a grama. Pulando sobre ele, ela encaixou-se em seus quadris, movendo-se

freneticamente. Zakkar agarrou as nádegas de Selena, puxando-a para si e

penetrando-a com mais força. Ela gemia com vontade, correndo as mãos pelo

peitoral nu do guardião. Uivando de excitação, ambos aceleravam seus movimentos

intermitentes e compassados. Enlevados pelo sexo indomável sobre o ermo, os

dois perdiam os sentidos e as ondas de excitação percorriam cada centímetro de

seus corpos. Em um último uivo de prazer, Selena desabou, esgotada, sobre o tórax

de Zakkar, que também havia atingido seu ápice.

— Sabe de uma coisa? — crocitou Selena, ofegante. Os cabelos desgrenhados

cobrindo sua boca. — Precisamos transar mais sob a luz do luar.

A noite reinava em Neergúria. Nuvens obscuras e carregadas surgiam em vários

pontos no horizonte, movendo-se sobre os céus com velocidade quando Selena e

Zakkar retornaram ao palácio real. O vento da noite assoprava com veemência

sobre as mais altas torres do castelo e, sempre que cortava por entre os nichos de

pedra dos pináculos, uivos fantasmagóricos ressoavam no entorno, provocando

arrepios tonitruantes na espinha de quem estivesse por perto. Os pinheiros

milimetricamente podados que se enfileiravam, ladeando a estrada de lajotas ao

longo dos jardins exteriores, quase envergavam com a força da ventania. Os

soldados reais de prontidão, incólumes no topo de suas armaduras prateadas

guardando os portões de entrada, estavam habituados e sabiam que essas rajadas

inesperadas nesta época do ano, tomando o reino de assalto e abaixando as

temperaturas, indicavam que mais uma forte tempestade vinha de Sombroceano.

Selena e Zakkar tentavam parecer apresentáveis — o máximo que conseguiam.

Pressurosos, ajeitavam as mangas das camisas e corriam os dedos pelos cabelos

numa tentativa de fazê-los parecer menos bagunçados. Selena amarrava-o em um

coque, tentando não deixar nem um fio desgarrado sequer. Arrumou um jeito de

limpar as marcas de terra do rosto e da roupa pelo caminho. Não queria que ficasse

tão nítido que estivera fora por tanto tempo. Zakkar tentava conter os cabelos

revoltosos, mas sem muito sucesso. Batia as palmas das mãos sobre o colete,

expurgando as manchas escuras de barro e fuligem. Os dois limparam a sujeira das

calças como podiam e a grama incrustada sobre os cotovelos. Bateram calcanhar

com calcanhar de forma audível, para espantar a lama impregnada nas botas;

precisavam parecer limpos o suficiente e com urgência, como se tivessem dado um

pequeno passeio pela cidade. Um passeio de quase um dia inteiro.

— Calma — crocitou Selena, segurando um dos ombros de Zakkar. — Vi

lavanda aqui em algum lugar.

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— Lavanda? — inquiriu Zakkar, irrequieto — Para quê?

— Não sei se você percebeu, mas ainda estamos cheirando a sexo!

— Ah, ok.

Correndo contra o tempo, atravessando os campos de grama esmeralda do jardim

exterior a passos largos e com os dedos cruzados, torcendo para que o jantar ainda

não tivesse iniciado ou mesmo que sua mãe ou Lady Tressilda estivessem se

atrasado com a maquiagem ou com os vestidos, Zakkar estremeceu e estacou

bruscamente, assim que cruzou os arcos posteriores ao jardim.

— As carruagens do Conselho — balbuciou, estupefato.

Selena também as viu, ficando quase tão pálida quanto o amigo.

— Estamos ferrados... — sussurrou a guardiã.

Cintilando à luz do luar e refletindo o brilho das tochas encarrapitadas sobre as

torretas de mármore lavrado no entorno do pátio inferior, quatro elegantes

carruagens negras estavam estacionadas a um canto. O brasão dourado do

Conselho cintilava com as chamas dos archotes e marcava todas elas distintamente.

Os cavalos, oito garanhões robustos e de pelagem negra, brilhante, degustavam

tranquilamente a refeição vespertina: generosas porções de feno e ração, servida a

eles em grandes tonéis de carvalho.

Correndo desabalados pelas escadarias, Zakkar e Selena ignoraram a própria

aparência e até mesmo os resquícios de grama que ainda permaneciam agarrados

nos cabelos de ambos e adentraram o castelo pelos portões de acesso ao saguão

inferior.

— Meu pai vai me matar, meu pai vai me matar...

— Calma, Zakkar.

— Não devíamos ter demorado tanto... — sussurrava Zakkar, puxando as

maçanetas das pesadas portas de carvalho.

O saguão que adentraram era deveras amplo e opulento, ainda que fosse apenas

um cômodo de transição, que interligava outros grandes aposentos do palácio: as

cozinhas, o Salão Principal e as escadarias para os quartos e suítes reais. As luzes

dos candelabros e velas sobre o topo de uma dúzia de postes no entorno do saguão

crepitavam de um modo bruxuleante e davam ao lugar um tom melancólico.

Diversos quadros de molduras douradas e cobertas de floreios drapejavam algumas

das paredes; todas com variações da mesma pintura: a do Rei Belbert, O Arrojado,

segurando uma espada com uma das mãos e com a outra um suntuoso cetro de

marfim, encarando-os com um olhar inquisidor. Tapeçarias finas de nuances

escarlates se erguiam de alto a baixo nas demais paredes. Assim que fecharam a

porta, Zakkar sentiu-se ainda mais inquieto e ofegante, sem conseguir raciocinar

direito e nem saber o que fazer; no ambiente soturno do saguão, Selena apoiou uma

das mãos no quadril e com a outra segurou o queixo. Avaliava o local ao redor com

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rapidez, movendo os olhos das chamas que estalavam sobre os archotes para as

expressões caricatas do soberano de Neergúria ao longo dos quadros; aguardava

que uma solução caísse do céu e torcia para que Lorde Bartel ou seu irmão, Bernat,

não aparecessem ali de surpresa. No salão contíguo, o vozerio e as altas risadas

ribombavam através das paredes. O jantar tinha começado e pela animação das

conversas do lado de lá, havia algum tempo.

— Não há solução fácil — sussurrou Selena, obstinada. — Temos que entrar.

— Mas e se perguntarem onde estávamos? — inquiriu Zakkar, apalermado — E

se suspeitarem de nós?

— Quanto a você, eu não sei. Eu direi que estava escolhendo minha maquiagem

até este momento, por isto não desci dos meus aposentos. — Selena sorriu e piscou

para o amigo. — Essa desculpa sempre cola...

— Sempre cola se você é uma mulherzinha, coisa que você não é — inferiu

Zakkar, irritadiço. — Se não tem outra alternativa, é melhor fazermos o seguinte:

entre primeiro e diga qualquer coisa, eu entrarei logo em seguida para não dar muito

na cara de que estávamos juntos até essa hora.

— Ok, Senhor Guardião — falou Selena, ajeitou os cabelos uma última vez e

deslizou delicadamente pelos portões do Salão Principal.

Atento ao menor dos ruídos das reações no salão ao lado, Zakkar apurou os

ouvidos, colando uma das orelhas sobre a porta. As risadas e o vozerio cessaram e

um silêncio mortificante dominou o outro lado. Deviam estar surpresos com a

entrada inesperada de Selena, ou avaliando o estado de suas roupas e cabelos. Será

que suas desculpas seriam convincentes? A voz de trovão de Lorde Belbert foi o

primeiro som que escutou. Pelo tom com que falava, saudando-a tão efusivamente

e engrolando as palavras de forma confusa, chamando a guardiã de um nome que

nem ele mesmo entendera, o rei de Neergúria já devia estar completamente bêbado.

Uma voz perene pronunciou alguma coisa em seguida. Falava tão mansa e

pausadamente que Zakkar sentia a orelha direita latejar de tanto que a comprimia

contra a madeira para poder ouvir o que dizia. Lady Meredia, a mãe de Selena,

apresentava a filha a todos, com sua habitual serenidade ao falar e exalando uma

leve nota de cansaço na voz. Uma série de outras vozes, graves e agudas,

cumprimentou a guardiã e o ruído de cadeiras se arrastando encheu o salão do outro

lado. Silêncio. Deviam estar comendo ou bebericando de vinho ou rum. Alguém

questionou a ausência de Zakkar em dado momento. Poderia ser seu tio Golmir ou

Bernat; ambos tinham as vozes muito parecidas: graves, com uma nota de

rouquidão e parecendo abatidas. Por último, a voz suave de sua mãe, Lady Elma,

encheu o salão, questionando diretamente à recém-chegada onde estava Zakkar.

Selena desconversou de uma forma nada convincente, dizendo que não sabia e que

o vira pela última vez na cidade havia algumas horas, quando resolver regressar ao

castelo para se arrumar. Atrás da porta, Zakkar escutou quando a amiga guardiã

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comentou estar surpresa de ele ainda não estar ali, visto que era um evento tão

importante, com a presença, inclusive, do Conselho dos Guardiões.

Não tinha mais jeito. Zakkar respirou fundo, abanou as mãos suadas de

nervosismo, ajustou uma última vez as mangas da camisa e passou um dedo pelos

cabelos, numa tentativa desesperada de mantê-los minimamente arrumados e

adentrou o grande salão.

Com ares calorosos, o clima ali dentro era aconchegante. A fragrância agridoce

de carne de porco assada com tomilho e cerveja contrastava com o aroma frutado

do vinho que ocupava as dezenas de taças douradas que repousavam ao longo da

mesa de cedro, bem no centro do salão. Com um requinte e opulência inigualável,

podia-se dizer que aquele ambiente fazia jus ao nome de Salão Principal. Era quase

o triplo do tamanho do salão em que Zakkar estivera anteriormente. O teto

exageradamente alto e amplo possuía uma abóbada de vitrais multicoloridos que

formavam o desenho do brasão de Neergúria: o Leopardo Arrojado. As janelas

eram igualmente altas, de formato esdrúxulo, oblongo e pesadas cortinas da cor do

chumbo adornavam cada uma delas. As paredes eram cobertas de um carvalho

polido muito brilhante e, afixados sobre elas, outras dezenas de quadros do Rei

Belbert, em outras dezenas de poses inusitadas. O rei de Neergúria era,

definitivamente, um notório narcisista. Duas dúzias de soldados ocupavam o

perímetro. Enfurnados em suas armaduras de prata, eles mantinham-se imóveis,

com as espadas e escudos em riste ladeando, cada um dos quadros, como se as

pinturas de Lorde Belbert fossem seus comandantes. Entrementes, Zakkar achava

tudo aquilo um grande exagero, ainda mais em um jantar oficial com o Conselho

dos Guardiões, dentro de uma fortaleza no ponto mais alto do reino, mas ele

também sabia que o Rei Belbert era assim, adorava toda essa ostentação particular

e se gabava em dizer que não havia reino mais seguro e fortificado do que o dele.

A luz indireta e incandescente dos candelabros que adornavam a extensão da

mesa refletia sobre as retinas surpresas e interessadas dos vários pares de olhos que

se arregalavam para o extremo do Salão Principal, encarando o último convidado

que faltava chegar daquele ilustre jantar.

— Eis aí o jovem que faltava!

Rei Belbert ergueu-se de sua cadeira no extremo da mesa com alguma dificuldade.

Não por acaso, seu assento era o maior e mais luxuoso da mesa. Notoriamente

bêbado, o carão redondo e o nariz de gancho estavam extremamente mais

enrubescidos do que normalmente eram, como se ele tivesse passado o dia inteiro

sobre o sol escaldante. A barba cheia, vermelha e farta, com inúmeros tufos

grisalhos se revelando estava encharcada — não se sabia ao certo se de molho de

porco ou de vinho, provavelmente dos dois — e manchas gordurosas estampavam

as vestes reais em alguns pontos, sobre sua pança exorbitante. Cambaleando para

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os lados e apoiando-se sobre um soldado parado próximo a ele, o rei levantou sua

taça de vinho o mais alto que conseguiu.

— Seja muito bem vindo, jovem Zaf.., Zaj... — E Lorde Belbert virou-se para

Golmir com uma expressão de dúvida. — Como é mesmo o nome dele, Golmir?

— Zakkar, Belbert. O nome dele é Zakkar. O filho de meu sobrinho Bartel.

E Golmir sorriu para Zakkar, acenando para que ele se sentasse imediatamente.

O que havia de mais interessante no tio Golmir era o fato de ele ser extremamente

sutil e polido. Os longos cabelos grisalhos, presos em um rabo de cavalo e a barba

cinzenta, sempre com um aspecto de malcuidada e com duas pequenas tranças nas

pontas, na altura do queixo, eram quase uma marca registrada e lhe davam um

aspecto de bárbaro, embora sua educação de realeza sobressaísse em eventos assim.

Zakkar não conseguia lembrar-se de alguma vez em que sua aparência estivera

diferente. Nem mesmo nos eventos de gala promovidos em Miliat. Talvez, seus

cabelos e barba fossem menos grisalhos ou menos desalinhados, mas sempre existiu

um rabo de cavalo e uma barba grande com duas trancinhas. Isto porque Golmir

era um aficionado pela cultura dos anões. Adorava imitar seus costumes e possuía

uma verdadeira devoção pelas histórias e tradições dos valentes de pequena estatura

— principalmente por considerá-los os maiores guerreiros que existiam em Aladar

e quiçá em toda Eirin. Dizia-se que na Caçada do Balneário de Corínio, uma das

histórias preferidas de Zakkar, foram os anões, com sua ousadia e coragem, seus

machados e martelos, que formaram um paredão vivo e o ajudaram a combater os

wargs que devastavam os vilarejos e cidades do reino. Desde então, ficou ainda mais

próximo das tribos de anões de Aladar, principalmente das que habitavam a Ilha

Benit e a região noroeste de Corínio. Zakkar sabia que o tio-avô dedicara sua vida

à proteção do continente, embrenhando-se em centenas de batalhas e, por ciclos a

fio, sem jamais voltar à sua terra natal para rever a família. Esse era, talvez, o modo

que encontrou para lidar com a ausência do irmão, após sua morte. Bernat

costumava dizer que o tio se tornara um amante da solidão e que fizera da saudade

sua amiga, preferindo estar longe de Miliat, rememorando os ciclos de glória ao

lado de Bertúlios. Mas tio Golmir sempre sustentava um jeito afável e acolhedor,

sem transparecer a dor que todos sabiam que carregava consigo. Óbvio, ele jamais

deixou de ser político, algo que aprendera com o irmão, para lidar com as mais

diversas situações, até mesmo as constrangedoras. Não havia quem discordasse que

sua presença era agradável. O que ninguém jamais entendeu era como ele se tornara

um amigo tão íntimo de alguém como Lorde Belbert; a única coisa que Zakkar

sabia era que o rei de Neergúria possuía uma dívida de gratidão com seu tio-avô e,

por isso, sempre que podia, o convidava para uma temporada no reino ou para

viajarem pelas terras do continente, em busca de alguma boa aventura.

— Claro! Zakkar! — berrou Belbert, batendo a taça sobre a mesa. — Como

poderia me esquecer?

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Contornando a mesa, cumprimentando seu tio Bernat que comia e bebia de

forma comedida, mas sem deixar de dar um empurrão proposital em Guilloch,

Zakkar sentou-se bem ao lado do pai. Sustentando uma carranca medonha,

observando de esguelha o filho tomar assento, ele não parecia nada satisfeito com

seu atraso.

Zakkar ajeitou o guardanapo sobre o colo sem perder tempo e vislumbrou de

relance as demais cadeiras ao redor. Lorde Belbert virava outra taça de vinho até a

última gota, ainda entretido com as histórias sobre alguma aventura que vivera ao

lado de seu tio Golmir. O rubor nas bochechas rechonchudas do rei de Neergúria

se intensificava a cada nova taça, quase tão intenso quanto a cor da bebida que

tomava. Entrementes, Golmir ria sem parar. Talvez esta fosse realmente uma baita

história. As filhas de Lorde Belbert, tão ruivas quanto o pai, cochichavam entre si

e disfarçavam as risadinhas, olhando fixamente para o ponto onde Zakkar estava.

Selena havia se sentado do lado oposto, num extremo canto da mesa, ao lado da

mãe e das demais mulheres do reino, inclusive da esposa do rei de Neergúria, com

um rosto extremamente pálido pelos quilos de pó de arroz que sustentava sobre as

bochechas e nariz. A todo instante, Selena lhe lançava olhares furtivos, em uma

expressão triunfante, com um sorriso traquinas no canto da boca, como se quisesse

confirmar que o plano de ambos dera certo e o atraso deles quase passara

despercebido, mas o olhar inquiridor de seu pai denotava o oposto. Em frente a

Zakkar, estavam os demais membros do Conselho dos Guardiões. A maioria

prestava bastante atenção às histórias de Golmir e Belbert, desatando a rir nos

trechos engraçados, que eram contados ou mesmo comentados com alguma

lembrança. Afinal, tio Golmir convivera com a maioria daqueles senhores de barba

branca, profundas olheiras e linhas de expressão marcantes ao redor. Logo, logo,

ele mesmo ingressaria no seleto grupo de conselheiros dos Guardiões. Alguns deles

preferiam papear com Bartel, que parecia ter esquecido, finalmente, a expressão

contrariada com o atraso de Zakkar e conversava naquele momento de um jeito

animado. Bernat e Guilloch se enfurnaram em uma longa conversa com um

conselheiro alto e magricela, totalmente careca, mas que sustentava uma volumosa

barba grisalha.

Observando o esgar de cada um, Zakkar tentava adivinhar qual deles teria algum

cargo de importância no Conselho. Ouvira seu pai e o tio comentarem sobre a

presença de alguém da alta cúpula — e era por isso que Bartel parecia tão

contrariado quando ele chegou. Os conselheiros se divertiam, rindo a esmo, com

as mentes levemente alteradas pela bebida. Mas um deles atraiu sua atenção, entre

todos à mesa.

De barba ruiva, rareando em tons grisalhos, rosto pontudo e com cabelos

milimetricamente aparados, ele se destacava entre os demais conselheiros.

Bebericava de seu vinho de forma elegante, empertigando-se sobre a cadeira,

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segurando o queixo quadrado. Demonstrava algum interesse pelas histórias de

Golmir e, por vezes, esboçava um sorriso cheio de dentes. Um sorriso nodoso e

muito mais político do que sincero. Com o indicador e o polegar deslizando pela

barba sem cessar, ele não deixava de avaliar os presentes ao redor com seus olhos

de águia, atento ao que acontecia a sua volta. Os dedos tamborilavam sobre a mesa

e denotava certa impaciência. Não parecia compartilhar da mesma euforia e

entusiasmo de todos e era notório que a mente estava longe dali.

Lorde Belbert estatelou a taça de vinho sobre a mesa mais uma vez e todos

eclodiram audíveis gargalhadas pelo salão, foi quando o olhar astucioso daquele

conselheiro encontrou os olhos curiosos de Zakkar. Sobressaltou-se onde estava

no mesmo instante, sentindo um frio enregelante subir pela espinha. Na fração de

segundos em que ambos se encararam, pareceu a ele que o homem de barba ruiva

e porte militar tinha o poder de desvendar até os segredos mais escusos de sua

mente e inclusive sentir a intensidade de sua inquietação.

O homem ergueu a taça em sua direção e lhe sorriu de forma branda. Zakkar

ficou alguns segundos observando-o, ainda tomado por um medo inexplicável e

um desconforto no estômago. Ergueu a caneca de vinho um tempo depois, sem

jeito, cumprimentando. Uma sensação incômoda o dominava em seu íntimo, um

temor súbito e inexplicável.

— Por que demorou tanto?

O sussurro de Lorde Bartel interrompeu os devaneios de Zakkar.

— Eu... me perdi na cidade.

— Pensei ter deixado bem claro que este era o jantar mais importante de todos.

O Conselho dos Guardiões não veio apenas dar um ‘tapinha’ nas costas de tio

Golmir e ouvir as histórias de Lorde Belbert. Eles vieram avaliar você.

— Eu sei, meu pai, mas eu...

— Não quero suas desculpas. Você não é mais um moleque, Zakkar. Não pode

ser tão irresponsável. Logo, logo será o protetor de Aladar.

— Pai, eu...

— Não é mesmo, Zakkar?

— Oi?

Lorde Belbert ressoara sua trovejante gargalhada.

— Está tudo bem contigo, meu jovem? — inquiriu Belbert — Parece afobado.

— Afobado? Não, é que eu...

— Esqueça! — O rei de Neergúria interrompeu, entornando uma caneca inteira

de um barril de cerveja recém chegado. — Eu dizia, quando você entrou e

interrompeu meu discurso, que os filhos de um rei precisam ser versados em

batalhas. Não é porque tem uma armada real inteira à disposição ou uma frota de

navios prontos para bombardear o inimigo por sua causa que você vai deixar de

aprender a se defender. Estão entendendo?

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Zakkar notou um pigarro tão audível que reboou pelo salão acima da voz

trovejante do rei. Observou de relance se mais alguém notara o som gutural, mas

ao redor todos só tinham olhos para o espalhafatoso monarca de Neergúria. A um

canto, as quatro jovens ruivas, idênticas, mas em uma escada etária notória pareciam

em um estado de vergonha alheia completa pelas palavras do pai, como se

soubessem o que viria acontecer logo em seguida.

— Loreia, fique de pé!

A uma ordem retumbante do rei, a mais velha das quatro se colocou de pé de um

pulo, atraindo a atenção de todos para ela. As maçãs tão proeminentes de seu rosto

redondo ruborizaram de imediato e ela ficou quase da cor de seus cabelos cor de

fogo presos uma trança longa que ia até a cintura e contrastaram de um jeito

espalhafatoso com seus grandes olhos verdes. O queixo duro, ela sequer fez questão

de expressar um sorriso. Os lábios finos enrijeceram e ela empinou o nariz em uma

expressão de respeito e autoridade. Devia ter feito isso uma centena de vezes, julgou

Zakkar, mas o rubor da timidez acabava sendo inevitável.

— Milordes, apresento-vos a minha filha mais velha, Princesa Loreia. Criada com

todo rigor para ser uma rainha. Versada em todas as regras de etiqueta, política,

diversas línguas e culturas. E, claro, como vinha falando, com o diferencial de ser

uma exímia espadachim. Educada nas artes das mais variadas lâminas desde os seis

ciclos de idade. Digo mais, eu aposto trezentos mil goloetes com qualquer um

presente nessa mesa, que minha filha consegue derrotar o mais experiente e

habilidoso espadachim desse continente. Podem escolher um desafiante e trazê-lo

a este país.

— Fantástico, Belbert! — disse um dos conselheiros, maravilhado. — Quem a

desposar, com certeza estará mais do que protegido.

O rei de Neergúria emitiu uma sonora gargalhada e arrebatou mais cerveja do

barril.

— Sem dúvida, Lorde Kaint. Quanto às outras meninas, seguem o mesmo

caminho da irmã. Sempre lhes digo que não basta confiar na própria magia,

precisam ter versatilidade e destreza com lâminas ou não serão ninguém.

A primogênita do rei tomou assento e a vermelhidão de suas bochechas diminuiu

de forma expressiva, mas a contrariedade pela exposição continuava marcada em

seu rosto.

Lorde Belbert se espreguiçava, agarrado à taça, irrequieto. Arrastou a cadeira

fazendo um enorme barulho. Ele sorriu abertamente para todos, puxando Golmir

pelo braço sem nenhum pudor, fazendo-o também ficar de pé, meio sem jeito.

— Nobres guardiões, chegou o momento. Quero propor um brinde a esse velho

safado aqui do meu lado, Golmir Ayarza e, claro, uma salva de palmas a esse

Guardião que já livrou minha cara uma pancada de vezes. Por ser um amigo tão fiel

nas horas incertas, o irmão que nunca tive e por todas as lutas que travamos lado a

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lado e pelas batalhas em que triunfou, defendendo não só Neergúria, como também

Miliat, Pernítrulis e aquele ingrato, bastardo e estúpido rei de Corínio.

O Salão Principal se encheu de palmas e assovios. Dezenas de taças tilintaram

descompassadamente, encostando-se umas nas outras em um demorado brinde.

— A propósito, — Rei Belbert trovejou sobre o salão, fazendo todos

emudecerem — Lorde Zanotchka, o que você dizia a respeito do Ano da

Elegibilidade?

O homem com barba da cor do bronze aprumou-se sobre a cadeira e sorriu para

todos com elegância, erguendo a taça para os presentes.

— Eu discorria a respeito dos eventos que acontecerão em virtude do Ano da

Elegibilidade, Nobre Belbert. Em toda história de nosso Conselho, os cinco

Guardiões jamais ascenderam aos seus postos em um mesmo espaço de tempo.

Claro, é importante lembrar, que tivemos até três Sucessões Honrosas, porém

jamais cinco baixas em um tão curto período de tempo. Claro, não se pode ignorar

que esta lendária ocasião se sucedeu quando da criação do Conselho, ao término da

Era das Trevas, quando os primeiros Guardiões de Eirin subiram aos seus postos.

Felizmente, o Tratado de Paragon trata de tal assunto, embora jamais precisássemos

consultá-lo quanto a este trâmite. Ele estabelece três grandes eventos, que colocarão

à prova as capacidades dos novos Guardiões, definindo assim o novo líder do

Círculo dos Cinco.

— E o que acontecerá em cada evento? — questionou Bernat, curioso.

— Bem, Lorde Bernat, isto ainda permanece em segredo. Queremos testar os

poderes e verificar as qualidades de nossos futuros Guardiões. Nos dias harmônicos

que vivemos, queremos mostrar ao mundo que o Conselho está empenhado em

fornecer somente os melhores guerreiros e zelar pelas Três Leis Primazes e a

segurança mundial.

— Acreditamos que Miliat já tenha escolhido seu futuro Guardião, estou certo?

— um dos membros do Conselho questionou Lorde Bartel com grande interesse.

O rei de Miliat abriu um largo sorriso. Aprumou-se sobre a cadeira e pigarreou

duas vezes. Mesmo tentando disfarçar, Zakkar sentia uma ponta de nervosismo na

expressão de seu pai. Assim como ele, ajeitou-se sobre o assento e aguardou. Os

olhos e ouvidos de todos ao redor da mesa se aguçavam para a resposta iminente.

— É claro, Lorde Kurkov. É uma honra poder anunciar diante de membros tão

respeitados do Conselho, o futuro Guardião de Aladar.

Puxando o filho pelo colarinho, Lorde Bartel posicionou-o de modo a ficar

imponente e causar uma boa impressão à mesa. Zakkar estufou o peito, empinou

o nariz e abriu um sorriso que pretendia ser confiante. Esforçou-se para deixar os

ombros ajustados e não parecer desengonçado demais e aprumou as costas sobre

o encosto da cadeira.

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Zakkar se sentiu invadido por um breve instante. Os olhares dos conselheiros

diante dele eram um misto de inúmeras reações. Uma pequena parte parecia curiosa

com a apresentação do futuro Guardião de Aladar e até realmente contentes em

conhecê-lo, avaliando-o de cima a baixo, inclusive cochichando entre si o quanto

seu porte lembrava o de Golmir na juventude, ao mesmo tempo em que possuía

muitos traços do avô. Outros conselheiros arrazoavam entre si e meneavam as

cabeças, crispando os lábios, como se reprovassem sua escolha. Zanotchka, ao

centro, permanecia impassível. Os dedos não deixavam de tamborilar sobre a mesa

e terminou de virar sua taça de vinho. Sequer levantou os olhos para o rei e o

príncipe da Intrépida Miliat. Zakkar ponderava se o vice-líder do Conselho dos

Guardiões não aprovava sua escolha.

— Nobre Bartel, espero que sua decisão tenha sido baseada estritamente no que

diz nossa Primeira Lei Primaz — falou um dos membros do Conselho ao lado de

Zanotchka e o silêncio se instaurou sobre o recinto. Zakkar reparou que havia uma

expressão de nojo em sua face, que nem mesmo a volumosa e espessa barba escura

conseguiam esconder.

— O que quer dizer com isto, Lorde Kaint? — interrogou Golmir, sem entender,

virando o pescoço na direção do conselheiro, do outro lado da mesa.

— Considerei e, muito, o que diz nossa Primeira Lei, de que o mais forte protege

o mais fraco. — Bartel interpelou quando o tal Kaint esboçava uma resposta. —

Possuo plena convicção de que meu filho, o Príncipe Zakkar, é poderoso o

suficiente para proteger nosso continente e manter a harmonia e o equilíbrio que

sempre imperou em Aladar.

O silêncio voltou a preencher o grande salão, instaurando um clima de tensão.

Os ruídos de talheres tocando louças e das taças sendo depositadas sobre a mesa

eram as únicas coisas audíveis naquele momento.

Terminando de enxugar a boca em um guardanapo, um conselheiro se pôs de pé.

Ele era alto, de porte arrojado e com duas camadas de papadas abaixo do queixo.

Sustentava um cavanhaque loiro abaixo do nariz e um intenso esgar de

contrariedade. Encarou o rei de Miliat no fundo dos olhos e respirou fundo. O

silêncio perturbador pressionava os ouvidos de todos e até mesmo Rei Belbert

observava, constrangido, cada detalhe da conversa atravessada a sua frente, um

tanto perplexo e confuso.

— Perdoe-me, Lorde Bartel, mas você sempre soube que ao casar com uma

alquimestre, sua herança genética de guardião estaria comprometida. Não há

garantias de que ele seja plenamente poderoso como um guardião, sendo metade

alquimestre. Nós não consideramos o seu filho, como vamos dizer, ‘puro’ o

suficiente para ocupar uma função tão importante em Aladar.

A tensão carregada na última frase fez com que todos segurassem o ar dentro dos

pulmões. Zakkar estava perplexo. Contemplou o rosto ruborizado de seu pai, de

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soslaio. As faces rechonchudas de Bartel tornavam-se tão rubras quanto o vinho

que consumiram.

— COMO OUSA FALAR ASSIM DO MEU FILHO? — Lorde Bartel se pôs

de pé num arroubo, deixando a cadeira cair sobre o chão com estrépito. O berro

inesperado pegou a todos de surpresa.

Os membros do conselho se colocaram de pé por instinto, quase que ao mesmo

tempo e encararam Bartel. Bernat afastou a cadeira e saiu de seu lugar; agarrou o

irmão, tentando acalmá-lo e se esforçando para apaziguar a situação. Os demais

permaneciam com um esgar atarantado ante a reação inesperada do rei de Miliat.

Mesmo Golmir e Belbert, ainda sentados e extremamente pasmados, vislumbravam

o rosto purpúreo de Bartel e seus punhos cerrados. Zakkar também se levantou da

cadeira e permaneceu ao lado do pai, de frente para Zanotchka que se erguera junto

aos outros conselheiros. Encarava o vice-líder do Conselho com a mesma

petulância com que ele o observava.

— O seu filho é um mestiço, Vossa Alteza — prosseguiu Lorde Kaint, alteando

a voz. — Deveria ter considerado isto antes de se casar com uma impura

alquimestre, manchando a perpetuação de seu precioso sangue guardião.

Lady Elma se colocou de pé em um extremo da mesa e encarou Kaint com uma

expressão colérica.

— Você não irá me insultar na frente de minha família. — A voz da rainha soou

firme e indiferente. Batendo a taça de vinho contra a mesa, ela girou nos calcanhares

e se retirou pela porta principal.

Aparvalhadas com a situação constrangedora, Lady Prisca, a rainha de Neergúria,

e as damas de companhia da realeza correram para acudir a rainha de Miliat de

imediato, também cruzando as enormes portas de carvalho.

O rei Belbert se colocou de pé, atônito, preocupado com os ânimos exaltados.

Franzia as sobrancelhas e parecia não compreender porque tudo aquilo estava

acontecendo. Golmir, espantado de mais com a situação vexatória que se instaurou

sobre o lugar, levantou-se em seguida, observando a tensão no rosto de cada um.

— Senhores, o que é que está acontecendo? — inquiriu Golmir. — Onde está

vossa decência? Este é um jantar da nobreza, lembrem-se do motivo de estarmos

aqui hoje.

— O seu sobrinho não prova o mesmo respeito pelo Conselho dos Guardiões

que você tem demonstrado todos esses ciclos, Lorde Golmir — inferiu Zanotchka,

insolente — E tampouco pelas leis que regem nosso mundo, considerando colocar

o filho mestiço como o protetor de Aladar.

— A decisão sobre o futuro Guardião cabe a mim, segundo as leis de meu reino

e como soberano de Miliat, já tomei a minha decisão. Você não pode afirmar que

não considero nossa legislação, desde minha tenra idade a tenho observado e

cumprido em sua totalidade!

126


— Bartel, por favor. Já chega... — Bernat segurava os ombros do irmão, tentando

fazê-lo ficar mais calmo.

— O seu filho não pode ser Guardião! — berrou Kurkov; uma veia saltava de

suas têmporas.

— Ele será Guardião, nem que seja a última coisa que eu faça. — Bartel deu um

soco sobre a mesa e dessa vez foi Zakkar quem segurou os ombros do pai.

Selena e Guilloch também estavam de pé. Acompanhavam a cena emudecidos,

mas de olhos bem arregalados.

— É o Conselho quem delibera sobre isto. Nós não o reconheceremos como a

melhor opção para Aladar. Ele não é um puro guardião. Sua linhagem foi manchada

quando você decidiu se misturar com uma alquimestre!

— Senhores, por favor...

— Você não vai insultar minha família dessa forma, na minha presença!

— A sua decisão não tem um pingo de sabedoria, Bartel.

— Quem delibera sobre isto sou eu e, como rei, digo que Zakkar será o Guardião!

— Senhores, por favor...

— O seu filho não passa de um reles mestiço, tão fraco como é o pai.

Um sopro ensurdecedor ribombou e sacudiu as paredes com um forte estampido.

Os guardas ao redor se ouriçaram e levantaram as espadas e escudos, temerosos.

Uma série de quadros e candelabros despencou das paredes e as cortinas se agitaram

com força. A discussão generalizada cessou de imediato e todas as cabeças

apuraram os ouvidos e arregalaram os olhos, atemorizados. Uma gigantesca língua

de fogo surgiu sobre o Salão, emanando das mãos de Zakkar, fazendo as janelas e

a mobília estremecerem. Serpeando pelos quatro cantos do recinto, ela sobrevoou

as cabeças de todos, coruscando por entre as colunas, percorrendo o perímetro ao

redor assustadoramente. Tão rápida quanto surgiu, a labareda sinuosa explodiu e

desapareceu.

— Eu não sou poderoso o suficiente? — crocitou Zakkar, exasperado.

Ao redor, todos estavam boquiabertos e embasbacados. Miravam para o ponto

onde o fogo sumira, próximo às vidraças do topo do teto do Salão. Contudo, o

semblante de Zanotchka permanecia imutável. Os olhos comprimidos na direção

de Zakkar não pareciam impressionados com sua demonstração inesperada de

poder. No silêncio que ainda persistia, o vice-líder do Conselho dos Guardiões

tomou seu manto escarlate e o vestiu; calçou as luvas de couro e amarrou o laço de

seu capuz. Contornou o próprio assento, repousando as mãos na cadeira e ajeitoua

sobre a mesa.

— Senhores, com licença. — E virando-se, Zanotchka irrompeu pelas portas do

Salão em direção aos jardins sem pronunciar mais uma única palavra. Os demais

membros do Conselho repetiram o gesto e saíram, emudecidos, no encalço do vicelíder.

127


O ruído das brasas na lareira a crepitar e a oscilação provocada pela respiração

dos que permaneceram no Salão Principal cortavam o silêncio instaurado após a

saída dos conselheiros. As carruagens rangeram nos jardins enquanto os membros

do Conselho subiam sobre elas e em seguida o som das ferraduras dos cavalos

atritando contra a sinuosa estrada de lajotas da entrada do palácio ecoou, galopando

para fora da cidade. Os olhares abismados de todos ao redor ainda se concentravam

sobre o filho de Bartel.

Um braço rechonchudo deslizou pelos ombros de Zakkar, abraçando-o com

força. Envolveu-o de uma forma tão acolhedora que seus maiores medos e o

sentimento de impotência se esvaíram por completo.

— Não se preocupe, meu filho — crocitou Lorde Bartel, com a voz um tanto

embargada. — Você será Guardião, nem que para isso eu comece uma guerra

contra o Conselho.

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Capítulo Nove

O último adeus

Os dedos estavam doloridos e dormentes quando Heidlich finalmente largou as

rédeas do cavalo. Ardiam e tremulavam por causa da violência com que segurava

as tiras de couro atreladas ao cabresto. Pisava, enfim, no lugar em que sua mente

relutava em não querer pensar. Nuvens carregadas e de nuances tenebrosas de um

cinza-chumbo pairavam sobre a imensidão e arrebanhavam não somente os céus,

mas ocultavam parte das florestas e cadeias de montanhas no horizonte. A

abóbada-celeste externava tristeza; lúgubre e mórbida, tanto quanto todo o cenário

que se desenhava ao redor, que não poderia ser mais melancólico.

Às margens do enregelante rio Mulbe com suas águas negras e serenas, uma

aglomeração de pessoas de variadas raças vindas de todas as partes do reino se

avolumava. Elfos dos condados de Tranitor e castas de duendes de Amarzariv se

concentravam e se acotovelavam a um extremo, ansiando por poderem se

aproximar do caixão e expressar suas condolências. Os anões de Ingave, Lenchain,

Faniv também estavam presentes e esses, como sempre, sem o menor pudor em

demonstrar sentimentos, derramando-se em lágrimas, encharcando as longas

barbas cheias de tranças e badulaques. Ninfas das florestas, faunos e centauros se

misturavam à imensa multidão enlutada dos homens, mulheres e crianças de

Badorian, também cabisbaixos e arrasados.

Uma tribuna fora montada próxima à orla central do rio. Seus tios e tias se

postavam sobre ela, bem como as demais famílias de guardiões aliadas do reino: os

Moronov, Lohntrak e Borovit; cada um despedia-se como podia. Uma figura

envolta em um longo sobretudo negro drapejado de botões reluzentes se postava

em um ponto próximo à tribuna real. Com uma expressão longe de qualquer

empatia e os trejeitos sempre rígidos, Salazar Stanhorne também se fazia presente.

Ele não era do tipo que chorava, mas demonstrava afeto de sua forma, estando

junto nesses momentos tão delicados. De uma forma geral, todos os presentes

expressavam o luto e a tristeza que sentiam e buscavam um lugar, o mais próximo

possível, do suntuoso caixão branco que fora depositado, incólume, bem no centro

de um pitoresco pátio de pedras entalhadas, na margem central do rio.

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Um vazio tonitruante atingia o estômago de Heidlich. Uma sensação de

abandono e impotência o consumia. A mesma sensação de tantos ciclos antes, de

quando perdera seu avô, a quem fora muito apegado na infância. À época, sua mãe

afagara seus cabelos loiros e o abraçara tão forte, que a inoportuna sensação se

esvaíra por completo. Naquele dia, o vazio não passaria com um simples abraço. O

vazio em seu estômago ia se tornando, pouco a pouco, uma dor contundente e

excruciante.

O herdeiro do trono de Badorian notou que não apenas Stanhorne estava

presente no enterro. Outros membros do Conselho se espalhavam ao redor da

tribuna e dos demais nobres. Contudo, Heidlich ainda não havia encontrado a

figura corpulenta e escorregadia de seu tio August.

Ao derredor da imensa multidão enlutada, Heidlich permanecia encostado em

seu cavalo branco. Torcia, com todas as forças que ainda possuía, que sua presença

passasse despercebida. A única vontade era estar só. Não queria pensar em

monstros, bestas ou feras, guerras ou o que quer que envolvesse sua rotina de

Guardião. Heidlich só queria poder chorar a morte do pai e acreditar que tudo ali

não passava de um tenebroso pesadelo e que, logo, logo, seu pai o acordaria, com

os longos cabelos e barba branca e seu sorriso acalentador que tinha o poder de

encorajá-lo.

Uma lufada de vento agitou as copas das árvores da floresta atrás dele e golpeoulhe

as maçãs do rosto, provocando-lhe um tênue arrepio de frio. Uma lágrima

escorreu de seus olhos e não conseguiu evitar o choro. Cench Heinhardt, o homem

mais justo, bondoso e amável que conhecera e o maior rei que governara a Suntuosa

Badorian falecera. Jamais veria outra vez o sorriso sincero e marcante nos lábios de

seu pai, que formava duas pequenas linhas verticais nos extremos dos lábios toda

vez que exibia seus dentes; tampouco teria novamente os abraços afáveis ou seus

sábios conselhos. O que restava então eram as lembranças que habitavam as

profundezas de sua mente, as memórias dos dias em que esteve com ele.

A mais marcante, de todas as melhores lembranças que poderia trazer à tona,

ainda era a de uma guerra. Uma guerra que seu pai venceu sem precisar levantar

armas.

A paz nem sempre reinou sobre Badorian como nos últimos tempos, sobretudo

nos primeiros ciclos do reinado de Lorde Cench. Tudo ocorreu quando Heidlich

era apenas uma criança e muito das motivações do que se sucedera, ele pôde

compreender quando se tornou adulto. Mas ainda recordava de alguns detalhes, da

tensão e do medo dos povos dos condados toda vez que ouviam falar sobre os

conflitos entre nassarianos e vorazilis.

Na calada de uma noite de primavera, dizia-se, à época, que os centauros das

Colinas de Nassar invadiram as florestas do Vale de Vorázia e fizeram uma

verdadeira carnificina em um dos vilarejos. Com um forte desejo de vingança por

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uma disputa muito antiga pelo domínio de territórios entre os dois clãs, muitos

centauros foram pegos de surpresa, executados e decapitados. As casas da vila

foram queimadas após o banho de sangue e uma mensagem deixada sobre as

cabeças penduradas nos galhos das árvores: que a conquista de Vorázia pelos clãs

de Nassar estava apenas começando.

Os centauros que conseguiram fugir do extermínio em massa avisaram aos

demais vilarejos e uma investida militar impiedosa dos centauros vorazilis se

arremeteu sobre Nassar. Uma série de conflitos devastadores entre nassarianos e

vorazilis se desenrolou a partir daí e apavorou não somente os moradores das duas

regiões do reino, mas também todos os outros sete condados que ficavam no meio

dessa batalha por territórios. Milhares de pessoas abandonavam suas casas com

medo da guerra e buscavam refúgio no extremo-norte de Badorian ou nas terras de

Mistral. Os palcos dos embates começavam a abandonar o interior das florestas e

alcançavam as ruas dos condados e as estradas que cruzavam o reino. Centenas de

inocentes, centauros, humanos, elfos ou anões, foram mortos enquanto

simplesmente tentavam fugir dos horrores dessa guerra e Belrar, a capital de

Badorian, logo estava apinhada de refugiados temerosos, que clamavam por abrigo

e por uma solução imediata.

Era um dia como este, Heidlich lembrava bem. Nuvens cinzentas se espalhavam

no céu que parecia chorar pelos que morriam nas batalhas sem sentido. O Conselho

dos Guardiões se reunia no palácio e a população gritava às portas de entrada pelo

seu Guardião, Anturc Lohtrak, para que resolvesse o problema. A única saída

apresentada por Anturc, comboios de soldados de Badorian acampados em pontos

estratégicos e barricadas constituídas de grossos troncos de árvores enterrados no

chão com pontas afiadas em ângulos de quarenta e cinco graus nas vias de acesso

dos centauros de Nassar e Vorázia, não estava mais surtindo efeito.

Havia muitas vozes alteradas naquele dia. Algumas discutiam acaloradamente,

outras gritavam de forma histérica, mas todas com ânimos exaltados, buscando

soluções que não comprometessem vidas inocentes. Um vozerio era abafado pelos

portões de carvalho e a marcha dos soldados, correndo de um lado a outro, batendo

suas botinas de couro e sacudindo as armaduras de aço, enchia os ares do palácio,

acirrando ainda mais a exacerbada tensão no lado externo.

E havia a voz serena de Cench.

Heidlich lembrava de seu pai tomando-o no colo. Os lábios dele beijaram suas

bochechas. A barba loira e espessa lhe fez cócegas e ele inclinou o rosto, rindo sem

parar. Cench abriu um largo sorriso animador para o menino e, a despeito da crise

que se abatia sobre o reino, Heidlich se sentia completamente seguro nos braços

do pai.

Cench e o filho se esgueiraram pelos corredores do palácio sem que ninguém

notasse, até alcançarem o estábulo. Dois guardas reais o esperavam, com expressões

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temerosas em suas faces. Um deles segurava as rédeas de um Campolimpo

mistralense de pelagem negra e outro, uma longa capa escura de veludo.

— Não é muito arriscado, milorde? — perguntou um dos guardas, fazendo um

gesto com a cabeça para as vozes e lamúrias nos portões externos.

— Sim, mas é nossa última esperança para evitar que mais vidas se percam —

respondeu Cench, sorrindo de forma afável ao soldado.

O soldado balançou a cabeça, ainda temeroso.

Cobrindo-se com o manto, Cench colocou Heidlich sobre o cavalo, entre ele e as

rédeas, e pressionando os flancos de sua montaria, pôs-se a correr por entre os

pinheiros centenários das florestas fechadas de Badorian, em uma saída secreta do

palácio.

Heidlich se recordava das árvores de tom verde musgo e das folhas agitadas pelo

vento. A finíssima cerração permeava cada centímetro da floresta, deixando-a com

um aspecto cinzento e lúgubre. Agarrado a uma das rédeas, contemplava o olhar

obstinado do pai e seu esgar que expressava a severidade da situação, que ele só

entenderia tantos ciclos depois. Cench reparou que o filho o observava, em dado

momento, e abriu um sorriso, afagando seus cabelos com carinho.

— Já contou por quantos pinheiros nós passamos? — perguntou seu pai,

conduzindo a montaria por entre caminhos sinuosos.

— Ah, um montão. Eles passam muito rápido, pai. Parece até que estão voando!

Cench sorriu e instigou seu cavalo a correr mais rápido.

Centenas de pinheiros e uma infinidade de curvas depois, Heidlich viu as mãos

retesadas do pai puxarem as rédeas com veemência. A montaria diminuiu a

velocidade até quase parar. A expressão de Cench era soturna, carregada de

preocupação e ele vislumbrava o perímetro ao redor com um receio incontido. Em

momento algum, ele sentiu a tensão e o medo que o pai carregava.

O rei desceu do cavalo e, em seguida, tomou Heidlich nos braços, segurando-o

no colo. Esfregou a crina do cavalo com uma das mãos e virou-se, encarando a

floresta. A mata densa daquele trecho tornara-se fantasmagórica. A espessa neblina

dominava o entorno e era quase palpável. Ao olhar para cima, era impossível ver as

copas dos pinheiros. Tudo ao redor estava coberto de uma massa cinzenta e gelada.

Rei e filho seguiram a pé por um caminho floresta adentro. Heidlich só sabia que

estavam na direção certa porque seus olhos vislumbravam uma trilha de folhas

avermelhadas enfileiradas sobre o chão, como se alguém tivesse passado por ali

antes e as organizasse daquela forma, para que ninguém se perdesse em meio à

cerração.

Alguns segundos depois, quando Heidlich acompanhava, hipnotizado, as folhas

que descansavam sobre a terra e percorriam um interminável ziguezague sobre a

trilha, os dois pararam bruscamente. O menino notara que a sequência de folhas

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coloridas acabava logo adiante e então, quando levantou os olhos, percebeu onde

haviam parado.

Doze grandes barracas revestidas com folhagens vermelhas e alaranjadas

descreviam um semicírculo sobre uma clareira. Ao redor delas, barricadas de

troncos de pinheiros cruzados e amarrados com cordas de cânhamo protegiam o

perímetro contra qualquer tipo de invasor. Uma fogueira crepitava fracamente bem

ao centro. Somente algumas poucas brasas sustentavam pequenas chamas que

quase se esvaíam. Dezenas de arcos e flechas de madeira repousavam em um

console, feito provavelmente também com galhos e troncos dos pinheiros da

floresta. Espadas curvas forjadas em ferro, grandes e pequenas, se espalhavam

sobre a grama e escudos redondos de madeira, com grossos cardos circundandoos,

estavam pendurados em uma série de suportes na entrada das barracas. Um

estandarte vermelho e amarelo com a figura de um centauro empunhando duas

espadas cruzadas se erguia ao lado da maior barraca. Era o acampamento militar

dos centauros nassarianos.

Dezenas de pares de olhos se viraram abruptamente para Cench com o filho no

colo, assim que ele saiu da mata fechada. Patas robustas de cavalo pisotearam folhas

secas e galhos retorcidos em um frenesi inesperado. Espadas de ferro tilintaram

vorazmente e o choque do ferro com a madeira dos escudos encheu os ares gélidos

da clareira. Parte dos centauros formou rapidamente uma barreira à frente das

fracas chamas, agarrados às suas armas. Outra parte se posicionara nos extremos

do acampamento, nos flancos das barracas, esticando as cordas de seus arcos,

apontando as flechas para o exato ponto onde um homem de capa negra carregava

o filho nos braços.

— O que quer aqui? — ribombou uma voz sobre o silêncio da clareira,

sobrepondo-se ao barulho do vento que começava a assoprar sobre a floresta.

— Vim para falar com Sauba-Khami — respondeu Cench, o timbre de voz

inabalável, com a mesma calmaria de quando saiu do palácio.

As cortinas de uma das barracas se moveram e um centauro emergiu do negrume

interior. Ligeiramente mais alto do que os demais, ele possuía uma pelagem

acinzentada como aço e reluzente, como se seu corpo fosse feito de um metal

forjado. Os longos cabelos negros estavam amarrados para trás, exceto por três

tranças enroladas em miçangas vermelhas que caíam sobre sua testa. O rosto

quadrado de queixo afilado externava expressões ameaçadoras e uma cicatriz

cruzava sua face, começando na têmpora esquerda e morrendo no maxilar direito.

Entretanto, era o olhar daquele temível centauro se assomando à sua frente que

impressionou Heidlich. Como mínimas fendas, semelhantes aos de uma cobra, as

irises de seus olhos eram rubras como sangue e brilhantes como um rubi. Encarava

os dois como se ambos fossem inimigos mortais e presas prontas para o abate.

Nesse instante, Heidlich teve medo e escondeu o rosto sobre os ombros do pai.

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— Cench Heinhardt! — trovejou a voz grave de Sauba-Khami. — Esta guerra

não é sua. Sugiro que retome seu caminho e não se meta em assuntos que não

entende.

Cench sorriu e meneou a cabeça.

— Sauba, eu não vim me meter na sua guerra e muito menos em assuntos que,

segundo diz, eu não compreendo. Vim até aqui, pois gostaria que você conhecesse

meu filho.

Os centauros soldados com as espadas em riste franziram o cenho e

entreolharam-se, confusos. Os arqueiros enterraram os dedos em seus arcos e

esticaram ainda mais as cordas. Sauba-Khami ergueu o queixo e vislumbrou Cench

e Heidlich do alto, como se estudasse as intenções do rei de Badorian.

Cench puxou o filho para frente, de modo a ficar face a face com ele. Os olhos

de Heidlich estavam fechados e ele pressionava as pálpebras com tamanha força,

que uma veia em sua testa se dilatava.

— Heidlich, meu filho, abra os olhos.

— Não.

— Você confia em mim?

— Eu tenho medo dele, papai. — A voz do menino estava embargada.

— Heidlich, vai ficar tudo bem. Nem tudo é o que parece. Abra os olhos.

Sauba-Khami trotava lentamente até onde Cench estava, ainda sustentando uma

faceta desconfiada, agarrando-se à sua espada curva como se aguardasse uma

emboscada a qualquer momento. Os soldados ao redor não descansavam das armas

um minuto sequer, suspeitos da situação controversa. O rei de Badorian saiu de seu

lugar e caminhou lentamente até o local em que centauro estacou. Quando estavam

frente a frente, Cench estendeu os braços para que o centauro tomasse seu filho

nos braços.

— O que está aprontando, Cench? — questionou Sauba-Khami, inflexível e

Heidlich voltou a fechar os olhos com veemência.

— Este é Heidlich Heinhardt, meu filho. Meu único filho — falou o rei de

Badorian, abrindo um sorriso simpático.

Sauba-Khami ergueu o garoto e o sustentou nos braços, mas Heidlich não abriu

os olhos.

O silêncio instaurou-se sobre a clareira e a respiração ofegante dos soldados

prontos para atacar e das últimas brasas que ardiam pressionava nos ouvidos do

garoto. O centauro de pelos da cor do metal continuou um bom tempo impassível,

sustentando o herdeiro do trono da Suntuosa Badorian em seu braço direito com

o rei logo a sua frente.

— Heidlich, abra os olhos.

A voz de seu pai soou quase como um sussurro afável em seu ouvido e, quando

Heidlich finalmente criou coragem para abrir os olhos, a expressão assassina de

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Sauba-Khami desapareceu. Onde antes havia duras feições, um sorriso brotara e,

de todas as feições que o menino poderia esperar, uma reação tenra era a última

que ele imaginava. Lágrimas escorriam daqueles olhos que antes pareciam tão

ameaçadores e o centauro o abraçou. Heidlich estava surpreso. Sauba-Khami não

era o monstro que imaginava. Havia profundos sentimentos nele.

— Que futuro daremos para nossos filhos, Sauba? — falou Cench e sua voz

tornara-se mais austera. — Um futuro de guerras, uma terra devastada, dor e

sofrimento?

— Você não compreende... — falou Sauba-Khami e sua voz falhara de um jeito

inesperado.

— É claro que compreendo, nobre amigo. Entendo a dor de vocês, entendo o

luto que experimentam. Mas será que não derramamos sangue demais? A terra

clama pelas vidas dos que se foram. Quantas guerras mais teremos, quantas vidas

mais serão perdidas até que os centauros de Nassar e de Vorázia compreendam que

esta não é a solução? Badorian é um reino abastado. Há terras para todos, há espaço

para que vivam em harmonia, para que desfrutem de paz, possam plantar e colher

como também vejam seus filhos crescendo e prosperando em nosso reino.

Outra vez, o silêncio.

Uma crescente expectativa se seguiu pela resposta de Sauba-Khami. Os soldados

ao redor pareciam não compreender o que estava acontecendo e aguardavam uma

resposta de seu líder. Contrariando a todos, em vez de respostas, choro e mais

lágrimas rolavam dos olhos do grandioso centauro.

— Que futuro haverá para Brennan, se esta guerra continuar?

Sauba-Khami devolveu o menino para Cench.

— Não há futuro se não houver vida... — balbuciou o centauro.

O líder dos centauros enxugou as lágrimas e se recompôs. Estufando o peito,

virou-se para seus soldados e ergueu a cabeça.

— Soldados, abaixem suas armas e recolham o acampamento. Esta guerra acaba

aqui.

Pouco tempo após esta conversa, Heidlich recordava, a guerra finalmente chegara

ao fim. Os acampamentos de nassarianos foram recolhidos. Cench não permitiu

que os centauros das Colinas de Nassar voltassem para as montanhas e ofereceu as

terras frutíferas de Armentur para que eles estabelecessem seus vilarejos e

pudessem habitar e cuidar das florestas do condado. Heidlich não sabia quando

ambos foram ao acampamento do líder do clã de Nassar, mas descobriria ciclos

depois que seu pai conquistou a paz primeiro junto aos vorazilis. Sem barganhas.

Sem promessas. Trouxe a eles a luz da razão. Restabeleceu suas terras e selou um

acordo entre os dois clãs que perdurava até os dias atuais.

A sabedoria de seu pai sempre fora mais eficaz do que qualquer espada afiada e

mais forte e letal do que uma legião de homens fortemente armados. Mas suas

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sábias palavras e os conselhos precisos não existiriam mais dali em diante e o

choque dessa dura realidade, da realidade de que jamais o veria, abatia-se a cada

instante sobre Heidlich.

Muitos rostos ao redor viravam as cabeças em sua direção e um burburinho

inquietante reboava sobre os ares taciturnos das margens do Mulbe. Havia alguns

ciclos que Heidlich não pisava em Badorian. As responsabilidades como Guardião

tomavam todo seu tempo e ele se odiava por não ter passado os últimos momentos

de seu pai ao lado dele. Sabia que a tentativa de não ser notado ia por água a baixo,

mesmo tentando se esconder sob o longo capuz preto. O que restava, então, era

erguer a cabeça e seguir em frente. Enxugando os olhos com a manga da camisa,

avançou por entre a multidão. Era inútil tentar ocultar-se sobre um manto de

veludo quando a maioria ao redor o identificava.

As pessoas iam abrindo passagem para o filho mais velho de Cench e herdeiro

do trono de Badorian conforme seguia, lentamente, para onde repousava o caixão

de seu pai. Heidlich vislumbrava cada rosto, cada expressão de tristeza e cada

lágrima que escorria nas muitas faces ao redor. Fazia questão de encarar nos olhos

os homens e mulheres, elfos, duendes e centauros que, assim como ele, sentiam

uma dor infindável no fundo do peito pela morte daquele que foi o maior rei de

Badorian. Assim como aprendera na Academia dos Guardiões, queria poder

inspirar coragem e ser a chama da esperança de que todos precisavam num

momento tão adverso, mesmo que sua coragem fosse ínfima e quase irrisória e a

esperança uma mísera fagulha que se esvaía.

Deixando uma dezena de lamentações e soluços tímidos das pessoas em volta

para trás, finalmente se aproximava da borda do caixão de seu pai. A tampa já havia

sido colocada sobre ele. Um dos soldados fez um gesto, como se quisesse abrir

novamente o caixão para Heidlich, mas o guardião retribuiu com um sinal discreto

para não remover a tampa. Queria manter na memória as lembranças felizes, dos

ciclos de saúde e vigor de seu pai e não uma última e mórbida imagem dele,

repousando sem vida e coberto por flores.

Heidlich postou-se muito próximo do caixão. Inspirou fundo e seus braços

engolfaram duas mulheres cobertas por longos véus de renda negra. Mesmo

tentando se esconder, era possível vislumbrar o estado aflitivo e o choro

inconsolável de ambas.

A mais velha delas era Falla, sua mãe, que lhe retribuiu o abraço. Um abraço

muito diferente dos que costumava receber nas vezes em que regressava à Badorian.

Era um abraço sem entusiasmo, sem vida, desolador. Neste fatídico dia, sua mãe

estava longe daquela figura de vigor e ânimo que costumava ser. As linhas de

expressão em seu rosto e os longos cabelos grisalhos presos em um coque lhe

conferiam uma aparência de cansaço, como se fosse muitos ciclos mais velha do

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que realmente era. Nem mesmo os grandes e penetrantes olhos azuis eram mais os

mesmos. Profundas olheiras tomavam conta deles e o brilho natural de suas irises

parecia ter sido roubado pela aflição da morte do homem que amou e com quem

conviveu por quase cinquenta ciclos.

O segundo abraço foi forte de um modo inesperado, pegando-o de surpresa. Era

um abraço desesperado, como uma súplica por esperança. Ivyna apertava seu tórax

com veemência, engolfada por uma dor lancinante que também o consumia. A irmã

mais nova chorava sem cessar, em um murmúrio baixinho. Heidlich não a

reconhecia mais. A última vez que a vira, era uma menina entrando na adolescência.

Os cabelos ruivos, vermelhos como uma chama viva a crepitar, estavam soltos e

cobriam parte do rosto da bela mulher que havia se tornado. Teria de lidar em breve

com a presença de um nobre, de alguma terra distante ou mesmo de Badorian,

cortejando-a, mas decidiu que não era o momento para pensar em tal coisa.

Um silvo eclodiu sobre os céus, fazendo muitos ao redor voltar à tona de seu

estupor e aflição, ao passo que os prantos pareceram se intensificar. Ivyna abraçou

o irmão com desespero e seus soluços ficaram ligeiramente mais altos. O abraço de

Falla também se acirrou e Heidlich envolveu ainda mais a mãe e a irmã, tentando

ser o mais acolhedor possível naquele instante. Seis soldados, três de um lado e três

do outro, suspenderam o caixão do rei a meio metro de altura e seguiram

caminhando, lentamente, em direção à margem do rio.

Heidlich acompanhava cada detalhe e as lágrimas escorriam tímidas dos seus

olhos. A cerimônia de despedida havia iniciado. A partir daquele momento, nunca

mais veria o pai novamente. Nunca mais o abraçaria, nem o beijaria na testa, jamais

poderia contar-lhe as muitas histórias que vivenciou, tampouco poderia dizer-lhe

que derrotou um kraken e exterminou bandos de assassinos nos confins de

Eurodian.

Os soldados chapinharam sobre as águas calmas e ondulantes da orla do Mulbe

e depositaram o caixão branco em um barquinho simples de madeira. Uma

alquimestre do ar agitou as mãos e o barquinho iniciou sua jornada pelas águas,

rumando vagarosamente em direção ao horizonte.

As lamentações se tornaram mais intensas à medida que o barquinho se

distanciava da margem do rio. Um braço se ergueu alto e uma fagulha coruscou

sobre os dedos em riste. Um arco de fogo mágico surgiu e uma flecha em chamas

foi esticada sobre ele. Outros braços se levantaram em uma sequência cadenciada

e novos arcos e flechas em rubras chamas surgiram sobre muitas mãos. Os

membros da Academia dos Guardiões, ainda que com rostos inchados e olhos

marcados por lágrimas, se uniram aos soldados alquimestres do reino e conjuraram

arcos e flechas mágicos, iluminando a clareira ao redor do rio Mulbe, como uma

única tocha acesa na extensão do vale lúgubre.

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Descrevendo um círculo perfeito de nuances vermelhas e vivas sobre um céu

mórbido e acinzentado, a chama elemental das flechas dos soldados e guardiões da

Academia coloriu os ares e atingiu, uma a uma, o caixão sobre o barquinho, que

quase não se via lá no horizonte. O fogo logo começaria a arder sobre a madeira e

consumiria aos poucos caixão e barco, até que suas cinzas subissem aos céus e

desaparecessem sobre as águas enregelantes e revoltas do rio.

Correndo a mão direita e afagando os cabelos de sua mãe, Heidlich beijou-a na

testa. Em seguida, ergueu a mão direita e fez brotar uma chama vermelha como a

dos demais guardiões da ponta dos dedos. A pequena chama se lançou sobre a

abóbada celeste coberta pela cerração e reboou pelos ares, deixando um rastro

incandescente como as demais e atingiu a tranquilidade do barquinho em sua

viagem rumo ao infinito, ardendo em chamas no horizonte.

Heidlich voltou a abraçar a mãe e a irmã, mais forte do que antes, consumido

pelo medo e pela angústia. Os seus vinte ciclos como Guardião de Eurodian jamais

o ensinaram a lidar com isto.

Uma mão firme repousou sobre seu ombro direito.

O sol, em algum lugar além das nuvens cinzas que permeavam o reino, se punha

no horizonte. Era muito tarde. A cerração da noite se assomava sobre a orla do rio

e uma penumbra melancólica avançava sobre as florestas ao redor de forma

avassaladora e aterrorizante. O barquinho com o caixão desaparecera. As chamas

o consumiram e suas cinzas vagavam ao léu, misturando-se ao tom sem vida dos

céus. Todos haviam ido embora. Somente Heidlich permanecia, solitário e

pensativo. Contemplava o horizonte, esperando por alguma coisa. Algo que

preenchesse o vazio que o abatia. Uma coisa que ele sabia que nunca mais viria.

— Minhas mais sinceras condolências, Lorde Heidlich.

Girando o queixo, Heidlich vislumbrou quem o interceptava.

— Brennan? — Heidlich o cumprimentou. A voz ainda um tanto embargada.

Alto e de cabelos negros e espetados, Brennan era uma autêntica cópia do pai.

No alto de quatro vigorosas patas de cavalo e de crina reluzente e prateada muito

bem escovada, ele exalava imponência. O tronco humano de porte pujante e

músculos definidos era quase o dobro do tamanho de um centauro comum. O

rosto era caricato, largo como o do pai, mas o queixo fino e com um pequeno

furinho na ponta. Não havia as tranças tão distintas e cobertas de adornos como as

de Sauba-Khami. Ao contrário, Brennan era mais adepto de um corte de cabelo

curto e livre de longas madeixas. Sobre as narinas largas de seu nariz pontudo, duas

pequenas argolas douradas cintilavam.

— Há quanto tempo não o vejo? — questionou Heidlich, espantado.

— Deixe-me ver. Acredito que há oito ciclos, pelo menos. Não me lembro de

você tão forte assim da última vez que te vi.

138


Heidlich fitou novamente o amigo centauro no topo de seus mais de dois metros

altura.

— Eu digo o mesmo. Andou malhando com os troncos das árvores de

Armentur? E quanto a seu pai? Como está Sauba?

— O mesmo de sempre, você sabe. — Brennan sorriu, acanhado. — Velho e

cheio de histórias para contar.

— Mande um abraço para ele. Meu coração sempre estará com o clã dos Khami,

assim como esteve o do meu pai.

Brennan deu um meio sorriso, desajeitado. Estava visivelmente desconcertado e

sem saber muito bem o que falar nesse momento.

O vento soprou sobre as árvores e fez um chiado estridente quando serpeou por

entre os pinheiros mais antigos. O silêncio preencheu a quietude que se assentou

entre guardião e centauro, avançando sobre o vazio que outra vez assolava o

coração de Heidlich, que voltava a fitar o longínquo horizonte coberto pela densa

neblina.

A mão pesada de Brennan outra vez apoiou-se sobre o ombro de Heidlich.

— Uma tempestade se assoma, Lorde Heidlich.

O guardião virou o rosto intrigado, contorcendo o cenho para a frase do amigo

centauro. Observava outra vez o horizonte, no exato ponto em que rio e céus se

tocavam. Era o típico inverno de Eurodian: densas cerrações, ventos enregelantes,

algumas vezes a neve cobrindo casas, florestas e estradas, mas nunca tempestades.

Tempestades eram fenômenos característicos do verão. E então, Heidlich entendeu

quando seus olhos se voltaram outra vez para o rosto de Brennan. O centauro

parecia extasiado e o encarava como se conseguisse observar o mais profundo

recôndito de sua alma. Ele sabia que os centauros, assim como os elfos

sacramentadores, eram sensitivos quanto ao tempo e os mistérios da predição do

futuro.

— O que você quer dizer, Brennan?

— Uma tempestade se aproxima, Heidlich. — E o guardião nunca ouvira a voz

de Brennan tão grave e tensa como naquele instante. — Uma que não vem das

montanhas, mas que insurge do mar e arremete de forma ameaçadora sobre a terra.

Prepara a tua casa e fortifica os seus alicerces. Não deixe nenhuma brecha aberta.

Calafeta todas elas enquanto você pode, pois esta tempestade sacudirá Eurodian

como nunca antes aconteceu em toda sua história e abalará as estruturas de Eirin

para sempre.

139


Capítulo Dez

Tempos Caóticos

Sobre o pináculo da mais alta torre do Oráculo do Tempo, o templo ancestral

dos Sacramentadores, olhos carregados de apreensão vislumbravam o longínquo

horizonte. Nos confins de Eirin, no ponto exato em que céus e mar se fundem em

um beijo estonteante, em uma explosão de nuances esplendorosas e encantadoras,

o sol iniciava seu ocaso. O lusco-fusco pintava nuvens, a abóbada celeste e as águas

revoltas de Argúrius com seus tons laranja, quentes e vibrantes. Insólito, como um

pequeno borrãozinho insignificante e negro na imensidão do mar, um barquinho

cortava as ondas, navegando com tranquilidade. Logo, ele aportaria no cais de

Purysia.

Reverberando os sapatos sobre o piso de mármore, Arturo Menfesis caminhava

de um lado a outro, inquieto. As primeiras sombras da noite avançavam sem pedir

licença para dentro do cômodo. Invadindo as sinuosas vidraças da torre, a escuridão

crescente lançava-o sobre a penumbra do entardecer, juntamente com suas

preocupações e angústias. Mãos para trás, a direita acariciando repetida e

exaustivamente a esquerda até o ponto de sentir um pequeno calombo formar-se

entre o dedo anelar e o médio, o Primeiro-Líder da Ordem dos Sacramentadores

não conseguia evitar lançar olhares inquietantes para o objeto mágico mais valioso

— e perturbador — da ilha: a Bússola do Caos.

Parado de frente para os ponteiros dourados e estáticos, devaneava em como fora

tolo e inocente a ponto de deixar esta situação tomar proporções tão catastróficas.

Como não percebera os sinais?

Havia o quê? Vinte ciclos?

Vinte e cinco, se não estava enganado, desde que as primeiras perturbações na

harmonia do tempo e espaço começaram a mover os ponteiros da Bússola de

maneira irremediável. Então, acompanhava de perto e com uma sensação crescente

de impotência, sua era como Supremo-Chanceler de Purysia desmoronar como as

ruínas de um velho palácio castigadas por uma maré avassaladora denominada de

caos.

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O Caos Absoluto. A soma de todos os medos de qualquer sacramentador e o

maior e mais antigo infortúnio a ser combatido desde as mais remotas eras, pela

Sacramentação do Tempo.

Desde tempos mais primitivos, quando nem se sonhava com o advento da

Grande Era das Trevas, que revelou a glória da Sacramentação e trouxe à luz a

ciência e magia dos elfos quanto ao tempo e espaço, uma antiga profecia fora

entoada na forma de um soneto. Uma canção maldita que nasceu no coração das

florestas de Aladar e, como uma chama incessante, se alastrou pelas densas matas

de Eurodian, Anlevor, Turmis e Elstoen. Ao longo do tempo, ecoava pelas eras em

direção à eternidade. Uma profecia entoava que o dia chegaria, sem que Eirin

percebesse, em que os continentes vibrariam em frequências infernais cuja

sabedoria existente não poderia decifrar. Oscilaria até o ponto em que a magia se

extinguiria e o tempo-espaço seria totalmente despedaçado. Neste dia, então, viria

o fim. O prelúdio de uma era de tremores, fenômenos climáticos indomáveis,

guerras virulentas e atrocidades inimagináveis. Uma era em que harmonia e

equilíbrio virariam pó. A Era do Caos.

Centenas de Sacramentadores nasceram e viveram para que este pesadelo em

forma de canção jamais se tornasse realidade. Com afinco, se esmeraram para

manter a ordem sobre a magia do tempo. Ao longo das eras, fizeram incríveis

descobertas. Desvendaram padrões sobre a malha do tempo e espaço e como ela

se entrelaçava através de infinitesimais octaedros interligados numa dimensão

mágica que transcendia a compreensão humana, cobrindo cada ser vivo, cada

pedaço de terra, o céu, as estrelas e toda Eirin como uma colmeia de minúsculos

polígonos. Descobriram que esta malha era como uma rede neural e que vibrava.

Cada oscilação afetava o espaço-tempo de uma forma diferente e com o passar dos

ciclos, padrões de vibração surgiram de acordo com o impacto que produziam. Isso

ocorria em todas as regiões da malha e, por mais que fossem minúsculas e irrisórias,

cada trepidação poderia provocar eventos variados, fossem insignificantes ou

catastróficos; estudaram formas de combater as perturbações que comprometiam

a harmonia da natureza e, ao longo dos ciclos, descobriram os impactos que cada

ser vivo impele sobre o curso natural do tempo, compreendendo as consequências

e reações desde o bater das asas de uma borboleta e da respiração ofegante de um

filhote de hipocampo até aos intentos malignos de um rei tirano ao arquitetar uma

guerra.

Uma infinidade de livros sobre a magia do tempo foi escrita, o conhecimento

disseminado para uma classe de elfos fascinados pela erudição do espaço-tempo e

dessa magia incompreensível que tinha a capacidade de entender a malha e até

prever o futuro, o poder dos Sacramentadores se disseminava e era cultivado.

Contudo, o medo e o terror provocado por um soneto maldito jamais deixou de

habitar a mente e os corações daqueles que o conheciam.

141


Forjado em quitiat, o elemento mágico mais puro das escarpas íngremes das

Minas Elborgen em Vaelfar e banhado sobre ouro-pérola, a Bússola do Caos foi

criada como uma resposta ao medo crescente dos sacramentadores por uma

perturbação generalizada que levasse o mundo a uma Era do Caos. Um artefato

poderoso intimamente ligado à dimensão mágica do tempo. Mediria as diferentes

vibrações e perturbações da malha. Cada vez que o ponteiro estivesse próximo dos

noventa graus, Eirin e seus Cinco Continentes estariam mais perto do Caos

Absoluto.

Pouco mais de quatro meses se passara desde que o ponteiro descrevera seu

maior raio.

Superando até mesmo a marcação no ápice da Grande Era das Trevas, estava

naquele momento a cinco graus de atingir o Caos Absoluto.

Pouco mais de quatro meses... quando uma notícia se arremeteu contra a redoma

de sua zona segura.

Um pergaminho esgarçado sobre as bordas e carregado de manchas e marcas das

mais variadas intempéries seguia atado às patas de uma harpia oceânica. A ave

cruzava as Águas de Argúrius em um voo solitário e incomum para a época do

ciclo, rumando em direção a Anlevor. No limiar das fronteiras com a ilha, o

Protetorado de Purysia, a guarda real da Ordem dos Sacramentadores, formada

pelos mais exímios alquimestres que Eirin poderia fornecer e testados pessoalmente

pelo próprio Conselho dos Guardiões, interceptou o estranho pássaro.

O alquimestre que a interpelou correu por entre as galerias e salões do Oráculo

do Tempo, os dedos agarrados ao pergaminho e o fez chegar imediatamente às

mãos de Menfesis, exatamente como ele ordenara toda vez que uma mensagem

suspeita ou preocupante atingisse a ilha ou seu entorno.

O texto não poderia ser mais aterrador.

As letras curvas e desleixadas e as palavras que quase se atropelavam umas nas

outras, expressavam o caráter de urgência do conteúdo da carta. Uma informação

que não deveria chegar ao conhecimento dos Sacramentadores, em hipótese

alguma. Mas, por infortúnio do destino, caíra justamente nas mãos de seu líder.

O ocaso das Eras desperta sem pudor;

Esvoaçando como a penugem funesta de um velho Condor.

Ele destrói esperanças,

Embaralha a confiança.

Assomando-se como gralha em campos de sal,

Ele profana o bem, adora o mal.

142


Vilipendia o Sacramentado;

Exalta o Amaldiçoado;

Estabelece seu Caos.

Quando os badalos do tempo unirem os dois vetores,

A ordem e a harmonia enfrentarão seus dissabores.

Água, terra, ar e magia, como pó, sucumbirão,

Reinos e povos, tal qual palha, queimarão.

O tempo estará perdido, indefinido até esvair,

Sua malha se desfia, não há quem possa impedir.

Quando os Oito se alinharem e o Profano emergir,

A Era do Caos insurgirá e Eirin irá sucumbir.

Menfesis reuniu uma pequena comitiva de sua guarda pessoal imediatamente e

partiu antes do sol se pôr. Montando em grifos que partiram do porto de Purysia,

Menfesis e seus escudeiros cruzaram os mares, tendo sobre o topo de suas cabeças

um lúgubre entardecer que dominava os céus a um extremo e o pontilhado das

estrelas em uma imensidão enegrecida do outro lado. As águas negras de Argúrius

em alto mar se agitavam de uma forma diferente. A paisagem melancólica que se

desenhava sobre a imensidão do céu denotava que esta seria uma longa noite.

Não era a primeira vez que ouvira os boatos. Frases esporádicas eram de seu

conhecimento. Mas, por muito tempo, preferira tapar os olhos e os ouvidos.

Ignorava os burburinhos que vez ou outra surgiam. Não considerava nada daquilo

uma ameaça real, ainda que essas mensagens proféticas o incomodassem bastante.

A caligrafia sinuosa, a escrita de forma apressada. Era a marca registrada de

desafetos que há muito ousavam colocar em xeque sua liderança quanto às questões

do tempo. E, desde que a situação fugira a seu controle, compreendeu que mesmo

a menor das oscilações poderia provocar flagelos atroadores.

A noite reinava esplendorosa e a lua cheia imperava sobre um céu sem nuvens,

quando os grifos pousaram suavemente sobre o Vale D’Além-Prata, no sudeste de

Mistral. O ar estava carregado por uma fina e quase imperceptível cerração. Esta

era uma daquelas noites agradáveis do outono em Eurodian: uma leve brisa amena

enchia os vales, mas ainda não demonstrava o poder do frio congelante do inverno.

O cheiro de carne de bode assada e cervejas com caramelo impregnava a atmosfera

irrequieta. O som de uma música alegre, cordas dedilhadas que reverberavam em

um ritmo acelerado e vozes cantando aos berros preenchia o perímetro do vale. A

Aldeia dos Druidas estava em festa. Uma celebração que não duraria muito tempo.

143


A presença de Menfesis e seu protetorado não foi notada em meio aos festejos e

à bagunça. Pessoas dançavam de um lado a outro, notavelmente embriagadas e

erguiam taças e canecas de bebidas contra os céus a todo instante; outras se

lambuzavam com enormes espetos de carne ou se acomodavam em mesas e

banquetas de madeira para saborear guisados em potes redondos de bambu

enquanto observavam as danças e comemorações.

O Supremo-chanceler de Purysia caminhou sem pressa. A multidão não parecia

notar a presença de um elegante elfo de roupas finas avançando pelo vale, seguido

por uma comitiva enfurnada em longos capões verdes, sustentando lanças e

espadas, observando a todos com olhares ameaçadores.

Passo a passo, Arturo Menfesis embrenhava-se pela multidão rumo ao centro da

festa.

Esquadrinhava com desprezo os velhos barbudos e bêbados ao redor. Arrogavam

para si o título de homens mais sábios de Eirin. Por eras, foram considerados os

maiores profetas do mundo e suas mensagens eram transmitidas como lei. Mas

Menfesis sabia o que eles eram. Parasitas inescrupulosos, movidos pela ganância;

pilantras da pior espécie e que viviam em função do ouro e da prata, aproveitandose

dos anseios dos povos em descobrir o que o futuro reservava a todos. A

aparência era tenebrosa. Os longos cabelos e barbas grisalhas eram desgrenhados,

com aspecto de sujeira impregnada. Os corpos exibiam tatuagens que ilustravam

grandes momentos da história de Eirin, principalmente da época em que os druidas

possuíam algum respeito das nações. Adoravam se envolver com prostitutas e em

eras passadas, quando os reinos menos abastados não podiam ofertar ouro ou

pedras preciosas, pagavam por suas pífias previsões com jovens virgens que se

tornavam suas escravas sexuais. Para um sacramentador, esta era a pior das

profanações. A sacramentação exigia pureza. Somente um corpo livre dos desejos

sexuais, celibatário, era digno para purificar e tratar das questões do tempo. O

sacrilégio de homens que se autointitulavam profetas legítimos, com os corpos nus

enroscados entre as pernas de prostitutas por todo lado, era uma transgressão

vexatória para aqueles que realmente se dedicavam em compreender as intempéries

que o futuro reservava ao mundo.

O Sacramentador avançava. A terra fofa e macia, de tom vermelho-sangue,

característica do longínquo Vale D’Além-Prata, exalava um odor desagradável. Vez

ou outra, os sapatos chafurdavam sobre poças de cerveja e melaço ou afundavam

pedaços de osso de carneiro e bode que alguém descartara por ali. O pergaminho

seguia firme na mão direita; os dedos pressionando-o com fúria. O vale logo estaria

exalando um odor pútrido e não seria dos restos de comida lançados ao chão.

Olhares espantados se aperceberam da sombra provocada por Menfesis ao

postar-se próximo às brasas da fogueira principal da festa. A presença do elfo fora

144


notada afinal e as cabeças dos druidas entrelaçadas com as prostitutas viravam-se

para contemplar a cena.

A cantoria cessou. As danças, os instrumentos de corda, as comemorações e os

gritos eufóricos calaram-se. As respirações ficaram menos ofegantes e oscilavam.

A presença do líder da Ordem dos Sacramentadores inspirava temor. As atenções

eram exclusivas para o centro do vale, onde antes estava o ponto mais agitado da

festa.

— Procuro por um druida de caligrafia sinuosa — proferiu Menfesis,

calmamente. — Com exorbitante pressa em perturbar a harmonia do tempoespaço.

As expressões iniciais eram de confusão, mas logo tornaram-se aterradoras. Um

burburinho confuso alastrou-se sobre o vale. O medo era tangível entre os que

cochichavam, tanto quanto o aroma da carne assada e da cerveja derramada aos

tonéis sobre a terra rubra. Todos sabiam do que o elfo falava. Nenhuma viva alma

ousou se pronunciar.

— Pois bem. — Menfesis alteou a voz, sobrepondo-se aos murmúrios que se

tornavam ensurdecedores — Se o culpado por tamanha insolência é deveras

covarde para se apresentar e expor seus pecados, exijo que seja feito um pagamento

equivalente ao desatino que tal profecia poderia provocar sobre a vastidão das terras

de Eirin. Protetores, queimem este vale até que não sobre nem mesmo cinzas para

a posteridade.

Um coro de gemidos retumbou.

Um estalo tonitruante se ouviu.

Uma chama azulada irrompeu das mãos dos alquimestres e serpeou pelo

perímetro do vale. Uma onda crepitante se alastrou por entre as barracas e cabanas,

consumindo tudo o que encontrava pela frente: druidas emaranhados com suas

prostitutas, rodas de pessoas que interromperam as danças coletivas, carneiros e

cavalos que repousavam nos currais. Gritos de terror e uivos de sofrimento

ecoaram sobre o acampamento de diversos pontos e lugares. Ao redor, druidas

queimavam e suas carnes derretiam enquanto corriam para onde não houvesse fogo

mágico. Mas a chama elemental estava por toda parte.

Menfesis permanecia estático. Observava a aldeia sucumbir sem um pingo de

misericórdia.

Uma das maiores cabanas do acampamento estalava com as fortes labaredas perto

dos currais. Clarões azuis do fogo mágico coruscavam contra os céus, atingindo

proporções aterrorizantes e, enquanto o líder da Ordem dos Sacramentadores

observava corpos sendo consumidos diante dele, impassível, dois homens

arrastaram um terceiro por entre as chamas e pessoas incendiadas e o arremessaram

aos pés do elfo pretensioso.

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— É este o remetente da carta — gritou um druida que atirou o homem sobre a

terra, ajoelhando-se e pressionando o rosto contra o chão. — Pelas sacras estrelas,

poupe esta aldeia e a vida desses homens e mulheres.

Menfesis encarou os velhos a sua frente com desprezo. Nojo seria a palavra mais

coerente. A real essência dos humanos demonstrada aos seus pés. Ante o medo de

uma morte sofrível, os homens revelavam sua verdadeira face. Desprezíveis,

traidores. O elfo contemplou de soslaio o fogo que dobrava, triplicava em tamanho

e extensão, dizimando centenas de vidas e consumindo tudo o que estivesse a sua

frente. Ergueu o punho. Ao seu gesto, os protetores cessaram de produzir as

chamas e aguardaram por novas instruções.

O cheiro de madeira e carne humana derretendo invadiu os ares. O odor acre da

cerveja e restos de carneiro assado no chão era substituído pelo cheiro da morte

espalhado na atmosfera. Fumaça e cerração se fundiam: tornavam-se uma única

sombra cinzenta e fantasmagórica que dominava as entranhas do Vale D’Além-

Prata. Menfesis continuava imóvel, observando os druidas diante dele.

— Levantem-no.

Pressurosos e atrapalhados, os dois druidas das extremidades levantaram o

terceiro homem, que insistia em manter o rosto escondido sobre a lama cor de

sangue. Puxando o velho por seus longos cabelos brancos sujos de barro, o rosto

embaçado apareceu. Atrás da terra molhada que impregnava a face lívida e a barba

grisalha coberta de lama, olhos verdes e assustados surgiram. Arregalados, eles

vidraram no rosto sereno e indiferente de Arturo Menfesis.

— Grão-Mago C’Niha — balbuciou o elfo, mantendo a serenidade em seu tom

de voz. — Optou por deixar tantas vidas serem dizimadas pelo fogo a ter de me

enfrentar. És um homem afortunado por ter esses dois fiéis sacerdotes. Preferiram

sua vida no lugar das demais. É pena terem tomado tal decisão tardiamente.

C’Niha arfava desesperado. A respiração ofegante era o termômetro que

escancarava os níveis astronômicos do medo que o Grão-Mago dos druidas possuía

naquele instante.

— Pro inferno com sua moralidade ignóbil — grunhiu C’Niha, cuspindo sobre

o pé do elfo. Reunira o pouco de coragem que ainda lhe restara. — Impostor

desprezível. Usurpador repugnante.

— C’Niha, eu quero o nome. — Menfesis controlava o instinto, mantendo a voz

serena; os braços firmes atrás das costas. — O nome do arauto do caos que tenta

me afrontar mais uma vez, pois eu sei que esta mensagem jamais seria obra da fajuta

sabedoria atribuída a vocês.

— IMPOSTOR! USURPADOR! — berrava C’Niha, enlouquecido, cuspindo sua

cólera.

Um lampejo ofuscante coruscou à esquerda de C’Niha e em seguida, à direita do

Grão-Mago, como um raio cintilante que corta os céus de forma inesperada. No

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instante seguinte, a mão de Menfesis sufocava o pomo-de-adão do druida que antes

o insultava sem que ninguém notasse seus movimentos. Os dois homens que o

entregaram desapareceram do nada, sem deixar vestígios.

— Como ousas afrontar a Ordem dos Sacramentadores com tamanha petulância?

Perguntar-te-ei pela última vez e caso não queiras ter o mesmo destino dos

sacerdotes que o entregaram a mim, sugiro-te que pense bem as próximas palavras:

anseio pelo nome do maldito centauro que prefere esconder-se de minha presença

e espalhar suas sórdidas e levianas profecias aos quatro cantos de Eirin.

A crença de Menfesis não deixava dúvidas. O elfo sabia que os druidas não

tinham capacidade intelectual para prever as incertezas do futuro. Viviam em

função da barganha, vendiam falsas predições por um punhado de ouro. Havia

muito tempo, as reais previsões eram mensagens replicadas de outros profetas. Os

profetas a quem temia eram uma raça que compartilhava do mesmo dom dos elfos

sacramentadores e que por muito tempo foram grandes aliados seus, embora eles

jamais fossem considerados dignos da pureza da sacramentação pelo seu amor

incondicional à guerra. Era a esses usurpadores do real poder do tempo a quem

Menfesis temia. Os principais protagonistas da ameaça que insurgia e batia à porta

de sua era à frente da Ordem.

Os olhos esbugalhados de C’Niha miravam a expressão fleumática de Menfesis

que aguardava a resposta. O rosto do druida deixava aos poucos o tom pálido e

sem vida e ia se tornando avermelhado com os dedos do elfo pressionando sua

garganta. Nos segundos que se seguiram, os lábios do homem balbuciaram alguma

coisa inaudível.

— Como, C’Niha?

Menfesis comprimiu os olhos; não compreendia as palavras do homem.

Afrouxou um pouco os dedos da jugular do druida e aproximou o ouvido esquerdo

de seus lábios arroxeados.

— Eu ainda verei a Ordem dos Sacramentadores cair e, neste dia, quem queimará

sob as estrelas será você!

C’Niha se desvencilhou das mãos do sacramentador e, puxando o ar com força,

caiu de joelhos e pôs-se a rir, histérico. Menfesis se encheu de fúria e em um giro

rápido que pegou a todos de surpresa, desembainhou um punhal dourado e o

cravou sobre o peito do druida. Um filete de sangue jorrou, manchando as vestes

de seda marfim do elfo com um longo e sinuoso rastro vermelho e brilhante. O

druida cessou as risadas e acompanhou com o olhar agonizante o elfo a sua frente

arrastar a faca cravada em seu coração na diagonal, rasgando seu tórax até embaixo.

O Grão-Mago despencou sobre a terra molhada com um baque oco, irrigando com

sangue a poça de lama e cinzas sobre a qual jazia.

Menfesis limpou a adaga com o pergaminho que continha a profecia e guardou

ambas sobre as vestes.

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— Nossa partida é iminente — proferiu o elfo, observando os arredores; o timbre

de voz inabalável e sereno. — Queimem tudo que ainda tenha vida e possuam o

que desejarem. A leviana erudição dos druidas de Além-Prata se encerra aqui.

Emergindo do devaneio, Menfesis contemplou a embarcação atracar no porto de

Purysia.

A brisa marítima agitou a longa capa azul do guardião.

Um gosto de água salgada invadiu seus lábios e um aroma causticante de peixes

pútridos irradiou para as narinas do homem assim que os pés se firmaram sobre as

pedras lisas do cais do porto de Purysia. Gaivotas grasnavam em timbres

esganiçados no céu. Esperavam por algum peixe dando sopa ao longo da orla para

que lhes servisse de jantar e o sol desaparecia, preguiçoso, em um ocaso que

terminava de ocultar os últimos raios alaranjados, bem atrás de onde seu navio

atracara.

August Moronov aprumou-se.

Ordenou à sua guarda particular que esperasse no navio. O assunto era restrito e

ele não queria outros ouvidos conhecendo o que precisava tratar. Não pretendia

também se demorar muito tempo. Precisava amarrar algumas pontas soltas e umas

poucas explicações estariam de bom tamanho. Observou com atenção se alguma

viva alma surgiria de um canto qualquer para recebê-lo. Aguardou por alguns

segundos, afinal, não era um completo estranho àquela ilha. Recordava-se da

primeira vez que colocou os pés sobre o Oráculo do Tempo, Purysia. Havia

acabado de ser nomeado Terceiro Líder do Conselho dos Guardiões e, embora

poucos dessem importância à sua função — e muitas vezes até esquecessem que

havia um terceiro na linha de sucessão na cúpula do Conselho, Moronov preferia o

título que recebera de Salazar Stanhorne: Chanceler dos Guardiões. O que deixava

mais do que claro a toda Eirin qual era seu real papel. Diplomacia entre as nações.

Representava a instituição máxima da magia, pela qual vivia e que tanto venerava.

À época, a ilha estava em festa.

O líder da Ordem dos Sacramentadores, um elfo tão esnobe e altivo quanto os

demais, Arturo Menfesis, abrira as portas de Purysia pela primeira vez para receber

o Conselho dos Guardiões em uma conferência histórica, reunindo lideranças

proeminentes de Eirin, reis e rainhas, os oito elfos que ocupavam os pilares da

Sacramentação, bem como o Círculo dos Cinco Guardiões. Esbelto e de longos

cabelos negros e lisos que iam até a cintura, encarou a comitiva de guardiões com

seus olhos cinzentos e penetrantes como os de uma víbora na iminência de dar o

bote. Embora o queixo fosse duro e as expressões um tanto ameaçadoras, ele

sorriu, exibindo dentes tão brancos que pareciam ter brilho próprio. Moronov

repetia para si mesmo, à época, que aquele elfo era alguém com quem não se deveria

discordar.

148


Era notório a todos que Menfesis não estava à vontade com o tanto de gente

ocupando a ilha, ainda que o motivo de tal incursão fosse o mais nobre de todos.

Durante a conferência, em um amplo anfiteatro no suntuoso palácio dos elfos,

onde muitas lideranças discursaram, o líder dos Sacramentadores foi enfático e não

se demorou. Não perdeu tempo em explicar como a magia da sacramentação

funcionava, o que para todos era uma ardente expectativa, pois ninguém nunca

compreendeu, de fato, como os elfos conseguiam antever situações climáticas

perigosas ou outras catástrofes e cataclismas. Palavras como “malha”, “tempoespaço”

e “vibrações” eram repetidas à exaustão, sem que o público ao redor

compreendesse o que significava. Ao término da conferência, o semblante do elfo

denotava certo alívio. Para Moronov, estava claro que Menfesis era um elfo avesso

ao convívio social com outros que não fossem de sua raça e religião. Isso poderia

gerar problemas diplomáticos no futuro, se a delicada relação de parceria com os

elfos fosse afetada.

Esvaindo-se de seus devaneios, Moronov continuava postado no cais, imóvel.

Ponderava o quanto a relação entre sacramentadores e guardiões tornava-se

fragilizada a cada dia. O distanciamento de Menfesis tornava tudo ainda pior.

Aguardando algum elfo sacramentador ou mesmo um dos protetores da ilha vir

recebê-lo, a situação atual não era festiva e Purysia não lembrava mais, nem de

longe, o suntuoso paraíso do qual o Chanceler do Conselho recordava. O aspecto

era de descaso, abandono total, como se exaurida do esplendor de tantos ciclos

antes. Algo não estava bem na Ordem dos Sacramentadores e ele precisava

descobrir o quê.

Sob a luz dos archotes que iluminavam o cais, antes que as gaivotas acima de sua

cabeça o confundissem com alguma espécie exótica de peixe e o atacassem,

Moronov percebeu que era inútil aguardar ali e seguiu seu caminho pelo porto,

solitário, rumo aos portões da sede da Ordem.

Dois extraordinários portais de ouro maciço semiabertos se assomaram quando

o guardião alcançou o fim da escadaria. Adornados com belíssimos vitrais azuis que

se assemelhavam às águas de uma cascata a jorrar, os portões principais do palácio

surgiram no fim da trilha de lajotas que se apresentava para ele. O templo dos

Sacramentadores surgia em seu campo de visão, quando Moronov foi interceptado

por dois alquimestres.

— Desejo falar com Arturo Menfesis imediatamente — se antecipou Moronov,

empertigando-se o máximo que pôde. Os dedos se apressaram em agitar uma

pequena insígnia em seu peito com o brasão do Conselho dos Guardiões.

Os alquimestres permaneceram impassíveis.

— O Primeiro-Líder da Ordem dos Sacramentadores e Supremo-Chanceler de

Purysia, Arturo Menfesis, não poderá recebê-lo. O decreto Meditatem está em vigor

e ficará assim até segunda ordem.

149


“Ora, quanto ultraje”, pensou Moronov, embasbacado.

— Acho que vocês não entenderam. — O guardião puxou o brasão do Conselho

com ferocidade e o chacoalhou como quem brande uma joia rara para um público

cético. — Eu sou August Moronov, Chanceler do Conselho dos Guardiões, e eu

peço... Peço, não. Exijo ser recepcionado pelo...

— Basta!

Uma voz trovejou e as demais emudeceram.

Depois de três meses recluso na torre da Grande Bússola, Arturo Menfesis

atravessava os portões do castelo. Determinado, as feições rígidas exalavam

impaciência. Atraindo os olhares de diversos elfos e protetores da ilha, rumou a

passos largos em direção ao calor da discussão que se iniciava.

— Eu sou...

— Sei quem és, August Moronov, Chanceler do Conselho dos Guardiões. —

Menfesis interrompera, impaciente. Fez um gesto para que os protetores da ilha os

deixassem a sós. — Diga-me, o que queres?

— Quero respostas, Menfesis — disse Moronov, titubeando. — O que é que está

acontecendo?

Menfesis permanecia imóvel. Esquadrinhava o Chanceler dos Guardiões com

uma calma intransigente.

— Os Sacramentadores estão distantes do Conselho dos Guardiões, a ausência

de informações sobre o equilíbrio na magia do tempo é quase palpável. Por três

meses, um kraken se arremeteu contra os condados pacíficos de Aralyart e

simplesmente deixou o lugar em ruínas e nós não tivemos sequer uma predição

sobre a aproximação desta catástrofe. Não temos mais ciência sobre perturbações

na malha do tempo-espaço, nem sobre fenômenos da natureza há muitos meses e,

você com certeza deve saber, — Moronov aproximou-se mais do elfo, cheio de

dedos como se não soubesse a melhor forma de dizer suas próximas palavras —

boatos têm circulado nos confins de alguns reinos... sobre uma suposta... profecia

e...

— O Conselho dos Guardiões não tem que se meter em nossos assuntos —

proferiu Arturo Menfesis, o esgar austero e sereno imutável — Nossa magia está

muito além das eras e da pequenez de sua pífia inteligência. A sabedoria da

Sacramentação do tempo transcende os rasos conceitos e entendimentos que

tendes a respeito do tempo-espaço.

— Menfesis, não ouse...

— O seu discurso me enfada. — Menfesis interrompeu, sem alterar o timbre de

voz. — Nós não nos amoldaremos aos grilhões que os guardiões pretendem impor.

A Ordem dos Sacramentadores está acima de sua vã filosofia. Sabemos como

manter o equilíbrio e a harmonia do tempo.

150


Menfesis deu as costas para o guardião e deslizou calmamente pela estrada de

lajotas, retomando seu caminho em direção aos portões de entrada do castelo.

Moronov permaneceu estático onde estava, atarantado e sem reação.

151


Capítulo Onze

O Dilema do Rei

O clima não era nada agradável à mesa de jantar no Salão Real da Virtuosa

Candorn.

E, acreditem, seria fácil pôr a culpa no cardápio e dizer que ele não estava à altura

ou pelo clima abafado da noite candorniana que fazia todos suarem por baixo das

vestes elegantes. Contudo, naquela noite, o jantar estava impecável. Três leitões

assados em brasa e temperados com cerveja para tornar a carne ainda mais macia e

suculenta decoravam a elegante mesa de carvalho, exalando uma fragrância

arrebatadora de dar água na boca. A crosta crocante e de lamber os beiços, o

torresmo, fervilhava, soltando leves fumaças espiraladas em direção ao requintado

teto do salão. Não obstante, travessas recheadas de grão de bico cozido, manjericão

e tomilho e bandejas com salada de manga e alho tostado, e ainda pães frescos,

abacaxis grelhados, bolos de carne assada com bacon e carpas em postas ao molho

de laranja se espalhavam pela mesa. Ao redor do apetitoso jantar, assentados sobre

as cadeiras, os clãs dos Wullith, Campwell e Drunírio compareciam quase em

totalidade — os ausentes remeteram justificativas plausíveis e desfiaram exagerados

pedidos de desculpas. Ninguém sonhava perder um evento tão aguardado e quem

não estava presente era realmente pelo infortúnio de alguma força maior e

impeditiva.

O belo Salão Real coruscava em muitas luzes. Candelabros e lustres dourados

irradiavam o brilho incandescente de uma centena de velas. As cortinas de veludo

verde harmonizavam com as telas de linho prata que cobriam as janelas. As cores

da bandeira da Virtuosa Candorn se espalhavam por todo o recinto. O enorme

brasão com o Corcel Alado fora polido exaustivamente a tarde inteira para que

estivesse impecável à hora do jantar. Mordomos e copeiros reais estavam

devidamente alinhados e sorridentes nos extremos do salão, a postos e solícitos em

um evento importante, reunindo as famílias de guardiões do reino.

Um cenário preparado e impecável para uma festa que, infelizmente, não estava

acontecendo.

Não pensem vocês que era por acanhamento ou contrariedade em estar ali. Lady

Deelya colocara o mais belo vestido de seu armário e, ainda que seu aspecto

152


lembrasse o de uma palhaça mal arrumada, era notório que nem mesmo uma gripe

mortal faria com que ela perdesse esse jantar. Callina e Feizar denotavam um

fascínio descomedido com a quantidade de comida e arrazoavam vez ou outra

sobre o que seria a sobremesa após a refeição. Mastenion e Airis se somaram aos

demais visivelmente entusiasmados, trazendo os filhos a tiracolo (que não estavam

tão empolgados assim); Derrick, Betine e os filhos se espalhavam ao redor da mesa

com um sorriso de orelha a orelha. O maior dos problemas que perdurava era uma

discussão maçante e infindável, derrubando o clima de comemoração.

O grande homenageado da noite, sentado na ponta da mesa sobre a mais

suntuosa cadeira, ansiava por poder terminar a própria refeição e ir direto para

cama, para que aquele caos no Salão Real finalmente terminasse.

O estômago roncava, mas a vontade de comer passava longe de Saldivar.

O antigo Guardião de Elstoen tamborilava os dedos sobre a mesa e mexia os

talheres em seu pedaço de carne sem um pingo de animação. Brincava com o bife,

revirando-o de um lado a outro do prato, como uma criança entediada, de vez em

quando mastigando um pedaço de carne para acalmar a fome que lutava contra seu

desânimo. Lançava olhares contrariados para a cena a sua frente que se repetia,

interminável, com pequenos, quase imperceptíveis, momentos de trégua — em sua

maioria, quando Lady Deelya suplicava para que os sobrinhos sentassem e se

acalmassem ou quando Mastenion dava um ou outro berro mais forte: Vegor e

Rudi em pé, brandiam seus garfos como se fossem espadas, apontando um para o

outro, trovejando as diversas razões pelo qual mereciam ser o novo protetor do

continente.

— Você é que é um grande idiota — cuspia Rudi, exasperado. O indicador em

riste apontando para o irmão mais velho. — Nunca ligou para o futuro de Elstoen,

nunca se importou em se preparar para o retorno de nosso pai. Sua única

preocupação eram as festas, as prostitutas do porto e os tonéis de rum e cerveja das

tavernas e bordeis de Erthorgen.

— Meça essas suas palavras comigo, moleque mimado! — crocitou Vegor;

agitava um garfo como se sua vontade fosse voar por sobre a mesa e cravar o talher

no coração do irmão mais novo. — Você é um arrogante e exibido, que ignora

todas as leis de Candorn e ainda envergonha nosso pai na frente de todos nesse

salão...

— EU SALVEI A SUA VIDA, SEU INGRATO — berrou Rudi, cravando o

próprio garfo na mesa numa explosão de raiva. — AQUELE TROLL IA FAZER

PICADINHO DE VOCÊ!

— Ai, ai, ai, meninos. Por favor. — Lady Deelya levantou-se, tentando acalmar

os dois pela quinta vez.

153


— NOSSA CONSTITUIÇÃO É CLARA. — Vegor levantou a voz até o volume

dos gritos do irmão; nenhum dos dois prestava atenção nas súplicas da tia — O

PRÓXIMO NA SUCESSÃO DE CANDORN COMO GUARDIÃO SOU EU!

— Não me venha com papinho de constituição. Você nunca nem estudou nada

a respeito de nossas leis. Fica repetindo isso como um papagaio de pirata. Você é

um imbecil que...

— ... e eu não vou tolerar sua insubordinação como...

— ... a sua irresponsabilidade em não se preparar...

Os gritos desvairados dos dois reverberavam pelas paredes do salão. Os copeiros

observavam a cena com espanto, de olhos arregalados. Nos demais cômodos dos

andares superiores, as camareiras interrompiam a arrumação das mantas e lençóis

para poderem ouvir. Apuravam os ouvidos para a discussão no primeiro patamar.

Até quem estivesse passando pela Ágora do Princípio poderia escutar os gritos e

insultos de Vegor e Rudi. Mastenion, Airis e Lolleene colocaram-se de pé e fizeram

coro à Deelya em uma tentativa inútil de apaziguar os ânimos dos dois jovens pela

enésima vez.

Saldivar, no entanto, embarcara em um completo estupor.

Absorto, o olhar do rei vidrava na maçã vermelha e cozida abaixo do enorme

focinho assado do leitão à sua frente.

Os pensamentos? Esses estavam distantes dali.

O alarido do povo alvoroçado ecoava pelas ruas. Aglutinados aos montes,

aclamavam um acanhado Rudi, erguendo-o acima das cabeças e lançando-o para o

alto ao coro de vivas de uma forma irrefreável e ensandecida. A imagem era

estarrecedora. Nunca, em toda a carreira como Guardião, uma situação tão

inusitada quanto essa, ao ponto de deixá-lo sem ação, havia acontecido. Arrazoava

se o teste que dera ao filho mais velho fora assim tão difícil. O poder dos guardiões

sempre se destacou por sua grandiosidade. Pelo menos para alguém que tivesse um

mínimo de preparo e domínio sobre a própria magia. Mas a atuação de Vegor fora

desastrosa. Uma vergonha total. Um tiro que saiu pela culatra e que o deixava num

beco sem saída.

Saldivar acompanhava a imensa multidão carregando Rudi e o jogando para o

alto, como se ele acabasse de ser coroado o novo herói do continente. Fitas de

várias cores e papel picado esvoaçavam pelos ares eufóricos da principal praça da

cidade. Fogos de artifício ribombavam nos céus. As cores da bandeira do reino

chispavam de forma majestosa. O povo de Candorn e até os povos de outros reinos

pulsavam, alvoroçados porque o filho mais novo de Saldivar acabara de salvar a

pele de todos.

O rei estava perdido. Boquiaberto, não sabia o que dizer ou fazer.

154


Inclinando a cabeça para o chafariz, Saldivar recordava da imagem do filho mais

velho estirado dentro da fonte. Desacordado com a primeira investida do monstro,

a cabeça pendia para um lado e o corpo para outro. Sorte a dele que despertara

antes de um segundo golpe do troll e arrumou um abrigo distante do cenário da

batalha, nos jardins do palácio real. Ninguém mais ao redor parecia interessado em

saber como, ou onde, Vegor estava. Os olhos que não estavam embasbacados de

mais com o que viram, ou pululavam junto à multidão festeira ou vislumbravam a

multidão festeira de longe, desejando estar junto.

O rei virou a cabeça para o outro lado, ainda sem ação. Os olhos descrentes de

Saldivar encontraram as feições igualmente apalermadas de Mastenion, Hallzer e

Derrick. Descompassadamente, seus amigos de longa data olharam-no como se

questionassem o que diabos estava acontecendo. Não sabia se pela surpresa em

trazer um troll sem avisar a ninguém ou se pela reação inesperada do povo em atirar

Rudi pelos ares, celebrando sua bravura. Essa era, infelizmente, uma resposta difícil

de ser encontrada.

A um gesto de Saldivar, Mastenion e Hallzer assentiram e esgueiraram-se por

entre os demais guardiões no palanque, caminhando em direção aos jardins. Os

dois guardiões embrenharam-se pelos arbustos e encontraram Vegor caído no meio

do mato. Levantaram-no pelos braços e pernas com alguma dificuldade. Apesar do

corpo atlético, o filho mais velho do rei também era deveras pesado. Caminhando

atarantados, levaram discretamente o jovem para dentro do palácio. Derrick veio

logo depois, no encalço dos três. Com um pano, esforçava-se para manter a cena

em secreto. Não queria que ninguém percebesse o que faziam e como faziam. O

rei saiu de fininho, se aproveitando da histeria das multidões. Seguiu com cautela

para que ninguém notasse pela entrada das cozinhas do palácio. A ausência dos

quatro guardiões e de Vegor desmaiado não foi percebida. A festa para Rudi ainda

agitava a praça.

— O que foi que passou pela sua cabeça, pai?

Vegor repousava sobre uma pilha de travesseiros, sentado em sua própria cama.

Tinham-no colocado lá. A cabeça fora enfaixada. Um enorme galo, parecendo um

chifre cortado, surgira no cocuruto do rapaz e hematomas brotaram em pontos

distintos de seu rosto. Despertador por infusões potentes para que recobrasse os

sentidos, o filho mais velho de Saldivar acordou afinal, observando tudo ao seu

redor. Reclamou de uma forte dor de cabeça — e não tinha como ser diferente: se

vocês estivessem lá para ver como o soco do poderoso troll acertara o crânio do

rapaz, teriam imaginado que ele havia perdido a cabeça. Ofereceram-lhe um chá de

camomila para tranquilizá-lo e depois um para dores musculares. Bebericava muito

lentamente; contorcia os músculos da face para o sabor intragável da bebida e

reclamava de dores nas articulações e nos maxilares.

Uma pequena comitiva circundava o dossel da cama.

155


Curandeiros e serviçais seguravam caldeirões e canecas fumegantes.

Contemplavam o rapaz com redobrada atenção. Investigavam se não havia mais

calombos e hematomas espalhados pelo corpo em função da queda. Mastenion

cruzava e descruzava os braços ininterruptamente. Caminhava de um lado a outro

e balançava a cabeça, expressando uma curiosa e incontida contrariedade. Saldivar

questionava-se mentalmente se por sua própria atitude um tanto irresponsável de

soltar um troll em uma praça pública apinhada de gente ou pela incapacidade de

Vegor em derrotar um troll em uma praça pública apinhada de gente. Derrick, mais

próximo da cabeceira, observava o jovem com aflita curiosidade. A maior

preocupação era a saúde do sobrinho. Os olhos com seu esgar paterno denotavam

claramente a angústia carregada em função do estado do rapaz. De todos das

famílias de guardiões mais próximas de Saldivar, era ele quem possuía um maior

apreço por Vegor e Rudi, como se ambos também fossem seus filhos. Hallzer, ao

contrário, era o mais distante. Parado junto à porta, não queria que mais ninguém

perturbasse a paz momentânea daquela reunião extraordinária às ocultas.

O rei permanecia taciturno. Até aquele instante.

— Pela minha cabeça? — pronunciou o rei, embasbacado — Moleque

irresponsável! Durante vários ciclos, fui Guardião de Elstoen, passando a maior

parte do tempo longe de casa. Só lhe dei um único e maldito conselho: prepare-se.

E o que você faz? Se entrega às festas, glutonarias e bebedeiras? Você não consegue

abater um mísero troll das montanhas e quer jogar a culpa para cima de mim?

Vegor arregalou os olhos para o pai. O rosto machucado externava um misto de

assombro e furor. Mexia os lábios sem emitir som algum, buscando as palavras

certas para poder se defender.

— Mí-mísero? — Vegor queria poder se justificar, mas a voz vacilou em um

momento inapropriado. — Era um troll monstruoso. Ele quase me matou. O

senhor poderia ter perdido um filho esta tarde. Tem noção disto?

Saldivar avançou na direção do filho e agarrou uma de suas orelhas. Somando-se

às dores no corpo e na cabeça, Vegor uivou de dor com o beliscão forte. Derrick

se contorceu, tentando acalmar o rei, Mastenion e Hallzer se sobressaltaram. Os

demais ao redor emitiram um grunhido de espanto.

— Não venha com essas chantagens emocionais para cima de mim, Vegor! —

Saldivar bufava, torcendo a orelha do filho. — Lembre-se que eu sou seu pai. Eu

te conheço muito bem. Você falhou terrivelmente comigo, envergonhou o clã dos

Wullith e a mim e ainda me colocou em uma situação vexatória, quando tudo o que

eu ordenei foi se preparar para assumir meu lugar. Um alquimestre mal treinado

teria conseguido abater a criatura sem muito esforço. Agora, o povo aclama seu

irmão lá fora. O que eu vou fazer, hein? O que farei se meu filho mais velho é

inconsequente, irresponsável e fraco de mais para derrotar um mísero troll?

Alguém bateu na porta e Hallzer averigou por uma fresta.

156


Rudi forçou a entrada e irrompeu pelo portal, mesmo com Hallzer tentar impedir.

As roupas empapadas de suor, uma expressão arreganhada de felicidade estampava

seu rosto. Os olhos brilhavam de alegria contemplando o pai a um canto.

— Desgraçado! — crocitou Vegor e fez um esforço para se levantar da cama e

esganar o irmão, mas uma dor lancinante nas costelas o impediu de atacar e uivou,

aflito, despencando sobre os travesseiros.

— Rudi, talvez não seja o momento de...

— Pai, eu derrotei o troll. — Rudi interrompeu Mastenion, arreganhando ainda

mais o sorriso.

— Eu sei, meu filho — falou Saldivar, esfregando a testa, disfarçando a tensão e

caminhando em direção a Rudi. A situação seria diferente em outras circunstâncias.

Comemoraria alegremente com o caçula. Mas a crise que se instaurava no cômodo

impedia o rei de poder se alegrar com uma vitória tão espetacular do filho mais

novo.

— Veio aqui se gabar enquanto eu convalesço? — vociferou Vegor. O maxilar

latejava.

Rudi esquadrinhou o irmão debilitado sobre a cama e o ignorou. Observou

apreensivo a notória preocupação do pai. Contudo, se havia um momento para

dizer o que tinha de dizer, este era o momento e não poderia deixá-lo escapar. Era

a oportunidade de ouro da sua vida.

— Pai, eu mereço ser o Protetor de Elstoen — Rudi engrolou a sentença de uma

vez só, com a coragem que conseguiu reunir.

Hallzer, Derrick, Mastenion, os curandeiros e os empregados do palácio

seguraram a respiração. Olhos se arregalaram e queixos despencaram com a frase

do filho mais novo do rei. Não se tratava de um pedido ou de uma ponderação de

Saldivar, era uma afirmação contundente e categórica. Um silêncio mortificante e

constrangedor instaurou-se sobre o quarto em que os presentes se entreolhavam,

prendendo a respiração. Só o ruído do vento fustigando as janelas de madeiras

interrompia a quietude gritante do momento.

— Filho, eu...

— INSOLENTE! ABUSADO! COMO OUSA? VOCÊ QUER A FAMA E A

GLÓRIA, USURPANDO MEU CARGO POR DIREITO?

— EU LIVREI VOCÊ DA MORTE, SEU IDIOTA INGRATO!

— Me livrou? EU PODERIA TER ABATIDO AQUELE TROLL.

— Poderia se não estivesse DESMAIADO FEITO UMA MULA COM SEDE

DENTRO DA FONTE!

— EU VOU TE MATAR, SEU MOLEQUE DESGRAÇADO!

— TENTA A SORTE E...

— CHEGA.

Saldivar retumbou sobre o quarto e a gritaria dos filhos cessou.

157


Os olhares ao redor se voltaram para o rei, cuja veia no pescoço dilatava. A

impaciência dominava seu rosto, evidente pelas sobrancelhas arqueadas em uma

expressão ameaçadora e pelos lábios crispados. Isto, aliado à estafa pela exaustiva

viagem de Vervaz até Candorn, tendo de resolver um problema que ele mesmo

arranjara.

— Rudi, — A mão do rei repousou sobre o ombro do filho caçula, pensando na

melhor forma de responder ao que afirmara — eu não posso permitir que você

assuma como Guardião.

Uma risadinha emergiu do topo da cama e Saldivar fuzilou Vegor com os olhos.

— Você sabe que nossas leis são muito transparentes nesse sentido, meu filho.

Eu não posso ir contra elas. O primogênito da linha sucessória real é quem herda

este posto. A não ser que ele abdique desta...

— Nunca — crocitou Vegor, com os olhos comprimidos.

— Para tal, — Saldivar retomou sua fala como se não tivesse sido interrompido

— ele deve se PRE-PA-RAR. — E o rei fuzilou o filho mais velho com um olhar

autoritário. Vegor encarou o pai, assustado.

— Mas, pai, você sabe que...

— Rudi, basta. — Derrick abraçou o sobrinho, esfregando o braço esquerdo do

rapaz para que ele encerrasse a discussão.

— Quanto a você — Saldivar girou nos calcanhares, mirando Vegor. A voz mais

grave e contundente. — Trate de se preparar imediatamente. Não posso trair a

confiança dos reinos amigos. Minha missão é eleger um guardião capacitado e

dignamente preparado para proteger o continente, conforme nossos mais antigos

estatutos.

A realidade trouxe Saldivar à tona das memórias que tentava apagar para a

milésima vez em que ouvia os filhos discutindo pelo palácio. Derrick se metia no

meio da briga e abaixava o dedo em riste de Vegor com Lady Janesse esbravejando

com ambos, perdendo as estribeiras. Bills ria sem parar, assim como Kevan a um

canto da mesa. Lady Betine ralhava com os garotos que gargalhavam e tentava

também conter os ânimos dos sobrinhos brigões. Trawlin meneava a cabeça e

acenava para as filhas se apressarem e terminarem suas refeições para que pudessem

sair logo dali. Afastando a cadeira sem fazer barulho, o rei de Candorn saiu pela

tangente e deslizou até o pátio externo suplicando que ninguém tivesse reparado

sua ausência.

Uma leve brisa corria, mas a noite era abafada.

Caminhou até os jardins externos e contemplou a vastidão de pinheiros

mergulhados na escuridão da noite, iluminados por alguns postes de chamas

mágicas e pelo brilho da lua. O misto de distintos sons vespertinos era muito

audível, porém reconfortante, visto o inferno instaurado à mesa de jantar. Grilos e

158


cigarras cantavam alto, um corvo piava num tom agudo e desesperado e o farfalhar

das árvores se agitando de forma preguiçosa era como música para os ouvidos.

Saldivar caminhou até um dos cavalos repousando à beira do pátio e montou sobre

ele, seguindo pelo meio das árvores. O vento golpeava-lhe a face, trazendo algum

alento e uma paz, mesmo que momentânea. Torcia para que ninguém o tivesse

seguido e interrompesse a calmaria que o invadia. Queria ao menos uns minutos de

silêncio e tranquilidade, contemplando o céu tomado de estrelas cintilantes. Longe

de confusão, longe dos filhos, dos demais parentes, dos Campwell, dos Drunírio,

dos Wullith. O silêncio fora seu grande amigo por muitos ciclos. Nas missões mais

ardilosas de sua carreira, acostumou-se à quietude de savanas, aos vastos campos

abertos de Legur, às regiões desérticas de Nogaza, aos campos brancos do extremo-

Sul de Anvor-Elíada e às florestas densas de Sincar e Turvoreio. Breves momentos

de paz e conforto em meio ao caos que muitas vezes precisava enfrentar.

Questionava-se então se sua decisão perante o Conselho fora correta. Se era o

momento de passar o posto de Guardião. Recordava-se do momento em que esteve

diante dos conselheiros em Gradia, de Stanhorne, Zanotchka e Moronov, após um

longo período nas Montanhas Geladas de Gelor-Torine em sua última e árdua

missão: a de encontrar um velho amigo guardião, um dos maiores líderes que o

Círculo dos Cinco conheceu, perdido entre as traiçoeiras geleiras, mas sem obter

sucesso. Os vestígios da última incursão de Elliotr dos Bravior da Serena Snartria

haviam sido apagados pelas causticantes camadas de gelo. Não havia chance de seu

grande amigo ter sobrevivido ao frio extremo. As intensas nevascas que atingiam o

norte do continente nesse inverno tão rigoroso soterraram-no, assim com as

esperanças de encontrá-lo com vida. Mesmo para sua força e destreza, ele não teria

como sobreviver em um território tão hostil e traiçoeiro. O relatório foi anunciado,

diante das cadeiras vermelhas do anfiteatro circular do palacete do Conselho, e

então apresentou seu pedido de Sucessão Honrosa em um discurso de gratidão à

confiança pelos ciclos em que lhe foi confiada a segurança de Elstoen. Entendia

que este era o momento. O cansaço batia à porta e já não era mais o mesmo. O

vigor dos ciclos iniciais se esvaía, a dor da perda de um amigo do Círculo fora um

golpe inesperado que enterrou seus ânimos de uma vez. A decisão parecia coerente.

Entretanto, naquele instante, não estava tão certo.

— Refletindo ou querendo ficar longe da confusão lá dentro? — trovejou uma

voz grave que interrompeu de súbito os devaneios de Saldivar.

Perdido nos pensamentos e memórias, não notou que um segundo cavalo

percorria os campos dos jardins e emparelhou com sua montaria. Moreno e

robusto, longos cabelos negros repartidos ao meio que quase alcançavam os

ombros e um ar corriqueiro de soberba que Saldivar aprendeu a se habituar, mas

de coração nobre e justo, Mastenion juntou-se ao amigo, galopando ao seu lado

com um sorriso no rosto.

159


— Um pouco dos dois, velho amigo. — Saldivar sorriu, mas havia um quê de

cansaço em sua voz. Mastenion parecia ter captado a estafa do rei e balançou a

cabeça.

— Sei que deve estar exausto de sua última missão, da viagem, da longa jornada

até aqui... dessas brigas.

Os dois riram.

— Principalmente, dessas brigas... — falou Saldivar, virando-se para o amigo.

Mastenion era dono de uma notória expressão de presunção. Podia-se inferir a

seu respeito que se tratava de um homem arrogante e prepotente, do tipo que gosta

de se gabar e que se acha superior a todo mundo em um primeiro momento.

Quando mais jovem, sua altivez beirava o insuportável. Era quase impossível

manter uma conversa sadia sem que ele tentasse demonstrar o quanto era melhor

em tudo. Gabava-se a todo instante. Sempre era o mais habilidoso nos desportos,

o melhor no conhecimento cultural e histórico, o mais poderoso guardião, o

esgrimista mais talentoso. Não fosse o porte atlético e as belas feições, dificilmente

encontraria uma mulher que o aturasse. Sorte que sua esposa era um poço sem fim

de paciência e amabilidade. A experiência dos ciclos o moldou e, felizmente, para

melhor e da prepotência do passado, somente os trejeitos sobraram. O irmão do

meio de Derrick tornou-se um homem de bem, de bom coração e sempre disposto

a aconselhá-lo ou ajudá-lo de alguma forma. Nos longos períodos em que precisou

se ausentar de Candorn, foi a figura paterna que Vegor e Rudi precisaram na

infância, educando-os como a seus filhos. Teria sido um ótimo cunhado. Sâmia fora

a grande paixão de sua juventude, mas o infortúnio que a atingira mudou o destino

de todos drasticamente e Mastenion acabou casando-se com uma das irmãs de

August Moronov, Airis, uma mulher estonteante, que lhe deu três belos filhos.

— Eu não sei o que fazer, Mastenion — falou Saldivar, contorcendo o cenho.

Uma intensa preocupação e desgosto estampava sua face. — Achei que chegara o

momento de prosseguir à Sucessão. Estou velho, enfadado e farto de dias. Pensei

que ao pisar em Candorn para ficar de vez, encontraria um sucessor pronto, com

sede e disposição para encarar os desatinos dessa carreira espinhosa. Um jovem

adulto com vigor e destreza. Vejo que errei. Se ao menos minha esposa estivesse

viva, as coisas teriam sido diferentes.

— Saldivar, meu amigo, não arrogue para si esta culpa. Você não errou...

— Errei em acreditar que meu filho mais velho estava pronto. Vegor é um

inconsequente. A fascinação dele está nos prazeres da vida. O maior dos meus

temores na juventude está materializado em meu primogênito. Não há altruísmo

nele, nem dedicação, nem força, nem nada.

— Mas há em Rudi — inferiu uma terceira voz. Diferente de Mastenion, essa era

mansa e suave.

160


Um terceiro cavalo juntou-se aos demais, trotando a um lado do rei pelos jardins.

Callan Campwell seguia entre Saldivar e Mastenion.

Não era somente na voz que se notava a diferença entre Callan e Mastenion. Os

dois eram completamente diferentes. Callan não tinha o porte arrojado e nem era

tão alto, mas tinha músculos definidos por sua rotina exaustiva como militar. A pele

possuía um tom avermelhado por causa do sol, mas nunca morena. Os Campwell

eram brancos como leite. Os únicos que não se acostumavam ao clima árido de

Elstoen. A cútis esbranquiçada tornava-se levemente amarronzada pelos longos

períodos de intenso calor no verão. O tom queimado de sol desaparecia por

completo no inverno e dava lugar a uma palidez quase fantasmagórica. Ele também

não tinha longos cabelos. Curtos e ralos, eram suavemente castanhos. A calvície

avassaladora começava a atingi-lo. Algo típico em sua família. Mas, pelo que

Saldivar lembrava, achava que esta hereditariedade seria interrompida no amigo

general. Callan sustentava longos cabelos encaracolados na juventude, nos quais sua

mãe jamais permitiu que uma navalha tocasse. Diferente da pomposidade de

Mastenion, Callan era um homem reservado e taciturno. Um ardor profundo pelas

estratégias militares queimava em seu peito. Vibrava nos treinamentos dos exércitos

do reino e tornou-se um especialista no combate corpo a corpo. Ascender ao cargo

de general foi uma consequência natural. Mas havia uma coisa que tornava ambos

parecidos: Callan também fora apaixonado pela irmã mais nova de Saldivar. O que

corria entre os diversos boatos em Erthorgen e outros condados do reino era que

ele fora tão perdidamente encantado por Sâmia que jamais quis se envolver com

outra mulher desde que ela desapareceu sem deixar vestígios. Seguia solitário desde

então, sempre com ar desolado, ainda que dezenas de pretendentes de outras

famílias de guardiões se interessassem por ele. A tristeza que sentia pela paixão não

correspondida suplantava o desejo por outras mulheres e por outras paixões. Optou

por amar a guerra e dedicar-se aos anseios militares de seu reino.

— Callan, meu general. — Saldivar balançou a cabeça, mirando os olhos

carregados de uma tristeza crônica no amigo a sua frente. — Por mais que eu

quisesse e que estivesse balançado por isto, seria trair nossas próprias leis, nossos

costumes ancestrais.

— Leis podem ser revogadas, meu rei — disse Callan, lacônico. — Costumes

podem mudar. A exigência do Conselho é uma escolha sábia, por alguém que seja

realmente capaz e não por costumes ou leis. Enviar o mais poderoso guardião é a

prioridade.

— Meus amigos, — Saldivar estava visivelmente contrariado. A mente insistia

em repetir que o correto era seguir as antigas tradições, mas o coração vacilava.

Pendia para tomar uma decisão contrária e inédita, contudo tinha medo de trair as

tradições — o que faria sem o alento de vocês e o conforto que me traz a presença

de ambos. Porém, eu não sei como resolver esse impasse.

161


— Proponho um teste — falou Mastenion. — Não é de agora, nós sabemos, que

a situação em Poyares, Turvoreio e Anvor-Elíada é aterradora e que essa diplomacia

do Conselho, embora coerente com nossas Leis Primazes, cria um impasse e

aterroriza os reinos-irmãos de Elstoen. Os povos bárbaros saqueiam vilarejos

remotos, fincam suas bandeiras nas terras de nossos amigos e fazem escravos nos

confins do continente. Em Poyares, onde a situação está mais aterradora,

recebemos a informação de que os povos bárbaros acamparam nos arredores do

condado de Avaleon. É possível que façam uma investida de dominação. Lorde

Brenrar posicionou um pequeno exército sobre os campos de Baetrafid como

forma de intimidação. Mas se a ofensiva se confirmar, seus guerreiros estão prontos

para conter o inimigo do jeito que for necessário. Vamos enviar Vegor e Rudi, cada

um à frente de uma legião, apenas como um teste de liderança. Terão de comandar

tropas em suas rondas, fiscalizar territórios e nada mais. Aquele que melhor liderar,

segundo a opinião dos próprios soldados de Lorde Brenrar, provará para todo o

povo e para os reinos-irmãos que é merecedor de se tornar o novo Guardião de

Elstoen. Como o Conselho nos impede de obliterar os bárbaros invasores, até que

uma solução diplomática seja encontrada, vamos ao menos marcar presença no

único intuito de conter seu avanço.

162


Capítulo Doze

Uma Jornada Congelante

O suntuoso trono dourado de Gelor-Torine era uma obra magnífica.

De encher os olhos, os que o viam pela primeira vez ficavam arrebatados com a

beleza de tal artefato. Fabricado de ouro maciço e estofado em couro nobre de

dragão, cada detalhe fora meticulosamente pensado e trabalhado com esmero por

seus artífices. Cravejado de rubis que refletiam o brilho dourado de seus dois apoios

para o braço, era uma autêntica obra de arte daqueles que eram considerados os

maiores artistas de Eirin: os duendes pernitrulienses. Embora houvesse uma grande

parcela da população que considerava os elfos de Vaelfar melhores artesãos, uma

coisa era inegável até para os que torciam o nariz para as artes dos duendes —

geralmente, elfos com uma boa dose de inveja: o trono que ocupava o salão

opulento do palácio de Gelor-Torine era uma das mais belas esculturas produzidas

no mundo e carregava a essência da arte detalhista e inspiradora de Pernítrulis.

Infelizmente, e isso era um senso comum em toda Anlevor, era uma lástima tal

obra-prima tão esplendorosa ser utilizada para acomodar o traseiro gordo e abissal

de um dos reis mais preguiçosos e acovardados do continente.

Ao pé do belíssimo trono de ouro, Lorde Marvan meneava a cabeça com

aguerrido desgosto. Os cabelos negros e encaracolados mal saíam do lugar. O boato

recorrente no palácio era de que o rei de Gelor-Torine levantava antes do sol

acordar entre as geleiras e, antes mesmo de tomar seu farto café da manhã,

enfrentava uma longa sessão de cuidados com os cachos negros, aplicando um sebo

animal que impedia as madeixas de se desfazerem do penteado que tanto amava.

Dizia-se que era muito chato com esse ritual e que gostava de finalizar à sua

maneira: apertando dois cachinhos que pendiam de sua testa. Consequentemente,

com tanta gordura nos fios, não saíam do lugar nem se ele desse uma cambalhota.

O rosto rechonchudo comprimia os olhos. Negras e redondas, as irises lembravam

duas grandes jabuticabas. Escondendo parte de suas gorduras que sobejavam pelos

flancos, uma longa capa vermelha descansava sobre os ombros. Uma veia saltava

de uma das têmporas; Petr observava a pulsação frenética do rei, temendo que a

artéria se movendo no pescoço pulasse para fora. As orelhas minúsculas tornavamse

rubras, quase roxas. Lorde Marvan estava irritado.

163


— Eu não posso permitir isto, menino — falou o rei; a cabeça balançava incisiva

e com tamanha vontade que Petr temeu de o rei quebrar o pescoço. Os cabelos, no

entanto, não se moviam de forma alguma. — É suicídio! E sabe por quê? Vou lhe

dizer...

Petr não estava a fim de ouvir as razões idiotas do rei. Enfurnado em um pesado

casaco de pele de lobo e exausto de uma viagem de dois dias e duas noites

ininterruptas até a capital de Gelor-Torine, a única coisa que queria era encontrar

vestígios sobre o paradeiro de seu pai. O único pedido feito a ele era uma pequena

comitiva para acompanhá-lo. Dois, no máximo três, guerreiros que conhecessem

bem as Montanhas Geladas ao norte do reino. Por ele, teriam ido sozinhos, sem

pedir autorização ou comunicar a ninguém. Mas Chermont insistira que somente

os dois embarcarem em uma rota tão perigosa e desconhecida era arriscado demais;

era prudente pedir ajuda, refinar a relação com Lorde Marvan e que seu avô teria

agido assim, se estivesse vivo. Não era porque o avô morreu que precisava

complicar as coisas com o rei do Norte.

O rei de Gelor-Torine ralhava sem cessar. Desfiava as razões intermináveis em

um discurso enfadonho dos inúmeros motivos que embasavam o porquê de estar

certo sobre Petr estar errado. Mas o garoto viajava em seus pensamentos. Petr fitava

com curioso interesse o cenário a sua volta. Qualquer coisa era mais interessante

do que a voz nasalizada e ofegante do rei de Gelor-Torine, até mesmo o barulho

do vento uivando do lado de fora e fustigando os enormes janelões do castelo.

O salão do trono era amplo. O teto era profuso; tinha um formato peculiar e até

engraçado para quem olhava do ponto onde estava, como um cone abaulado. À

primeira vista, era exagerado; principalmente para um salão onde a única mobília

de destaque era um trono de ouro. Fazia sentido o que se dizia sobre Lorde Marvan

ser um nobre exótico, com um fanatismo inveterado pelo luxo e manias esdrúxulas

de grandeza: as paredes ao redor eram cobertas de grossas folhas de mogno com

muitos entalhes sinuosos e dourados, que lembravam tulipas de caules longos e

serpeantes. As cortinas pesadas sobre as janelas de tom azul-marinho contrastavam

bem com as variadas colunas de marfim disposta pelo recinto. A exuberante

decoração do salão fez Petr relembrar-se de imediato do Salão Principal do castelo

em Snartria. O rei de Gelor-Torine copiara cada detalhe, mas com modificações

sutis: tulipas no lugar de rosas, colunas âmbar em vez de douradas, entre outros

pormenores. Isso tudo aplicado a um exorbitante e exagerado aposento para abrigar

seu trono real.

Lorde Marvan, que ainda falava sem parar, era uma figura carimbada em Snartria,

muito conhecida de Petr. Durante algum tempo, fora muito aconselhado por seu

avô, Maximo. O garoto nunca teve real interesse em entender o porquê do rei de

Gelor-Torine hospedar-se por longos períodos no Palácio de Ônix. Questionavase

por que raios seu avô tinha tanta paciência com esse homem excêntrico e

164


medroso. Marvan era o filho rico e mimado do clã Nozrav, uma família de

alquimestres do gelo, bastante patéticos por sinal. Ignoraram as próprias habilidades

com a magia para dar lugar ao luxo, riqueza e o requinte de majestosos palácios. A

real nobreza, os interesses do povo e um governo marcado pela equidade, era

deixada de lado. Petr era muito novo, mas recordava-se das diversas vezes em que

vira um Marvan, ligeiramente mais magro e jovem, mas sempre com longos cabelos

negros encaracolados e sebentos, acompanhado do pai, um senhor atarracado e de

idade avançada, nariz bulboso, com uma risada trovejante, em longas e animadas

conversas com seu avô no palácio de Snartria.

Houve um período em que as visitas de Marvan passaram a ser mais frequentes.

Fora a época em que se lembrava dele mais abatido (e consequentemente bem mais

magro). Um tempo em que tudo que ele menos queria era ficar em Gelor-Torine:

o ciclo em que seu pai falecera. Maximo o acolheu neste período, aconselhando-o

com o carinho e a atenção de um pai. Nos dias atuais, Petr compreendia essa dor.

A dor da perda. A sensação de estar sozinho no mundo, mesmo rodeado de pessoas

era uma constante que se assomava em sua vida. Essa ausência, do pai e do avô, o

afligia de uma forma causticante.

Maximo fora o mentor de Marvan; o conselheiro de que precisava em momentos

tão difíceis. Quando Marvan regressou para Gelor-Torine, temeroso e assustado

com as responsabilidades que teria, nunca mais voltou. Assumira o trono em

definitivo, ainda que a ausência do pai machucasse seu coração.

Uma pintura peculiar e em uma posição de destaque a um canto interrompeu os

devaneios de Petr e ele se perguntava como não havia notado o quadro antes.

Circundado por uma colossal moldura dourada carregada de floreios, a imagem

ilustrava os reis e rainhas dos quatro reinos de Anlevor devidamente caracterizados

com suas mais luxuosas vestes reais, nas poses típicas dos retratos da nobreza. Lady

Marini, a esbelta rainha de Dothansa, apoiava as mãos sobre um cetro prata

drapejado de grandes safiras reluzentes. Os longos cabelos loiros, platinados,

pendiam para a frente de seu ombro esquerdo e cobriam parcialmente uma echarpe

dourada. Lorde Trev, o Lobo de Anlevor, a quem Petr ainda se questionava o

porquê de seu título, se pela personalidade forte ou pelos cabelos negros e revoltos

que mais pareciam os pelos de um lobo das montanhas, estava do lado oposto. O

petulante imperador de Aamiz parecia rugir para o público que observava o quadro;

segurava com vontade um grande tridente translúcido, ou o “Garfo Transparente”,

como seu avô costumava dizer. Maximo também estava na pintura. A aparência era

mais suave que a dos demais. Os cabelos e barba volumosos eram alvos como a

neve. A expressão era de paz, bem como Petr gostava de lembrar. Trajava seu

manto real e segurava uma espada, Fúria das Eras. A lâmina sinuosa de dois gumes

que fora um dos primeiros artefatos que combinava ouro com minérios mágicos.

Uma das primeiras forjas élficas de Vaelfar ofertada como um presente e símbolo

165


de gratidão aos guardiões. Uma lâmina que nunca perdeu seu fio. Mas o que fazia

Petr segurar o riso diante da bizarra pintura era a figura de Lorde Marvan. Retratado

bem ao centro da imagem, ligeiramente maior e destacado, o rei de Gelor-Torine

não parecia em nada com sua versão da vida real. O rosto era a única coisa mais

próxima da realidade. O cabelo encaracolado e reluzente descia em longos cachos

até os ombros. O rosto redondo e as bochechas colossais foram reduzidos

drasticamente e cobriam os dentes que rilhavam, numa expressão que tinha a

intenção de parecer ameaçadora. Mas o corpo, esse fora completamente alterado.

Os ombros eram largos, o peito e abdômen definidos com gomos cuidadosamente

detalhados, pernas torneadas e uma pose ridícula de salvador da pátria. Petr estava

prestes a soltar uma sonora gargalhada, mas uma frase de Lorde Marvan o fez voltar

à tona.

— ... dos poucos soldados que tenho. E você tem o quê? Dez, onze ciclos de

idade? É inexperiente e diria inconsequente por me fazer um pedido desses.

Qualquer ventinho gelado mais forte e você vira picolé nessas geleiras. Eu tinha

muito apreço por seu pai e ainda mais por seu avô. Mas, moleque, minha resposta

definitivamente é não.

— Talvez esse seja um bom momento para refrescar sua memória, Lorde Marvan

— falou Petr, uma nota de presunção na voz. — Meu avô foi Guardião em Anlevor,

na época em que seu pai era um jovem rei e você um reles espermatozoide no saco

do seu pai. Ele defendeu esse continente por muitos ciclos, livrando Gelor-Torine

de toda sorte de bestas e males que se possa imaginar. Espero que não se esqueça

dos saqueadores e anarquistas da Costa de Aerlan. Quando Sua Majestade perdeu

o pai, as portas de Snartria sempre estiveram abertas para que pudesse chorar as

suas tristezas. Não pense que por você me considerar um moleque, que eu não vou

me lembrar. Meu avô está morto e meu pai desapareceu nessas montanhas. Se há

um pingo de gratidão nesse seu coração altivo e soberbo, saia do seu poço de

arrogância e disponibilize três dos seus melhores guerreiros para me acompanhar

nessa busca, em nome de tudo o que deves ao Trono de Ônix.

Lorde Marvan migrou de uma contrariedade trivial para uma expressão

embasbacada. Assim como os soldados do reino ao redor e os conselheiros reais,

não sabia o que dizer. Até Chermont arregalava os olhos para a petulância e

coragem do garoto a seu lado.

Marvan e Petr se encararam por preguiçosos segundos. O garoto empinava o

nariz, mantendo a pose altiva, sem titubear. O rei de Gelor-Torine continuava

estarrecido.

— Ok — pronunciou Marvan, relutante. — Vou lhe conceder três dos meus

melhores guerreiros. Única e exclusivamente pelo apreço à memória de seu nobre

avô, meu padrinho. Os torineanos de todas as partes devem suas vidas e o que têm

para o que seu avô fez por essas terras enquanto vivo. Mas eu lhe digo, menino

166


insolente, na menor sombra de perigo nessa jornada, eles terão a minha total

permissão para fugirem. Não perderei mais ninguém para o que quer que haja

naquelas geleiras ardilosas.

Petr inclinou-se num gesto de reverência. O braço esquerdo apoiou-se sobre um

dos joelhos flexionados e o punho direito fechado deu três pequenas batidas contra

o peito.

— Juro pela minha própria vida que nada acontecerá a seus soldados e os trarei

de volta em segurança.

O estábulo real não era exatamente como Petr imaginara.

Caminhando lentamente pela área externa do castelo, o garoto devaneava com o

que encontraria quando chegasse lá. Pelos delírios de grandeza de Lorde Marvan,

imaginava se deparar com um vasto campo aberto, repleto de uma centena de

galerias de madeira onde estariam os cavalos e grifos, carruagens reais e outras

montarias esdrúxulas de variados tamanhos conforme o gosto do vaidoso rei.

Pensou que haveria uma pista para os animais circularem, um abastado nicho de

rações e feno e não menos do que uma dezena de criados tomando conta das

montarias de Sua Majestade. Ao contrário disso, deparou-se com um pequeno

espaço semicircular com algumas baias minúsculas para alguns animais repousarem.

Uma carruagem modesta estacionada a um canto. E, ainda que esquadrinhasse o

perímetro, não encontrou um único cocheiro ou empregado trabalhando por ali.

Com um rei acostumado ao requinte do palácio e ao conforto de seus aposentos,

fora um ledo engano achar que encontraria uma estrebaria de grande porte.

— Este é o estábulo real? — perguntou Chermont, cético. Parecia lhe ocorrer o

mesmo pensamento que Petr.

— Por quê? — indagou um dos guerreiros, com curiosidade — Não parece um

estábulo?

O olhar de desdém de Chermont para o lugar e outra vez para o soldado

respondia à pergunta.

A pequena comitiva se aproximava das montarias. Petr e Chermont seguiam a

frente do grupo. Os outros três soldados cedidos por Lorde Marvan caminhavam

taciturnos e descontentes logo atrás. O mais alto deles, Bursel, era um sujeito

parrudo, mas com um esgar irritantemente medroso. Abaixo do bigodão grisalho

que fazia curva nos cantos da boca, os lábios não paravam de reclamar um minuto

sequer, desde o instante em que Marvan explicou a tarefa para eles, amaldiçoando

Petr e Chermont a todo momento por aquela missão suicida. O outro, Cartem, era

atarracado e roliço, com uma presunção no olhar que dava nos nervos. Tudo ele

sabia, em tudo era o melhor e passou grande parte do caminho entre o salão do

trono até ali cantando aos quatro cantos o quanto a ideia de ir até as geleiras era

uma loucura e que o rei perdera a sanidade em aceitar colaborar com Petr. Por fim,

167


Turti, o escudeiro, esgalgado e com trejeitos ébrios e desleixados. Caminhava sem

falar uma única palavra, mas ria sem parar das canções enfadonhas de Cartem. As

espadas e escudos do trio também sobraram para ele carregar.

— Ok. — Petr apressou-se, esgotado das lamúrias de sua pífia comitiva. Parou e

encarou os três soldados logo atrás. — Eu sei que isto parece uma missão suicida

e...

— Parece? — Cartem interrompeu, debochado. Bursel soltou uma risadinha

abafada, mas Turti se escangalhou de rir.

O garoto fechou a cara; Chermont enfezou-se com os guerreiros de Gelor-

Torine.

— Eu não vim até aqui para colocar as vidas de vocês em risco. — Petr retomou

o discurso, a voz mais grave do que o habitual. — Mas eu perdi meu pai nessas

geleiras. Um sentimento queima no fundo do meu coração e insiste que ele está lá,

em algum lugar, aguardando que alguém o encontre. Em nome da honra do nome

dele e dos Bravior da Serena Snartria, eu preciso encontrá-lo ou ao menos entender

o que foi que aconteceu.

— Olha, menino, eu vou dizer o que aconteceu — falou Bursel, avançando em

direção a Petr. Chermont emparelhou com o garoto, encarando o soldado.

O guerreiro hesitou, observando os dois.

— Eu entendo a dor da sua perda — falou Bursel, franzindo o lábio para a cara

amarrada de Chermont. — Nós todos perdemos alguém importante nessas

montanhas. Veja o Cartem aqui. O pai dele era meu compadre e também morreu

numa nevasca. Uma avalanche o soterrou, para ser mais preciso. O inverno em

Gelor-Torine é mais cruel do que uma guerra e apavora até mesmo os homens mais

experientes. Essas geleiras são traiçoeiras.

— Eu diria que são malditas! — inferiu Cartem, cuspindo no chão em seguida.

— Eu concordo com o Cartem. — Bursel prosseguiu: — Nós sempre evitamos

chegar perto de mais das Montanhas Congeladas por todas as histórias sinistras que

já passamos ou conhecemos. Eu me lembro do seu pai. Ele investigava alguma

coisa aqui em Gelor-Torine havia semanas, mas nunca dizia o quê. Fazia um

mistério danado. Nem nosso rei sabia o que era. Na última vez em que uma

comitiva o acompanhou, um quarto de nossos soldados não retornou, inclusive ele.

Alguns camponeses e outros concidadãos do reino optaram por fugir, receosos e

temerosos com os relatos que ouviram. Se quer um conselho, chore a morte de seu

pai o quanto quiser, faça uma estátua dele lá nas suas terras e o homenageie todos

os dias. Cria um feriado para ele. Mas, por tudo que há de mais sagrado, não se

aproxime daquele lugar. Desista dessa ideia, garoto. Essas montanhas são

amaldiçoadas.

— Por tudo o que Elliotr fez por nós, Bursel, você não deveria estar arrumando

desculpa. Ou será que já esqueceu de quantas vezes ele salvou sua vida?

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Uma voz rouca e cansada ecoou no estábulo atraindo a atenção de todos. Petr

sobressaltou-se, pois não havia visto ninguém entre as montarias e carruagens.

Caminhando até onde o grupo conversava, um homem de barba grisalha e

desalinhada, enfurnado em um pesado casaco de pele de urso surgiu. Longos dreds

cinzentos se prolongavam do topo da cabeça até a cintura; minúsculas esferas

prateadas estavam amarradas sobre eles, balançando a cada passo pesaroso na

direção da pequena comitiva. Vinha brandindo um cajado negro de madeira com

uma espécie de esfera translúcida na ponta. Não apoiava o peso do corpo sobre o

objeto, marcando a neve com delicadeza ao avançar até eles. Lembrava um monarca

caminhando com seu cetro e não um velho debilitado sustentando-se em sua

bengala. A pele negra parecia possuir um brilho próprio e algumas poucas rugas

eram marcantes sobre as laterais dos olhos e na testa. As bochechas exibiam

pequenas manchas, que eram estranhamente azuladas.

— Conrod, lá vem esse velho de novo... — sussurrou Cartem, com desdém.

— Meu jovem, sou Conrod Baash e cuido deste estábulo.

O velho fez uma longa reverência a Petr e estendeu a mão para cumprimentá-lo.

O garoto o cumprimentou e, por sua vez, mirou do velho e depois para o estábulo

e novamente para o velho; realmente não tinha notado a presença dele ali.

— Você conheceu meu pai?

— Sim, milorde. Não apenas o conheci, como tive o enorme prazer de ser

aconselhado por ele durante o tempo em que esteve por essas terras. Espero que

compreenda que não pude deixar de ouvir a conversa e que perdoes minha

intromissão. Ao contrário destes covardes, que se auto intitulam guerreiros, digo

que o senhor tem todo o meu apoio em querer buscar respostas sobre o paradeiro

de seu pai. E, claro, se o senhor não se importar, gostaria de acompanhá-lo nesta

jornada. Estou em Gelor-Torine há alguns ciclos. Não muitos, eu sei. Bursel e

Cartem são naturais dessas terras insólitas. Mas, assim como o senhor e seu pai,

também sou bastante curioso. Conheço todos os caminhos para ir e vir às

Montanhas Congeladas, seja pelas estradas nevadas ou pelas densas florestas de

pinheiros. Posso lhe ser muito útil nesta empreitada.

Petr sorriu para o velho e assentiu. Havia uma confiança nele que não existia nos

demais. Olhando os soldados logo atrás, questionava se precisava realmente dos

três covardes enviados por Marvan.

Cavalgando sobre o lombo de um artiro branco, a espécie nativa de ursos brancos

montáveis do extremo norte de Anlevor, muito usada para expedições aos lugares

mais remotos e congelados do continente por sua habilidade de percorrer longas

distâncias sobre volumosas camadas de neve, Petr apertava ainda mais as cordas de

seu pesado capuz felpudo. O frio atroador refletido através do intenso vento gélido

golpeava-lhe a face como se minúsculos cacos de vidro perfurassem cada

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centímetro do que sobrara de seu rosto para fora do casaco. Vez ou outra, enfiava

a mão numa aljava a tiracolo e bebericava de um cantil. Conrod preparara para eles

uma mistura de rum e ginseng fumegante. Afirmara que isso os manteria aquecidos

e revigorados quando o frio se tornasse mais intenso e tonitruante próximos de seu

destino. A bebida era forte e o garoto estremecia a cada golada, mas o velho tinha

razão: sentia-se renovado ante os desatinos da viagem.

Correndo velozes pelas florestas de pinheiros congelados, os seis artiros viajavam

em fila única. As enormes patas dos animais afundavam sobre o manto intenso de

neve esbranquiçada e deixavam um rastro das marcas de dedos dos ursos ao longo

do caminho.

Há muito haviam deixado para trás os resquícios das nuances de um verde pálido

dos campos e colinas de Ental, a capital do reino. Pincelado apenas por uma tenra

geada que criava uma espécie de espelho gelado em pontos isolados, os picos e

vales de Gelor-Torine transitavam para um inóspito deserto branco de pinheiros

cinzentos, profundas camadas de gelo fofo e uma aturada cerração cinzaesbranquiçada

que atrapalhava a visão do caminho a frente.

Liderando a comitiva, o velho Conrod seguia obstinado. Na mão direita em riste,

uma tocha iluminava o caminho, ainda que os fortes ventos fustigassem a chama,

tentando apagá-la. A mão esquerda continuava arraigada ao cajado negro, sem

largar as rédeas da montaria. Mesmo em meio à densa neblina que por vezes

impedia Petr de entender a estrada a frente, o homem de longos dreds demonstrava

conhecer muito bem o caminho para o lugar onde viram Elliotr pela última vez.

Confiando no sábio cuidador do estábulo real, agarrando-se com força às rédeas e

ao pelo felpudo de seu artiro, as lembranças dos últimos acontecimentos em

Snartria emergiram com ímpeto à sua mente.

Após o enterro do avô, Petr ainda se sentia perdido. De um lado, a pressão do

Conselho dos Guardiões para suceder seu pai em honra, Elliotr; de outro, a

insistência do conselho real de Snartria em ascender ao trono, que unira o apoio de

lideranças militares e comerciantes dos condados; tudo na esperança de obliterar as

chances de sua avó, Asturias, tornar-se a soberana do reino. No fundo de seu

coração, ele sabia o que queria. Mas isto era apenas parte de uma difícil decisão.

Não poderia simplesmente assumir o posto que tanto desejava e fechar os olhos

para o outro. Precisava de alguém leal. Um homem honesto, íntegro e que não

trairia sua confiança em um momento tão conturbado.

Num dia bem cedo, antes que os primeiros raios solares invadissem as janelas do

palácio e despertassem a todos para mais um dia que ia nascendo, Petr esgueirouse

de fininho pelos corredores do castelo e encarrapitou-se sobre o dorso de um

grifo e alçou voo. Tomou todo cuidado possível para que ninguém o visse em sua

viagem secreta. Deixou uma carta sobre a mesa de jantar. Não queria informar seu

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paradeiro para evitar perguntas desnecessárias de sua avó. A mensagem era

subjetiva. Dizia sem especificar que estava indo visitar alguns distritos, o que não

deixava de ser verdade. Só não queria revelar seu real destino. E, como a viagem

levaria mais do que um dia, ao menos sua avó, Chermont e os demais conselheiros

do reino não ficariam preocupados achando que ele havia sido sequestrado,

desaparecido ou coisa parecida.

Lá pelo fim da tarde, depois de sobrevoar boa parte dos condados de Snartria e

vislumbrar as densas florestas, as cadeias de montanhas, belas cachoeiras, amplos

vales e todas as belezas naturais que o reino possuía, Petr decidiu que era hora de

descansar quando vislumbrou o pôr do sol no horizonte. Acariciando o dorso de

sua montaria, o poderoso grifo descreveu longos círculos no ar até finalmente

pousar em uma gruta na maior montanha de Snartria. O garoto acendeu uma

fogueira e assou alguns esquilos que carregava na aljava. Repousando próximo às

chamas, o animal devorou a carne suculenta em segundos e logo adormeceu,

cansado da viagem. Petr comeu uns pedaços de charque com lentilhas cozidas e

bebeu um suco de manga que trouxera. Com dores nas pernas e nos dedos

retesados, dormiu tão rápido quanto o grifo ao seu lado.

Na manhã seguinte, alçaram voo ao nascer do sol e, depois de atravessarem os

demais condados, finalmente chegaram à Graenham, o longínquo distrito onde se

encontraria com uma pessoa especial. Escolhera o melhor meio de transporte para

esse encontro às escondidas. Os grifos-de-cauda-escarlate eram a espécie mais

indicada para uma viagem rápida e razoavelmente estável. As longas asas douradas

eram o dobro do tamanho da dos grifos-aprumados e quase três vezes a dos

hipogrifos, o que lhes dava muito mais velocidade para rasgar os céus em seus voos

e diminuir o tempo nos trajetos. Rodopiando em círculos, quando o grifo se

preparava para pousar, vislumbrou o mar de telhados oblíquos e as centenas de

pontos luminescentes das lamparinas que se acendiam depressa em função do

ocaso. A um extremo, as Águas Solídiras eram banhadas pelo brilho bruxuleante

do sol poente em mais um dia que se encerrava.

O garoto nunca compreendeu as razões que motivaram o primo a ir morar em

um lugar tão distante e ainda mais para viver como um fazendeiro. Graenham era

no extremo oposto de Snartria, longe da corte e dos demais Bravior, Wallensig e

Zanotchka, que optaram por fixar suas residências nos distritos mais próximos do

Palácio de Ônix. Mas tinha lá suas belezas. O condado era um grande balneário,

banhado pelas Águas Solídiras, com uma extensa cordilheira que fazia fronteira

com o reino de Aamiz. Era um reduto de habilidosos e dedicados pescadores que

possuíam negócios sólidos com os mercadores do reino vizinho. Havia também

algumas plantações de milho, trigo e cevada e três forjas simples que abasteciam

tanto a marinha de Snartria quanto a do rei Trev. Há muito não se ouvia dizer de

problemas com piratas ou bárbaros e tampouco com ataques de monstros nas

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redondezas. Com isso fazia jus ao título do reino, sendo um dos lugares mais

serenos e pacatos de Anlevor.

A penumbra intensa dos últimos raios solares dominava os campos de milho da

fazenda. Sobre o topo dos postes ao longo do caminho, a chama dos archotes

iluminava pontualmente a sinuosa trilha de terra fofa que desembocava num

modesto palacete âmbar. Petr desceu de cima do grifo e afagou sua cabeça. Tirou

três coelhos remanescentes que carregava na bolsa a tiracolo e deu ao animal. Fora

uma longa viagem, merecia a recompensa. Deixou-o repousando na entrada da

fazenda e seguiu trilha a dentro.

Acendendo uma pequena chama na palma da mão para iluminar seu caminho,

inspirava profundamente os odores reconfortantes das plantações ao redor. O que

mais gostava em Graenham era a calmaria, a sensação de paz, a tranquilidade que

não existia mais na capital. Talvez era esta a razão pela qual seu primo preferia

morar tão distante do palácio real. Os sons mais audíveis não eram os gritos de uma

velha tresloucada com seus súditos, ou discussões intermináveis sobre leis e

tradições reais, mas dos grilos e cigarras a cantar, uma ave ou outra que passava

piando, as rebentações do mar ao longe. Viver distante de todo o caos da família

real não parecia tão ruim assim.

Às portas do palacete, Petr o avistou. Roben Louis Zanotchka III era seu nome.

Os ombros largos, peito estufado e cabelos ruivos sempre bem aparados em seu

costumeiro corte militar, vinha caminhando com um sorriso no rosto. Era filho

único da irmã de seu avô, Eilene Bravior e de Roben Louis Zanotchka II, o irmão

de seu avô materno, Hamm. Desde que se lembrava, Roben sempre foi um homem

de guerra. Era fascinado por estratégias de batalha, táticas de guerra e pelos

treinamentos militares dos exércitos reais. Fora criado junto com Elliotr nesse meio,

sempre disputando quem era o mais forte, o mais rápido ou o mais esperto. Quando

o primo e amigo de infância tornou-se Guardião, Roben foi condecorado general.

Nos últimos cinco ciclos, porém, afastou-se da família real e do convívio com seus

parentes. Especulava-se que perdera aquela paixão fervorosa pela guerra desde que

Elliotr, o irmão que nunca teve, tornara-se uma figura rara em Snartria. Abdicou

do cargo, casou-se com Zaira, a bela prima rejeitada dos Wallensig e isolou-se de

vez em Graenham.

O sorriso de Roben era acolhedor.

Petr sorriu de volta para o primo parado a poucos metros da singela escadaria de

acesso ao casarão. Das poucas vezes em que o vira na capital, a sensação era a

mesma; era como estar diante de seu pai. Roben tinha todo aquele jeitão austero de

um militar: postura rígida e voz grave, como se estivesse sempre pronto para dar

uma ordem. O coração, no entanto, era puro e o olhar, dócil e carinhoso.

Entrementes, Petr tinha a impressão de estar diante de uma fusão de Maximo e

Elliotr, mas com as feições de seu avô ausente, Hamm Zanotchka.

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— Recebeu minha carta?

— Como não teria recebido? — falou Roben, em tom afável — Eu só me

perguntava como você escaparia das garras daquela velha megera para vir até aqui.

Petr desembestou a rir.

Na sala de jantar, a mesa estava posta. Zaira e o pequeno Robbes, o filho do casal,

assim como Roben e Petr, sentaram-se à mesa para comer. Tiveram uma conversa

agradável enquanto jantavam, colocando os assuntos em dia e relembrando

momentos engraçados do passado. Ainda que a morte de Maximo e o sumiço

inexplicável de Eliotr fossem recentes, Roben preferia comentar sobre a infância

ao lado do pai de Petr, arrancando boas risadas de todos à mesa sobre as peripécias

que ambos aprontavam juntos. Contou como o primo se apaixonou por Hanna e

como ele mesmo fora o pivô do relacionamento dos dois. As partes tristes da

história, como a morte prematura da mãe de Petr, Roben optava por não relembrar.

Fora uma noite muito alegre, que Petr não tinha havia dias.

A lua cheia atingiu seu ponto máximo sobre um céu azul e sem nuvens. Era tarde

da noite e Zaira colocou Robbes para dormir. Petr e Roben ficaram a sós na

penumbra da sala de estar. Ao pé da lareira, os dois curtiam o silêncio sentados nas

poltronas. Bebericavam de canecas com chá de erva-doce fumegante enquanto

observavam as brasas estalando. A luz fraca das chamas irradiando para a sala de

estar tornava o cenário sonolento e melancólico. O cansaço se apoderava de Petr e

os olhos iam ficando pesados. A mente, no entanto, insistia em tentar mantê-lo

acordado. Martelava em sua cabeça o que precisava dizer ao primo, o maior

problema era como começaria a falar o que tinha de falar.

— Petr, nós podemos ficar ao pé dessa lareira o resto da madrugada enquanto

você briga contra o sono ou você pode me dizer o que o aflige, que com certeza

está ligado ao motivo de você estar aqui.

Petr despertou de súbito e sentiu a sonolência o abandonando de vez. Era como

se Roben fosse capaz de ler seus pensamentos.

— Digamos que eu preciso tomar uma decisão difícil e eu não sei como.

Roben encarou o garoto. Empertigou-se sobre o assento, apoiando um dos

braços na perna direita. Os ouvidos e olhos apurados. Balançou a cabeça como se

o dissesse para prosseguir com o que queria dizer.

— Snartria precisa de um novo rei e Anlevor de um Guardião. Os conselheiros

do reino me pressionam todos os dias para que eu assuma logo o trono e evite um

caos generalizado com...

— Asturias ascendendo ao trono — completou Roben, levando a mão ao rosto

e deixando a estafa escapar pela boca. Bebericou do chá e balançou a cabeça,

revelando um sorriso contrariado.

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— Exato — balbuciou Petr, relembrando o quanto sua avó o sufocava por essa

decisão. Ela o instigava a aceitar o cargo de Guardião e insistia que ela merecia ser

a soberana do reino. Fazia isso aos gritos e berros pelo palácio.

— Aquela velha maldita — inferiu Roben, olhando para o teto. — Sei que é sua

avó, mas, sinceramente, não sei porque meu tio foi se meter com aquela bruxa

Wallensig. Meu pai sempre o alertou. Nunca fui com a cara dela e muito menos

com o crápula do Wayne.

— Ela enlouqueceu depois da morte do meu avô...

— Não, Petr. — A expressão de Roben tornava-se soturna. — Ela sempre foi

uma megera. Você é muito novo para entender, mas eu lhe afirmo: nunca confie

nela. Sei que é sua avó e tal, mas...

— Eu não confio, primo — disse Petr, apoiando a caneca sobre uma mesinha de

madeira.

Roben bebericou da própria caneca outra vez. O crepitar das chamas estalando

nas brasas pressionou os ouvidos de ambos.

— Se você não confia, assuma logo o trono. Evite que uma era de trevas domine

Snartria.

— Eu não posso, Roben — falou Petr, consternado — O Conselho dos

Guardiões me chamou. Stanhorne quer que eu assuma o posto que fora do meu

pai. Mas o reino precisa de alguém da minha confiança tomando as decisões, alguém

que não vai impor um regime totalitário. Pressinto um perigo maior sobre Anlevor

que exige minha dedicação e...

— Não há perigo maior do que Asturias no trono de Snartria, Petr.

— ...é por isso que quero que você assuma o trono!

Petr engrolou a última frase com a coragem que reuniu para falar e os olhos de

Roben se arregalaram e o queixo despencou assim que o garoto terminou sua

sentença. O silêncio novamente se instaurou e perdurou por longos segundos

enquanto ambos se encaravam, petrificados: Petr prendia a respiração, pensando

que não fora bem assim que imaginara esse momento. Roben ainda absorvia um

convite tão inesperado.

— Petr, sinto-me lisonjeado e infinitamente honrado por este reconhecimento,

por achar que sou confiável o suficiente para assumir o trono de Snartria. Mesmo

não sendo tão próximos quanto deveríamos, eu agradeço. Mas eu não posso

assumir o reino.

As palavras do primo acertaram Petr como um soco na boca do estômago. A

sensação de impotência o consumia outra vez. Um vazio interior que liquidava sua

esperança.

— Eu sou um homem de guerra, Petr — continuou Roben, sorrindo encabulado.

— Não nasci para a vida na corte. Não me habituei ao que essa vida exige e, para

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falar a verdade, tenho aversão a isso. Nasci para o confronto, os duelos de espada,

os campos de batalha. É por isto que meu coração pulsa.

— Mas você não é mais general — balbuciou Petr, contrariado — Você abdicou

dessa vida...

— Abdiquei de viver essa vida na capital. Sei que você deve ter ouvido muita

coisa a meu respeito quando deixei o posto de general. Contudo, há muito mais do

que você imagina por trás da minha motivação, àquela época. O que mais desejo

hoje é ficar longe do palácio, da capital e da ganância que permeia o clã dos

Wallensig, Bravior e Zanotchka. Além do que, assumi recentemente o comando

dos batalhões portuários de Graenham. O pelotão não é grande e os soldados são

inexperientes, carecem da minha ajuda e de treinamento.

Petr esmoreceu.

O olhar estava fixo no interior da caneca. O chá esfriara, bem como suas

esperanças se esvaíram. Mais uma vez, sentia-se perdido e sozinho. Ao lado do

primo, Roben não sabia o que dizer. Aproximou-se do garoto, passou o braço ao

redor dos ombros e sacudiu seu braço esquerdo.

— Eu sinto muito, Petr. Sinto por tê-lo decepcionado. Imagino que sua vontade

era sair daqui com um novo rei para Snartria. Mas sinto lhe dizer que este novo rei

não serei eu.

— Não há mais ninguém em quem eu confie, primo — falou Petr, a voz num

tom embargado. — Estou sozinho nesse mundo.

— Petr, você nunca estará só. Você tem o sangue de seu pai, um exímio guerreiro

e de sua mãe, uma valente guardiã. Ascender ao Círculo dos Cinco foi uma decisão

acertada. Não há ninguém mais forte e merecedor em toda Anlevor do que você.

Mas, quanto ao trono, eu não sou o indicado. Não nasci para isso. Contudo,

acredito que a Serena Snartria não trairá suas esperanças. Ao retornar amanhã ao

Palácio de Ônix, tenho certeza de que um nome de confiança surgirá para você.

Petr abriu um meio sorriso, desapontado. Numa tentativa de animar o primo,

Roben recorreu à outras histórias de traquinagens que aprontava junto com o pai

de Petr quando ambos tinham a idade dele. Ainda que arrancasse boas risadas, nem

mesmo esses contos fizeram o resto de noite do garoto ficar melhor.

O Salão Real do Palácio de Ônix estava mergulhado em um silêncio mortificante

quando regressou à capital. A hora do jantar costumava ser um evento intenso e

animado nos dias de glória. Ainda que não fossem datas comemorativas, vocês

ficariam impressionados com o incrível número de pessoas que a extensa mesa do

Salão comportava para o jantar real. À época dos Festivais de Verão, o castelo ficava

apinhado de gente. Os Bravior, Wallensig e Zanotchka, o conselho real, além de

amigos e outros convidados. Eram centenas de perus, javalis e carneiros assados,

toneladas de saladas de batata com alho poró, uma infinidade de tortas e pudins e

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tonéis de vinho e rum. Risos e conversas a fio enchiam os ares do palácio, a

orquestra entoava suas músicas e o baile real pontuava as festas no Salão Principal.

Mesmo com a mesa recheada de comida, naquela noite não havia festa e nem

convidados. Das sessenta cadeiras dispostas, somente duas estavam ocupadas: Petr

em uma ponta da mesa e Asturias no extremo oposto. Chermont e outros

empregados do palácio estavam alinhados ao redor. Observavam, incomodados, à

margem da mesa, neto e avó jantarem em um incômodo silêncio.

— E então — falou Asturias, displicente. A voz esganiçada e irritadiça reverberou

pelo recinto, interrompendo a quietude mórbida. Não tirava os olhos de sua

refeição como se falasse consigo mesma. — Não vai me dizer onde esteve? Porque

você esteve ausente do palácio por quatro dias inteiros...

Longos segundos de silêncio perduraram. Chermont esquadrinhava, temeroso,

da expressão impaciente de Asturias para o esgar presunçoso de Petr.

— Ah, estava por aí... — respondeu Petr; não moveu um milímetro de seu rosto

na direção da avó.

— Por aí... — Asturias crispou os lábios e soltou um muxoxo.

Silêncio, outra vez. O tilintar dos garfos e facas nunca fora tão ensurdecedor

naquele salão.

— E como está seu primo Roben? — soltou Asturias, sempre com os olhos fixos

na refeição. — Graenham é tão distante que nem sempre podemos visitá-lo e viajar

nas costas de um grifo é demasiado cansativo, não acha?

Petr sentiu o coração palpitar. Alguém o havia traído. Tinha tanta certeza de que

fora cuidadoso o suficiente ao ponto de não levantar suspeitas. Bem que Roben o

havia avisado. Ao romper da manhã, quando trepou sobre o dorso do grifo para

retornar ao palácio, o primo o alertou para ser prudente na capital e ter muita

cautela. Nem todo mundo era digno de confiança; se Asturias queria o trono, ela

tentaria de tudo para manipular o garoto, até mesmo colocar um espião em sua

cola. A vontade de se tornar a soberana de Snartria e colocar em prática suas

maiores loucuras era tanta que por vezes acreditava que ela até seria capaz de matálo

para chegar ao poder.

Chermont e Petr se entreolharam rapidamente. O mordomo do castelo

estampava uma expressão desesperada no rosto, balançando a cabeça como se

insistisse em justificar que não fora ele quem denunciara por onde o garoto andou.

— Roben está ótimo. Nunca o vi melhor, para falar a verdade, e Graenham nunca

esteve tão radiante! — exclamou Petr, encarando sua avó com um sorriso atrevido.

Para Chermont, a frase do garoto soara como um ardiloso deboche.

— JÁ CHEGA! — berrou Asturias, batendo o garfo de prata com força na mesa,

pegando a todos de surpresa. — Está mais do que na hora de você assumir como

Guardião, seu moleque, e assinar a sentença que me dá plenos poderes para assentar

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sobre o trono que é MEU POR DIREITO. Se não fosse essa merda de lei que dá

plenos poderes somente ao herdeiro direto, eu já SERIA A SOBERANA.

Petr enfezou-se, chapando garfo e faca sobre a mesa. Chermont recuou,

encolhendo-se entre a fileira de empregados a um canto.

— Eu espero que você se recorde que seu MARIDO E FILHO MORRERAM

HÁ POUCOS DIAS! — berrava o garoto, consumido por uma raiva que nunca

havia sentido.

Avó e neto ficaram emudeceram, fuzilando um ao outro com os olhares

semicerrados.

— Mais vinho! — Asturias brandiu a taça de prata na direção de Chermont. Os

longos fios encaracolados com algumas mechas grisalhas descaíam-lhe a frente dos

olhos. A expressão era de fúria mortal.

Chermont tremeu e os demais empregados se entreolhavam, com medo. O

mordomo do palácio ergueu a jarra de vinho e caminhou em direção à mulher em

silêncio. Odiava-se por não conseguir parar de fazer os dedos e os joelhos

tremerem. Neto e avó estavam em pé e retomaram a discussão aos berros. Ela

cuspia as razões pelo qual era a herdeira legítima do trono e que era a única pessoa

sensata que poderia governar Snartria nesse momento. Ele, contrapondo-se, a fazia

lembrar das leis de Snartria e também do quanto estava tresloucada com esse

assunto, que desde a morte de Maximo, seu mais novo amor era o poder a qualquer

custo.

Mantendo o máximo de cuidado que podia, Chermont inclinou a jarra até a taça

de Asturias. A mão direita, no entanto, falhou miseravelmente. O vinho tinto

escapou pelas bordas do cálice, molhando a mesa e resvalando para o vestido da

rainha.

A discussão interrompeu-se na hora. O rosto pálido e macilento de Asturias

assumiu um tom púrpura como a bebida que sujava suas roupas e as rugas se

acentuaram quando ela comprimiu o rosto numa expressão possuída de uma cólera

demoníaca.

— SEU IMBECIL! VOCÊ NÃO ESTÁ ME VENDO AQUI? OLHA O QUE

VOCÊ FEZ COM MEU VESTIDO, SEU BURRO. É SEDA PURA DE

GASTELA DE AMISTELAR!

Asturias se assomou, erguendo-se da cadeira com a taça em uma mão e uma faca

na outra. Chermont foi minguando, assustado. Petr interviu, voando de onde estava

e colocando-se entre os dois, bem a tempo de impedir sua avó de cometer uma

atrocidade. Num giro de sua mão, uma torrente de ar golpeou a mão armada da

rainha, fazendo a faca voar para longe.

— Era isso? — arguiu Petr, comprimindo os olhos — Ia matá-lo porque

derrubou vinho em você?

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Asturias não respondeu nada. Ofegante, arregalava os olhos para o neto,

impressionada com a velocidade com que se assomou do outro lado do salão até

ali.

— Eu não a reconheço mais — falou Petr, exasperado. — A senhora se tornou

uma velha obsessiva e compulsiva com essa ideia de usurpar o trono. Parece que

não há um pingo de dor ou remorso ou qualquer merda no seu coração pela morte

do seu marido e filho. Você só quer o poder. A senhora me ouça bem agora, porque

será a última vez que digo: nossas leis são categóricas e outorgam a mim decidir

sobre quem será o próximo rei de Snartria. Se cenas como estas acontecerem outra

vez, não hesitarei em tomar as medidas necessárias para cercear o avanço da sua

insanidade. Considere este o meu último ato de misericórdia.

E Petr saiu do salão real sem olhar para trás.

— Chegamos ao pé da montanha.

A voz do velho Conrod berrando à frente da comitiva despertou Petr de seus

devaneios. Os artiros diminuíram gradativamente a velocidade até finalmente

pararem e se aninharem sobre as quatro patas, para se aquecerem.

A tundra predominava sobre a paisagem. Em vários pontos, a vegetação esguia e

de cor alaranjada contrastava com o tapete branco e de relevo irregular formado

pela neve fofa. A gigantesca montanha se assomava diante do comboio, coberta

por uma alva e incólume neve. Uma leve cerração esbranquiçada abraçava o

entorno, pintando o cenário com tons brancos e empalidecidos, ofertando ao lugar

um clima lúgubre. Minúsculos flocos de neve se precipitavam dos céus; associados

ao nevoeiro, eles impediam de enxergar muito além de onde haviam parado e isso

incluía até mesmo o cume do monte, escondido atrás de uma densa camada de

névoa acima de suas cabeças.

Petr afundou as botas sobre a neve assim que pulou de seu artiro. O frio

avassalador começava a invadir seu grosso casaco de pele de alguma forma.

Tentando impedir o vento enregelante de penetrar o aconchego de seu robusto

agasalho, ele apertou bem as mangas e colarinho e acendeu uma tocha.

O fogo tremulou com a força do vento carregado de floco de neves. Isto era um

mau sinal. Uma tempestade poderia estar se aproximando e o que Petr menos

queria nesse momento era uma nevasca ou coisa pior. Mas a crescente esperança

em encontrar seu pai ou ao menos o corpo moribundo dele nesse lugar inóspito

era o que o motivava a prosseguir.

— Foi nesta montanha que seu pai foi visto pela última vez — falou Conrod,

erguendo também sua tocha acesa e tomando uma grande golada de rum e ginseng.

— Alguns corpos de pessoas que o acompanhavam foram encontrados em um

platô intermediário logo acima. Podemos iniciar as buscas por lá.

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— Certo. — Petr assentiu, forçando os olhares para o caminho a frente. —

Então, vamos.

A visibilidade era péssima. O vento tornou-se veemente e agitava os casacos com

intensidade. Conrod seguia obstinado na ponta da fileira, segurando o colarinho de

sua pesada capa e capuz. Os soldados de Marvan estavam atarantados, rumando

pela neve agarrados às suas tochas de fogo mágico e espadas e a todo instante

meneando a cabeça, inconformados. Petr era o último: queria garantir a segurança

da comitiva e da posição em que seguia, era possível vislumbrar a silhueta distorcida

pela ventania enregelante de cada um. O único temor era se alguma criatura o

surpreendesse em sua retaguarda. Contudo, permanecia atento ao menor dos

ruídos, que nesse momento se resumia aos retumbantes uivos do vento em alguma

escarpa da montanha. À sua frente, Chermont seguia com a mão puxando os

cordões do capuz e um cachecol enrolado, cobrindo a boca e nariz. Sabia que o

mordomo do palácio e fiel amigo morria de medo desse tipo de aventura. Fora

criado nas entranhas do castelo para servir e cuidar e, ainda que fosse um excelente

alquimestre, sempre fora um sujeito pacato e que preferia o conforto das

acomodações que permeavam a realeza, ainda que suas atribuições fossem um tanto

desgastantes e exaustivas. A única motivação de Chermont ali era exclusivamente a

lealdade e fidelidade aos Bravior.

Caminhando com dificuldade, pois além da superfície íngreme da montanha a

profundidade da neve atrapalhava o grupo de prosseguir mais depressa, a comitiva

chegou ao platô. Igualmente coberto de neve, Petr sentiu a diferença somente pela

inclinação de seu pé, que naquele momento pisava em solo plano.

— Foi aqui, Petr. — Conrod aproximou-se do garoto, apontando o cajado para

a plataforma no meio da montanha. — Este foi o último lugar que afirmam o terem

visto. Sei que não dá para discernir muita coisa, mas este platô é grande. No inverno,

ele fica assim, coberto pela neve e é realmente difícil vislumbrar qualquer coisa.

Não sabemos exatamente o que ou quem seu pai procurava. Ele não disse a

ninguém. Mas sabemos que ele estava em uma missão...

— Estão ouvindo isso?

Chermont proferiu e, antes que pudessem escutar o ruído retumbante que se

misturava à ventania, eles contemplaram. Irrompendo da massa esbranquiçada

provocada pela tempestade, uma imensa cabeça felpuda de lobo surgiu. Os olhos

vermelhos semicerrados em uma expressão assassina, arreganhava os dentes e

vociferava assustadoramente na direção do grupo. Um monstro demoníaco que

Petr jamais vira e que somente habitava as inúmeras histórias de terror contadas

repetidas vezes no Palácio de Ônix e que por muitas vezes surgia em seus piores

pesadelos.

Aquilo, no entanto, era real e estava diante deles.

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A besta uivou estrondosamente, erguendo a cabeçorra em direção aos céus. Uma

baba espessa escorria por entre seus dentes afiados como lanças mortais e caía sobre

o platô se confundindo com a neve quando encarou suas presas novamente.

Atarantados, o grupo permanecia imóvel onde estava.

A pata monstruosa do animal atingiu Turti, arremessando-o para algum ponto

entre a escarpa da montanha e a pilha de neve da plataforma.

O pânico instaurou-se sobre o platô.

O animal se assomou na direção do restante da comitiva e todos desviaram como

puderam. Cartem gritou, desesperado e disparou em direção ao pé da montanha,

refazendo o caminho até ali. Obedientemente, seguiu a recomendação de seu rei.

Ao primeiro indício de perigo, desembestou a correr de volta para o castelo,

largando espada e tocha pelo chão. Conrod se esquivou e mergulhou sobre a neve.

Bursel se jogou como pôde fora da rota de impacto da besta e ergueu-se

desembainhando sua espada. Chermont também se lançou para um canto e Petr

deu uma cambalhota para o lado, atafulhando-se na neve.

— Chermont, vá atrás de Cartem! — gritou Petr, colocando-se em pé, atônito.

— Não podemos perder ninguém nessa jornada. Jurei isto a Marvan.

Chermont não titubeou e correu atarantado na direção do soldado fujão.

Desvencilhando-se do casaco, Petr fez surgir duas esferas de fogo em suas mãos.

O lobo branco abissal derrapava no extremo do platô e, virando o longo focinho,

preparava uma nova investida contra as três presas que sobraram.

— Bursel, encontre Turti — crocitou Petr, observando o soldado assustado

empunhando a espada para o lobo bestial que rangia os dentes na iminência de seu

ataque. — Ele pode estar ferido.

— Não posso deixá-los com esta criatura, eu...

— Confie em mim, Bursel!

O olhar vacilante do soldado deparou-se com a confiança estampada no rosto de

Petr. Hesitante, ele embainhou novamente a espada e embrenhou-se na intensa

cerração branca para onde seu amigo fora lançado.

O lobo pôs-se de pé sobre as patas traseiras, erguendo as enormes garras

dianteiras para o velho e o garoto, as derradeiras presas que ainda o encaravam.

— Wargs invernais. Achei que estivessem extintos nessa região.

Conrod alcançara o lugar onde Petr encarava a criatura. O extenso cajado

iluminado na ponta firme sobre as duas mãos do velho.

— Wargs? — arguiu Petr, aumentando a labareda que ardia em suas mãos.

— Sim. São lobos gigantes que habitam lugares remotos e gelados. Não se tem

relatos dessas bestas em Gelor-Torine há pelo menos cinquenta ciclos.

Acreditávamos que morreram de fome. A fauna é limitada em um território tão

hostil e suas presas teriam sumido muitos ciclos antes deles desaparecerem. Mas

não é isto que me assusta...

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Petr encarou o velho.

— Não te assusta?

— Não — respondeu Conrod, apreensivo. Observava o animal encarando-os

com o olhar assassino, na iminência de atacá-los. — O meu medo é que eles sempre

andam em bando.

A criatura pôs-se a correr novamente, depois de um salto poderoso sobre o gelo.

Galgava posições em alta velocidade, correndo pela neve do platô como um cavalo

disparando em terreno plano. Os dentes à mostra. O olhar assassino vidrado no

ponto em que Petr e Conrod aguardavam a investida.

O warg invernal escancarou novamente as mandíbulas e abriu as duas patas de

garras afiadas, pronto para abocanhar e trucidar suas presas.

Petr juntou punho com punho e esticou os braços. As chamas mágicas se

concentraram e formaram uma imensa esfera vermelha. A luz do cajado de Conrod

tornou-se mais intensa e ele levantou o bastão acima da cabeça. Duas esferas

chamuscantes, uma azul vibrante e outra rubra como sangue, diminuíram a

distância entre eles e a criatura e acertaram precisas a cabeça do warg. Um uivo de

dor ecoou alto. A fera tombou de lado sobre o gelo, o topo peludo da cabeça

ardendo em chamas.

— Ele está... apagando o fogo...

Enfiando a cabeçorra sobre o gelo, as chamas elementais desapareceram e o warg

invernal estava em pé outra vez, ainda atordoado, ganindo de dor.

— Fogo elemental não vai matá-lo aqui. A não ser que consigamos acertar o

único ponto vital sensível dessas aberrações: a veia jugular abaixo da mandíbula —

falou Conrod, apurando a vista. A nevasca se intensificava, dificultando a visão. A

silhueta abissal da criatura erguia-se contra o céu. Um novo ataque estava por vir.

— Você consegue erguer esse monstro? — perguntou Petr. Uma fumaça

enregelante subia das mãos do garoto e se mesclava à nevasca atordoante.

Conrod mirou o garoto, compreendendo de imediato sua ideia.

— Acredito que sim...

— No três, então...

— Um...

O terrível monstro corria novamente sobre a neve, tornando-se de um vislumbre

cinzento a uma imagem ameaçadora de longas presas e olhar assassino. Vinha a

todo vapor para sua derradeira investida.

— Dois...

O warg invernal pulou sobre os ares da nevasca. As imensas patas abriam-se

aterradoras. O bote era iminente e devastador.

— Três!

O cajado de Conrod lampejou. Mais intenso e vivo do que das outras vezes.

Movendo o bastão com as duas mãos, o velho de longos cabelos rastafari rilhou os

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dentes e entrecruzou os dedos ao redor do cajado, fincando-o sobre o gelo do platô.

Luzes azuis eletrizantes, como raios cortando os céus em uma noite de tempestade

serpearam pela neve e o lobo gigante pairou no ar. O silêncio imperou. Os flocos

de neve, o barulho e a força do vento, os rugidos da fera. Tudo ao redor parou

onde estava. Uma estaca de gelo brotou das mãos de Petr. Ela disparou em direção

aos céus e acertou a jugular da fera estacada no ar, no exato ponto onde Conrod

dissera. Com o pescoço e mandíbula dilacerados, o warg invernal descreveu um

arco acima das cabeças de Petr e Conrod no instante seguinte e caiu derrapando do

outro lado, moribundo.

— Corram! — gritava uma voz, desesperada — Há mais três deles vindo aí.

Conrod e Petr se viraram.

Bursel surgiu entre a nevasca. O rosto transtornado, ele rumou em direção à

entrada do platô. Turti balançava, desacordado, sobre seus ombros.

— Preciso que você faça isso de novo! — gritou Petr e Conrod assentiu.

Três silhuetas monstruosas surgiram no extremo oposto do platô.

A ponta do cajado brilhou outra vez. A neve que se precipitava dos céus

interrompeu sua queda e a magia de Conrod silenciou tudo ao redor novamente.

Petr fez uma rajada de gelo elemental irromper de seus dedos, dilacerando os lobos

monstruosos, estacados no ar, a poucos metros acima de onde estava. Isso daria a

eles algum tempo para fugir, se outros wargs aparecessem. O cansaço por usar seus

poderes repetidas vezes começava o abater. Não podia arriscar a própria segurança

e a dos demais.

E no infinitésimo de segundo em que o tempo parecia ter parado, uma luz

misteriosa brilhou em um ponto escuso da plataforma. Esmeralda e radiante, os

olhos de Petr vidraram sobre o lampejo esdrúxulo. Mas, antes que pudesse dizer

ou fazer qualquer coisa, o tempo voltou ao normal, os wargs despedaçados caíram

sobre a neve. Novos uivos estridentes e ameaçadores se ouviram e Petr juntamente

a Conrod puseram-se a correr, fugindo dali.

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Capítulo Treze

Passado, Presente e Futuro

A pesada cortina azul-marinho despencou lá do alto.

Foi um deus-nos-acuda, um corre-corre e um vozerio desesperado quando

alguém gritou que ela havia escapado por entre os dedos. Caiu de forma audível.

Estatelou-se com um baque ululante sobre o piso já lustrado do Salão Principal no

palácio real da Suntuosa Badorian. Uma camada tênue de pó acumulado pairou

sobre o ar por longos segundos e uma sequência cadenciada de espirros e rinites

atacadas nos mais diversos timbres ecoou. Uma voz trovejou reclamando que era a

terceira vez que encerava o piso de pedra polida azulada somente aquele dia. Outra

reboou um cordel de reclamações que o peso da cortina poderia ter matado alguém.

As reclamações, por fim, não levaram a nada e logo foram substituídas por uma

profusa algazarra generalizada. Tudo voltou ao normal outra vez.

Novas cortinas se estendiam ao longo dos doze janelões imponentes no salão. O

azul dera lugar a um tom dourado suntuoso. Uma tradição nesse tipo de evento.

Dizia-se que o mais importante era exaltar a glória de um momento histórico tão

proeminente. O ouro era o símbolo máximo da grandeza, da honra e da beleza. Um

metal nobre, cintilante e maciço: a alegoria perfeita para a ardente expectativa criada

no entorno da coroação iminente. A nobreza de Badorian se reuniria, aclamaria seu

novo rei em um evento magnífico para a perpetuação e conservação de um reinado

sólido como o mineral tão desejado.

O palácio estava uma loucura.

Os Heinhardt, Borovit, Moronov e Lohntrak respiravam os preparativos da Festa

da Coroação Real, atolados de afazeres e envolvidos com cada detalhe dos festejos

que pareciam suas próprias festas. Impecável era a palavra que mais circulava entre

as bocas dos nobres presentes. Isto era algo a se elogiar em boa parte dos demais

clãs de Badorian: a cooperação mútua. A união entre eles era notória. Fosse nos

momentos de alegria ou nos de tristeza, estavam sempre dispostos a colaborar. Nos

Bailes de Primavera, trabalhavam como um time para deixar o palácio perfeito e

receber as visitas de outros reis, condes e marqueses e comemorar a chegada da

estação das flores. Mas nos Ilíaltes, se superavam. Os trezes dias de comemoração

tinham o poder de juntar o que havia de melhor dos quatro clãs principais: as

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habilidades artísticas dos Borovit, a organização dos Heinhardt, as opiniões e

críticas — nem sempre construtivas — dos Moronov e o capricho dos Lohntrak.

Heidlich conhecia as particularidades de cada família. Ainda que tivesse saído de

casa aos vinte ciclos de idade para incursionar pelos demais reinos como o protetor

deles, conhecia o melhor e o pior de cada clã.

Os Lohntrak eram uma das três principais famílias que lutaram na Grande Era

das Trevas e que, desde então, galgaram posições estratosféricas nas alianças que

fizeram com outras famílias. Diferente dos Gundorf que rumaram para Turmis e

dos Drunírio que preferiram Elstoen, os Lohntrak mantiveram suas raízes em

Eurodian. Atuaram fortemente na legislação em favor da proteção de Eirin e

combateram as últimas legiões de ogros, trolls e drows que restavam no continente.

Contribuíram para a expansão de Badorian, a fundação de Gradia e a consolidação

e preservação dos Pilares da Magia — Cruisand e Paragon.

Mantiveram-se por muitos ciclos no poder, fossem assentados sobre o trono ou

como os protetores do continente. Eram nobres e muito valentes. Os mais valentes

e obstinados que Eirin já conheceu. Mas o que tinham de nobreza e valentia,

possuíam o dobro em teimosia. O maior exemplo para Heidlich era sua própria

mãe. Quando metia algo na cabeça, era mais difícil de se tirar do que domesticar

um dragão selvagem. O mesmo valia para os dois irmãos mais novos de sua mãe,

Silla e Armie, tão turrões e cabeças-duras que às vezes era preferível deixá-los

falando sozinhos do que levar qualquer discussão com ambos a diante.

A marca registrada dos Borovit era a sabedoria. Não à toa, seu pai sempre dizia:

“está confuso sobre a vida? Peça um conselho a um Borovit”. E por essa razão, os

Borovit integravam a maioria das cadeiras do conselho real. Nas épocas mais

tenebrosas que Badorian atravessou, a sabedoria dos Borovit se destacou. Agiam

sempre com justiça e buscavam julgar com equidade as mais difíceis questões. As

melhores e mais arquitetadas soluções eram as deles. Possuíam também outros

dons, sendo exímios artistas. Compunham, cantavam, tocavam. Amavam a forja e

as esculturas em mármore. Contudo, por amarem o saber e as artes manuais,

distanciaram-se consideravelmente de uma arte que os Heinhardt ainda eram

grandes amantes: a guerra.

Se os Lohntrak eram valentes, os Heinhardt eram guerreiros natos. Ávidos pelas

batalhas, apaixonados pela guerra, possuíam uma qualidade que os mantinham

sobre o trono de Badorian por tantas gerações: liderança. Os contos mais famosos

atribuíam aos Heinhardt o comando da Guerra dos Treze, a maior revolução que

Eurodian presenciara.

Ah, se vocês pudessem ter assistido essas sangrentas batalhas!

A Guerra dos Treze durou exatos treze meses e quatro dias, quando os Heihardt,

aliados a alguns poucos Lohntrak e hordas de guerreiros anões valorosos, bem

como de centauros arqueiros, incursionaram até as fronteiras de Badorian para

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impedir um grupo de bárbaros separatistas que vinham conquistando desde

Sombroceano. Fora difícil convencer, no início, os anões, que não iam com a cara

dos humanos mágicos, à época. O auge das batalhas teve seu ápice onde atualmente

está Lenchain, quando, finalmente, o clã dos Grondar, o mais populoso e truculento

entre os anões do continente, se uniram aos guardiões naquela batalha épica que

entrou para história de Badorian, com os Heinhardt ascendendo ao trono desde

então.

Os Moronov, por sua vez, nunca tiveram grande expressão em Badorian, à

exceção de August, o terceiro na liderança do Conselho dos Guardiões, alguém de

quem Heidlich preferia manter distância. A mera menção a seu nome lhe causava

enorme repulsa. Assim como August, os outros Moronov eram soberbos,

presunçosos e, em sua maioria, desinteressados na política ou em qualquer assunto

que envolvesse os condados ou os anseios do povo. Entretanto, eram amantes

incondicionais das festas, não perdiam a oportunidade de se embebedarem, o que

por sua vez resultava em situações vexatórias para a imagem da corte. Heidlich se

pegava pensando com seus botões, por que cargas d’água os Heinhardt se aliaram

a eles e não aos Wullith, os Bravior ou os Ayarza de Miliat? Esses, sim, leais e nem

um pouco mesquinhos ou esnobes.

A tradicional decoração azul e branca, as cores oficiais da bandeira da Suntuosa

Badorian, era pouco a pouco substituída por nuances douradas. Cortinas, toalhas,

louças, talheres, lençóis e até algumas mobílias iam assumindo tons cintilantes. Um

verdadeiro batalhão de empregados se espalhava pelos salões e corredores.

Esbaforidos, corriam de um lado a outro com baldes e esfregões nas mãos.

Limpavam tudo, arrumavam tudo, drapejavam os ambientes, cuidavam de cada

detalhe. Lady Ianora acompanhava a arrumação de perto. Nada escapava a seus

colossais e impetrantes olhos de águia. Tudo precisava estar perfeito. Os copeiros

substituíam as louças e talheres e os organizava sobre a mesa de jantar de forma

ordenada. As empregadas e alguns mordomos trocavam toalhas e guardanapos com

uma velocidade assustadora. Jardineiros aparavam a grama e esculpiam sobre as

árvores dos jardins externos o grande Grifo Inquietante. Dois duendes artífices

foram convocados para esculpirem o busto daquele que em breve estaria recebendo

a coroa e o cetro real na cerimônia mais aguardada dos últimos ciclos, cheia de

requinte e carregada de uma liturgia ancestral.

No meio do fuzuê instaurado em cada canto do castelo, Heidlich permanecia

estático. Os olhos do guardião fixaram-se em um único ponto, absorto e taciturno.

Alheio ao caos ao seu redor, a mente viajou para longe. Só o coração, contudo, se

agarrara àquela visão. Uma aflição comoveu seu âmago de chofre, agitando-o no

fundo do peito. Quis ceder a uma lágrima teimosa, forçando para escapar. O Trono

Branco estava vazio. Cench não estava mais ali.

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Certa vez, Heidlich gostava de relembrar, foi obrigado a isolar-se por completo.

Precisava ser mais astuto do que um Lobo-das-Cinzas. A experiência em

emboscadas era quase nenhuma. Mesmo tendo estudado tudo que era possível

sobre as artimanhas para surpreender o inimigo, na prática a coisa era diferente. O

inverno era rigoroso, daquele em que as fortes nevascas assopravam veementes,

cobrindo florestas e montanhas inteiras com uma massa branca enregelante,

ocultando qualquer coisa a um palmo de distância do rosto. O entorno era um

fúnebre deserto branco. Enfurnara-se em uma pequena cabana improvisada com

couro de boi durante uma tempestade. Isolado e distante de qualquer viva alma, na

iminência de um ataque que poderia até ceifar sua vida, ele não se sentia sozinho.

Ainda que estivesse embrenhado nas profundezas enregelantes próximas às

florestas de Boralioch, ele sabia que existia um quarto aconchegante, com uma

lareira alta a crepitar e uma cama quentinha esperando por ele. Lá, havia chocolate

quente e bolinhos de nozes. E, quando decidisse voltar, sabia que retornaria para o

conforto dos abraços de seu pai e do carinho de sua família.

Era tudo estranho desde então.

Estranho como se algo lhe tivesse sido arrancado, como um braço ou uma perna.

A ausência pesarosa e gritante debilitava seus movimentos, limitava suas ações.

Uma sensação de impotência. Um vazio sem fim arrasador que o fazia querer

desistir. O porto seguro para o qual sempre retornava não existia mais. Mirando de

onde estava para o Trono Branco, não se sentia capaz. Não se sentia digno de

ocupar o lugar do grande homem que fora Cench Heinhardt.

— Esta noite será você...

Heidlich despertou da confusão de seus pensamentos. A dona da voz gentil que

o abordara encarava-o com um sorriso singelo.

Falla Lohntrak Heinhardt atravessava o salão. Lenços decorativos de renda

balançavam em seus braços a cada passo pesado que dava sobre o piso. Atarracada,

de longos cabelos grisalhos que um dia foram loiros e brilhantes, vinha a passos

largos e pressurosos. Ainda que esse tipo de atividade não fosse de seu real

interesse, estava visivelmente atarefada. Heidlich não lembrava de ver a mãe tão

dedicada assim em eventos grandiosos, nos tempos em que viveu no palácio. Era

mais reservada e recatada. Preferia o silêncio, a calmaria de uma leitura e ambientes

onde reinasse a paz. Deixava tarefas como as desse dia para a irmã mais velha,

Menzira, cujas pernas curtas corriam de um lado a outro para garantir que as coisas

estivessem saindo de forma imaculável ou mesmo para a cunhada Susan, que

adorava passar horas a fio escolhendo tipos de toalhas e cortinas bem como cada

item, por menor que fosse, da decoração dos eventos. Desde tecidos às joias que

adornariam os pescoços das amigas do reino, Susan não perdia a oportunidade de

meter o bedelho para opinar e ter a oportunidade de mandar que atendesse às suas

vontades.

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Vislumbrar sua mãe tão envolvida nos preparativos para a decoração trazia

dúvidas. Era possível que preferisse, em um momento conturbado, se atolar de

trabalhos e afazeres para que pudesse amenizar a dor da perda do marido.

Envolver-se no maior número de atividades não dava espaço para que pudesse

relembrar. Trazer à memória que o homem com quem fora casada por tantos ciclos

não estava mais ali. O peso da sua ausência não seria sentido e a dor que lhe

perturbava desapareceria, mesmo que por algumas horas.

Com todo esse trauma repentino e inesperado, Heidlich abriu um tenro sorriso

enquanto a mãe se aproximava. Imaginava o quanto ela devia estar tentando ser

forte para que sua tristeza e luto não afetassem o restante do palácio e muito menos

os filhos.

E se havia alguém que Heidlich raramente via, era sua irmã, o que estava

deixando-o profundamente preocupado. Nas poucas vezes em que se cruzaram

desde o funeral, Ivyna estava sempre cabisbaixa. Denotava uma tristeza profunda,

uma infelicidade sem precedentes. Taciturna, ela transitava por entre os corredores

sem pronunciar uma palavra. Acolhia o silêncio durante os jantares e ele nunca

sabia o que dizer para melhorar o clima à mesa. Vivia trancafiada em seu dormitório

e não parecia propensa a mudar tão cedo. Passava dias e horas a fio por lá, sem

falar com ninguém.

A rainha avançou. Desviou de uma série de criados que atravessavam pressurosos

de um lado a outro, empilhando dezenas de louças de porcelana fina. Aguardou um

pequeno batalhão terminar sua rota, com espanadores e vassouras em mãos,

rumando para limpar as esculturas de mármore.

Heidlich deu um beijo na testa da mãe.

— Oi, mãe. A grande noite chegou, afinal.

Heidlich observava o rosto da mãe ofertando um sorriso afetuoso. As rugas de

expressão eram mais intensas e marcadas desde a última vez que estivera em

Badorian, assim como os cabelos perderam um pouco do brilho e da vida que

tinham. O rosto estava pálido, abatido. Envelhecera mais nos últimos três dias,

desde o funeral de seu pai, do que em todo tempo que esteve fora. Mas os olhos

azuis rutilavam. A felicidade em vê-lo por perto outra vez era notória. Contudo, o

luto era tangível, tanto no longo vestido negro que usava quanto no semblante

infeliz que se esforçava para esconder nas expressões de uma mulher atarefada.

— Tudo tem que estar perfeito, meu amor — proferiu Falla, apontando para as

últimas cortinas erguidas no extremo do salão. — Os tons dourados são magníficos.

Exaltam o poder de nossa família. Mostra que nosso elo continua forte como

sempre. A união, a cumplicidade, a aliança entre nossos clãs. Era o que seu pai...

O silêncio se fez abruptamente quando Falla interrompeu-se. O vozerio ao redor

era contundente, mas os segundos de quietude perturbadora entre mãe e filho

foram terrivelmente dolorosos. Heidlich não sabia o que fazer. A importância em

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manter a união entre as famílias, fortalecendo os elos em eventos como os desse

dia era o tipo de frase que seu pai certamente diria. Com seu jeito simples e sereno,

ele provavelmente estaria inspirando a todos ao redor, ajudando os demais na

arrumação, contando piadas ou histórias engraçadas sobre sua juventude e

brincando com algum dos seus cunhados e cunhadas.

Heidlich preferiu não dizer nada. Abraçou a mãe e o gesto falou por ele. Sabia

como tudo estava sendo difícil. Para ambos.

— Sinto a falta dele.

— Eu também, mãe — balbuciou Heidlich. Fechou os olhos com tamanha

violência que não havia chance de uma lágrima vencer a batalha e escorrer por seu

rosto. — Que saudade tenho do meu pai.

— Aquele velho safado me prometeu. — Falla abraçou o filho, enterrando o

rosto em suas vestes. — Prometeu que não morreria primeiro.

Lágrimas desprenderam-se dos olhos de Heidlich. Percorreram sua face e

morreram sobre os cabelos da mãe. Falla soluçava baixinho para que ninguém

notasse seu choro. No abraço dos dois, a saudade era externada pelo pranto

silencioso.

— Se ele estivesse aqui, estaria contando aquela velha história...

— Do tigre sobre a mesa?

Heidlich e a mãe sorriram.

— Na verdade, — falou a rainha, a voz menos embargada — pensei naquela em

que ele e seu tio perderam as calças no vilarejo de Thongan. Eu não aguentava mais

essa...

Heidlich riu outra vez. A velha história de como seu pai e o irmão, Anturc, ainda

adolescentes, se meteram em uma confusão com um grupo de bêbados no vilarejo

mais remoto de Badorian e no final, ao tentarem escapar pelos telhados, perderam

as calças na fuga, era a fábula mais narrada no palácio. Mais até do que as antigas

histórias da Era de Ouro dos Guardiões.

Heidlich observou o sorriso estampar o rosto da mãe. Queria vê-la assim: alegre,

feliz, ainda que, até para ele, isto fosse tão difícil de se conseguir.

— Você terá orgulho de mim, mãe. Esta será uma grande noite!

— Eu já tenho, meu filho. Você sempre foi e sempre será meu orgulho. Tenho

certeza de que será um grande rei, assim como foi seu pai.

O vento que vinha do Norte balançava suas vestes. Suave, brando como a brisa

tinha de ser àquela época do ano, porém era também gélido. Golpeava as maçãs do

rosto como finas agulhas congeladas e faziam-no estremecer, arrepiando os cabelos

do pescoço.

Sabe quando o inverno chega e instaura uma aura enregelante, que não é atroz

como a de uma nevasca se assomando, mas ainda não é constante, impregnando o

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ar, com a plenitude da estação? Era desta forma que o frio perambulava sobre a

cidade nos arredores do palácio. Era um indício do que estava por vir. O inverno

logo reinaria absoluto na capital e nos demais condados. Os ventos congelantes

soprariam e os finos cristais de neve despencariam dos céus com maior frequência

e cobririam o palácio, a cidade e os demais condados com uma singular camada

branca e fofa. Os agasalhos simples seriam substituídos por grossos casacões

felpudos. O inverno em Eurodian costumava ser bastante rigoroso.

Heidlich puxou um pouco mais o capuz. Com duas voltas de pano ao redor da

cabeça, cobria não só a boca: um tufo de tecido azul fazia uma curva que

atravancava sua visão. Não pelo frio, pois, sinceramente, a camada de tecido que

tapava o rosto fazia-o suar. Atrapalhava para enxergar o caminho a sua frente, mas

mantinha a discrição que tanto queria. Passeava pelas ruas da cidade, ansiando por

um breve momento de paz sem ser reconhecido.

A cidade estava apinhada de gente.

Centenas de pessoas ignoravam o frio nas ruas do mercado e transitavam de um

lado a outro. Alvoroçadas, se aglomeravam aos montes, falavam alto, algumas aos

berros vendendo seus produtos. Não havia uma barraca sequer que não tivesse pelo

menos um grupo de dez ou mais pessoas comprando e vendendo alguma coisa.

Sacos de cereais, trigo, arroz, milho, aveia e grão de bico. Barracas exibiam belos

vestidos de algodão e linho em cores extravagantes. Outras tinham gaiolas e uma

penca de pássaros exóticos cantarolando alto. Frutas, legumes e verduras eram

molhados para manter seu frescor em uma fileira do mercado. Carnes carregadas

de sal pendiam de outras barracas. Os vendedores tentavam chamar a atenção como

podiam. Berravam a esmo, exibiam placas, cutucavam pessoas aleatórias, mesmo

não tendo espaço para atender mais clientes em suas tendas abarrotadas.

Heidlich não lembrava de ver o mercado tão lotado assim.

Parou ao lado de uma barraca de frutas, arremessou uma moeda para o vendedor

e abocanhou um pêssego. Um grupo conversava acaloradamente. Aguçou os

ouvidos para prestar atenção com os olhos contemplando os transeuntes ao redor.

— Dizem que ele é a cara do pai, é verdade? — questionou uma velha apoiada

em um gigantesco saco de batatas.

— Para falar a verdade, eu não sei — crocitou um homem esgalgado, ligeiramente

calvo e com um cavanhaque ralo. Afastava umas moscas de seus peixes em

exibição. — Raramente o víamos aqui. Virou Guardião e sumiu.

— Mas ele deve estar sofrendo demais, coitadinho — dizia uma mulher loira e

esbaforida dizia. — Principalmente com a morte do pai...

— A verdade é que eu acho que ele não se dava bem com o pai — inferiu um

velho barbudo, terminando de arrumar melões em um cesto. — Sabe como é,

existem filhos desnaturados...

— Você nem sabe o que está dizendo, Dimeus.

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— Alguém conseguiu vê-lo no funeral? Disseram que ele estava por lá...

— Eu não.

— Nem eu.

— Eu tampouco.

— Também não o vi.

— Acho que ele não foi.

— Foi sim, menina. Ele estava lá. Madame Bartila quem me contou. Mas ele

chegou para o enterro. Pelo menos foi o que ela disse...

— Que falta de consideração com o próprio pai.

— Outra vez, Dimeus, pare de falar besteiras.

— A única coisa que eu espero, de fato, é que ele seja um bom rei. Assim como

foi Lorde Cench. Aquele homem, sim, era bom.

— E sábio.

— Sim, deveras sábio.

— Diferente da maioria dos outros intitulados nobres, os Borovit, Lohntrak e

aqueles Moronov...

— Malditos Moronov!

— Como é mesmo o nome dele?

— É um nome estranho, até hoje não aprendi a pronunciar.

— É Havich.

— Não, Lontimas, é Hardrir.

— Acho que é Heidlich.

Atraindo a atenção para sua figura oculta, o guardião seguiu adiante, deixando os

restos do pêssego para trás. Os olhares curiosos acompanharam seu trajeto, calados

e curiosos. Tentavam decifrar quem era a pessoa encapuzada bisbilhotando a

conversa.

Puxando para baixo ainda mais o capuz, transitando entre o povo, colidia os

ombros vez ou outra com alguém ou pedia licença, esgueirando-se em meio a

grupos de pessoas comprando ou conversando aos berros, atravancando o

caminho. Estava obstinado a alcançar duas coisas: não ser reconhecido e chegar à

Academia dos Guardiões.

A única coisa que eu espero, de fato, é que ele seja um bom rei. Assim como foi Lorde Cench...

A frase martelava na cabeça de Heidlich desde que recebera o comunicado em

Aralyart. Pensar sobre isso provocava um medo sem precedentes. Um medo que

nunca sentiu. O povo depositava as esperanças nele. Mas ninguém nem sabia como

ele era. E se não conseguisse atender às expectativas de ser um bom rei como foi o

pai?

As coisas estavam muito diferentes em Badorian. O mercado, as ruas da capital,

as pessoas. Heidlich não sabia explicar o que mudara. Mas, ao redor, tudo era

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diferente. Diferente e estranho. Sentia-se um estrangeiro vagando por uma cidade

desconhecida. Ainda que aquele fosse seu lar, ainda que se habituasse a correr por

aquelas ruas e vielas, se esgueirasse pelas barracas apinhadas na infância, o

sentimento de estranheza era algo perturbador.

Nunca pertenceu à sua terra natal e isto era um fato estarrecedor. Viveu na corte

real, criado com os primos e tios, os empregados do palácio e com os demais

Borovit, Lohntrak e Moronov. Mas sua alma nunca se moldou às fronteiras do

reino. O maior anseio de sua vida, desde criança, era conhecer o mundo. As

histórias e as culturas de outros povos o fascinavam. Encantava-se com o mapa dos

treze reinos de Eurodian. A curiosidade sobre o desconhecido além das Águas de

Argúrius ou de Crispoles agitava sua alma e o impelia a querer descobrir essas terras

de além. Quando chegou o tempo de estudar, ignorou as dezenas de escolas

renomadas da alta nobreza do reino e ingressou na Academia dos Guardiões.

Mesmo tão novo, estava convicto do que queria. A aspiração que o enlevava era a

de se tornar Guardião. Depois de formado e disputar a vaga com outros quinze

candidatos, não queria continuar em Badorian. Nasceu para aquilo. O próprio

destino estava entrelaçado com o desconhecido.

Vinte ciclos se passaram. Conhecia cada um dos treze reinos como a palma de

sua mão. Lutou uma centena de batalhas, derrotou monstros e criaturas fantásticas

das mais variadas, legiões de mercenários e facínoras nos lugares mais adversos.

Aprendeu sobre outras culturas, novas línguas, povos diversos. Colocou o próprio

poder à prova uma infinidade de vezes. O coração pulsava por esse estilo

conturbado de se viver: sem luxo, sem riquezas, no cerne dos conflitos, cercado de

perigos. Nas oportunidades, regressava à Badorian. Retornava para as festas, em

alguns poucos eventos, às vezes em épocas de rigoroso inverno. Nunca ficava

muito tempo. Eurodian era seu verdadeiro lar e o reino de seus pais, o lugar onde

costumava passar férias. Sua família eram as pessoas que necessitavam de sua ajuda.

A morte de seu pai era um choque sem precedentes. Um baque inesperado que

colocava em xeque tudo o que foi durante vinte ciclos. Arrependia-se de não ter

passado mais tempo com ele. De não ter tido a chance de ao menos se despedir e

dizer a ele o quanto o amava uma última vez.

Uma lágrima escorreu de seus olhos e morreu no capuz.

Badorian tornou-se um lugar de solidão e amargura. Um reino esquecido por sua

própria opção. Pelas leis reais, era o próximo na linha sucessória. Assentaria sobre

o Trono Branco e abdicaria da posição para um novo Protetor. O medo era um

tormento crescente. Uma seara desconhecida se apresentava, aprisionando-o em

grilhões que o amarravam à realeza até o fim de seus dias, numa terra ao qual ele se

tornara o maior desconhecido. Vinte ciclos como Guardião não o ensinaram a ser

rei. Pela primeira vez em muito tempo, o medo do futuro o perturbava.

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Sobre o cume de uma montanha, o majestoso palácio imperava. Às margens do

encontro de dois rios de Badorian, o grande rio Mulbe, de águas negras e revoltas

que nascia ao norte do reino e desembocava no extremo-leste de Cruisand e o rio

Alente, que seguia seu rumo serpeando pelas terras badorianas até alcançar Fahur,

o castelo fora por muitos ciclos a sede do reino, abrigando as primeiras alianças

entre guardiões de Eirin. Por sua posição privilegiada no topo de uma vultosa

montanha e cercado de água por todos os lados, foi uma das mais importantes

construções durante eras e uma das nove maravilhas do mundo. Uma das primeiras

e raríssimas em que duendes, elfos, anões e artesãos humanos esqueceram suas

vaidades e melindres para atuarem juntos. A intenção era que o grandioso palácio

fosse um farol de esperança e suntuosidade que inspiraria toda Eurodian. A obra

levou sete ciclos para ser construída e apresentada ao mundo; porém, não mais do

que trinta para ficar completamente esquecida e se tornar o quadragésimo maior

castelo do mundo.

Em suas ameias construídas em citrino e topázio imperial, os mais de vinte salões

e salas comunitárias, dezenove torres e os variados pátios e saguões abrigavam uma

das mais renomadas instituições de ensino do reino: a Academia Badoriana dos

Guardiões. Há mais de duzentos ciclos, instruía jovens mágicos para exercerem

importantes papéis de liderança, além de educar no conhecimento básico e

avançado para a vida. Os nascidos guardiões tinham a oportunidade de estudar

sobre a profissão mais destacada do mundo. Aprender com antigos Protetores,

aprimorar os conhecimentos e habilidades com a magia, noções de estratégia

militar, idiomas e liderança. Quando de uma Sucessão Honrosa, podiam colocar os

poderes à prova em um torneio que escolhia o futuro Guardião de Eurodian. O

modo encontrado pela Casa dos Heinhardt visava não ser injusto com as demais

famílias aliadas e apresentar o melhor protetor para o continente. O mais poderoso

na competição era coroado com o cargo e recebia todas as honrarias e deveres da

função. Quando não havia uma vaga na tão sonhada carreira, outras funções eram

disputadas como o posto de General ou Almirante.

O palco dessa acirrada competição era a majestosa arena da Academia dos

Guardiões. Entrementes, permanecia idêntica ao que ele se lembrava: uma extensão

retangular coberta com um longo tapete de grama esmeralda e fofa. As

arquibancadas em mármore abrigavam tranquilamente mais de dez mil

espectadores. A tribuna real, levemente mais alta, ainda flamulava em tons de azul

e branco, o Grifo Inquietante de Badorian. Não somente para as lutas, os campos

eram palco para uma infinidade de modalidades esportivas, desafios mágicos,

torneios e campeonatos.

Passo a passo, Heidlich adentrou o gramado verdejante da arena. As lembranças

das centenas de vezes em que pisou naquele lugar atulhavam sua mente com

ímpeto. Uma nostalgia gostosa. Memórias de tempos tão distantes e que colocavam

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em seus lábios um sorriso abobalhado. Sobre o gramado cuidadosamente aparado

e admirável, venceu a disputa com outros quinze guardiões e se tornou o grande

protetor de Eurodian.

Os espectadores abarrotavam as arquibancadas ao redor, alvoroçados com as

batalhas espetaculares que viam. Fogos de artifício estouravam nos céus. Alunos da

Academia, professores, os Heinhardt, Borovit, Lohntrak e Moronov, grande parte

do Conselho, uma penca de sacramentadores, reis e rainhas de Mistral, Achmat e

Boralioch, centauros de Vorázia, Nassar e Bein-Hall, anões de Alfadelores e outras

centenas de convidados e curiosos. Uma multidão extasiada gritava de forma

enlouquecida, assistindo um dos momentos mais marcantes e históricos da

Suntuosa Badorian. O momento em que ele derrotara o último oponente no

torneio.

Exausto depois de derrubar o derradeiro rival, Heidlich erguia as mãos para cima

com o resquício das últimas forças que ainda tinha. Os braços doíam e as pernas

começavam a vacilar. Cada músculo tremulava, mas a felicidade de conquistar o

torneio estampava seu rosto machucado. Lorde Cench aplaudia de pé com uma

animação incontida. Ao lado da rainha, grávida de Ivyna, o sorriso de alegria pela

conquista do filho estava escancarado. Malnenn e Anturc, seus tios, também

vibravam da tribuna de honra, comemorando a vitória invicta do sobrinho.

— Basta!

Uma voz forte ribombou pelo gramado ao pé das arquibancadas, trovejando no

limiar do campo. As multidões ao redor emudeceram e apuraram a visão para o que

acontecia no centro da arena. Lorde Cench e Lady Falla contorceram o cenho para

o que seguia. Armie Lohntrak vinha a passos largos até o ponto exato em que

Heidlich, esgotado, acabara de derrotar seu último oponente. Mediano, de cabelos

loiros e curtos penteados para trás, mas com as laterais da cabeça sempre raspadas,

ele atravessava o campo obstinado, com seus passos fortes e trejeitos militares

exagerados. A armadura de ferro recém forjada tilintava a cada passo; o brasão do

reino em alto relevo sobre a couraça reluzia à luz do sol.

Armie era o irmão mais novo de Falla. Extremamente truculento e turrão, era o

oposto do poço sem fim de paciência e sabedoria que era a irmã. Adorava exibir

seus poderes para as damas de companhia e outras donzelas do reino. Havia

acabado de ser nomeado Marquês nos limites entre Cabernant e Nassar, uma

posição militar de respeito para sua pouca idade e ausência de maturidade.

Ele aproximou-se de um exaurido Heidlich. Avaliou o sobrinho por alguns

segundos com ar de desconfiança. O filho de Lorde Cench retribuiu com um olhar

petulante.

— Eu o desafio! — crocitou Armie para que todos pudessem ouvir.

As vozes ao redor suspiraram. Um coro audível e descompassado externava a

surpresa com um pedido de desafio tão inesperado. Heidlich lançou olhares

193


nervosos para os pais no alto da tribuna e para os professores nos limites da arena.

Eles pareciam céticos diante de uma reviravolta tão imprevista.

— Armie, o que é que você está fazendo? — questionou o rei, embasbacado.

— O regulamento da Academia é enfático, meu rei. — Depois de uma longa

reverência na direção da tribuna, Armie voltou a berrar, criando uma cena para as

multidões. — Se um oponente, que pode ser qualquer um de vocês, amados

cidadãos presente nessas arquibancadas, desde que nascido guardião, julgar o

campeão do torneio inapto para assumir a posição de Protetor, independente de

quem for, ele pode requisitar um desafio.

Uma onda de questionamentos inundou as arquibancadas. Rismim e Cormes

trocaram olhares intrigados. Caesen Moronov abriu um longo livro de capa dura e

folheou com ferocidade procurando tal sentença. Autran Borovit balançava a

cabeça e sussurrava algo para Anturc. Heidlich continuava estático e estupefato de

frente para o tio.

Amus Borovit veio balançando pela tribuna e parou ao lado do rei. Cochichou

algo em seu ouvido. Heidlich observava a expressão do pai mudar de uma

contrariedade caricata para um assombro súbito.

— Parece que Arm...

— Lorde Armie, meu rei.

Rei Cench pigarreou, tentando não transparecer o descontentamento notório.

— Lorde Armie, parece que você tem razão. O regulamento do torneio permite

o desafio.

Armie abriu um sorriso acintoso. Os espectadores da arena eclodiram em um

vozerio ensurdecedor.

— Contudo, — o rei voltou a falar alteando a voz e calando as multidões — o

regulamento também deixa muito claro que o desafiador tem apenas uma chance.

Caso ganhe, o desafiador se torna o campeão e assume o posto. Caso perca, ele

coroará o vencedor e viverá a vergonha da derrota, rememorada a cada mês ao

longo de um ciclo.

Armie espantou-se. Os olhos do marquês vislumbraram o sobrinho de soslaio e

seu cansaço exacerbado e então assentiu, confiante.

— Assumo as consequências, — berrou Armie, seguido de outra reverência

exagerada — quaisquer que elas sejam.

Recuperando as energias pouco a pouco, Heidlich ainda não conseguia acreditar

que aquilo era verdade. Contemplando Armie Lohntrak girar nos calcanhares para

ficarem frente a frente, ele ergueu os punhos cansados e apertou bem os dedos

levemente dormentes contra as palmas das mãos. Ainda haveria um novo

oponente. Justamente, o tio mais cínico e metido da família de sua mãe. A raiva que

sentia pela audácia do tio fez esquecer do cansaço e o vigor da adrenalina o invadia

outra vez.

194


Armie Lohntrak desferiu uma sequência de golpes rápidos com os punhos

fechados. Heidlich não sabia se era pela exaustão das últimas batalhas, mas sentiu

o corpo deslizar repetidas vezes quase que por instinto, esquivando-se dos

múltiplos socos do tio.

A plateia vibrava. Rei Cench, Anturc e Autran se acotovelavam sobre a tribuna,

disputando o melhor lugar para poderem apreciar a luta. Os olhos arregalados e as

bocas escancaradas de surpresa. Lady Falla alisava o barrigão de seis meses em pé,

vidrada na batalha entre o filho e o irmão no centro da arena. Balançava a cabeça

em sinal de desaprovação. As damas de companhia da rainha, assim como Lady

Silla e Luzena Lohntrak, afagavam seus ombros e esforçavam-se para fazê-la

assentar.

A luta entre tio e sobrinho perdurava. Heidlich era rápido e furtivo. Mesmo

limitado pela fadiga, conseguia desviar dos intentos de Armie, que ia cansando por

causa do peso da armadura.

O irmão mais novo de Falla jogou o capacete para longe e conjurou um chicote

de fogo. Ele ergueu o braço e girou seu laço acima da cabeça, enquanto corria na

direção do sobrinho, prestes a atacá-lo mais uma vez. No instante em que a chibata

coruscante cortou os ares, emitindo um longo silvo agudo, uma torrente

enregelante emanou das palmas das mãos de Heidlich. Fogo e água se encontraram.

A multidão berrava sobre as arquibancadas nos arredores no que era, até então, a

melhor luta do torneio de guardiões. Até um impassível Salazar Stanhorne estava

atônito com a batalha e o sempre sereno Poledores Früg, o sacramentador do

octaedro de Badorian, se agitava, andando de um lado a outro.

O chicote de fogo se foi tão rápido quanto surgiu. A força incontrolável das águas

elementais não só obliteraram a magia de Armie como o arremessou pelos ares,

lançando-o na direção da tribuna. Caindo com um baque ensurdecedor de lataria

amassando e ossos se quebrando, Armie quicou sobre uma mesa e tombou

desmaiado aos pés do rei.

O público foi ao delírio. Uma parte dos espectadores invadiu o campo. Os

Heinhardt respiraram aliviados ao passo que os Lohntrak balançavam a cabeça,

envergonhados. Os Moronov e o Borovit contorciam o cenho. Alguns ainda sem

saber o que pensar sobre o que acabaram de ver. Lady Falla torcia o nariz para o

irmão inconsequente desmaiado no chão a seu lado, mas suspirava de

contentamento com o filho. Uma coisa, no entanto, ficou clara: Heidlich Heinhardt

provara para todos, mais uma vez, que era o merecedor do título de campeão.

Caminhando a passos lentos, Heidlich rumava para o centro da arena. O sorriso

nostálgico continuava lá. Questionava-se por onde andava seu tio irresponsável.

Nos últimos ciclos em Badorian, nunca tivera um interesse real em saber como ele

estava ou o que fazia. Não sabia se ainda era Marquês ou fora promovido — ou

195


rebaixado do cargo. Embora, seria interessante saber de seu paradeiro:

principalmente para perguntar como foi lidar com a vergonha da derrota para o

sobrinho, todo mês, ao longo de um ciclo.

Um grupo de jovens treinava sozinho. Não passavam de sete franzinos

adolescentes. As bolsas de couro ficaram esquecidas pelo chão e os pesados casacos

negros com o brasão da Academia se embolavam pelo campo. Três deles criavam

pequenas esferas reluzentes de magia em alta velocidade e com grande perspicácia.

Corriam em zigue-zague, se esquivavam com destreza das investidas e atacavam

com vontade enquanto os outros quatro conjuravam suas magias, defendendo e

atacando em sequência. Não havia professores por perto. Deviam estar

aproveitando o tempo vago para ver quem era o mais poderoso.

Heidlich queria colocar esse poder à prova. Ver se o nível dos estudantes ainda

era tão bom quanto em sua época.

Os sete demoraram para perceber o homem que se assomava lentamente em

direção ao local em que treinavam. Pouco a pouco, eles interromperam seus golpes

luminosos e as rajadas de magia e apuraram a visão. Tentavam decifrar a quem

pertencia a silhueta escusa se aproximando em meio à neblina fina que infestava o

campo.

Heidlich soltou o lenço que escondia o rosto. Os cabelos longos e loiros

esvoaçaram com a brisa gelada. Os sete pares de olhos se sobressaltaram quando a

figura do guardião se postou bem em frente a eles, encarando-os. Embasbacados,

o queixo despencara e olhares saltaram das órbitas. Nenhum deles esperava por

uma tão ilustre e inesperada visita àquela hora do dia.

No silêncio estarrecedor que se seguiu, eles se entreolhavam. Heidlich fitava os

sete jovens de estaturas variadas. Dois atarracados, três esgalgados e dois medianos.

Quatro deles tinham feições que lembravam e muito a dos Borovit: nariz levemente

adunco, pintas escuras sobre a bochecha, algumas poucas sardas abaixo dos olhos.

Os demais, ele não sabia dizer com precisão. Poderiam ser tanto da miscigenação

dos Moronov quanto dos Lohntrak ou mesmo guardiões de outros continentes,

alquimestres ou mestres. Mas uma coisa era característica: eram todos inexperientes

mágicos embasbacados com sua presença ali.

— Bom, — falou Heidlich, mirando da expressão apalermada dos garotos para

as bolsas e uniforme jogados sobre a grama — ouvi dizer que era aqui o lugar onde

eu teria um desafio... Estou certo?

Ninguém respondeu. O queixo dos garotos ainda caído. Despencou ainda mais

quando Heidlich tirou o próprio gibão e o jogou sobre a grama verdinha.

— Muito bem, gostaria de saber: quem de vocês é o mais forte?

Os sete se encararam e recuaram, assustados. Heidlich flexionou as pernas e

ergueu os punhos. Uma aura tenra e azulada crescia do seu corpo como uma chama

coruscante.

196


— Eu sou o mais forte!

Uma voz surgiu de algum lugar e não foi do meio do grupo que o encarava com

espanto. Heidlich balançou a cabeça procurando quem era o oponente que aceitara

seu desafio.

Do extremo das arquibancadas, um oitavo garoto apareceu. Os cabelos negros e

encaracolados eram revoltos e repartidos ao meio, sambavam sobre seus ombros a

cada novo passo. Vinha caminhando com determinação e confiança. Os olhos cor

de mel rutilavam; havia nele uma coragem louvável, diferente da dos demais

adolescentes. Debaixo do nariz pontudo, ele exibia seu sorriso debochado. Não

havia o corriqueiro espanto das pessoas quando Heidlich aparecia. O que aquele

menino sustentava era algo que o guardião adorava: a oportunidade de encarar um

desafio.

O garoto parou em frente à Heidlich e o encarou com ousada petulância. Com

uma perna a frente da outra, também pôs os punhos em riste, dispondo-se para a

luta iminente.

— Fascinante — falou Heidlich, abrindo um sorriso tão desbocado ou mais do

que de seu rival. — E como devo chamar meu oponente?

— Diria para me chamar de seu pior pesadelo — disse o garoto, balançando a

cabeça. Como a aura azulada de Heidlich, ele também emanava uma chama

esmeralda ao redor do corpo.

Um grunhido abafado de espanto ressoou. Os outros sete estudantes

circundaram os dois oponentes, espantados e animados com a luta que estava por

acontecer. Heidlich fez uma careta e riu. A audácia do jovem guardião era

estratosférica. Ele amava isso em seus adversários.

— Pelos cabelos negros e essa arrogância do tamanho do mundo, eu diria que

você é um Lohntrak.

O garoto se sobressaltou.

— Muito bom, velhote — disse o garoto, um sarcasmo irritante carregado na

voz. — Cem pontos para seu exímio saber. Quer adivinhar minha idade agora ou

vamos partir para o mano a mano? Adorarei ter o prazer de poder divulgar aos

quatro cantos que eu derrotei o poderoso Heidlich Heinhardt, a Lenda de

Eurodian!

Um novo uivo de espanto ressoou. Heidlich agitou os punhos com vigor, estava

curtindo o momento de provocação.

— Velhote? Ok, Sr. Altivo — inferiu Heidlich, animado. — Contudo, proponho

uma aposta. Se você ganhar, te pago mil dorens e você leva a fama de ter derrotado

o rei de Badorian...

— A Lenda de Eurodian...

— O rei de Badorian. A Lenda de Eurodian não existe mais. Mas, se você perder,

você me diz o seu nome.

197


O garoto ponderou, rindo pelo canto da boca. Achou a oferta mais do que

favorável e por fim, assentiu.

— Ok. Parece-me razoável. Prepare-se para uma humilhação histórica, das mãos

do oponente mais poderoso que já enfrentou.

— Desejo-lhe o mesmo. Em dobro.

O garoto voou de onde estava, sem titubear. As chamas esverdeadas o

envolveram por completo e ele disparou como um balaço na direção de seu

oponente com os punhos em riste, cortando os ares. Heidlich aguardou. Os ciclos

de experiência o ensinaram a ter paciência e esperar. Moveu um pé para trás

lentamente e, no momento exato, esquivou-se do golpe que passou a centímetros

de seu rosto, levantando alguns poucos cabelos loiros. Sorriu e fez um muxoxo em

seguida. Um erro crasso que atingia noventa e nove por cento dos arrogantes que

enfrentava: partir para o ataque sem estratégia alguma. Jamais precisou lutar com

esse tipo de adversário. Deixava que suas próprias arrogâncias os derrotassem. Não

parecia que desta vez seria diferente. O garoto derrapou sobre a grama. Grandes

tufos de terra voaram do chão quando os pés se esforçaram para frear o corpo do

golpe frustrado. Arreganhou os dentes para o oponente que continuava sereno e

inexpressivo do outro lado. Girando o corpo, ele se preparava para atacar

novamente.

— Vai demorar muito? — arguiu Heidlich, irônico. — Não querendo te apressar,

mas há uma cerimônia de coroação me aguardando e eu queria tomar um café

antes...

O garoto o encarou, furioso. Correndo pela grama, descabelado e possesso de

raiva, o jovem estudante alcançou Heidlich. Desferiu uma série de socos e chutes

em alta velocidade, com um ímpeto irracional em uma sede desenfreada por ganhar

aquela luta e provar que vencera a famosa Lenda de Eurodian.

Um, dois, três, quatro, cinco, seis.

Um na direção do rosto, outro no estômago, depois um no peito e no rosto outra

vez, um gancho de baixo para cima e por fim um bem no queixo. Heidlich

esquivou-se de todos eles com paciência e precisão. Anteveu cada golpe

instintivamente, algo que seus ciclos de experiência como Guardião o ensinaram.

Entrementes, oponentes inexperientes e presunçosos sempre desferiam ataques

extremamente ingênuos e previsíveis. Havia um padrão nesse tipo de rival. Eram

ávidos por acertar qualquer parte do corpo mais exposta, a esmo. Avançavam sem

um método preciso ou sem estudar os movimentos do adversário.

O garoto rodopiou em seu próprio eixo quando o último soco acertou o ar a

centímetros do queixo de Heidlich. Trocando os passos, o pé direito se enroscou

com a perna esquerda e ele cambaleou três vezes. Heidlich deu um único golpe,

com uma paciência inabalável. O tapa de quatro dedos marcou o pescoço abaixo

198


da nuca do jovem guardião. Perdendo o equilíbrio, ele girou algumas vezes até

estatelar-se de cara na grama.

Os outros sete garotos ao redor caíram na gargalhada. Os olhares se arregalavam

para a trágica e cômica batalha no centro da arena. Aplaudiram com vontade a

vitória espetacular de Heidlich, que não precisou mover muitos músculos e

tampouco suar para ganhar a luta. Heidlich abaixou-se, próximo ao buraco na

grama onde a cabeça de seu rival estava enterrada.

— Pelos meus cálculos, conforme combinado, acredito que você me deve seu

primeiro nome.

— É Aron. Aron Lohntrak. — A voz do garoto soou como um sussurro abafado,

carregado de resignação. A coragem e petulância para encarar o algoz de sua

humilhante derrota haviam desaparecido.

Heidlich riu. No fundo, apesar das boas risadas que conseguiu arrancar, estava

decepcionado. Imaginara que encontraria um oponente à altura, com disposição e

técnica, na Academia dos Guardiões. Ledo engano. Pegando seu gibão largado

sobre o campo, partiu tranquilamente rumo aos portões de saída, sob um coro de

risadas estridentes dos sete rapazes ao redor do perdedor.

O céu assumia tons mais escuros e o sol sumia no horizonte: a noite logo cairia

sem pudor. O encontro entre tons laranjas e azuis se misturavam na abóbada celeste

e criavam nuances convidativas para o aconchego de uma cama quente ou de um

bom cordeiro assado com batatas. A temperatura caía progressivamente. O

anoitecer trazia consigo um frio insuportável. As lareiras das casas logo estariam

acesas e as fogueiras crepitando pelas ruas mais gélidas. A cerração que despontara

desde o início da tarde impedia de afirmar com precisão que horas do dia deviam

ser. A névoa pálida cobria os arredores do castelo e até as altas torres e edifícios da

Academia eram mergulhados em densas nuvens cinza-chumbo. Os carvalhos

próximos assumiam tons fantasmagóricos e a brisa chiava ao assoprar pelas

esquinas da cidade. Heidlich recordava de um dia assim. Um dia em que desviou

sua rota dos campos de treinamento e foi encontrar-se com uma garota atrás do

grande salgueiro próximo à ponte baixa. O local preferido para suas conquistas. O

dia também era cinzento, de névoa quase palpável sobre as ruas e com o sol

terminando de se pôr. Graças a uma trilha de folhas avermelhadas, colocadas

estrategicamente, conseguiu chegar ao local indicado. O suor escorria frio. Pensava

em como seu nervosismo era notório. Será que isso assustaria a garota? Era a

primeira vez que saía com uma menina. Não obstante, a mais bonita da Academia

e também a mais cobiçada. Quatro ciclos mais velha do que ele. Os medos de sua

adolescência eram tão bobos e infantis. Ínfimas preocupações se comparadas aos

perigos e desventuras que teria de enfrentar ciclos mais tarde.

Como nossas preocupações são tão idiotas quando somos jovens.

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Heidlich se escorava sobre o tronco do antigo carvalho, forçando os olhos para

enxergar além da cerração. As folhas o guiaram até o local combinado. Será que ela

já havia chegado? Ou tinha se perdido no caminho? Teria ele chegado tarde de

mais?

Uma mão macia o puxou de relance e seus lábios foram pressionados pelos lábios

quentes e molhados dela. Eram suaves e delicados. As línguas de ambos se

enroscaram, de uma forma tão natural que nem ele mesmo imaginava que

aconteceria. Os amigos o perturbaram tanto com inúmeros papos sobre beijos de

língua: qual era a forma certa, como deveria fazer, quais cuidados deveria tomar, o

que não poderia fazer em hipótese alguma, que ele nem sabia por onde começar.

Colocara na cabeça que não arriscaria em seu primeiro beijo. As paranoias que o

perturbaram ficaram instantaneamente irrisórias diante dos beijos ardentes e

molhados que experimentava embaixo da árvore.

Ela era experiente. Dezesseis ciclos de idade. Ruiva e de cabelos encaracolados.

Popular. Dona de pernas grossas e seios grandes e firmes. Dizia-se na escola que

era uma menina inalcançável. O tipo de garota que seleciona quem serão seus

amigos e amigas, com quem deseja ficar. Devia ter beijado outras bocas. Beijava de

forma intensa. Saboreava o gosto do beijo de um modo lascivo. Sabia o que fazer

e como fazer. Onde pôr a língua e com que intensidade. Heidlich, na inexperiência

de seus doze ciclos de idade, seguia os movimentos dela, imitando tudo o que ela

fazia. Colocava as mãos onde ela o guiasse. Era como se dançassem uma valsa. Ela

era a ilustre bailarina, a estrela do espetáculo. Ele apenas deixava-se conduzir pelos

seus passos. Ficou ali por vários minutos, que para ele pareceram horas, apreciando

o delicioso gosto dos lábios da menina mais atraente da Academia.

Como estaria Mel Leantar?

Depois daquela noite, a garota marcante de seu primeiro beijo nunca mais o

procurou. Virou as costas e retornou para o castelo da Academia em meio ao

negrume dominante da noite. Enlevado, ele sentia-se completamente aparvalhado.

Os pensamentos focavam em cada segundo dos beijos arrebatadores, de suas mãos

apalpando os grandes seios e esfregando-se em direção à bunda empinada. A partir

de então, Heidlich criara um padrão: adotou o velho salgueiro próximo à ponte

baixa como o palco de suas conquistas posteriores. Seduzia belas ruivas de cabelos

encaracolados e seios fartos depois dos treinos e se atracava com elas em seu lugar

secreto.

As palmas das mãos repousavam sobre o mármore gelado da ponte. De chofre,

pegou-se sorrindo para o nada. O barulho das águas correndo abaixo dos seus pés

alinhava-se aos costumeiros sons da noite na floresta nos arredores do palácio.

Como de praxe, alguma ave grasnava alto, morcegos voavam baixo em breves

rasantes fugindo de qualquer indício de luz e ecoavam o barulho de suas asas

agitando-se em alta velocidade, um grilo emitia um ruído intermitente.

200


Um burburinho quase inaudível ressoou em algum ponto. A nostalgia e as

lembranças ficaram de lado e Heidlich apurou os ouvidos. Curioso, tentava

entender de onde vinham os cochichos misteriosos. As vozes eram tímidas, mas

sussurravam em grande velocidade. Pressurosas, aparentavam não querer que

ouvissem o que fofocavam. Esforçavam-se para não serem notadas de onde quer

que estivessem. Heidlich esticou o pescoço. Não conseguia decifrar a fala engrolada

e confusa. Vinha de algum lugar do rio. O timbre era suave. Lembrava a correnteza

dos rios ou a queda das águas de uma cachoeira. O burburinho, porém, soava como

uma canção entoada às pressas, como se o tempo fosse escasso para poder entoar

aquela melodia.

Contornou a ponte e os pés chapinharam sobre o rio; as pedrinhas no fundo

rolaram de suas posições incólumes. A densa névoa e as sombras da noite o

impediam de ver muito a frente. Enxergava apenas a terra enegrecida da margem

onde seus pés estacaram e as raízes retorcidas dos carvalhos no entorno que se

lançavam em direção às águas doces e serenas. Com água na altura dos tornozelos,

as vozes ficaram mais próximas. Heidlich pressionou o indicador sobre um dos

ouvidos para tentar compreender. Cantada de forma dócil, a estrofe passou a fazer

algum sentido em seus tímpanos.

Não há felicidade onde ela está. Contra os ventos lança a sua dor sem par.

Heidlich aprumou-se.

Não há felicidade? Dor sem par?

Outra voz reverberou pelas águas e uma nova canção se ouviu. A melodia era

sorumbática, aflitiva até mesmo para quem estava acostumado à solidão, como ele.

Mesmo tapando um dos ouvidos, não conseguiu compreender a letra. Conjurando

uma lanterna de fogo azulado, o guardião seguiu a lúgubre canção.

Evoca a magia. Que brilho e beleza! Não há, entretanto, quem dê jeito em sua tristeza.

Correu pela margem do rio. Movido pela curiosidade e temor pelo que acabara

de ouvir, seguiu contra a correnteza, tomando cuidado redobrado com as raízes

protuberantes e galhos quebrados ao longo do caminho. A curiosidade aumentava

à medida que as vozes como som de águas agitadas iam ficando mais nítidas. A

triste canção aglutinava-se aos versos que começavam a fazer sentido.

As lágrimas rolam, ela se sente só. Oh, pobre donzela. Que dó! Que dó!

Outra voz surgiu. Essa, porém, não cantava. Reclamava com ferocidade ainda

que seu timbre estivesse um tanto embargado.

Um estrondo ribombou.

O barulho de pedras explodindo e rolando, afundando em sequência sobre as

águas do rio ecoaram próximo a onde Heidlich estava. Ele estacou.

— Eu não consigo entender. — A voz chorosa ressoou abafada. Destilava uma

raiva incontida em cada palavra. — Por que ela quer que eu case com um homem

desconhecido?

201


Heidlich sabia que conhecia aquela voz, mas não conseguia lembrar de onde.

Outro estouro estrugiu. Mais pedras despencaram e emitiram aquele “ploft-ploft”

quando imergiram nas águas.

As florestas que ladeavam o rio foram desaparecendo à medida que avançava em

direção às canções e ao barulho de pedras explodindo. Heidlich se viu embaixo de

um gigantesco portal: um arco de tijolinhos rudimentares, com duas colunas

pitorescas de pedra em cada uma das laterais: as antigas galerias subterrâneas do

palácio real. Era o lugar mais profundo e inóspito do castelo. Abrigou um poderoso

calabouço, em tempos remotos, onde centenas de trolls e elfos sombrios foram

encarcerados até terem suas sentenças proferidas. Atualmente, não havia mais do

que algumas celas corroídas pela ferrugem, pútridas e esquecidas e a captação de

água para as dependências do palácio nos níveis mais profundos.

Quem estaria explodindo pedras no lugar mais abandonado e esquecido de

Badorian?

Embrenhando-se pelas galerias, Heidlich finalmente descobriu a quem

pertenciam as vozes que perseguia. Próximo a uma velha coluna, com grandes

buracos na alvenaria e uma pilha de pedras destruídas ao redor, uma esfera de magia

vermelha surgiu. O círculo flamejante arremeteu-se com fúria sobre uma parede e

explodiu dezenas de tijolos e blocos de cimento em um estrondo que reverberou

nas paredes da galeria subterrânea. No lado oposto aos escombros que desabavam

e rolavam em direção ao rio, Ivyna observava os gigantescos rombos provocados

na parede, mas sem necessariamente prestar muita atenção neles. A expressão era

de imenso desgosto. A mente se concentrava em algo que perturbava sua paz e

transformava as extensas galerias no alvo de sua raiva.

As maçãs do rosto tão avermelhadas quanto seus longos cabelos ruivos presos

num coque, Heidlich achava engraçado sua expressão enfezada e o quanto ela

puxara os traços da mãe e quase nada do pai. O rosto lembrava um pêssego maduro,

mais pelo formato arredondado. As bochechas se avolumavam e destacavam o

queixo redondo toda vez que ela sorria. O nariz era pequeno, levemente arrebitado,

assim como o de Falla. Entrementes, o destaque real era para seus intensos olhos

verdes. Nas poucas vezes em que Heidlich esteve em Badorian, nos intensos

invernos, recordava-se do brilho encantador daquelas irises hipnotizantes. Tinham

o poder de fazê-lo esquecer as preocupações e intempéries da vida para dar plena

atenção à irmã caçula. Nesse dia, o olhar dela estava marejado, carregado de uma

angústia inquietante; os lábios balbuciavam um lamento quase inaudível, como se

praguejasse baixinho. Novas esferas de magia voaram das mãos de Ivyna,

arrancando mais tijolos e ribombando as explosões pelas galerias.

Em meio às sombras da noite, Heidlich subiu pela margem do rio e adentrou a

caverna. Escorou-se sobre uma das colunas da galeria e cruzou os braços.

Observava com curiosidade a demonstração de poder e raiva da irmã. Duas ninfas

202


das águas brincavam perto do alvo da guardiã, dançando entre os escombros e

cantando com deboche sobre sua tristeza. Essas criaturas podiam ser terríveis

quando queriam. As ninfas tinham uma habilidade peculiar: cantar melodias e

estrofes encantadoras, ao ponto de arrebatar os corações dos ouvintes e de até

hipnotizá-los com suas fascinantes notas guturais; mas quando queriam, eram

capazes de infernizar a alma mais serena com versos demoníacos, carregados de

sarcasmo e deboche, como acontecia naquele momento. Atiçada pelas provocações

musicais, Ivyna conjurava novos balaços escarlates, tentando acertá-las.

— Eu odeio ela!

— Odeia quem?

Os olhos assustados de Ivyna encontraram o esgar intrigado de Heidlich parado

na entrada da caverna. Com a escuridão da noite, ele não passava de um vulto sem

rosto próximo às colunas; um halo de luz de algumas poucas algas luminescentes

projetado em suas costas destacava sua silhueta escusa.

Uma rajada rubra voou dos dedos ágeis da guardiã por instinto, com o susto que

tomou. Como uma esfera de raios vermelhos, ela iluminou o interior obscuro em

disparada até a entrada da galeria. O som era como de uma lâmina cortando o ar.

Heidlich só teve tempo de conjurar um escudo e se encolher atrás dele. O balaço

eletrizante explodiu contra o escudo. As magias azul e vermelha emitiram longos

silvos agudos; faíscas multicoloridas se dispersaram em variadas direções no choque

estridente. Mais forte do que ele, Heidlich sentiu o corpo desprender-se do chão e

ser arremessado para trás com violência.

Ivyna se sobressaltou. A jovem correu até a entrada da caverna, desesperada. As

ninfas das águas deslizaram pelo rio em seu encalço soltando risadinhas abafadas.

Heidlich estava estirado dentro do rio, de braços e pernas abertas. A água gelada

empapava suas vestes. As botas se encharcaram e molharam as meias de algodão.

Cada milímetro de seus músculos doía com o golpe inesperado. Uma pontada

aguda nas costas indicava que certamente havia quebrado alguma coisa. Uma ou

duas costelas, talvez? Sentira essa dor uma vez: na época, fora arremessado por um

ataque de um ogro-de-musgo que o pegou desprevenido; ficou quase dois meses

deitado na cama até que as cinco costelas quebradas voltassem para o lugar. As

pernas ainda tinham algum movimento. Só estavam encharcadas. Uma dor

lancinante no cocuruto deixava sua vista um tanto turva ou talvez fosse apenas a

água mesmo que invadira seus olhos. O golpe poderoso o pegou desprevenido. O

ímpeto da magia fez seu corpo voar pelos ares até encontrar as águas geladas do rio

e o fundo de pedras cobertas de musgo. O olhar aflito de Ivyna a poucos metros

de seu rosto foi a primeira coisa que vislumbrou quando a visão voltou ao normal.

— Você está bem, irmão? Eu não tive intenção, é que você disse aquilo, eu não

consegui te identificar na escuridão e vi que você...

203


— Tudo... bem... — Heidlich interrompeu, esforçando-se para se sentar, ainda

um pouco zonzo e ensopado.

— Eu não sabia que você estava ali... Geralmente, venho aqui sozinha para...

Ivyna emudeceu.

Heidlich esgueirou-se para uma pedra seca com alguma dificuldade. Ainda

recobrando as forças e massageando o topo da cabeça, observou a expressão de

tristeza no rosto da irmã.

— Essa foi a maior expressão de poder que vi desde que retornei a Badorian.

Ivyna ergueu a cabeça; os olhos arregalaram-se para o irmão.

— É verdade.

— Mas eu te peguei desprevenido e...

— Eu conjurei um escudo na hora e perdi para seu balaço.

Ivyna arregalou ainda mais os olhos, se é que era possível. Um sorriso tímido ia

surgindo em seus lábios, como o de uma criança que ganha um presente surpresa.

— Mas eu não entendi... — falou Heidlich, secando os cabelos molhados com

fogo mágico e amarrando-os em um rabo de cavalo. — Você gritava de ódio por

alguém. Quem é que você odeia?

Ivyna fez um muxoxo. Tão rápido quanto surgia, o sorriso desapareceu. As

sobrancelhas se contraíram e as orelhas ficaram avermelhadas. A alegria repentina

em seu rosto deu lugar à raiva.

— Não quero falar sobre isso.

— Você sabe que se você não falar, as ninfas vão cantar para mim o que eu quiser

saber. Basta eu pedir que entoem essa canção irônica que me atraiu até aqui.

A garota comprimiu os olhos na direção de Heidlich e cruzou os braços.

— Ok, ok — disse Ivyna, contrariada — Mamãe quer que eu me case com um

tal de Lorde Ropher. Um casamento arranjado por ela com um guardião qualquer

e que eu mal conheço de Amistelar. Parece até que é ela quem está casando. Nunca

vi tanta afobação e pressa. E ela não entende que não é isso o que eu quero e...

Heidlich balançou a cabeça.

— E o que você quer?

— Você quer mesmo saber? — inquiriu Ivyna, o sorriso tímido tomando espaço

em seu rosto outra vez. — Meu sonho era ser... Guardiã... como você.

Heidlich arqueou as sobrancelhas.

— Isso é simples: basta você participar das audições da Academia dos Guardiões

— falou Heidlich em tom simplório. — Com meu retorno, a vaga está aberta e o

ciclo de audições começará em breve. Mas o desafio não será fácil. A Academia

sempre teve bons candidatos.

Ivyna murchou.

204


— Eu já falei com a mamãe, mas ela não quer. Diz que não nasci para isso. Que

este não é meu futuro. Que meu destino é casar com um nobre, me tornar condessa

ou duquesa e apoiar meu marido.

— Falarei com ela, minha irmã — disse Heidlich, pondo-se de pé. — Afinal,

dentro de algumas horas, serei coroado rei. Acredito que a palavra do rei tem algum

peso nas decisões em Badorian.

Ivyna ergueu os olhos. Arregalados de alegria, eles se abriram em gratidão para

Heidlich.

— Agora, quero você me faça um favor. — Heidlich fez surgir um novo escudo

de magia, dessa vez cercando-o por todos os lados. — Atire seu melhor balaço

contra mim. Vamos ver se você é digna de se tornar a Protetora de Eurodian.

Ivyna não se conteve de alegria. As ninfas ao seu redor davam risadinhas

histéricas e se afastaram do caminho dos dois irmãos. Movendo os dedos para

conjurar a magia, pequenos raios avermelhados e brilhantes se aninharam,

formando uma nova bola de poder. De suas mãos, a esfera mágica se avolumou.

Dessa vez, era o dobro do tamanho da primeira. Disparando como uma flecha em

alta velocidade, a esfera de energia deu um rasante tocando a superfície do rio.

Filetes de água gelada se ergueram e a magia chocou-se estrondosa contra a redoma

azul-celeste que envolvia Heidlich.

O guardião suportou por alguns segundos. Aumentou a intensidade da magia um

pouco mais. Os pés começaram a se levantar do chão. O corpo ia perdendo as

forças diante da esfera potente de magia que o atingira. Então, ele foi arremessado

pelos ares novamente.

205


Capítulo Quatorze

Pacto Oculto

À luz bruxuleante dos candelabros daquela pequena alcova em um dos pontos

mais obscuros e inóspitos de Cruisand, a Cidade dos Luminares, Gavir Onobka se

divertia com o minúsculo e finíssimo pedaço de carvão que usava como lápis,

sambando em seus dedos magricelos.

O barulho do carvão arrastando sobre o pedaço de papel diante dele só não era

mais alto do que o crepitar das chamas das inúmeras velas espalhadas ao redor, que

só tornavam o ambiente em que estava ainda mais soturno e tristonho.

Entrementes, ponderava sobre qual a necessidade de estarem em um lugar escuso

e tão distante de tudo e todos. Um buraco em Vandir-Lepit, uma cidade às margens

de Cruisand e que carregava o legado sombrio dos maiores piratas que já existiram

durante a Era de Bronze não era ideal para figuras como ele. O condado pacato

abrigava poucos pobres homens do campo e um sem fim de sujeitos mal-encarados

dos mais variados trejeitos, entre os quais, anões de aspecto pútrido, homens

truculentos e uma legião de duendes avarentos. Contudo, aquela reunião na calada

da noite no antro mais profundo e secreto de um lugar tão tenebroso tinha sido

uma ideia de Sisno.

Sisno Sannfrye.

Aquém ao silêncio mortal e incômodo do aposento mal iluminado, Gavir encarou

os rostos dos seis amigos elfos ao redor da mesa redonda com uma profunda

expressão tediosa estampada em sua face.

Malik Mavrio tamborilava os dedos sobre a mesa. Vez ou outra, a cabeça pendia

para trás observando com curiosidade a penumbra das chamas vacilantes sob o teto

baixo. A sonolência era notória no sacramentador. A expressão curiosa por vezes

dava lugar a um cansaço refletido através dos grandes olhos alaranjados que se

fechavam de estupor. Mavrio fora o sacramentador de Infortúnio, até que Menfesis

decidiu por destituí-lo. A razão, expressa de forma muito clara na presença de toda

a conferência em Purysia era, nas palavras do próprio Primeiro-Líder da Ordem, “a

notória incapacidade e incompetência em manter a ordem temporal em Elstoen e

nas ilhas das Águas Solídiras, seu octaedro”.

206


Do marasmo de Malik, Gavir observou uma conversa em cochichos suspeitos e

pressurosos entre Soobo Yanui e Rodris Rannidge. Por vezes, Yanui jogava os

longos cabelos castanho-claros por sobre o rosto. Parecia não querer que ninguém

conseguisse ler seus lábios. No mínimo, suspeito. Não tinha muita certeza se podia

confiar nela. Mesmo com a imponência de seu sobrenome, as constantes falhas em

previsões colocavam em dúvida sua sabedoria. Talvez Arturo não estivesse tão

errado assim em depor Yanui. Rodris arregalava os olhos a cada nova expressão da

amiga elfo ao seu lado e suas caretas denotavam um espanto cavalar com o que

quer que Soobo estivesse lhe contando. Ambos eram amigos de longa data e

possuíam uma confiança mútua. Diziam que Rodris só chegou onde chegou pela

alta influência de Yanui e por se aliar às pessoas certas no momento oportuno. Uma

série de fatos coincidentes e premeditados o fizeram ser nomeado o sacramentador

do octaedro de Solidão. Mas sua era também fora interrompida sem rodeios. Para

ele, Menfesis sequer fez questão de elencar um motivo. Decretou o fim de sua era

perpetatem sem justificativas.

Soobo, no entanto, era esperta. A malícia que ela tinha para analisar o todo e fazer

os movimentos corretos faziam-na ter certo destaque. Possuía uma sagacidade

ímpar: a postura era impecável, sabia se posicionar, sabia o que dizer no momento

certo e até direcionar palavras e pessoas para que tudo saísse conforme sua vontade.

Não obstante, fora a sacramentadora de Perspicácia. Infelizmente, não conseguira

ser perspicaz para reverter sua deposição.

Nelis Naziv era o sacramentador mais pacato e menos interessado em estar ali.

Claro, havia nele o mesmo sentimento dos demais e um forte desejo de justiça.

Dele, talvez ainda mais. Mas Nelis fora o grande puxa-saco de Menfesis por muitos

ciclos e seu jeito devagar de ser para lidar com os adventos da malha do tempo não

condiziam com o impacto que o octaedro de Fúria provocava. Menfesis fora

categórico: “Fúria está se auto-destruindo e Nelis Naziv acompanha, com ardente

marasmo, as vibrações incomuns como um recém-nascido que aprecia seu leite

materno”. Duras palavras para alguém nodoso e versado em adulações como o

velho e lento Naziv.

O maior medroso dos Oito, logo ao lado, movia com intensa rapidez os olhos

verdes para cada canto execrável da pocilga em que estavam enfurnados. Gavir

conjecturava se Poledores Früg estudava alguma forma de fugir dali. De todos,

Poledores era o mais controverso sacramentador do grupo. Os conhecimentos

sobre a sacramentação eram pífios, sua postura incoerente e as previsões as mais

desastrosas e errôneas possíveis. Entretanto, fora o primeiro dos Oito nomeado

por Menfesis para assumir Serenidade. Teria sido ele, pensava Gavir, o potencial

motivo da decisão inesperada e contraditória de Menfesis. Mas somente um poderia

dizer se sim ou se não. Um que ainda não se fazia presente.

207


Escondido na penumbra de um candelabro, estava o mais soturno dos

sacramentadores: Nikolai Nodovra. Impassível, o elfo do octaedro de Trevas

sustentava a mesma expressão de contragosto desde que adentraram o recinto.

Recostara-se em uma das cadeiras, apoiou os cotovelos sobre a mesa e pressionou

as pontas dos dedos da mão direita com os da mão esquerda. Desde então,

aguardou. Sobre ele, Gavir arriscava dizer, Menfesis cometera uma tremenda

injustiça. Nodovra, apesar do jeitão obscuro e da seriedade de sempre, era o mais

assertivo em todas as previsões e o mais aplicado em conhecer as muitas formas de

vibração da malha do tempo. Contudo, o Supremo-Chanceler de Purysia limitouse

a dizer que seu tempo se esgotara. Nikolai sequer teve o trabalho de questionar

Menfesis como os demais fizeram. Balançou a cabeça, taciturno, girou nos

calcanhares e sumiu do Oráculo do Tempo tão impassível quanto estava naquele

momento.

Ao redor da mesa, duas cadeiras estavam vazias.

Notoriamente, uma era de Sisno Sannfrye. O ex-sacramentador de Hegemonia

era o mais articulado dos Oito e o grande anfitrião a convocar esta reunião de última

hora. Possuía um tino assombroso para a política com os humanos. Sabia destacar

as qualidades de seus aliados na dose certa, sem jamais parecer adulador e

conseguia, através de suas preleções, convencer até os mais céticos na multidão que

parava para ouvir suas palavras. Nas conversas mais íntimas, era versado em

qualquer tipo de assunto, ainda que se abstivesse de temas que confrontassem as

próprias crenças. Era excepcional em sua habilidade de manter diálogos curiosos e

interessantes mesmo nos contextos mais enfadonhos. A sabedoria profunda era

inquestionável, ao ponto de todos tratarem-no, carinhosamente, pela alcunha de

maedor. Na língua élfica, maedor significava algo muito próximo do conceito de

professor, porém com mais adjetivos implícitos, como um mestre que orienta seu

aluno até que se torne um mestre também. Era um sujeito dotado de uma vasta

sabedoria, humildade e desenvoltura. Que tinha a capacidade de não apenas ensinar,

como também envolver-se com a evolução de seus alunos para um aprendizado

completo. Sobre Sannfrye, sim, todos concordavam que a atitude de Menfesis fora

precipitada, desonesta, acintosa e ausente de qualquer sabedoria. Sisno e Menfesis

eram muito próximos e Sannfrye fora o maedor do Primeiro-Líder da Ordem por

muitos ciclos, antes deste ascender ao posto atual.

A segunda cadeira vazia era um mistério. Quem seria o nono convidado para esta

reunião peculiar? Havia uma coisa silenciosa, incômoda, que unia a todos naquele

ambiente inapropriado para sacramentadores e que agitava o âmago de cada um.

Algo que magoava, suscitava ódio, rancor, tristeza, mas acima de tudo uma

confusão sem precedentes: todos foram depostos por Menfesis antes de

completarem suas eras como sacramentadores. Uma profanação, um sacrilégio na

cultura dos elfos sacramentadores. Sentiam-se traídos, desolados, como se algo lhe

208


tivesse sido arrancado sem pudor e de uma forma beligerante. Então, se haveria

um nono convidado, ele certamente chegaria acompanhado de Sisno. Gavir só

torcia para que esta nona pessoa não fosse o Primeiro-Líder da Ordem ou mesmo

Alezeia, de quem ele não tinha muito certeza sobre a lealdade. O antigo pacto de

não violência dos elfos sacramentadores poderia ser quebrado ali, naquele

momento, se Sannfrye adentrasse o recinto acompanhado de Arturo Menfesis.

Dado os ânimos exaltados e o sentimento de revolta, estava convicto de que algum

deles partiria para uma agressão física se isto acontecesse.

As dobradiças tomadas pela ferrugem da pesada porta de carvalho do aposento

mal iluminado rangeram tão alto que fizeram Gavir e Poledores pularem de suas

cadeiras. Soobo e Rodris interromperam o papo misterioso e Malik Mavrio

despertou de imediato da letargia que o dominava. Os olhares sobressaltados

miraram o corredor de entrada com intensa expectativa.

Da penumbra das grandes velas derretendo lentamente, um elfo de nariz aquilino

e queixo protuberante surgiu. Os cabelos prateados, arrumados em uma imensa

trança que descia até o meio de suas costas, refletiam o brilho das chamas

tremeluzentes. Sisno Sannfrye carregava uma marcante expressão de confiança,

como se trouxesse uma saída simples e eficaz para os problemas que abatiam os

demais sacramentadores ao redor. E, de fato, eles descobririam que o elfo trazia

muito mais do que uma solução.

— Boa noite, estimados amigos — cumprimentou Sisno, sem tomar assento. —

A sabedoria das eras vos acompanhe.

— A ti também! — responderam todos, quase em uníssono, como mandava a

tradição.

— Fico muito feliz e imensamente grato que tenham atendido meu chamado para

esta reunião, de bom grado — falou Sisno. A Gavir incomodava o fato de o velho

sacramentador de Hegemonia falar do extremo canto do aposento, ainda em pé.

Nas antigas tradições, alguém que não se assenta a uma mesa rodeada de amigos

era tido como mal educado. — Peço mil desculpas pelo fato de nossa reunião

precisar acontecer em um ambiente tão...

— Medonho?

— Inóspito?

— Repugnante?

— Eu diria, inapropriado mesmo — concluiu Sisno, sorrindo sem graça. —

Contudo, infelizmente, não podemos arriscar a descoberta do motivo de nossa

reunião e acho deveras prudente que sejamos cautelosos quanto a esse encontro.

Dadas as circunstâncias, necessitamos estar acima de qualquer suspeita.

— Que quer dizer com isso, Sannfrye? — questionou Malik.

209


— Nobre Mavrio, pilar maestral de Infortúnio, cuja erudição ecoa através dos

tempos, — prosseguiu Sisno, tecendo seus elogios ao colega sacramentador,

mirando-o com intransponível calmaria, mas ainda em pé — creio que seja notório

que há um denominador comum para nossa estadia nessa abominável alcova,

mesmo que com brevidade. Um fator que nos une e que de modo contrário não

nos traria a tal lugar.

— Arturo Menfesis — sibilou Nikolai.

— O Primeiro-Líder da Ordem dos Sacramentadores cometeu uma heresia

abominável e condenável. Numa decisão livre de sabedoria, intempestiva e

inescrutável, abreviou nossas eras a frente dos Oito Octaedros, lançando sobre

nosso governo do tempo uma vergonha execrável e que está refletida em cada rosto

aqui presente, externada das mais variadas formas.

As expressões dos elfos ao redor se contorceram. Alguns com profunda

consternação, outros tomados por uma cólera irrefreável.

— O que quero dizer, inestimáveis colegas, — prosseguia Sisno, falando tão

convicto e tão assertivo no uso das palavras que era impossível não se envolver

com seu discurso — e não pouparei palavras em afirmar, ainda que me doa

profundamente ter de compartilhar isto, é que: Arturo Menfesis está deixando sua

era ser dominada pela falta de governança.

— A sabedoria de Menfesis foi suplantada por algo pior do que a ignorância —

inferiu a bela Soobo; em sua voz sempre mansa e suave carregava uma nota de

desgosto.

— Ouso dizer que há mais sabedoria nos humanos e mágicos do que em Menfesis

— acrescentou Rodris, observando as expressões reflexivas dos demais colegas.

— E nos substituir por sacramentadores mais jovens, inexperientes, antes

mesmos de completarem sua era preparatorem é ultrajante e vergonhoso para nossas

eras perpetatem! — exclamou Poledores Früg, menos irrequieto e assustado do que

antes.

— Muito pior, eu diria, é substituir vossa sabedoria e presença, nobre Sisno. Se

Menfesis nos considerava o escalabro de sua liderança, que nos revogasse a

atribuição antes do fim de nossas eras, como o fez, mesmo a contragosto de nossas

vontades. Mas outorgar a mudança de uma figura tão prestigiada como a sua, por

uma jovem elfo que ainda não terminou a própria preparação como

sacramentadora, é o ápice de débil ignorância.

— Como era mesmo o nome dela?

— Dhara — exclamou Sisno, visivelmente desgostoso. — Dhara Lovrens, da

Pacífica Tulich.

O maior erro de Menfesis, e isto era um senso comum entre os exsacramentadores

presentes ali, além da herética e inédita decisão de interromper

suas eras perpetatem, fora a traição cometida pelo Primeiro-Líder ao seu grande

210


apoiador, Sisno. Sannfrye jamais traíra a confiança de Arturo e, por vezes, envolveuse

em calorosas discussões sobre questões do tempo, ao ponto de perder amizades

de longa data, pelas inveteradas conjecturas de seu aconselhado. A resposta para

tantos ciclos de cumplicidade e aconselhamento veio em forma de indiferença,

destituindo e lançando em um poço sem fim de vergonha o elfo mais sábio e

proeminente entre os Oito.

Nikolai se moveu na cadeira e fez um esgar esquisito. Gavir seria capaz de afirmar

que o ex-sacramentador de Trevas estava contrariado. Então, Nodrova comprimiu

os olhos e mirou Sisno como se o fosse acusar de um crime hediondo.

— Não acredito que estamos aqui unicamente para você afirmar o óbvio,

Sannfrye — proferiu Nikolai; cuspia as palavras como uma cobra que destilava seu

ardiloso veneno. — Há algo que perturba Menfesis há muito tempo, mas que seu

gênio controlador e autoritário não nos permite descobrir. Agora, destituídos de

nossas posições e com as atitudes intempestivas de Arturo, jamais estaremos cientes

do que o abate. Então, se há um motivo plausível para esta pífia reunião no pior

lugar do mundo, compartilhe conosco imediatamente.

Sisno aguardou o elfo terminar sua fala com austera paciência. Nodovra era um

dos que nutria um desafeto por Sannfrye por causa de Menfesis.

— Nobre Nikolai, — falou Sisno — é notório que esta reunião não serve como

palco para que possamos chorar nossas lamúrias diante do ocorrido há seis meses

e que ainda permeia o íntimo de cada um com um cordel de dúvidas e

questionamentos. Tempos tenebrosos como esses carecem de medidas urgentes.

Vim para lhes apresentar a solução e rogar para que, com sabedoria, deliberem

sobre esta resoluta jornada.

Na expectativa da fala do ex-sacramentador de Hegemonia, os elfos ao redor da

mesa arregalaram os olhos para a porta de entrada. Afinal, Gavir e seus demais

companheiros descobririam porque Sisno ainda permanecia em pé e a quem

pertencia a nona cadeira vazia.

Os passos abafados ecoaram para dentro do recinto, estalando sobre o chão de

madeira apodrecida. A escuridão para além de onde as velas iluminavam impediam

de vislumbrar quem era o último convidado desta reunião secreta. À luz da chama

oscilante, Gavir vislumbrou os contornos de um homem de estatura mediana,

envolvido em um longo capão. Quando irrompeu pela tênue faixa de luz, sete

sacramentadores emitiram um grunhido invariável de surpresa.

August Moronov abaixou o longo capuz e revelou seu rosto nodoso, marcado

por rugas. Cumprimentou os elfos com um breve aceno e rapidamente se sentou

na derradeira cadeira vazia. Acompanhando o Chanceler dos Guardiões, Sisno

finalmente tomou assento ao redor da mesa.

— Pois bem, — Sisno quebrou o silêncio provocado pela surpresa e o leve tom

de asco que se desenhava nos rostos dos demais elfos com a presença de Moronov

211


— todos concordamos que a ausência de governabilidade de Menfesis está

provocando sérias consequências à ordem e harmonia da malha do tempo.

Continuarmos de mãos atadas enquanto Arturo desencadeia catástrofes piores do

que as que ele já causou, está fora de cogitação. Fiz questão de trazer a figura

imponente de Lorde Moronov até nossa reunião, pois ele tem informações

importantes a compartilhar.

Os elfos miraram a expressão soturna de Moronov ao lado de Sannfrye, ainda

que estivessem estupefatos com a presença do conhecido guardião naquela reunião

secreta.

— Nem todos vocês sabem, acredito, mas estive em Purysia há poucos dias —

falava Moronov, cruzando as mãos e apoiando-as sobre a mesa. O tom de voz era

sombrio, como se estivesse prestes a compartilhar algo aterrador. — Como bem

sabem, o Conselho dos Guardiões e a Ordem dos Sacramentadores sempre foram

grandes aliados para a perpetuação e cumprimento das Três Leis Primazes. Nós,

protetores da vida e da magia dos povos e nações, e vocês, elfos sacramentadores,

os responsáveis pela harmonia da malha do tempo e espaço. Antigos aliados desde

tempos remotos. Em épocas de crise, unimos forças para mitigação de quaisquer

perigos. Lutamos, aguerridos, por uma harmoniosa vida em sociedade; pela

perpetuação de uma paz plena entre as raças. Contudo, em minha última visita, me

foi negado comparecer ante a presença de Menfesis...

— Sim — interrompeu Mavrio — Arturo decretou a Lei Meditatem. Estamos há

meses, desde que fomos destituídos, tentando nos reunir com ele. Inicialmente, ele

não queria nos receber. Depois, decretou um período indeterminado para

meditação.

— Espero que vossas iminências não estejam esquecendo de que ele também

selou o Acervo Sacramental por uma era — pontuou Rodris, meneando a cabeça.

— E que agora vive enfurnado em seu reduto secreto, o lugar mais alto e

inalcançável de Purysia, a Torre da Bússola... — inferiu Nikolai; os olhos

comprimidos no esgar mais descontente entre os presentes.

— Não é para compartilhar informações das quais todos nós conhecemos e que

balançam com profundo desgosto nosso interior, que convidei Lorde Moronov

para esta reunião secreta — interrompeu Sisno, alteando a voz ante ao burburinho

crescente que se espalhou ao redor da mesa. — Nosso convidado tem dados

relevantes a compartilhar.

O silêncio instaurou-se e os olhares curiosos, ainda que alguns desconfiados, se

concentraram na cadeira em que August Moronov repousava, aguardando sua

oportunidade de dar continuidade à mensagem que tanto queria transmitir.

— Depois que o protetorado me informou da lei Meditatem, Menfesis irrompeu

pelas portas do Oráculo do Tempo. Reparei que algo não estava correto no mesmo

instante. A surpresa com a presença do Primeiro-Líder da Ordem em público era

212


notória. Tanto para a guarda de Purysia, quanto para os sacramentadores da ilha.

Se, como disseram, Arturo estava na torre mais alta do Oráculo, possivelmente,

avistou a aproximação de minha embarcação.

Moronov pigarreou e tossiu alto e seco duas vezes. Alcançou uma garrafa de

vinho, encheu uma caneca de madeira e virou em um gole só.

— A maior surpresa de todas, no entanto, — prosseguiu o guardião, as atenções

dos elfos vidradas em seu discurso — e que agora, com grande pesar, compartilho

com vossas iminências, é que o Supremo-Chanceler da Ordem dos

Sacramentadores rompeu com o Conselho, ignorando nossa tentativa de

aproximação.

Grunhidos horrorizados ecoaram em uma sequência quase perfeita. Os

sacramentadores ao redor levaram a mão à boca, espantados com a declaração do

guardião. Moronov fez uma breve pausa, balançando a cabeça para cima e para

baixo, confirmando o senso comum generalizado sobre o recinto: Arturo Menfesis

não estava em seu juízo perfeito.

— Acredito eu, nobres amigos, que todos concordamos com uma coisa. — Sisno

estava de pé; agitou as mãos para baixo como um maestro a conduzir sua orquestra

em uma canção sobre uma drástica tragédia, arrogando a atenção de todos. —

Menfesis não tem condições morais e éticas de permanecer à frente da Ordem.

Nosso líder, infelizmente, como dizem os humanos e mágicos, ‘perdeu a cabeça’.

— E o que é que você sugere, Sisno? — questionou Gavir; diante de uma situação

tão desesperada, que ameaçava abalar as estruturas da mais ancestral religião élfica

de Eirin, não conseguia vislumbrar uma luz no fim do túnel.

— É. — Nodovra inferiu: — Invadir Purysia e tentar depor Menfesis é suicídio.

O protetorado está juramentado a ele e fortemente armado para protegê-lo.

— Buscar ajuda é preciso — pontuou Sisno, misterioso.

A confusão estampou os rostos dos elfos de imediato. Moronov se pôs de pé e

encarou Sannfrye. Ambos balançaram o rosto, como se prestes a contar o que

tinham combinado antes de adentrar a alcova em que se reuniam.

— O Conselho dos Guardiões não pode intervir nessa briga. O Tratado de

Paragon delimita as fronteiras de atuação de guardiões e elfos fiéis à sacramentação.

O tempo está nas mãos dos sacramentadores. Mas sabemos que existe um elfo

capaz de subjugar o protetorado e de conduzir o Oráculo do Tempo para a

harmonia e o equilíbrio novamente.

— O único a quem Menfesis, um dia, realmente temeu. O único capaz de

restabelecer nossas posições e a ordem na malha do tempo — continuou Sisno.

As expressões de confusão e desconfiança eram notórias. Gavir possuía um

lampejo em sua memória sobre uma pessoa com as características descritas por

Sisno, mas preferia não acreditar que era sobre essa pessoa a quem Sannfrye se

referia. Embora fosse enfático em afirmar que havia alguém com a capacidade de

213


devolver a glória da sacramentação aos presentes ali, o esgar denotando um

contragosto incontido do ex-sacrametador de Hegemonia evidenciava que ele não

estava completamente certo quanto à opção que sugeria. Pouco a pouco, o esgar

de dúvida generalizado se converteu em descontentamento.

— Vocês não podem estar falando de...

— É a nossa única opção, Nodovra!

— Por céus! Onde está vossa sabedoria? Perderam a razão?

— É justamente pela nossa ausência de opções diante desta crise, Rannidge, que

estamos considerando o tal.

A discussão generalizada instaurou-se. Era o elfo a quem todos temiam. Gavir

meneava a cabeça, observando Moronov tentar argumentar com Nikolai e Soobo

que levantavam a voz de forma veemente. Rodris, Malik e Naziv debatiam

acaloradamente. Poledores se agitava no próprio assento; por vezes, seu olhar

mirava o negrume do teto como se considerasse a opção um verdadeiro desastre.

— Senhores, — trovejou Sisno e as demais vozes emudeceram. Todos os olhares

se concentraram no sacramentador — se vossas iminências consideram o desatino

do estabelecimento de uma nova Era das Trevas ou ainda pior, valha-me a

segurança do tempo, uma Era do Caos, Adryan Varnor das Terras Distantes é nossa

única salvação diante da desordem provocada por Arturo Menfesis.

— Isto considerando que ele sobreviveu após a dura condenação que lhe

infligimos.

— Acredito que deva ser do conhecimento de todos as histórias e boatos a

respeito dele?

— Algumas...

— Não todas...

— Os contos mais relevantes afirmam que Adryan Varnor não apenas sobreviveu

ao banimento, como... se tornou rei.

O silêncio mortificante dominou o vestíbulo mal iluminado. Excetuando a

confusão do guardião, além da aparência assustada dos oito elfos ao redor da mesa

redonda, um medo inigualável estampou suas faces. Embrenhar-se por uma

solução com tantos reveses era um caminho tortuoso e permeado por infindáveis

incertezas e ninguém parecia convicto se tal sugestão era uma solução sábia para o

problema que lidavam.

— Espero que vossa iminência rememore, Sisno, — Nikolai encarou Sannfrye

de forma petulante — de que Adryan Varnor foi acusado de profanação ao tentar

alterar o curso da malha do tempo e que todos os presentes neste lugar foram

cúmplices da investida de Menfesis ao condenar Varnor, quando o mesmo era o

Primeiro-Líder da Ordem dos Sacramentadores.

— Não se esqueça, nobre Nodovra — falou Sisno; a paciência do elfo havia se

esvaído de vez ainda que a educação não fugisse de seu tom de voz — de que

214


ascendemos aos Oito Octaedros devido ao apoio dado a Menfesis. Não apenas nós,

mas boa parte dos demais sacramentadores espalhados sobre Eirin e em Purysia

concordamos que o crime de Varnor, à época, era condenável ao exílio por tamanha

profanação, visto nossas leis ancestrais. O próprio Adryan se resignou diante de sua

sentença.

— Faremos um acordo! — exclamou Moronov; o guardião percebera a tensão

entre Sisno e Nodovra a seu lado aumentando — Ofereceremos o perdão a Adryan

Varnor e a chance de ter sua redenção. Com uma oferta tão generosa, não há chance

de ele recusar.

— Mas como o encontraremos? Não sabemos nem ao menos se ele está vivo...

— Teremos de ir até às Terras Distantes.

Outra discussão permeou entre o grupo.

— Não há outra saída, nobres amigos. — Sannfrye se impôs novamente. — O

que não podemos é continuar inertes diante da situação que corrói a sacramentação

e tudo pelo que prezamos até hoje. Iremos até as Terras Distantes e buscaremos

Adryan Varnor para que se torne nosso aliado nesta luta pelo que é sadio e correto

para a harmonia do tempo. É por isto que Lorde August Moronov está aqui. O

Conselho dos Guardiões está do nosso lado e nos suportará no que for preciso.

— Uma comitiva os acompanhará — inferiu Moronov. — Estarei reunindo uma

comitiva com os melhores alquimestres da Confraria de Zavir. Eles os

acompanharão desde as Florestas Abundantes de Frandar até as Terras Distantes

de Turmis. Nos encontraremos novamente dentro de vinte dias. Partiremos logo

após o Baile do governador Bovir, em Cruisand.

Ninguém se arriscava a falar nada. O terror e as incertezas que abarcavam os

rostos dos elfos ao redor, à penumbra da fraca luz das velas, dizia por si só o que

todos estavam pensando.

— Senhores, — Sisno quebrou o silêncio; compreendia a mensagem estampada

sobre cada face ao seu redor — uma nova era se aproxima. A glória da

sacramentação exigiu muito de nós em tempos passados. Mais uma vez, exige

sacrifício. Se é pela ordem do tempo, eu me prontifico e acredito que os senhores

estarão comigo nesta jornada rumo à esperança pela qual ansiamos. Alegrem-se,

pois estamos juntos mais uma vez para deixar nossos nomes marcados na história.

215


Capítulo Quinze

Madrugada de Sangue e Cinzas

Um estampido repentino ressoou. O barulho foi tão intenso e ensurdecedor que

as estruturas do castelo balançaram com a força do que provocou o estrondo.

Saltando da cama, Zakkar se pôs de pé, alarmado. O suor que descia em bicas

empapava o pijama de algodão e a camisa teimava em não querer se descolar do

peito e das costas. O coração a mil balançava dentro do peito e ele cambaleou pelo

quarto, afetado pelos resquícios do sono. Aturdido com os fragores intermitentes

que sacudiam as paredes e faziam a poeira do teto alto cair, rapidamente se livrou

da parte de cima do pijama e lançou-o em qualquer lugar do dormitório, a perder

de vista.

Um novo estouro arremeteu-se. Seguido de um vozerio acalorado nos andares

inferiores do palácio, um ruído enigmático de metal tilintando, como violentos

duelos de espadas, se espalhava pelos demais cômodos do primeiro piso.

Zakkar hesitou.

A mente deixou de lado o estupor do sono. Atarantado e mais acordado que

nunca, dirigiu-se às pressas até a janela para entender o que estava acontecendo. A

lua imperava em um céu enegrecido e sem nuvens, completamente pontilhado de

estrelas. A Floresta Demoníaca estava em paz. Mergulhada em completa escuridão,

as folhas das árvores não se moviam. O vento costumeiro que agitava os galhos

dos olmos, carvalhos e faias desaparecera. A imensidão de folhas, galhos e troncos

assustadores era envolvida por uma desconfiada tranquilidade naquela noite.

Próximo às muralhas do castelo, no ponto mais distante da entrada principal da

fortaleza, Zakkar viu fogo. Uma tórrida camada de fuligem subia em densas espirais,

pairando sobre o ar em variados pontos distintos. Mas, de onde estava, não

conseguia ver a origem das chamas. Labaredas aleatórias e uma fumaça misteriosa

era tudo o que conseguia vislumbrar de onde estava, como se estivessem dando

uma festa pirotécnica no principal acesso ao castelo. Os corredores que ladeavam

os pátios externos logo abaixo, estavam mergulhados pela serenidade do negrume

da madrugada.

Destravou o ferrolho da janela e escancarou-a. O cheiro de mata orvalhada

invadiu suas narinas. Como amava aquele aroma suave, que era a única coisa que o

216


livrava da inquietação pelo vislumbre diário e tenebroso da Floresta Demoníaca. A

sensação agradável do odor da vegetação desapareceu quase que instantaneamente.

A atmosfera da noite era pesada. O ar quente esbofeteou-lhe as faces e fez os olhos

lacrimejaram quando o vento mudou a direção. Em seus ouvidos, vozes explodiam

em súplicas e gritos de horror ecoavam de vários pontos. O ressoar de espadas, o

entroncamento de escudos e lanças e o barulho de flechas que zuniam pelos ares

em algum lugar também repercutia por ali. Entortando-se para fora, Zakkar

segurou-se como pôde sobre os umbrais da janela para vislumbrar a frente do

palácio. Os olhos arregalaram-se. Acreditava que suas vistas o traíam. Beliscou-se

duas vezes para ter certeza de que aquilo não era um sonho.

A cidade estava em chamas.

Uma voz trovejante bradou alguns andares abaixo. Passos em marcha eclodiram

de um jeito ameaçador. Zakkar estremeceu. Agitado, irrompeu pela porta do

quarto, atravessou desabalado os corredores enegrecidos e vazios do terceiro andar

e arremeteu-se de costas contra uma pilastra. Respirando ruidosamente, não

conseguia conter o tremor pelo medo que o consumia. O corpo pulsava as batidas

frenéticas de seu coração e ele se agarrava à pilastra, ouvindo muitas vozes alteradas

e engroladas que ecoavam lá de baixo. O suor escorreu frio ainda que esta fosse

uma madrugada quente. Correu por sua espinha morrendo sobre as calças do

pijama. Passos fortes, metálicos, estalavam no térreo. Escorado onde estava, Zakkar

espreitou de esguelha o hall de entrada do palácio.

Homens encapuzados dominavam o lugar. Demônios mascarados e cobertos dos

pés à cabeça de vestes e armaduras negras, brandiam suas lâminas e cravavam as

espadas sobre os guardas reais sem a menor hesitação. Abandonavam corpos

moribundos no meio do caminho, banhando o mármore do salão com o sangue de

seus inimigos. Avançavam pelas escadarias com rapidez. Gritavam alvoroçados em

um dialeto desconhecido. Intrépidos e ávidos guerreiros, arrombavam portas,

assassinavam mais soldados, arrastavam homens e mulheres para o centro do hall,

colocando-os em fileira. Zakkar reconheceu rostos desesperados, conduzidos até

os pés de seus algozes. Tordund Greenham e o filho Arold estavam ajoelhados e

de cabeça baixa. Choravam de soluçar, sem entender o que estava acontecendo.

Olotiel e Ansell Ayarza também se viam reféns na fileira, vestindo pijamas, prontos

para encararem um destino cruel. Tia Prisca e tia Tressilda também estavam lá,

tremendo de medo, forçadas a ficar de joelhos e com as mãos para trás.

Os reféns enfileirados, enrolados em seus robes e roupas de dormir, gritaram e

choraram alto de repente. À frente dos demais, dois deles seguraram um homem

calvo e de porte avantajado pelos braços com alguma dificuldade. Os pulsos e

pernas estavam amarrados com cordas grossas. Colocaram-no de joelho e ergueram

seu rosto com ferocidade.

— Isso é uma traição! Bastardo maldito!

217


Zakkar estremeceu. Reconheceu a voz grave e trovejante de imediato.

Uma quarta figura surgiu. Andando cambaleante, trajava vestes negras e uma

armadura reluzente como os demais. Um capuz encobria seu rosto e uma coroa

drapejada de chifres o diferenciava dos outros soldados mascarados.

Desembainhou sua espada com a serenidade de quem está prestes a afiar uma

lâmina e fincou-a no coração de Lorde Bartel em um golpe cirúrgico. O rei gemeu

em um grunhido inaudível com o baque. Sangue jorrou de seu peito e os olhos

arregalados encararam ponto algum. Os outros dois soldados ao redor largaram os

braços do rei e repetiram o gesto do homem coroado com chifres curtos. Enfiaram

suas lâminas sobre a jugular e as costas do soberano de Miliat. Manchas vibrantes

de tom escarlate inundaram o piso. O brilho no olhar do rei desapareceu e o sopro

de vida abandonou seu corpo dilacerado.

Um lamento doloroso irradiou de repente. Um coro inquietante de súplica e

agonia ecoou sobre o hall acompanhado de copiosas lágrimas. Gritos de lamúria,

soluços inconsoláveis dos Greenham, Ayarza e Vycard ajoelhados poucos metros

atrás do rei que jazia inerte naquele momento sobre uma poça de sangue que

aumentava de tamanho a cada instante.

Dominado por um ceticismo caótico que o paralisou contemplando a cena

inacreditável no primeiro andar, Zakkar acompanhou os homens puxando as

espadas do corpo do próprio pai. Os olhos escancarados de Lorde Bartel e a boca

aberta com sangue a jorrar como rubras cascatas eram uma visão aterradora, como

advinda de um terrível pesadelo. Não queria acreditar que a cena que vira era

verdade. O mundo ao seu redor desmoronava e enterrava com ele seus

sentimentos, suas emoções, a esperança. Lágrimas escorreram sem que as impedisse

de seguir seu curso e marcaram o chão frio como manchas cinzentas. Queria se

derramar em prantos e lamentar a morte dolorosa de seu amado pai. O coração

estava em pedaços. O vazio no fundo do peito era contumaz e perturbador como

se a lâmina do desespero atravessasse seu peito e o ferisse de morte. Uma aflição

lancinante, intransponível e crescente. Conforme se avolumava, a angústia

aterradora se convertia em uma fúria incontrolável. A ponta dos dedos queimava.

Chamas elementais emanavam nas palmas de suas mãos e ardiam com intensidade

irrefreável.

De chofre, tombou.

Um soco atingiu suas costelas. Não conseguiu sorver o ar. Uma mão tapou sua

boca com tamanha violência que ele não pôde reagir. Outro braço meteu-se por

debaixo de suas axilas e envolveu seu tórax. Arrastaram-no pelo corredor. Uma

porta rangeu e escancarou-se. Com a mesma brutalidade com que foi aberta, ela se

trancou em um baque surdo e repentino. Zakkar foi jogado ao chão de qualquer

maneira.

218


Respirou fundo, puxando o ar com tanta força que os pulmões doeram. O

mundo girou ao seu redor. Borrões confusos e disformes sambavam em suas vistas.

Engatinhou sobre o piso gelado, de olhos fechados. Desorientado, tentava

recuperar o fôlego. Apoiando-se de lado sobre o dossel da cama, esquadrinhou o

perímetro ao redor para tentar entender onde fora arremessado. Granito cinzento

e polido do chão ao teto, uma lareira crepitando as últimas chamas da madrugada,

pequenos quadros de florestas e cachoeiras drapejando as paredes e outro maior e

mais imponente dele próprio, com um longo capão vermelho, apoiando o peso do

corpo sobre Vingança de Aladar, a antiga espada de seu avô. Aos poucos, as

imagens iam tomando forma e começava a reconhecer o lugar. Era seu dormitório.

Dois cliques secos ecoaram. O ruído metálico da chave sendo girada duas vezes

não passou despercebido em meio ao coro de súplicas e os estampidos atroadores

nos andares inferiores do palácio. Alguém trancara a porta com rapidez. Iam matálo

ali mesmo e naquele instante. Cerraram o aposento para que ninguém soubesse.

Não lhe dariam sequer a oportunidade de poder se recuperar e encarar seu algoz.

Zakkar virou-se, disposto a lutar pela vida da maneira que pudesse. Os olhos

ainda turvos miravam a entrada do quarto. No peito, a dor contundente fazia seu

tórax vibrar. As costelas ardiam e as pernas teimavam em não obedecer aos seus

esforços para se levantar e lutar.

— Rápido! Levante-se!

A voz pressurosa sibilou no extremo do aposento. Engrolou as palavras em alta

velocidade. A frase não passava de um chiado trêmulo e carregado de inquietação.

Quando a visão voltou ao normal, o queixo de Zakkar despencou.

O mesmo braço que o arrastou até ali assomou-se para a beira da cama, onde

tentava se erguer e apressou-se para servir de apoio.

— Deixa de ser molenga, Zakkar. Fica de pé. Estamos sem tempo...

— Sem... tempo? — Zakkar respirava com dificuldade.

Selena o encarava com uma tensão acirrada nos intensos olhos castanhos.

Lançava olhares preocupados para a porta a todo instante e dali para o amigo

guardião tentando se recuperar do golpe inesperado. Enfurnada em uma camisola,

com um longo robe turquesa cobrindo tudo, os cabelos castanho-claro estavam

bagunçados e a ardente agonia estampada em seu rosto o assombrava de modo

perturbador.

— Selena, o que está... — Zakkar ainda tinha dificuldade para respirar direito. A

dor era aguda nas costas, na altura dos pulmões. O soco da amiga guardiã fora forte

o suficiente para deixá-lo desconjuntado. — O que está... acontecendo?

— Há uma conspiração em Miliat, Zakkar. Uma força vultosa dominou a cidade

com imenso poder militar — falava Selena, correndo tanto com as palavras que se

atrapalhava em fazer o amigo atarantado entender o que dizia. — A capital foi

sitiada por um assombroso exército desconhecido. Eles não carregam bandeiras,

219


mas possuem armas terríveis e uma legião devastadora e implacável. Uma guerra

acabou de estourar. Nossos exércitos e o povo foram pegos de surpresa. Estão

sendo massacrados nas ruas lá fora. Casas, mercados, bancos, ruas e praças, tudo

está sendo queimado e pilhado. Agora, eles invadiram o castelo!

Zakkar encarava a amiga com espanto. A cabeça voltava a latejar. O peito ardia

como brasa viva. Não acreditava no que estava ouvindo. Como isso aconteceu de

uma hora para outra? O choque de realidade o atingia com um impacto violento.

Queria crer que tudo aquilo não passava de um terrível pesadelo.

— Eles... assassinaram...

Selena murchou. Lágrimas caíram de seus olhos.

— Tio Bartel está morto, Zakkar! — A voz embargada de Selena sobrepujou a

quietude repentina do quarto. — Eu sinto muito.

O jovem guardião balançou a cabeça. No silêncio constrangedor que se instaurou,

era impossível conceber a verdade causticante que então abatia os dois.

— Fomos traídos, Zakkar! — exclamou Selena. Apressada, correu até a janela e

escancarou as vidraças. O ar cálido da noite invadiu a atmosfera abafada provocada

pela lareira do quarto.

— Como... como você sabe?

— Tenho minhas suspeitas... — disse Selena, misteriosa.

A garota meteu a cara para fora do janelão e observou os arredores do terceiro

andar.

— Você precisa fugir e agora!

— Mas... eu... — balbuciava Zakkar, desnorteado.

— Esse exército mascarado é poderoso e não veio com o único objetivo de tomar

a cidade. — Selena engrolou. — Vieram obliterar sua família.

— Mas... como... e quanto a você, Selena?

— Não é a mim que eles querem. Estão arrombando portas, invadindo

dormitórios, gritam pelo seu nome lá fora. Eu tenho um plano — falou Selena.

Agarrou as mãos do amigo e sorriu, confiante, para ele. Apesar do medo que o

envolvia, Zakkar sentiu uma ponta de esperança nascendo em seu coração. As

palavras da amiga lhe passaram confiança. Era a única perspectiva que possuía

naquele momento.

Selena puxou alguns lençóis e cobertores e, com a ajuda de Zakkar, amarrou uns

nos outros fazendo uma corda.

— Espero que isso aguente... — falou Selena, amarrando uma ponta da corda no

dossel da cama e jogando o restante janela a fora.

— Mas... Selena... eu posso usar meu poder e voar daqui para...

— Não! — exclamou a garota, encarando o amigo no fundo dos olhos — Você

não pode, aliás, você não deve manifestar a sua magia. Isso entregaria sua posição

e eles chegariam rapidamente até você.

220


Zakkar arregalou os olhos. Fitou a seriedade no olhar da guardiã sem esboçar

nenhuma reação.

Brados ameaçadores ficaram mais intensos nos corredores contíguos ao

dormitório. Alguém gritava por Zakkar. As portas de carvalho dos demais

dormitórios se agitavam enquanto eram escancaradas pelo exército inimigo. Vozes

agonizantes ecoavam pelo castelo, sucumbindo nas mãos de seus algozes. Novas

explosões estremeceram as paredes do palácio.

Selena e Zakkar se entreolharam, assustados.

— Vá, agora! — ordenou a guardiã e Zakkar agarrou a corda para descer de rapel.

— Venha comigo — falou Zakkar, lançando olhares preocupados para a porta

trancada.

— Não posso... Não agora — disse Selena, vacilante. — Preciso cobrir seus

rastros. Não posso permitir que descubram que você fugiu. Forjarei sua morte e,

então, poderei fugir também.

Zakkar agarrou a mão de Selena; os olhos se enchendo de lágrimas.

— Fuja. Corra para longe daqui! — falou Selena; os olhos marejavam e a voz

ficava embargada outra vez. — Mas, em hipótese alguma, manifeste sua magia. Eles

não podem descobrir que você está vivo.

Zakkar mirou outra vez os olhos da amiga como se suplicasse para que ela o

acompanhasse em sua fuga. Balançou a cabeça, afirmando que seguiria seus

conselhos.

— Eu ficarei bem — pronunciou Selena como se lesse os pensamentos do amigo.

— Agora vá e fique vivo!

Deslizando pela corda de lençóis e cobertores amarrados às pressas, mas com nós

apertados e firmes, os pés descalços de Zakkar tocavam os tijolos frios e ásperos

da torre de seu quarto enquanto descia o mais rápido que conseguia, sem deixar de

lado uma exacerbada cautela. Temia que as mantas entrelaçadas não aguentassem

seu peso e rasgassem de alto a baixo a qualquer momento. O dormitório ficava no

terceiro andar. Acima de sua cabeça, as janelas dos demais aposentos no quarto e

quinto patamar permaneciam trancadas; mergulhadas em um denso negrume,

imergiam em profundo silêncio, incólumes, enquanto o castelo reverberava o

assalto traiçoeiro que o invadia, violentado por uma horda militar sombria e

desconhecida; aliados de uma conspiração silenciosa que tomara a cidade e o

palácio na calada da noite. Os pátios laterais externos abaixo eram abraçados pelo

breu da madrugada. Os archotes ao longo da extensão estavam apagados. Os

conspiradores não tinham ocupado aquele caminho. Haviam conseguido o que

queriam: adentraram o castelo pela porta da frente e sem muita resistência, o que

fazia aumentar o turbilhão de pensamentos que ocupava sua mente de que alguém

de dentro os traíra, facilitando a entrada do inimigo. A escuridão da noite abarcava

221


os flancos do palácio. A única esperança de Zakkar era a ausência de luz e a

expectativa de que ninguém o visse fugindo.

Era impossível enxergar onde as batalhas estavam mais acirradas da posição em

que estava, mas a orquestra macabra da guerra e seus variados sons perturbadores

ribombavam sobre os ouvidos do jovem guardião. As lutas entre as legiões de

soldados, as explosões cada vez mais próximas, madeira estalando ruidosamente

com as chamas que consumiam tudo na cidade: ouvia cada detalhe assolador, cada

gemido angustiante de dor e sofrimento, agitando-se em seu íntimo, sem poder

enxergar ou fazer nada.

Contemplou a distância até o chão na metade da descida. Ainda faltava um

bocado e ele, sem camisa, com os cabelos revoltosos e bagunçados, usando

somente a parte de baixo de sua roupa de dormir, teve uma pequena vertigem;

ansiava que o emaranhado de lençóis e cobertores enrolados não vacilasse e

suportasse seu peso mais um pouco, até que os pés tocassem terra firme outra vez.

Não queria nem imaginar o que aconteceria se caísse daquela altura. Na certa,

morreria. Ou no mínimo, quebraria todos os ossos das pernas, costelas e braços e

possivelmente o crânio e a ideia mirabolante de Selena teria sido em vão.

Estacou, de chofre e segurou a respiração. O coração acelerava e o desespero de

não conseguir vislumbrar o que acontecia ao redor o engolfava. Uma sensação de

desespero parecia tentar se apossar de seu corpo e dominar sua mente acelerada.

Novas explosões retumbaram; as paredes sacudiram com tanto vigor que Zakkar

acreditou que elas desabariam sobre sua cabeça nos minutos que seguiram. Mirou

outra vez a janela de seu quarto tomado por uma aflição sem precedentes. As

vidraças permaneciam escancaradas. Lá em cima, entreviu o brilho fraquíssimo do

que ainda restava das brasas da lareira de seu quarto. Algum ponto do castelo fora

atingido por novas explosões, mas nada que ainda afetasse aquele lado da fortaleza.

As palavras de Selena martelavam em sua cabeça e um cordel infindável de

dúvidas pipocava: como ela sabia o que estava acontecendo? Se ela forjaria sua

morte, como escaparia? Novas lágrimas marejavam seus olhos, mas ele se negava a

voltar a chorar. Vivia a soma de seus piores e mais aterradores pesadelos em uma

única noite. Nem mesmo os velhos medos infantis dos dragões e das criaturas

temíveis que habitavam a floresta se aproximavam dos temores que o alcançavam

naquele momento. Vira o pai ser assassinado a sangue frio por um algoz cujo rosto

ele sequer conseguiu ver. Jamais poderia clamar vingança contra o homem que

ceifara a vida de seu pai sem nenhum pudor. Os demais Ayarza e Greenham

ajoelhados, aguardavam para serem executados ao fio da espada. E quanto à sua

mãe? E o tio Bernat? Logo, arrancariam eles de seus dormitórios para sofrerem o

mesmo desatino que alcançou seu pai.

Como Selena escaparia de uma morte iminente?

Então, o inesperado aconteceu.

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A corda de lençóis oscilou. Vozes exaltadas ecoaram do terceiro andar. Uma

porta de madeira se escancarou de forma violenta. Quatro, cinco, talvez seis timbres

diferentes gritavam, ameaçadores: brados masculinos exaltados, nenhum de Selena.

Pequenas explosões em sequência ribombaram e o ruído de pedras estourando

retiniram metros acima. As vozes emudeceram.

Outra explosão. Causticante, ensurdecedora.

Selena colocara seu plano em prática.

As estruturas do castelo balançaram como nunca. Tijolos e escombros voaram

de seu dormitório. As janelas de vidro se estilhaçaram em milhares de pedaços.

Chamas intensas lamberam o terceiro andar, queimando as janelas do quarto e se

assomando para os andares superiores. Os lençóis e cobertores amarrados

incendiaram no mesmo instante e Zakkar despencou de onde estava antes que as

labaredas pudessem alcançá-lo.

A dor que sentiu ao cair sobre o chão frio do pátio externo era indescritível.

A perna direita latejava de forma pungente. Um gosto acre de sangue invadiu sua

boca. Cada parte do corpo estremecia. A certeza era de que algum osso se quebrara.

Despencara de mais de três metros. A vontade de gritar, clamar por socorro, ficou

entalada na garganta. Emitir qualquer som em tais circunstâncias era assinar a

própria condenação. Rilhou os dentes, evitando que os gemidos de dor escapassem.

Apalpou as pernas no escuro à procura de uma fratura exposta. Felizmente, estava

tudo intacto.

Os dedos deslizaram, irrequietos, pelos braços e cabeça. Pela forma como o

cocuruto latejava, temeu por hemorragias ou uma lesão mais grave. Usando o brilho

intenso das chamas no terceiro andar como lanterna, avistou a sombra de algumas

poucas escoriações no antebraço direito e cortes que ardiam nas palmas das mãos.

Precisava agir rápido. Estava em uma corrida desenfreada contra o tempo. A

explosão em seu quarto, ainda ardendo em chamas, logo chamaria a atenção do

exército negro. Soldados inimigos marchariam pelos corredores do pátio à procura

de fugitivos. Se o encontrassem ali, agonizando de dor, seria um triunfo dessa

conspiração contra sua família. Um troféu para a horda dos conspiradores que

matavam sua família sem pestanejar.

Alcançar a Floresta Demoníaca era seu único objetivo e refúgio. Uma grande

ironia do destino. Justo o lugar que mais temeu em sua vida tornara-se a melhor

saída contra o infortúnio que se abatera sobre o clã dos Ayarza. Sabia que poucos

se arriscariam a adentrar a densa mata fechada na calada da noite, conhecendo a

fama das lendas e monstros que habitavam aquele lugar. O maior medo que o

devorava era se ele próprio conseguiria sobreviver se encontrasse uma dessas

criaturas infernais.

Esgueirando-se lentamente nas trevas dominantes, Zakkar seguiu pelo pátio se

arrastando. A noite era abafada. A ausência dos ventos marinhos ou da brisa gélida

223


que soprava do interior das florestas era uma constante perturbadora, na

madrugada mais quente e sangrenta que já presenciara. A tensão e o medo pelo que

poderia encontrar no caminho faziam-no pingar de suor. Segurando o braço

dolorido com uma das mãos, seguiu em frente o mais rápido que seu corpo

machucado permitia, escorando-se à muralha do palácio.

Havia uma saída.

Embora fosse arriscado e possivelmente a mais perigosa possibilidade de fuga,

era a única alternativa provável de que se lembrava: o portão noroeste. Era uma das

quatro principais entradas de soldados para o interior das muralhas. Forjado em

ferro fundido, era tão resistente e maciço quanto o paredão em que estavam

inseridas e ficava logo abaixo dos quatro maiores fortes de vigia. Era um acesso

estratégico, muito utilizado em eras anteriores para abastecer o castelo em tempos

de guerra; também era o caminho ideal para a necessidade de fugas da família real,

no advento de invasões como as que aconteceram durante a Era das Trevas,

estando interconectado com as passagens secretas do palácio. Seriam de grande

utilidade se tivessem escapado a tempo. A vantagem de Zakkar era estar a poucos

metros depois do pátio por onde seguia. Uma das preocupações que o assolava era

a probabilidade de encontrar o portão trancado. A outra, ainda pior e assustadora,

deparar-se com o exército inimigo no meio do caminho.

As sombras da noite bailavam sob à penumbra da luz do luar. As silhuetas dos

pinheiros, arcos e pontes que adornavam o pátio dançavam diante de seus olhos

como vultos fantasmagóricos. Titubeou inúmeras vezes, temeroso se tal decisão era

a mais correta. O coração acelerado, os espectros informes se agitando na escuridão

se confundiam com algum inimigo perambulando por ali à sua procura. A batalha

para além das muralhas do castelo reverberava em seus ouvidos. Espadas e escudos

se atracavam com evidente ferocidade, em tantos pontos distintos que era

impossível precisar onde as lutas não aconteciam. Gritos de terror e brados de

guerra ecoavam contra os céus e invadiam seus tímpanos como suplícios de almas

perdidas enfrentando demônios ameaçadores. Flechas e lanças zuniam pelos ares e

estacavam nos mais diversos alvos que cruzassem suas rotas. Cinzas e fagulhas

coruscantes pairavam sobre os céus de chumbo da noite.

Deslizando em silêncio, castigado pelas dores e escoriações da queda, Zakkar

alcançou um balaústre no meio do caminho. Tateou com cuidado na escuridão e

seus dedos tocaram a superfície lisa e enregelante do mármore. Tentava puxar pela

memória se seguia pelo caminho correto. A fraca luz do luar indicava a escadaria

de acesso ao forte noroeste e dali até o portão e, se não estava enganado, aquele era

o caminho que garantiria sua liberdade.

Correu pelos degraus com o coração dando cambalhotas no peito. O suor

escorria das têmporas e morria em seus olhos, ardendo com veemência. Apoiava-

224


se nas paredes e no corrimão, na expectativa de alcançar o portão. Um barulho o

fez hesitar de repente.

Brados impetuosos ecoaram. Vozes impacientes articulavam entre si no mesmo

idioma engrolado e confuso que ouvira dentro palácio; apesar de escutá-los em alto

e bom som, Zakkar não conseguia entender uma única palavra e sobre o que

conversavam; se perguntava se já não tinha ouvido aquele dialeto abissal em algum

lugar, pois não se parecia em nada com os idiomas falados em Aladar. Passos

apressados correram de um lado a outro e tornaram-se cada vez mais próximos; de

imediato, prendeu a respiração e aguardou. Por sorte, ninguém apareceu para

descobri-lo escondido atrás da pilastra.

O barulho de espadas retinindo se intensificou. Os embates eram arrasadores,

para além de onde espreitava. Gemidos agonizantes dos que morriam reboavam de

vários lugares. Apoiado sobre a pilastra de mármore no fim da escadaria, Zakkar

respirou fundo e, reunindo o pouco de coragem que lhe restava, espionou o

perímetro.

Um mar de tochas incandescente se espalhava pelos jardins. A legião de homens

encapuzados obliterava os poucos soldados de Miliat ainda resistindo. Alguns,

poucos, lutavam com bravura. Empunhando suas espadas e escudos com coragem,

eram massacrados pela destreza e perícia das hordas inimigas.

Zakkar se embasbacava.

Matavam sem titubear. Cravavam as espadas nos guardas reais sem reservas. As

súplicas por clemência e os choros por misericórdia em nada influenciava o instinto

assassino do inimigo. Ceifavam vidas como se de nada valessem. Largavam corpos

no meio do caminho e seguiam adiante em sua sede por sangue. Avançavam pelos

jardins, marchando sobre as escadarias de acesso do castelo. Não eram meros

soldados de uma rebelião. Eram exímios assassinos. Imbatíveis. Implacáveis.

Correndo pela escuridão, Zakkar não ousou olhar para onde as lutas aconteciam.

Os olhos relutavam, insistindo em fazê-lo derramar-se em lágrimas. Torceu para

que ninguém o visse correndo pela tangente e para não ser identificado em meio

ao banho de sangue que acontecia nos jardins, até alcançar o portão noroeste.

Dois soldados de Miliat jaziam mortos aos pés da entrada do forte. Com o peito

e pescoços dilacerados, tiveram uma morte violenta pelo fio de espadas inimigas.

Pelas marcas dos golpes e cortes, resistiram bravamente, mas sucumbiram às

lâminas afiadas dos invasores misteriosos.

Puxando os corpos que atravancavam o caminho para um lado, Zakkar

esquadrinhou o entorno com redobrada atenção. O pavor crescente insistia em

querer dominá-lo mais uma vez. Mas, diante de seus olhos, só havia escuridão. O

som das espadas e das lutas impetuosas tornava-se cada vez mais distante. A força

assombrosa ignorava por completo os pátios externos e os jardins; corriam

determinados para o interior do palácio.

225


Forçando o portão de ferro maciço que se abriu para ele com facilidade, Zakkar

atravessou o portal em direção às ruas da cidade.

A cidade queimava lá fora.

Edifícios, casebres e palacetes eram abraçados por chamas volumosas como piras

colossais crepitando ao ar livre. Barricadas com troncos afiados, amarrados entre si

como estacas mortais foram montadas e ocupavam dezenas de ruas e acessos ao

castelo. A insígnia da Fênix Indomável de Miliat refletia o brilho do fogo ardoroso

sobre o peito das centenas de soldados reais mortos pelas ruas. Pilhas de corpos de

guerreiros do reino, cravados por flechas ou dilacerados por espadas e lanças,

jaziam depois de enfrentarem um destino tão sórdido e cruel. Camponeses,

mercadores, artesãos. Humanos, elfos, anões. Almas inocentes. Um número

infindável de outros miliatenses mortos com requintes de crueldade se espalhava

pelas calçadas e ruas atulhadas de sangue e cinzas.

O exército negro conseguira o que queria: embrenhara-se no cerne da capital e

devastara tudo o que estava à sua frente.

Entre chamas, corpos e barricadas, poucos bravos guerreiros resistiam pelas ruas

e vielas. A guerra era ainda mais sediciosa e ardente. Centenas de inocentes

expiravam. Soldados de ambos os lados se atracavam. Espadas e escudos

chocavam-se com estrépito. Metal contra metal reverberava em diversos pontos.

Relutando contra a vontade de defender os remanescentes em combate, Zakkar

lembrou-se do último pedido de Selena e resolveu não manifestar seu poder.

Atravessou as ruas banhadas de sangue, correndo entre corpos empilhados,

escudos e espadas, barris e tonéis em chamas, movendo-se furtivamente por entre

casebres e palacetes, correndo pelas sombras em direção ao limiar da Floresta

Demoníaca.

Parou no meio do caminho, vislumbrando o palácio e a cidade em chamas pela

última vez. As lágrimas escorreram de seus olhos. Batendo contra o peito, ignorou

a intensa dor que abarcava seu interior e engoliu a vontade de chorar. Abaixou-se,

pegou um punhado de terra apertando-o com vigor e fez um juramento: não

descansaria enquanto não descobrisse quem eram os traidores do Trono dos Ayarza

e vingaria as mortes de cada um de seus familiares e amigos, não importando o

tempo que isso poderia levar.

Penetrou o negrume sombrio da floresta, sumindo na mata sem olhar para trás.

226


Capítulo Dezesseis

Sentimentos Proibidos

Quando a tiara de cristal se acomodou em sua cabeça, Dhara sorriu aliviada.

Imóvel no extremo canto de um dos mais luxuosos aposentos do palacete, a

sacramentadora observava o próprio reflexo. Deslumbrante, seria a palavra ideal.

O longo vestido dourado reluzia como se tivesse luz própria e era simplesmente

maravilhoso. Confeccionado em seda finíssima, transmitia uma leveza ímpar, sem

deixar de ser belo e requintado, como exigia o evento. Era como se usasse um

vestido de fios de ouro. O que se dizia a respeito dos tecidos produzidos em

Achmat era que a seda e o algodão do reino vizinho a Vaelfar possuíam um brilho

diferenciado, como se pedras preciosas se transformassem em rolos de linhas e

consequentemente em valiosos tecidos. Se Vaelfar podia se gabar de sua estimada

forja, Achmat tinha com que se vangloriar: a Grande Tecelagem era mundialmente

conhecida.

Os longos cabelos castanhos e naturalmente encaracolados de Dhara eram ainda

mais enrolados e tratados de forma suave para que sua aparência fosse impecável,

deslumbrante. A maquiagem acentuava a beleza natural da elfo. Cores radiantes e

pedrinhas reluzentes realçavam o encanto de seu rosto esculpido. Um trabalho

realizado com muita paciência e delicadeza, o que exigia infindáveis horas semiestática

no vestíbulo, acompanhando as mãos habilidosas de suas arcanas.

Não se podia deixar de mencionar que este era um dia mais que especial. Uma

data importante no exaustivo calendário de visitas que precisava cumprir ao longo

do ciclo. Ainda faltavam alguns mais, como três grandes eventos do Conselho dos

Guardiões e uma convenção em Vaelfar. Mesmo que ainda não fosse o grande dia

de sua Consagração, o baile do governador de Cruisand era uma das principais datas

destacadas em sua fatigante programação. Um evento que sua mentora insistia

como sendo o mais importante de Hegemonia.

Borana Mankic era exigente. Acompanhava de perto cada evento e fiscalizava os

horários da programação anual. Marcava as datas mais importantes e aconselhava

Dhara sobre os mínimos detalhes: desde os principais lugares dos reinos visitados

até costumes e detalhes da cultura dos humanos mágicos e não mágicos e do

comportamento adequado para um sacramentador em cada tipo de situação.

227


Havia três eras, fora sacramentadora de Serenidade. Destacara-se em sua posição

durante os ciclos à frente do pilar e era uma das maiores referências da

Sacramentação Puritana. Na cultura élfica, era proeminente. Fora conselheira de

dezenas de outros sacramentadores. Dizia-se que Alezeia e o próprio Menfesis

foram aprendizes de seus preceitos. Como sua orientadora pessoal, então, fornecia

valiosos conselhos sobre comportamentos e atitudes em sociedade. Era

responsável também por proporcionar um refúgio de paz e calmaria diante do

universo tão assustador que era o convívio com os humanos, principalmente nas

festas e bailes da alta sociedade.

Ao redor e espalhadas pelo quarto, quinze elfos mais jovens e esbaforidas,

deslizando de um lado a outro, terminavam de arrumá-la com o maior cuidado

possível, trabalhando incansáveis em cada detalhe. Eram dedicadas como qualquer

arcana tinha de ser. Drapejavam com minuciosa atenção as muitas caudas douradas

do vestido, preenchendo-as com trilhas de gemas variadas: das pedras preciosas

mais comuns, como diamantes e rubis, aos metais mágicos, como turqts e nomuds

cintilantes. Retocavam a maquiagem, escovavam seu cabelo, adornando-o com

brilhos e pedrinhas de ouro. Mas também ajudavam na limpeza do quarto,

separavam as roupas que precisavam ser lavadas por tamanhos e cores e auxiliavam

no extenso roteiro do programa de reuniões e visitas da sacramentadora. Um

arcano ou arcana era primordial na religião dos elfos. Aqueles que inspiravam uma

vida dedicada à sacramentação e almejavam um futuro na hierarquia da Ordem

iniciavam seu ministério por ali. Esmeravam-se em todos os afazeres que recebiam,

ainda que suas tarefas não estivessem intimamente ligadas à magia do tempo e

espaço. Aprender a servir e estar disposto a aprender, mesmo que as atribuições

não tivessem tanto destaque, era extremamente relevante na cultura sacramental.

Se alguém não se predispunha a servir, jamais poderia estar apto a comandar.

E esta era uma função que Dhara conhecia muito bem.

Durante muitos ciclos, dos quais sempre recordava com grande carinho, fora uma

arcana. Uma época que contribuiu com intensidade para o aprimoramento de seu

saber. Se atualmente vivia na iminência de assumir um dos mais importantes

Octaedros, devia tudo à sabedoria adquirida durante os ciclos em que serviu e

aprendeu a servir como arcana. Olhando a dedicação em ajudar em uma tarefa

simples, como arrumar alguém para uma festa, de suas arcanas, recordava de como

tudo começou até culminar em sua recente nomeação.

Crescera numa família de habilidosos elfos ourives de Tulich. Os mais conhecidos

e destacados no reduto de artes élficas de Eurodian: Os Lovrens. Desde criança,

acompanhara por centenas de vezes os dedos habilidosos de seu pai no refino e

trabalho com ouro. Era um talentoso artesão. Dedicado e obstinado, era tão

envolvido com o trabalho e modelagem de ouro e pedras preciosas que ela perdera

a conta de quantas vezes o vira adentrar a madrugada, absorto e entranhado com o

228


desenvolvimento de sua arte. As pepitas e pedras brutas tomavam forma. Esticadas,

cortadas, delineadas, polidas. Produzia belíssimas joias, esculturas suntuosas e

detalhistas, obras magníficas sempre carregadas de uma paixão e esmero intensos

que o colocava no mais alto patamar dos maiores artistas élficos.

Ainda que admirasse esse amor pelas artes manuais de sua família, Dhara sempre

foi sensitiva ao tempo. A magia se manifestou muito cedo. A primeira lembrança

que tinha era de um berço. Na janela aberta com um céu pontilhado de estrelas,

vislumbrava as mãos pequeninas se agitando, como se tentasse agarrar o longínquo

espaço. O sono não vinha, mas ela não chorava. Talvez, fosse o encanto da noite

lá fora. Queria agarrar a abóbada celeste, ter aquele fulgor só para ela. Foi aí que

um brilho verde-fluorescente surgiu. Arrebatador. Hipnotizara de imediato. A luz

encantadora foi ficando maior. Irradiava como inúmeras linhas e cordas que

cobriam tudo, como uma gigantesca teia de aranha brilhante que se assomava para

cada centímetro do berço e dali para o quarto, a janela, paredes e o que mais

estivesse ao redor.

O olhar confuso da menina vidrava na claridade esverdeada. O céu ficara em

segundo plano. Tentava observar até onde aquelas linhas reluzentes iam. Moveu os

dedos gordinhos e pequeninos de um lado a outro. Ansiava por agarrar aquelas

cordas cristalinas da “teia de aranha mágica”

E as cordas vibraram.

Oscilaram de variadas formas.

Por vezes pareciam ondular, como quando você agita uma corda de pular para

cima e para baixo repetidas vezes. Algumas vezes elas tremiam, como as cordas de

um violão sendo dedilhadas. Dhara gargalhava com vontade em sua inocência

infantil. Fora seu primeiro contato com a magia do tempo.

Mas esta não era sua memória mais marcante.

Ainda muito nova, porém não mais um bebê repousando no berço, Dhara

aprendia o ofício do pai, trabalhando o ouro e as pedras preciosas. Construir

grandes artefatos tão maravilhosos quanto os dele era seu maior desejo, mas as

mãos não eram tão habilidosas para a arte. À época, acostumara-se à magia. Sempre

que queria, visualizava a intrincada malha do tempo de Brelint, a maior província

do reino de Tulich, cobrindo tudo e acompanhava com muita atenção as complexas

agitações do emaranhado de linhas e cordões que reluziam num tom verdefluorescente.

A mente se acostumara aos padrões de tanto que observava e se envolvia com

aquilo. As cordas e linhas cintilantes se entrelaçavam em diversos pontos.

Amarravam-se magicamente como uma peça de tricô perfeita, apresentando-se

como formas geométricas características: sempre com oito lados. Os octaedros

tinham comportamentos distintos, como se possuíssem vida própria. Manifestavam

vibrações e oscilações variadas e ligavam-se a outras centenas de octaedros, cada

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um agindo de uma forma diferente. Com o tempo, descobriu que a malha não

parecia exatamente com uma teia, mas com uma colmeia de intrincadas figuras

geométricas de oito lados conectadas.

Num dia cálido de verão, sentou-se à beira do rio Gugid para descansar. Enfiou

os pés na torrente branda e sentiu a água gelada tocar sua pele. Estremeceu de

repente com o toque gélido e logo se habituou à leve correnteza que massageava

seus tornozelos. Amarrou os cabelos castanhos em um rabo de cavalo. Do pescoço,

cachoeiras de suor escorriam depois de tanto correr e brincar. Polina e Mariens,

suas primas, mergulharam de cabeça no rio, nadando de um lado a outro.

— Vem, prima — crocitava Polina. — A água está uma delícia!

— Eu já vou — respondeu Dhara, curtindo o momento de descanso depois de

tantas sessões de pega-pega pelos campos às margens do Gugid.

Movendo as mãos com destreza, viu o brilho da própria magia exibir a malha do

tempo e seus delicados octaedros interligados permeando todas as coisas como uma

inescrutável rede ramificada. Adorava contemplar aquela beleza resplandecente

sempre que podia. Decorara cada oscilação distinta a essa altura e por diversas vezes

se pegava repetindo os nomes das vibrações e suas consequências.

O coração pulsou mais rápido de um jeito inesperado. A respiração ficou

ofegante. O ar abafado da manhã pareceu ficar rarefeito e sorvê-lo estava

estranhamente difícil, como se o oxigênio estivesse pesado. Olhou para as primas

que nadavam tranquilamente.

A cabeça girou de súbito.

O que estava acontecendo?

Como se uma resplandecente mão invisível guiasse seus movimentos, Dhara se

pôs de pé. A malha do tempo continuava reluzindo nas palmas das mãos abertas.

Algo não estava certo. Sentiu isso em seu íntimo. Havia alguma coisa fora do

normal. Os olhos corriam por cada octaedro emaranhado, agitando-se de variadas

formas, repetindo silenciosamente o nome de cada um. Nenhuma diferente das que

já conhecia. Sempre em ondas curtas ou como se vibrassem ao som de uma música

estridente.

Polina e Mariens pareciam indiferentes ao desespero súbito que perturbava a

prima. Nadavam às braçadas pelas águas tranquilas do Gugid, disputavam quem

chegava primeiro de uma borda à outra do rio e competiam para ver quem

aguentava mais tempo debaixo d’água.

Dhara não conseguia ficar parada. Algo dizia, no fundo de sua mente, que havia

uma coisa errada com o tempo.

Sem se dar conta, correu.

Disparando pelos campos abertos, a magia em suas mãos exibia a cada instante

os novos octaedros que entravam em seu campo de visão, os olhos permaneciam

atentos à pulsação costumeira da malha. À medida que corria desabalada e

230


irrequieta, a dor em seu interior aumentava. Um medo atroador a assolava, como

se um grande perigo se assomasse e ao redor tudo estivesse ameaçado.

Assim como desatou a correr, estacou.

Um irrisório octaedro apareceu. Mínimo, insignificante na malha, passaria

despercebido por seus olhos, não fosse por uma coisa: vibrava diferente. Dhara

nunca havia visto aquele padrão de vibração antes. Conhecia uma infinidade de

formas de vibrar da malha do tempo, tudo isto descrito nas centenas de livros e

enciclopédias que seu pai guardava na biblioteca. Além de ourives, era também

fascinado pela religião dos elfos e suas descobertas. Mas, de todos os modos que

vira a malha oscilar no condado, aquele era fora do comum. Tremia de forma

perturbadora como se estivesse prestes a pular do emaranhado de octaedros ao

redor.

Usou seus poderes para replicar o formato da vibração e, sem perder tempo,

correu para mostrar aos pais. Curioso como era, os olhos de seu pai brilharam com

o que viu. Empilhou cinco ou seis livros diferentes sobre a escrivaninha da

biblioteca de imediato. Cerrou as cortinas e embrenhou-se entre as páginas a

procurar aquele modelo de vibração. Dhara repetiu os mesmos gestos. Puxou uma

enciclopédia velha e pesada, com as letras douradas da capa descascando e algumas

páginas puindo de tão antigas.

Não havia nada parecido nos livros.

Procuraram por horas até o pai cansar e dormir sobre as páginas de um livro

escrito em runas élficas e nas muitas folhas de anotações que fizera. Nenhum

padrão era igual ao que ela encontrara e isso só fazia crescer ainda mais o anseio

por respostas para uma tão intrigante pergunta. A curiosidade dos Lovrens não se

limitou ao reduto de sua casa e logo se espalhou. Os Brencotres, os Gonjandes e

os Moldenes foram contagiados pela curiosidade e as indagações se alastraram por

toda Brelint. Até que chamou a atenção do rei e de alguém muito importante.

Num dia como outro qualquer do fim do verão, Dhara finalmente os conheceu.

O entardecer se intensificava e o lusco-fusco inseria o condado sob a penumbra de

um ocaso suntuoso de tons alaranjados. As sombras das árvores se estendiam pelos

campos e pelas ruas da cidade e tão rápido quanto o avanço da noite, as lamparinas

crepitavam variados tons de chamas naturais ou mágicas.

Dhara irrompeu pela porta de casa, aberta com o entusiasmo e carinho de sempre

de seu pai e a estranha expressão arrebatada de sua mãe. Ao se deparar com as duas

pessoas assentadas nas maiores poltronas da sala de estar, ficou imediatamente

embasbacada e inerte e entendeu o porquê do curioso esgar da mãe. Uma delas

havia tido a oportunidade de conhecer, mesmo que na ocasião não tivesse a chance

de falar com ele. Era um dos principais clientes da loja de seu pai, quiçá o maior

comprador de artigos do reino. Na calvície irrefreável e no assustador, porém

inexplicavelmente afável olhar caído, era impossível não reconhecer o rei Linus, o

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majestoso mestre que governava Tulich havia quase duas décadas, tão sorridente

por trás de sua barba rala acaju quase extinta por causa dos pelos grisalhos e que

preenchia um terço de seu rosto macilento.

Não era nele, porém, em que Dhara vidrara os olhos.

Mesmo que jamais tivesse tido a oportunidade de conhecê-la, o simples fato de

vislumbrar tanta imponência em uma única pessoa seria suficiente para que ficasse

deslumbrada.

Com as pernas cruzadas e as mãos repousando sobre os joelhos, uma bela elfo

esguia e de olhos levemente puxados que transmitiam uma confiança ímpar e ao

mesmo tempo serenidade, postava-se de um jeito elegante em sua sala de estar. O

olhar hipnotizador logo fez o coração de Dhara agitar-se de curiosidade por aquela

pessoa desconhecida à sua frente. No rosto fino e de queixo afilado, a expressão

dela era dura, polida, um misto de cordialidade e rigidez que poderia passar por

displicência. As vestes encantadoras refletiam à luz das velas e lamparinas da casa;

um cetim especial que transmitia uma leveza etérea. Drapejadas de pequenos cristais

e intensos floreios reluzentes, criavam um contraste interessante com os cabelos

castanho-claros enrolados em uma longa trança apertada.

Soobo era o nome dela. Viria a descobrir mais tarde que pertencia à casa dos

Yanui, uma família muito tradicional de pensadores e filósofos sensitivos de Fahur.

Descendentes diretos dos fundadores de Purysia, tornaram-se reconhecidos como

os grandes nomes da literatura élfica espalhada pelo mundo. Compunham um dos

seis clãs mais influentes da política e religião élfica, mais conhecido como os

Etéreos. Desempenhava a função que passou a cobiçar no mesmo instante em que

a conheceu.

— Boa noite, minha pequena.

Incontido e espalhafatoso como era, o rei afagou a cabeça de Dhara com vontade,

despenteando seu cabelo, e lhe deu um beijo na testa. Nunca deixava de externar

um sorriso acolhedor e a simpatia cativante que o tornava tão adorado e respeitado

em Tulich.

— Boa noite, Majestade! — exclamou Dhara, tímida.

Ainda que tentasse reverenciar a realeza de Lorde Linus, a obsessão com a elfo

fascinante postada ao lado do rei era gritante. Os olhos permaneciam vidrados em

sua imponência e na postura impecável, algo que o próprio rei não deixou de notar.

Ria-se com tal fascínio.

— Claro, — O rei abria-se em um largo sorriso, mirando da pequena Dhara para

Soobo ao seu lado — não poderia deixar de apresentar a você nossa Protetora do

Tempo...

Os pais de Dhara sorriam sem jeito. A pequeno elfo jamais imaginaria, em toda

sua admiração, o quanto eles estavam tensos e apreensivos com aquela visita

inesperada no romper da noite.

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Soobo abaixou-se. Para Dhara pareceu que a elfo deslizou suavemente alguns

centímetros do topo de sua magnitude até que seu rosto iluminado e radiante, de

nariz arrebitado, olhos impetrantes e lábios que pareciam estar sempre prontos para

liberar um gostoso sorriso, ficou no mesmo nível que o seu.

— Sabe quem sou?

A pergunta de Soobo soou como um breve e quase inaudível sussurro, mas sua

voz era exatamente do jeito que Dhara imaginava: suave e cristalina como as águas

tranquilas da nascente de um riacho.

Dhara assentiu.

— Imagina por que estou aqui?

Dhara meneou a cabeça.

— Parece que você fez uma grande descoberta, doce criança. Apresentamo-nos

aqui como seus humildes servos. Nossa expectativa é de podermos contemplar o

que seus olhos vislumbraram e ouvir o que tem a nos dizer. Se por virtude desejar,

aventarmos em contribuir para compreender o que o tempo tem a nos revelar sobre

suas oscilações.

Durante quase uma hora inteira, quatro pares de olhos miraram suas atenções em

tudo o que mostrou sobre as vibrações do pequeno trecho de malha que replicou

das margens do Gugid. Os ouvidos estavam atentos a cada palavra que dizia e aos

detalhes que narrava de quando e como descobriu aquela estranha e atípica

oscilação.

Para o rei, tudo aquilo não passava de uma grande baboseira. Os olhos se

arregalavam e balançava a cabeça com tanta efusividade que Dhara por diversas

vezes achou que ela ia pular do pescoço e rolar pelo chão da sala. As palavras ditas

entravam por um ouvido e saíam pelo outro. A mente havia voado para longe dali

desde o instante em que se sentaram para ouvir o relato. O rei só queria parecer

interessado e agradar as nações élficas, que eram a grande maioria em seu reino.

Demonstrar respeito e dar alguma importância àquela religião maluca da qual jamais

entendeu ou quis entender era preciso.

Soobo se limitava a pontuar cada parte da história com um breve aceno de cabeça.

Os olhos se comprimiam por diversas vezes e se perdiam em ponto algum como

se quisesse relembrar de alguma nota mental que não poderia esquecer. Puxou um

minúsculo bloco de anotações e uma caneta tinteiro de prata. Posicionou o pequeno

recipiente de tinta sobre a mesa de centro da sala e pôs-se a escrever em ritmo

frenético, repassando mentalmente o que quer que estivesse concluindo. Nesse

momento, já não prestava tanta atenção aos relatos de Dhara.

— Fale para ela, filha. O que você acha que é.

A pequena elfo arregalou os olhos para o pai. A história interrompeu-se

imediatamente. Os olhares de todos miraram da expressão tímida da filha para seu

pai e de novo para Dhara no centro da sala de estar. Soobo interrompeu as

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anotações e postou-se para ouvir. No rosto animado do pai, a expectativa e a

animação irradiavam de uma forma caricata. Sempre que ficava ansioso ou animado

de mais, seu rosto se abria em um largo sorriso cheio de dentes e os olhos só

faltavam saltar para fora das órbitas.

Dhara enrubesceu. Notou que todas as atenções se voltaram para ela. Reparou a

expressão singela de curiosidade de Soobo Yanui que repousou a caneta tinteiro

sobre o ínfimo tanque, sustentando o bloquinho de anotações em uma das mãos.

Cruzando as pernas com exorbitante elegância, atentou-se para a teoria que estava

prestes a ouvir.

Rei Linus arreganhou ainda mais o olhar e, embora Dhara soubesse que ele não

entenderia qualquer palavra sua, tomou coragem para revelar suas teses.

— Eu... analisei os padrões junto com meu pai por alguns dias — pronunciou

Dhara. A frase, no entanto, saiu como palavras engroladas e balbuciadas em uma

nota mínima de som produzida por suas cordas vocais. O silêncio na sala de estar

era teimoso. Os ouvidos de todos estavam aguçados e captaram perfeitamente o

que dissera — Mas como ele tinha que fabricar cordões, brincos e colares, eu

continuei estudando os padrões. Embora eu tenha dito que não se pareça com nada

que consta nos catálogos e enciclopédias, notei que a vibração se assemelha a uma

combinação de dois eventos: ciclone extratropical de alto grau, por causa das ondas

curtas vibrantes em espiral, e maremoto de magnitude iniciante em virtude das

agitações tremulantes e espaçadas dos octaedros.

A sacramentadora desviou o olhar para a figura da malha reproduzida por Dhara.

Contemplou por alguns instantes o pequeno emaranhado de octaedros se agitando

de formas diferentes, até que se pôs de pé e chegou muito próximo do arquétipo

da malha, inclinando a cabeça e observando de vários ângulos.

— Um vórtice marinho de magnitude mediana.

— Um vórti-o-quê? — inquiriu o rei, alienado e arregalando os olhos para a

expressão absorta de Soobo como se estivesse falando em um dialeto

desconhecido.

Os pais de Dhara se entreolharam, admirados. Fitavam a sacramentadora

assombrados, como se tivesse revelado algo sobre o futuro deles.

— Fascinante! — respondeu o pai, postando-se ao lado de Soobo, imitando-a,

tentando observar cada detalhe da mesma posição que ela.

— Brilhante dedução! — crocitou o rei, sem um pingo de noção.

— Eu... eu... não diria que é um vórtice...

As atenções se voltaram de imediato para o sussurro tímido de Dhara.

— Não? — questionou Soobo, comprimindo os olhos.

— Não? — perguntaram seus pais em uníssono, assim como o rei, encucado.

— Eu também cogitei essa opção. Mas, se você observar mais de perto, — E

Dhara postou-se ao lado da sacramentadora, apontando para um lado em particular

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da reprodução da malha — as ondas em espiral aqui giram em sentido horário e

seguem em velocidade alta. Um vórtice marinho mediano não giraria neste sentido

e muito menos com essa velocidade e com o...

— Um pequeno detalhe de interpretação, minha criança. — Soobo interrompeu,

ofertando um sorriso que pareceu afável a todos, mas que não soou nada simpático

a Dhara. — Vórtices marinhos de magnitude mediana não possuem clareza de

agitação definida nos primeiros estágios de formação, o que pode levar de sete a

doze semanas para se formarem e estabilizarem suas oscilações nos padrões que

conhecemos. É preciso analisar o percurso da agitação até o ponto de origem. Pode

ser que esta oscilação fora do comum esteja estabilizada no marco zero de

formação, sendo esta apenas um reflexo da primeira.

Soobo Yanui recolheu seus pertences com paciência e se aprontou para partir.

— Estarei comunicando à Ordem. — Soobo dirigiu-se aos pais de Dhara e ao

rei, pronunciando cada palavra com serenidade ímpar — Não há com o que se

preocupar. Trata-se de um vórtice corriqueiro que será evitado sem maiores

problemas. Dentro de sete semanas, emitiremos o alerta e...

— Sete semanas? — arguiu Dhara, preocupada. Não estava convencida de ser

somente um vórtice trivial que logo se firmaria.

— Filha, não há com o que se preocupar e...

— Não há com o que se preocupar, doce criança — falou Soobo, aquiescendo

— A estabilidade do tempo está nas mãos dos sacramentadores. Sua preocupação

e esmero são qualidade louváveis para uma singela criança. Quem sabe, um dia, seu

futuro possa estar atrelado à sacramentação?

Lorde Linus e a sacramentadora deixaram a casa imediatamente. Despediram-se

com longas saudações e um cordel infindável de agradecimentos pela hospitalidade

com que foram recebidos. Soobo fez um último afago em Dhara e lhe sorriu antes

de sair. O rei fez questão de garantir que tudo ficaria bem.

Para Dhara, porém, nada estava bem.

Ao contrário do que a sacramentadora de Perspicácia havia dito, as oscilações da

malha ficaram perturbadoras nas semanas seguintes. As ondas curtas e vibrantes

giravam cada vez mais rápidas e o tremular dos octaedros ia ficando menos

espaçado. Em seu íntimo, Dhara estava agitada. Os pais repetiam que ela não tinha

com o que se preocupar e que ainda faltavam muitas semanas até a estabilidade,

conforme a previsão de Yanui. Mas ela não estava convencida. Meteu a cara nos

livros por horas e horas até que eles se transformassem em dias. Dias em que o

tempo passava como um breve sussurro diante de sua aflição. Estava convicta em

suas teorias e nem mesmo os conselhos dos pais para que se tranquilizasse

conseguiam fazê-la ficar em paz. Teimosa, tinha quase certeza de que Soobo

desprezara suas informações e se submeteu às crenças dos próprios conhecimentos.

235


Mas e se ela estivesse errada? Sacramentadores também podiam errar, não? Se as

convicções deles tivessem lhes cegado a sabedoria?

Folheando desvairada centenas de páginas das muitas enciclopédias de padrões

da malha do tempo, em meio a uma infinidade de papéis rabiscados com suas

anotações, notou que algo passara despercebido. Um detalhe que não havia se dado

conta, mas que fazia muito sentido: as oscilações e tremores pareciam caminhar

para uma fusão nos octaedros, convergindo para um misto de reações distintas.

Não se tratava de um intenso ciclone ou de um simples maremoto, mas talvez de

uma soma. A soma de ambos.

Lera alguma coisa a respeito, embora a mente cansada não conseguisse recobrar

de onde. No meio da bagunça generalizada de livros empilhados e espalhados pela

biblioteca, um deles descrevia um fenômeno incomum, porém arrasador. Uma

equação aterradora que integrava oscilações e tremores distintos de rápida

confluência, fundindo-se em um resultado devastador. Um resultado raro que as

literaturas chamavam de tsunamis de magnitude elevada.

Não aceitou aguardar a catástrofe de mãos atadas quando teve certeza de suas

convicções. Persuadiu os pais sobre sua tese. Estavam tão surpresos quanto

aterrorizados. Partindo dos Lovrens, a informações se espalharam como um vírus

por toda Brelint. Os Gonjandes foram os primeiros a fugir para o norte, buscando

refúgio longe da orla do reino e de qualquer lugar onde houvesse água, mesmo com

Dhara explicando que o fenômeno envolvia ondas marítimas gigantes. Não

demorou para que os demais condados e províncias de Tulich tomassem

conhecimento da predição e muito menos para que os vilarejos próximos à orla

praiana do reino fossem completamente evacuados. Assustados com a previsão,

vilarejos litorâneos de Achmat também se evadiram para muito longe.

Os sinais no tempo só confirmaram que Dhara estava certa.

Um dia, o mar recuou. Tanto, mas tanto que era possível caminhar até a Ilha

Brava de Tulich sobre a extensa faixa de areia onde antes as Águas de Crispoles

dominavam. Ondas gigantes se avolumavam, formando um imenso paredão no

horizonte, prontas para uma rebentação violenta e avassaladora por toda costa do

reino. Neste mesmo dia, em que as Colinas de Bovar ficaram apinhadas de gente

na expectativa de assistir no longínquo horizonte o terrível destino da orla de

Tulich, Dhara os viu em ação.

Eram como Soobo, usavam as mesmas vestes. Trajes elegantes, reluzentes. O

mesmo aspecto etéreo os engolfava, como se uma aura de energia e luz envolvesse

seus belos rostos de orelhas pontudas e corpos esguios. Estavam encarrapitados

sobre as colinas, próximos de onde estava. Com movimentos rápidos, a magia do

tempo entrou em ação.

Um brilho ofuscante refletiu sobre os olhos aflitos dos que assistiam ao tsunami

em formação no horizonte. Muitos levaram as mãos aos rostos. A maioria não

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entendia o que estava acontecendo. Como um raio de sol que desponta ao romper

da manhã, Dhara observou o mesmo emaranhado de pequenos octaedros que se

acostumara a manipular, naquele momento em proporções estratosféricas surgir no

mar. Uma fenda reluzente apareceu sobre as oscilações e tremores da malha no

exato ponto em que as ondas abissais se adensavam.

Então, desapareceu.

A água do mar retornou ao seu devido lugar com a calmaria trivial da enseada do

reino. A faixa territorial da encosta foi-se enchendo de água de um jeito preguiçoso,

como se alguém abrisse as comportas de uma barragem e liberasse água a contagotas.

Avançando lentamente, as marés retomavam o habitual vai-e-vem de ondas

curtas característico da orla tulichiana. Como se nunca tivesse existido, o

monstruoso tsunami desapareceu.

Uma explosão de vivas eclodiu sobre as colinas. A aflição persistente deu lugar a

um alívio esfuziante. Milhares de pessoas se abraçavam. Anões de Jilianzi fizeram

uma roda, dançando e cantando suas velhas canções em agradecimento. Famílias

se abraçavam e choravam a esmo com o conforto de poderem voltar às suas casas.

Lorde Linus e seus conselheiros vibravam em meio ao povo com a tragédia evitada.

A magia dos sacramentadores salvara o reino da devastação. No meio do frenesi

que dominou o pico da cadeia de montanhas, Dhara soube naquele instante que

não queria ser ourives: era aquilo que queria fazer.

A descoberta do tsunami pela menina elfo de Brelint não se limitou às terras do

reino e muito menos de Eurodian. Atravessou o continente e despertou a

curiosidade de Purysia. Poucos dias após as monstruosas ondas desaparecerem

diante de todos, Dhara recebeu uma nova visita em sua casa. Taciturno e muito

compenetrado, o Primeiro-Líder da Ordem dos Sacramentadores em pessoa foi lhe

fazer um convite que deixou seu coração saltitando dentro do peito. O primeiro

sentimento ao reunir-se com ele a primeira vez foi de medo. Era um elfo de duras

feições e de presença marcante. Com um arco dourado na cabeça e um envelope

pardo em uma das mãos, veio acompanhado de duas sacramentadoras. Uma, ela

conhecia, já tinha visitado sua casa. Desta vez, Soobo não estava tão radiante.

Denotava certo constrangimento, uma insatisfação mal contida em ter de voltar a

encarar a menina que provara que suas previsões estavam erradas. A outra,

belíssima e de longos cabelos negros com uma pequena tiara prata sobre a testa, era

a única sentada no sofá da sala. A observava com uma expressão materna

estampada sobre o rosto. Por mais que aquela elfo não tivesse dito nada, Dhara

definitivamente decidiu que ela era alguém em quem podia confiar.

Nos ciclos seguintes, jamais errou seu julgamento.

Ada Alezeia Turim, a Segunda-Líder da Ordem, era uma mulher sensacional.

Sensata, de vasta sabedoria, fora sua maedor durante os ciclos em que se preparou

para ser uma sacramentadora. Mais do que uma maedor, fora para ela como uma

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mãe, quando deixou seu lar em Tulich e viajou para viver em Purysia para ser uma

arcana. Mesmo que Alezeia tivesse de instruir outras tantas arcanas que a

acompanhavam, podia desfrutar de seus valiosos conselhos e ser doutrinada

diretamente por ela. Seguiu-a em dezenas de missões, aprendendo sobre a religião

dos elfos, estudando os milhares de padrões de oscilações da malha do tempo,

conhecendo outras culturas e povos, idiomas e histórias e recebendo dela todo

conhecimento e atenção de que precisava. Dhara sonhava, quando completasse sua

era de preparação, poder tornar-se uma das Oito Octaedros e ser tão extraordinária

um dia como era Alezeia.

Menfesis sempre estava por perto. Embora mais reservado, a relação com ele era

uma linha tênue entre respeito e medo. Possuía o hábito de interceptá-la no Oráculo

do Tempo para testar seu aprendizado toda vez que se cruzavam. Fazia perguntas

corriqueiras intercaladas com dúvidas complexas sobre a sacramentação. Dhara

achava tudo muito divertido em seu íntimo, até as questões mais complicadas e que

exigiam dela alguma pesquisa profunda. Amava a relação de cumplicidade entre

Menfesis e Alezeia. Não conseguia imaginar pessoas melhores ou com maior

sabedoria do que ambos à frente das difíceis decisões na ilha. Se Alezeia era como

uma mãe, poderia se dizer que Menfesis era o tipo de pai distante por causa da carga

de trabalho, mas que se preocupa com o aprendizado da filha e quer para ela tudo

de melhor.

Essas lembranças tão boas não conseguiam afugentar um fantasma recente que

assombrava seus pensamentos e que lançava tantas incertezas sobre a segurança a

que se habituara. Não gostava de pensar sobre o assunto e até queria desacreditar

em suas convicções, mas Dhara sabia que havia algo de errado em Purysia. O

motivo, ventilado por dezenas de sacramentadores que cochichavam nos bastidores

da alta cúpula, sempre envolvia o nome do Primeiro-Líder. Nos últimos meses,

Menfesis passou a agir de forma estranha. Ainda mais isolado, com expressões

duras, mas de uma forma completamente diferente. Estava visivelmente apreensivo

e nada disposto a compartilhar suas preocupações. A relação com os demais líderes

dos octaedros se fragilizara. Calorosas discussões ecoavam pelo castelo. Dhara

observou pelos corredores, por diversas vezes, os sacramentadores de Infortúnio e

Austeridade deixarem o Oráculo com ânimos exaltados. Até mesmo Soobo Yanui,

com sua aparente serenidade, perdera as estribeiras numa série de discussões com

o grande líder de Purysia.

Havia poucos meses, Menfesis a convidou para uma reunião às portas fechadas

em seu escritório. Na ocasião, dirigiu-se a ela com propriedade e barrou a

participação de Alezeia. Dhara assentiu, embora, pela expressão de aflição

disfarçada de sua mentora, notou que algo mudara entre os dois. A relação de

cumplicidade parecia se dissolver. Não existia mais a notória confiança mútua entre

ambos.

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Menfesis não estava posicionado atrás de sua grande mesa de mogno como de

costume. Duas cadeiras estavam postas, frente a frente, em seu escritório. Ele

mantinha uma expressão impassível e nada serena, visivelmente transtornado e

afoito. Nesse instante, Dhara teve certeza de que algo não estava bem. Assim que

se assentou a sua frente, ele não criou rodeios.

— Dhara, estou te indicando como uma dos Oito Octaedros. Anunciarei ainda

hoje sua nomeação.

Ela estremeceu na cadeira. O coração bateu mais forte no peito, mas uma

confusão se arremeteu instantaneamente em sua cabeça. Os Oito Octaedros atuais

ainda não haviam completado sua era à frente dos pilares e essa tradição jamais fora

quebrada.

— Sinto-me lisonjeada, nobre Menfesis, mas... — Diferente dele, Dhara rodeava.

Não sabia como tocar no assunto sem parecer querer questioná-lo. — Mas... receio

ainda não ter concluído minha era preparatorem e... Perspicácia já possui uma líder

que...

— Não serás indicada para Perspicácia — pontuou Menfesis; sua voz estava

desprovida de sentimentos, mas carregava um tom que parecia com desgosto ou

mesmo raiva.

— Não? — A confusão dominava a expressão de Dhara.

— Tu és brilhante, Dhara. A sabedoria e sagacidade que demonstraste quando

ainda eras uma criança, suplantou o pífio conhecimento externado por Yanui.

Soobo jamais demostrou tamanha destreza e erudição em todos os seus ciclos como

uma dos Oito. Considero utilizar suas habilidades e conhecimentos à frente de

outro pilar, o de Hegemonia.

Prendeu a respiração na hora e se sobressaltou. Tentava assimilar se tinha ouvido

corretamente. Hegemonia era um dos principais octaedros, envolvendo os mais

destacados territórios do mundo mágico: Cruisand, Paragon e Vervaz. Era ainda

liderado por um magnífico sacramentador, mundialmente famoso por incontáveis

prodígios ao longo dos ciclos e, principalmente, por ser o grande mentor de Arturo.

Quando ainda tentava absorver a informação, Menfesis percebera seu repentino

espanto e adiantou-se a explicar. Foi categórico em obliterar suas questões de uma

única vez.

— A atual composição dos Oito Octaedros está obsoleta e será dissolvida ao

romper da próxima manhã. Os novos Oito serão comunicados até o findar do dia

de hoje. Até a Cerimônia de Consagração, você terá seis meses para se preparar.

Nomeei uma nova mentora para acompanhá-la nessa fase final de preparação. És

a segunda a receber esta notícia. Trishnann também foi avisado: assumirá

Austeridade. Neste tempo, peço que mantenhas a discrição e concentre-se em

conservar a harmonia do tempo, aplicando sua humildade e vasta sabedoria que é

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mais do que comprovada. — E, levantando-se, Menfesis foi até a porta do

escritório e a abriu.

A mente pipocava em infindáveis questionamentos, quando Dhara levantou-se,

estupefata. Sorriu sem jeito, não sabia se agradecia ou se interrogava porque tantas

decisões em tão pouco tempo e se havia refletido sobre cada uma delas. Caminhou

até a saída e limitou-se a acenar a cabeça para Menfesis, que se manteve impassível.

Então, se retirou.

Do lado de fora, Borana já a aguardava. A mando de Menfesis — que

aparentemente havia pensado em cada detalhe, a ex-sacramentadora de Serenidade

se apresentou de forma carinhosa, pronta para transmitir seu saber como mandava

o código da Consagração. Desde então, tornara-se sua mentora.

A última peça de turqt fora colocada delicadamente sobre o longo vestido e as

dezenas de pares de olhos admiravam a obra prima que finalizaram com louvor.

Encantadas, Borana e as arcanas ao redor suspiravam com a beleza incomparável

de Dhara, escancarando enormes sorrisos de aprovação e suspirando com a visão

deslumbrante.

Dhara contemplava o reflexo reluzente sobre o espelho, com a mente outra vez

voando alto, para longe de onde estava. Desta vez, não tinha a ver com as dúvidas

que se arremetiam sobre Purysia, mas com algo que relutava para esquecer e que

lhe provocava arrepios que jamais havia sentido. Sentimentos diferentes que nunca

experimentara, mas que tinha certeza de que não poderiam ser bons. No âmago de

seus devaneios, Dhara pensava em Louk. Especificamente, naquele beijo antes de

o guardião fugir voando pelos céus de Paragon.

Fora a sensação mais estranha e prazerosa que sentira.

Naquele momento, quando a brisa a assoprar parecia cantar em seus ouvidos, as

pernas perderam as forças de súbito. Não tombara ao chão porque dois braços

fortes a amparavam. Uma onda esdrúxula e eletrizante percorreu seu corpo por

completo. O gosto do beijo daquele petulante guardião ficara marcado em seus

lábios em um ínfimo momento de insolência em que ele a girou e a beijou com

vontade, no topo de um telhado, rodeado de guardas por todos os lados.

— Meu nome é Louk, do trono dos Savya.

Atarantada, não sabia o que dizer. Nem o que pensar. Mal tinha forças para se

manter de pé. Escorando-se sobre um muro de pedra, ainda com as pernas bambas,

o viu subir como fogos de artifício em dia de festa e desaparecer nos céus.

Jamais fora beijada. Jamais se permitiu saber o que era um relacionamento

amoroso. Qualquer sacramentador ou arcano tinha plena consciência que o

caminho da sacramentação exigia a pureza do corpo. A doutrina era enfática no que

tangia à castidade. Vocacionados desde muito jovens, os que aspiravam à erudita e

gloriosa trilha da sacramentação eram submetidos a um voto perpétuo de

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abnegação e total abdicação dos prazeres sexuais. Sabiam que estariam eternamente

impedidos de se relacionarem com outros elfos. Ainda mais preocupante e

assustador do que a simples quebra de um voto de castidade, era uma relação

amorosa entre elfos e humanos.

Dhara estremecia só de pensar.

Havia três coisas consideradas abomináveis dentro da ancestral cultura élfica e

uma delas era o relacionamento sexual entre homens e elfos. Reinos como Vaelfar

e até mesmo Achmat, Tulich e Fahur classificavam os casos como hediondos e os

condenavam com a pena máxima: decapitação. O fruto de tais relações era tido

como aberração, perseguido até a morte. Embora jamais tivesse conhecido um

híbrido de humano e elfo, ouvira dezenas de histórias sobre. Em sua maioria, o

final era sempre trágico.

Dhara tinha plena consciência de que essa sensação nova e esquisita não poderia

ser correta. Não podia se apaixonar por um humano. Era crime. Profano.

Abominável. Contudo, os arrepios súbitos que sentira e o gosto macio dos lábios

de Louk marcaram-na de uma forma extraordinária, com uma expectativa sem

precedentes. Uma ânsia desvairada. Um desejo desenfreado por algo que ela

desconhecia.

Houve uma singela e quase imperceptível pausa, do tipo em que todos perdem o

fôlego e viram suas cabeças, quando Dhara irrompeu do segundo piso pelos

degraus da escadaria. Entrementes, a futura sacramentadora de Hegemonia estava

deslumbrante. Os olhos embasbacados dos convidados refletiam o brilho das

inúmeras joias que drapejavam seu vestido dourado. Deslizava com enorme

graciosidade, sorria e acenava como uma debutante em que todos aguardavam com

ansiosidade, acompanhada por quatro de suas arcanas pessoais e claro, Borana à

tira colo, sorrindo de forma modesta. Afinal, o centro das atenções era — e tinha

de ser — Dhara Lovrens.

Observava os olhares impressionados em sua direção a cada lance de escada.

Reconheceu muitos rostos em meio à multidão que não conseguia desviar os

olhares de seu resplendor. O governador de Cruisand interrompera um diálogo

com o rei de Mistral. Como era mesmo o nome dele? Alezeia sempre falou a seu

respeito. Era um homem charmoso e muito comedido. Argus ou Actos? Algo

assim. Anotou mentalmente que precisava relembrar seu nome. Embora não fosse

de sua região, os laços políticos eram de grande relevância. Por falar na antiga

madrinha, ela também estava lá. Ada Alezeia Turim. Como sempre, deslumbrante.

Sob um longo vestido azul-turquesa, piscou para ela em sinal de aprovação. Era

uma verdadeira lady em destaque em meio aos demais elfos e arcanos que a

rodeavam. No instante em que a viu, o polido Sisno Sannfrye a convidava para

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dançar. Sannfrye, a quem não encontrava havia algum tempo. Por onde andava?

Como um velho amigo de Bovir, era de se esperar que também estivesse no baile.

Identificou alguns ex-sacramentadores além de Sannfrye. O misterioso Nodovra

bebericava de uma longa taça a um canto. Desde que fora para o Oráculo do

Tempo, Nikolai era um dos poucos elfos que a assustava com seu jeito carrancudo

e de poucos amigos. Gavir, Soobo e Ranidge também se espalhavam pelo salão.

Não pareciam muito animados com a festa. Externavam uma aura desconfiada,

cochichando baixinho entre si, sempre tampando a boca e observando a todos com

profundo desinteresse. O mais à vontade deles era Nelis Naziv. Conversava

acaloradamente com um homem de estatura mediana com alguns poucos cabelos

grisalhos escorridos abaixo de sua enorme calvície: August Moronov. Um homem

nodoso que adorava desfrutar do luxo dos banquetes e festas reais para tentar

impressionar os outros com seus títulos ou conhecimentos. Um ledo engano dos

humanos, que preferiam utilizar a sabedoria para se colocarem acima dos outros.

Os reis de Boralioch, Fahur e Achmat também estavam presentes, assim como

Amel, Deeze e Leilor, os gêmeos das Forjas Élficas. Não encontrara nenhum

representante de Badorian. Mas, não esperava por tal, principalmente depois da

perda de seu soberano.

Os convidados da grande festa estavam muito à vontade, de forma geral. A parte

que não se ocupava conversando, comendo ou bebendo, se embrenhava a dançar

uma valsa lenta. Uma gloriosa orquestra de cordas e sopros desfiava os acordes de

canções milenares, engolfando os presentes com deliciosas melodias.

Imaginava que sua mentora devia estar satisfeita por atrair tantos olhares em sua

direção. Com tantos adornos e joias preciosas que fora obrigada a usar, não tinha

como ser diferente. Borana sempre bateu nessa tecla.

“Uma sacramentadora precisa impressionar. O mundo dos humanos é marcado pela

complexidade; uma apresentação imponente é um trunfo deveras relevante para que se obtenha

sucesso com a sabedoria. Não há que se desprezar o conhecimento. De forma alguma. A sabedoria

possui estimada relevância, mas se não há imponência diante da sociedade, a sacramentação perde

seu devido valor aos ignorantes olhos da sociedade atual”.

Observou as reações de sua mentora de soslaio. Abaixo de algumas poucas rugas

que começavam a surgir devido a avançada idade — na iminência de completar

seus quatrocentos e cinquenta e sete ciclos — aparentava estar satisfeita. Um misto

de orgulho e exultação habitava seus grandes olhos cor de mel, como uma mãe a

conduzir a filha em um casamento ou formatura. Isso era primordial para Dhara.

Deixar sua mentora orgulhosa era tão importante quanto o maior conselho dado

por ela. E ali, no Salão de Vidro, chegara seu grande momento.

O Salão de Vidro era um dos mais badalados lugares de Eurodian. Entre todos

os palácios e bailes do qual ouvira falar nos últimos seis meses, aquele local era o

último e grande triunfo a ser conquistado. Não se podia negar que conhecera

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dezenas de lugares estonteantes e aprendera muito sobre eles, como os Pilares da

Magia, o Grande Garbez, os Portões de Centião, a Academia dos Guardiões e as

outras cinco maravilhas de Eirin, mas, apesar de não ser considerado um

importante obelisco do mundo, aquele salão era fantástico e poderoso.

Erguido em mármore tursel e diamante, todas as paredes eram translúcidas e

permitiam uma ampla vista para os jardins externos e o pátio, daí o apelido que o

tornou tão famoso. Era o local de bailes de Bovir, o atual governador da cidade.

Aliás, um nome do qual Dhara não poderia, em hipótese alguma, esquecer. Sabia

que o sistema de nomeação dos governadores das principais cidades do mundo era

um tanto confuso. Era conduzido pelo Conselho dos Guardiões, possuía uma série

de indicações de reis e soberanos dos Cinco Continentes, testes eram realizados às

portas fechadas em Gradia. Um ritual que ela jamais se meteu a tentar entender.

Algo que era melhor ser tratado pela própria e — ambígua — sabedoria dos

humanos.

No último mês, Dhara aprendera tudo de que precisava saber sobre os bailes do

Salão de Vidro. Uma das tradições mais antigas e comemoradas era a chegada das

Quatro Estações — festejadas ali desde que a Convenção de Cruisand fora

assinada, sempre com as mais proeminentes personalidades do mundo. Segundo os

relatos minuciosos de Borana, o Baile de Primavera era o mais suntuoso. Camélias,

lírios e orquídeas ornamentavam o grande salão. Beija-flores, canários e sabiás

mágicos sobrevoavam o topo das cabeças dos convidados. Mas o grande espetáculo

se dava quando o sol do entardecer atingia seu ponto alto. Os raios irradiavam pelas

paredes de vidro e preenchiam cada centímetro do salão com uma luz dourada e

natural que tornava o ambiente um espetáculo à parte.

Esta era a noite do Baile de Inverno.

Sobre o último degrau, percebia que cada palavra de sua mentora estava muito

aquém da real beleza daquele recinto. Somente seus olhos podiam comprovar que

tudo o que ouvira sobre o Salão de Vidro e suas ornamentações eram a mais pura

verdade.

Simplesmente estonteante.

Flocos de neves mágicos pendiam do teto oblíquo como se estivessem em uma

típica noite de inverno, mas sem o frio costumeiro trazido por ele. Assim como os

mínimos floquinhos esbranquiçados, visgos esmeralda serpeavam pelo teto,

sinuosos e entrelaçados, ornamentando as paredes. Gérberas, egônias e verbenas,

típicas do inverno eurodiano, drapejavam o ambiente. No ponto mais destacado,

próximo de onde a orquestra se posicionara, enormes mesas decoradas exibiam os

mais variados tipos de comidas típicas e bebidas para uma noite de gala. Seria tolice

tentar descrever nessas páginas os detalhes apaixonantes que os olhos de Dhara

vislumbraram e mais ainda transmitir as sensações que arrebatavam seu espírito ao

pisar no lugar, pois somente quem comparece ao baile pode vivenciar.

243


Enlevada pela beleza do lugar, Dhara não evitava sorrir para tamanha

suntuosidade. Embasbacada seria a melhor palavra. Os olhos vidrados na

decoração exuberante, se policiava para não denotar impressões erradas. Mantinha

a precaução em não deixar o queixo cair. Não podia parecer inocente ou ignorante

diante de tamanho requinte. Hipnotizada com a ornamentação e com a graciosidade

do grande salão, não se deu conta que alguém segurava delicadamente sua mão

direita de repente. Com máxima cautela, era conduzida ao centro da festa, sendo

tomada para dançar uma valsa um pouco menos melancólica.

— Não vou negar que está ficando meio óbvio que você possui uma obsessão

por mim.

Esqueceu os desvaneios provocados pela admiração do lugar quando a voz

conhecida falou muito rente a seu ouvido. O coração palpitou forte no fundo do

peito. Os cabelos da nuca se ouriçaram. O tom grave daquela voz trouxe Dhara de

volta à realidade.

Cabelos ruivos caricatos. Arrumados e penteados para um lado desta vez. Olhos

azuis quase cinzas e interessantes encaravam-na. Demonstravam uma excitação

incontida em contemplar seus olhos castanho-escuros assustados. Sem se dar conta,

deixava-se conduzir em uma valsa por Louk Savya.

— O que você... o que fazes aqui?

— O que faço no Baile de Inverno mais badalado do mundo? — Louk

questionava com um sorrisinho cínico ocupando os lábios. Mantinha o compasso

da valsa a cada palavra. Demonstrava ser um dançarino razoável. — Acho que você

esqueceu quem sou e...

— Louk Savya, da Austera Amistelar — pronunciou Dhara tentando não parecer

presunçosa. Esforçava-se para disfarçar uma nota trêmula muito inesperada em seu

tom de voz. — Sei quem és. Não esperava vê-lo nesta cerimônia.

— Quem és? Ui. Que vocabulário requintado. Você não usou essas palavras

rebuscadas da última vez que nos vimos — debochou Louk. — Acho que você

subestima minhas origens. Sei que não estou coberto de joias e brilhando como

você, mas tenho alguma relevância nessa festança aqui.

Dhara franziu o cenho. Um inconveniente tremor nas pernas surgia de forma

inesperada.

— Está vendo ali? — Louk apontou com a cabeça de um modo discreto para um

homem de terno negro e feições militares — Aquele é...

— Salazar Stanhorne. O líder do Conselho dos Guardiões — respondeu Dhara,

comprimindo os olhos e mantendo a expressão impassível, mas rindo-se por

dentro. — Se subestimo suas origens, você esnoba minha inteligência.

— Você errou!

— Errei? — inquiriu Dhara, sentindo-se ofendida com a resposta inesperada de

Louk. — Como assim errei? Aquele é o atual Conselheiro-mor dos Guardiões, o

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“Leão de Gradia”, Salazar Stanhorne, a quem por acaso não esperava ver por aqui

visto seus compromissos políticos em Anlevor e...

— Sim, sim, sim. Ele está sempre ocupado e deve viajar outra vez daqui a pouco.

Ainda assim, não desvie o assunto: você está parcialmente errada. — Louk sorriu,

petulante. — Salazar é meu tio. Casado com Laurea Savya.

— Parcialmente errada? Ou parcialmente certa?

— E isso importa? Parcialmente errada ou parcialmente certa, de qualquer forma,

é a mesma coisa. Sabe que estou certo e você está parcialmente errada...

— Depende do ponto de vista. Se te dou a informação parcial de uma verdade

absoluta que não desejas, então estou parcialmente certa, ou parcialmente errada a

seu modo de ver. Entretanto, se não me especificas e te dou a informação parcial

que contém parte de uma verdade de muitas verdades, então estou totalmente certa.

Logo, quem está errado?

Louk hesitou. Digeria as palavras com uma lentidão maior do que o esperado.

Estava incerto se deveria discorrer a respeito. Optou pelo silêncio e admiração

embasbacada pela beleza incomparável da esplendorosa elfo que conduzia ao longo

da dança.

— Você só pode ser louco de vir até aqui e ainda me tirar para dançar depois do

que aconteceu em Paragon. Sabes que ainda posso denunciá-lo pelo que fez, não

é?

— Se podes, por que ainda não o fez?

— És deveras petulante!

A música cessou. Os convidados que dançavam aos pares se afastaram

momentaneamente e prorromperam-se em palmas esfuziantes. Louk saudava a

orquestra a um extremo do salão com exagerada vontade, tentando sobrepor as

próprias palmas acima dos demais. Dhara limitava-se a acenos contidos de gratidão

com a cabeça e saudações mais comedidas.

— Petulante ou não, poderia te fazer um convite?

Uma nova música encheu os ares. Os violinos reverberavam suas cordas em uma

valsa ainda mais animada do que a anterior e os pares novamente se uniam a bailar.

— Se disser que não, sei que não deixarás de fazer o convite.

— Sim, tens razão. Poderia me dar a honra de sua presença em um lugar mais

reservado, vossa brilhanteza?

A mente de Dhara afirmava, categoricamente, que tinha de recusar o convite e

ela possuía inúmeros motivos para dizer não. Não era o momento para se ausentar

da presença de nobres convidados, ainda mais na iminência de sua nomeação.

Precisava ser conhecida e reconhecida, lembrada pelos reis e rainhas e tantas

autoridades de Eurodian e do mundo. Necessitava conversar com os líderes dos

reinos que faziam fronteira com Cruisand, Paragon e Vervaz e mostrar que o pilar

de Hegemonia estaria sob um novo comando. Mas o coração balançava. Ignorando

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os gritos ensurdecedores da voz da razão, deixou-se guiar pelos sussurros intensos

de seus sentimentos. Acompanhou Louk pelo meio da multidão até alcançarem

uma das muitas sacadas contíguas ao Salão de Vidro.

A brisa da noite soprava fria quando ambos se debruçaram no parapeito da

sacada. A vista dos extensos jardins iluminados com dezenas de archotes

incandescentes e da calmaria do lago e de suas águas negras era fascinante, mas não

tanto quanto a beleza do salão em que estavam. A música soava abafada pelas

paredes de vidro e os sons vespertinos eram muito mais altos dali. Podiam ter mais

privacidade e menos incômodo do que num lugar tão público quanto dentro do

palacete. Ainda que insegura, incerta em querer admitir, havia algo em Louk que

atraía Dhara de um jeito incontrolável.

— Parece que tens aversão às plateias, não é mesmo?

— Não me sinto atraído por grandes públicos. A não ser, é claro, que os mesmos

estejam ali por minha causa.

— É notório. Entrementes, vide o modo como fugiste de Paragon quando uma

comitiva veio assisti-lo.

— Olha, não é que você tem humor? Achei que os elfos eram sempre sérios,

falando desse jeito rebuscado e só sorriam quando mandados.

— Há uma infinidade de coisas que não sabes sobre os elfos...

— É possível. Talvez, você devia me explicar... ou melhor, devêsseis explicar-me a

mim.

Dhara riu.

— Pois bem. Então pergunte-me.

— Por que estão sempre brilhando? Digo, estão sempre cheios de joias,

diamantes, adornos reluzentes. Você e suas... suas... como é o nome daquelas outras

elfos atrás de você e que vivem de cabeça baixa? Ajudantes?

Dhara sorriu outra vez. As maçãs do rosto aqueceram. O coração acelerava mais

do que o normal. Nem mesmo quando estava diante de Menfesis, ou dos

intermináveis testes de graduação quando ainda era uma arcana, sentira-se tão

nervosa e irrequieta. Apesar dos mais de cem ciclos de idade, sentia-se de volta à

adolescência.

— Talvez não saibas, contudo, estou em um processo para assumir um posto

avançado na Ordem dos Sacramentadores. Encerro um momento de aprendizado

muito valioso, minha era preparatorem, para consolidar minha liderança sobre o

Octaedro de Hegemonia.

— Era preparatorem? Octaedro de Hegemonia?

Dhara sorriu diante da expressão confusa de Louk.

— Todo elfo sacramentador passa por uma era de preparação para assumir um

posto na hierarquia da Ordem, seja para ser um dos Oito ou um sacramentador,

digamos, menor, auxiliando em algum octaedro. Em suma, cem ciclos de

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preparação. Aproveitando que as dúvidas ainda não abandonaram seu esgar

confuso, o mundo de Eirin fora dividido em oito grandes regiões. O tipo de

oscilação temporal dominante define cada uma delas: Infortúnio compreende os

reinos de Elstoen e eventos sobre as Águas Solídiras; Fúria abrange toda Aladar;

Trevas envolve as Terras Distantes de Turmis; Serenidade abarca parte de

Eurodian: em suma, reinos como Badorian, Mistral e Sombroceano; Austeridade

inclui seu reino e também Frandar, Líria e Zavir; Perspicácia está ligado a Fahur,

Boralioch, Achmat, Vaelfar e os demais reinos do extremo oeste; Solidão

compreende todo continente de Anlevor. Por fim, mas não menos importante,

Hegemonia, que é a região ou, como comumente chamamos, o octaedro que

envolve Paragon, Cruisand e Vervaz. O octaedro que assumirei em breve.

— Uau. — Louk estava realmente impressionado. — Então quer dizer que você

possui mais de cem ciclos de idade?

— Cento e doze ciclos, mais precisamente.

— Às vezes esqueço quão longevos os elfos podem ser.

— Enfim, assim como um Guardião, estou para assumir muitas

responsabilidades em uma posição de alta complexidade na hierarquia da Ordem.

Por isso, necessito estar em tantos bailes e festas de pessoas importantes, visitando

cidades mágicas e outros lugares de destaque.

— Mas ainda não consigo entender...

— Por que isso não me surpreende?

— Haha — riu Louk, fuzilando a elfo com os olhos. — Enfim, tantos rituais e

mistérios e a magia de vocês está ligada a... eventos climáticos?

— Falas como se fosse algo simplista e insignificante. A magia dos Guardiões

nunca deteria furacões, maremotos, avalanches assoladoras. O poder de você seria

pífio diante de tais eventos. Há muita coisa de nossa religião que a filosofia dos

humanos jamais entenderia.

— Sacramentadores também podem... alterar... o tempo contínuo... digo, o

passado?

Dhara comprimiu os olhos para o guardião. Ponderava se aquele assunto não

estaria indo longe de mais. Imaginava há quanto tempo ele se segurava para fazer

tal pergunta.

— Jamais toque neste assunto. Nunca, sob hipótese alguma, mencione isto para

um sacramentador — respondeu Dhara, ríspida.

— Mas eu...

— Alterar o curso do tempo contínuo é profano. — Dhara cuspia as palavras

com uma tensão carregada na voz. — Um sacrilégio em nossa religião, condenado

com pena máxima. Nunca, jamais, eu repito, pergunte a um sacramentador este

tipo de coisa.

247


— Perdão, eu... — Louk enrubesceu; o constrangimento pela pergunta

equivocada fazia-o querer enfiar a cabeça no chão. — Eu não tinha ideia que este

assunto era tão... delicado.

— Como disse, há muitas coisas que vocês jamais entenderiam.

— Somos realmente muito parecidos, você e eu — crocitou Louk, sorrindo,

tentando mudar de assunto.

Dhara arqueou uma das sobrancelhas e contorceu o cenho, intrigada. Louk

assumiu um esgar contemplativo; mirava o longínquo horizonte pontilhado de

luzes de vários tons e nuances da cidade de Cruisand.

— Ambos somos ‘protetores’.

— Somos?

— Serei o próximo Guardião de Turmis. Lorde Dorner Ottonis está muito velho

e abdicou da cadeira há alguns meses. Fui o indicado por meu pai, o rei, para

assumir seu lugar. Os preparativos para a ascensão ao Círculo dos Cinco estão

sendo feitos...

Os ruídos delicados da leve brisa da noite correndo pelas ameias do castelo

assobiaram de forma assustadora alguns metros abaixo e preencheram o silêncio

mortificante que se instaurou entre ambos nos segundos seguintes. A elfo divagava

se tanta responsabilidade repentina suplantava a alegria do guardião ao seu lado.

Sua voz assumiu um tom lúgubre; a tristeza se apossara de suas feições. Não havia

felicidade em dizer que se tornaria um Guardião. Passara tantos ciclos se

preparando para o ministério, que assumir um Octaedro era como uma dádiva, um

presente recebido no momento propício. A cultura dos elfos era categórica: a

experiência advém com o passar dos ciclos e, juntamente com ela, a sabedoria. E a

sabedoria não traz confusão com as adversidades da vida, quaisquer que sejam elas.

Os olhos azuis-cinzentos de Louk surpreenderam o semblante absorto de Dhara,

que sentiu as bochechas arderem, corando violentamente. Imaginou se o guardião

não tinha reparado, pois ele sorriu novamente, mas um sorriso de encanto, de

fascínio.

— Eu desistiria de tudo por você!

O coração da elfo disparou. Tinha ouvido corretamente?

— Como?

— Me apaixonei por você no instante em que te vi. Eu poderia ter saído voando

de Paragon a hora que eu quisesse e me livrado daqueles guardas. Sou guardião,

manipular o vento é minha especialidade. Mas algo me fazia querer ficar preso a

você, correndo pelos telhados ao seu lado, segurando a sua mão. Não era minha

intenção te encontrar, muitos menos que nossos caminhos se cruzassem. Mas

nossos destinos se tocaram. Desde aquela insana aventura em Paragon, o beijo

antes de fugir, eu não consigo tirar você da minha cabeça e isto não pode ser mera

obra do acaso.

248


Dhara não sabia o que dizer, mas seu olhar vidrado indicava que ele esperava uma

resposta. Não queria falar, ou talvez não pudesse, mas o que sabia era que jamais

havia estado assim. As emoções afloravam como jamais acontecera em um arroubo

de sentimentos esquisitos, cuja sabedoria de seus mais de cem ciclos não

conseguiam decifrar. O coração pulsava em um frenesi irrefreável. O desejo

inexplicável que sentira antes retornava com ímpeto. Negava com todas as forças,

contudo ela sabia pelo que ansiava. Desejava Louk. Queria seus lábios, sua

presença, seus abraços. Mas ela tinha consciência de que isto era impossível.

Impensável. Reprovável.

— Louk, nós não podemos ficar juntos. Existe um abismo entre nós e você sabe

disso e...

Um beijo repentino a impediu de prosseguir. Surpreendendo-a, interrompeu sua

frase no meio. Louk a tomou nos braços e pressionou seus lábios nos dela. Beijavaa

intensamente, com um desespero incontido pela boca da elfo. Dhara se entregava

aos beijos do guardião, esquecendo-se do mundo ao seu redor. Queria mais, muito

mais daquele gosto inesquecível. Ainda que nada disso fosse correto, ansiava para

que esse momento ínfimo e inexpressivo na imensidão da malha do tempo fosse

eternizado, para que pudesse reproduzi-lo sempre que quisesse com sua magia e

guardá-lo como recordação de uma lembrança perene de um momento magnífico

e inescrutável.

Além das portas translúcidas do grande Salão de Vidro, onde o baile perdurava

com canções animadas e uma roda de convidados dançando acaloradamente,

alguém observava com atenção os beijos secretos de Louk e Dhara na sacada

externa.

249


Capítulo Dezessete

A Batalha Equivocada de Baetrafid

Uma gota de suor rolou das têmporas de Vegor. Grossa e incômoda, ela

embrenhou-se pela espessa sobrancelha e precipitou-se para dentro do olho

esquerdo. Um ardor causticante fez o filho mais velho de Saldivar pressionar os

olhos com força, piscando incansavelmente até que a dor na vista fosse embora e a

visão voltasse ao normal. A vontade era de arrancar o pesado capacete prata com

chifres dourados e curvos como os de um bode e arremessá-lo o mais longe que

conseguisse, de preferência na cabeça do maldito que tivera uma ideia tão idiota. O

desejo era de fugir. Fugir para o mais distante possível. Instigar sua montaria e

cavalgar a esmo no sentido oposto. Correr até que se esgotassem suas forças e a do

animal para um lugar distante o suficiente daquele cenário tenebroso de guerra.

A armadura pesava sobre os ombros. Pinicava terrivelmente em vários pontos e

de tantas formas que tórax, costas e braços coçavam sem parar. Era como se seu

corpo estivesse coberto de açúcar e formigas perambulassem atiçadas por seus

peitos e membros, devorando tudo que era adocicado em seus caminhos. Vegor

arquejava debaixo da couraça e ombreiras de prata. Sorver o ar com tanto peso

sobre os ombros era quase impossível. Praguejava baixinho embora soubesse que

poderia gritar de ódio. Enfurnado sob a colossal armadura e com tantas vozes

crocitando a esmo, seria impossível ouvir um pio sequer.

Maldita hora que fora aceitar esse desafio insano. Para sua própria sorte,

felizmente, não precisaria lutar. Bastava estar à frente de uma tropa, como líder do

batalhão e fazer cara de mau. Os bárbaros não seriam idiotas o suficiente para

ousarem se meter com um exército tão grande e fortemente armado do outro lado

do campo.

Sob uma fresta no capacete, Vegor vislumbrava o cenário desenhado à sua frente.

Os campos de Baetrafid, um dos lugares mais remotos e desinteressantes de

Elstoen ao sul de Poyares, se exibiam diante dele. O relevo era tortuoso e

desconjuntado. Os planaltos, planícies e depressões irregulares se sobrepunham uns

aos outros e uma dezena de rochas calcarias, altas e refletindo a luz do sol, se

amontoavam em pontos isolados. A relva fina de aspecto alaranjado balançava

debilmente de um lado a outro com a força dos ventos, o que para Vegor lhe trazia

250


à memória as camisolas e calcinhas encardidas esvoaçando ao vento marítimo sobre

os varais dos bordeis do Porto.

Soltou um risinho idiota pelo canto da boca por causa da lembrança. Divagava

sobre os dias em que a única preocupação era embrenhar-se nos corpos pelados

daquelas prostitutas. O sorriso nostálgico logo desapareceu. A visão aterradora do

porquê estava ali se apresentava além da ignóbil vegetação dançante.

Como formigas amontoadas umas ao lado das outras, o exército inimigo se

posicionava do outro lado, imitando as formações militares dos batalhões de

Poyares. As ondulações provocadas pelo forte calor da manhã distorciam a imagem

da numerosa legião de bárbaros que se enfileirava como um tenebroso paredão.

Mas, afinal, o que diabos eles estavam fazendo? O que é que eles queriam com

tantos homens em pé em formação? Ninguém iria atacar o bando de invasores do

outro lado, estavam ali fazendo cena e intimidando os petulantes guerreiros

selvagens que não se moviam de suas posições.

Vegor praguejou novamente. Um pouco mais alto desta vez.

Uma onda de pavor crescente ia se apoderando dele a cada segundo que passava.

Questionava-se se deveria ter se preparado mais. Treinar era chato. Não tinha a

menor paciência. Disciplina com as matérias militares, para quê? Quem imaginaria

que seu pai abdicaria da vida como Guardião tão cedo, tão novo? Pelo menos,

Vegor pensava, aquele era o voto de confiança de que precisava. Cortara pela raiz

a ideia insana de quebrar as tradições e nomear seu irmão mais novo como

Guardião. Mais do que tudo, Vegor precisava apenas liderar os exércitos de

Poyares, intimidar o quanto pudesse, sustentar uma carranca desafiadora e sair

triunfante dessa missão imbecil que, sem sombra de dúvida, fora um conselho de

Mastenion e Callan. Não conseguia entender porque o pai dava tanto ouvido a esses

dois amigos e suas mirabolantes e geniais ideias suicidas. Havia o fato de terem sido

criados juntos e serem amigos de longa data, mas se o pai não tinha capacidade

suficiente para decidir sozinho, dificilmente conseguiria governar Candorn com

sabedoria.

Atrás de seu cavalo, a pequena legião de guerreiros de Poyares o observava com

intensa expectativa. Com armaduras tão pesadas quanto as dele, flamulavam a

bandeira de seu reino e brandiam espadas e lanças contra os céus, vibrando de

excitação na expectativa de que pudesse haver uma batalha, o que para Vegor estava

completamente fora de questão. Não estava ali para lutar. Sob hipótese alguma

queria se levantar em armas contra um exército de bárbaros, ainda mais sabendo

quão carniceiros e hostis eles eram. As histórias aterradoras de invasões e mortes

brutais no extremo-Sul permeavam os burburinhos em todas as cidades de Candorn

e Vegor estremecia só de ouvir. Girando o pescoço o máximo que o capacete

permitia, o filho mais velho de Saldivar procurava alguém que ainda não tinha

avistado: Lorde Brenrar e seu batalhão. Esperava ver o rei por perto. Queria

251


cumprimentá-lo, fazer uma média. Começar a socializar com os outros soberanos

do continente e se apresentar como o novo Guardião era necessário para ganhar

prestígio e respeito com as demais nações.

Considerando a ideia de se exibir um pouco à frente das tropas, fazendo o cavalo

trotar de um lado a outro, Vegor observou outra legião de soldados se aproximar,

em um batalhão maior que o seu. Posicionaram-se numa plataforma a noroeste de

onde estava. A esperança faiscou em seu coração. O rei de Poyares e seu exército,

finalmente, chegara para reforçar as tropas e amedrontar ainda mais o inimigo.

Montados em cavalos e embalados por armaduras e capacetes, um gigantesco

estandarte adejava com a força dos ventos. Um grande Corcel Alado, verde e prata,

estampava a bandeira.

Vegor inclinou a cabeça e apurou os olhos. Outras bandeiras menores, com o

brasão da Virtuosa Candorn se agitavam contra os céus. Seu pai viera ou seria

Mastenion ou Callan? Para ajudar ou apenas observar sua performance?

Aparvalhado, esquadrinhou o cavalo negro de crina longa e escarlate e o homem

montado sobre ele, assumindo a dianteira do batalhão. Era magro e esguio de mais

para ser seu pai. Faltava-lhe a barriga proeminente e as costas arqueadas pelo peso

dos ciclos.

O líder do exército a noroeste retirou o capacete, revelando o rosto.

Embasbacado, Vegor perdeu o fôlego e quase caiu do cavalo ao ver de quem se

tratava: era Rudi.

Não conseguia, ou não queria, acreditar.

Não era um voto de confiança, um desafio para provar seu valor, a oportunidade

de conquistar a confiança de seu pai e dos demais reinos: era um teste. A prova que

decidiria quem era o melhor.

A débil descrença ia se tornando pouco a pouco uma raiva crescente no fundo

do peito, como uma chama ardorosa alimentada por novas brasas. Vegor ajustou o

capacete sobre a cabeça e empertigou-se no cavalo. Nos dedos retesados agarrados

às tiras de couro, um ódio avassalador queimava e o consumia. Estufou o peito e

solicitou a um soldado que lhe trouxesse um berrante. Aguardando a chegada do

instrumento, desembainhou a espada que exterminaria legiões de bárbaros,

obstinado. Se era guerra o que eles queriam, era guerra que teriam. Sairia dali como

o homem que obliterou os selvagens invasores de seu continente de uma vez por

todas, terminaria essa batalha reconhecido por todos como o definitivo Guardião

de Elstoen. Este dia entraria para a história.

Uma nota grave e longa ressoou pelos ares acalorados do campo, pegando a todos

de surpresa. Rédeas balançaram; estalaram de chofre com estrépito sobre o couro

dos cavalos de guerra. Centenas de patas fugazes se movimentaram; saíam da

inércia rumo a um destino incerto. Trotes pressurosos ecoaram em uma corrida

252


acirrada. Marcavam o terreno irregular com ferraduras pesadas. Arrancavam relva

e levantavam poeira. O vozerio das legiões de soldados com espadas e lanças

apontadas para cima reboou pela atmosfera cálida da manhã. Hordas de guerreiros

bárbaros do outro lado ouviram o reboar do chifre e avançaram pelas terras com

avidez. Um banho de sangue estava prestes a acontecer.

Sem compreender, Rudi imitou os soldados sob seu comando que avançaram

pelos campos e instigou as rédeas de sua montaria. Saltou da plataforma rochosa

em que estava posicionado rumo às planícies tortuosas e depressões relvadas do

vale de Baetrafid. O capacete de prata com duas asas douradas e sinuosas nas

laterais chacoalhava sobre sua cabeça. Estava folgado e atrapalhava sua visão. Não

recebera instruções para lutar. Fora incumbido de liderar uma tropa para patrulhar

o limiar do vale, uma estratégia de intimidação, uma escolta dos campos de

Baetrafid como uma forma de demonstrar aos inimigos que os exércitos de Poyares

se opunham ao avanço dos bárbaros. Mas alguém tocara um berrante. Um chifre

ressoado era sinal de um ataque iminente, um embate corporal entre tropas rivais.

O sinal para a batalha fora dado. Isso não o fez recuar. Havia muito tempo, queria

provar seu valor como guerreiro. Galgava posições sobre o vale, desviando das

rochas chispantes e pedregulhos no caminho. Os muitos treinamentos nos

acampamentos de soldados de Candorn finalmente seriam colocados à prova.

Vislumbrava sua glória no horizonte. As armadas de bárbaros diminuíam a

distância, correndo como demônios sedentos de sangue, para onde o embate seria

contundente.

Vegor fustigava seu cavalo. O pai ficaria feliz quando retornasse à Candorn tendo

derrotado os inimigos que ele jamais conseguiu destruir. Era o dia de seu triunfo.

O dia de tornar-se uma lenda. Os dedos dormentes arraigados à espada, sempre

com o braço em riste, apontando a arma para frente como quem segura um dardo,

prestes a arremessá-lo. Os olhos ora vislumbrando o caminho inveterado à diante,

ora acompanhando, encolerizado, cada movimento de seu irmão mais novo.

Saltaram por novas plataformas, esquivaram-se de uma dúzia de pedras

gigantescas que atravancavam o caminho e dispararam por outras depressões e

planícies cobertas de grama alaranjada.

Uma tropa de cavaleiros emparelhou-se com Vegor. Excitados com a iminência

do combate, imitavam o gesto do guardião: erguiam a espada acima da cabeça dos

cavalos, estrondando gritos de guerra pelos ares. O filho mais velho de Saldivar

tentava observar Rudi, por entre os soldados e cavalos que corriam ao seu lado,

mas em meio à aglomeração ouriçada de sua legião, não conseguia mais identificálo.

Os dois pelotões tornaram-se um só. Rumavam, emparelhados e obstinados,

para o foco do confronto com as tropas inimigas.

— À Poyares, meu amor em vida...

— E minha honra na morte!

253


Os berros tornaram-se ensurdecedores. O som incisivo das patas dos cavalos

marcando a terra relvada, aproximando-se do exato ponto em que a batalha seria

renhida misturava-se aos brados exaltados de jovens soldados sedentos por uma

boa batalha.

O chifre ressoava pelos campos mais uma vez.

Rudi não conseguia compreender. A agitação o impelia a seguir adiante e manter

a postura de oficial responsável por sua pequena tropa. Alguém dera o sinal. As

tropas inimigas iniciaram um ataque. Como líder do pelotão, viu sua montaria

acompanhar as demais em direção ao exército adversário.

Gritos ensandecidos se acirraram e os galopes perturbadores e em máxima

velocidade, pisoteando a grama, estalavam sobre as terras e pedras do vale. A

distância entre bárbaros e poyarianos diminuía mais e mais a cada segundo.

Vislumbrava os guerreiros adversários correndo ao lado de fileiras de cavaleiros

bárbaros, agarrados a lanças, espadas, machados e foices.

O epicentro do embate se apresentava.

O filho mais novo de Saldivar desembainhou a espada da aljava que carregava

sobre as costas por instinto. Um longo silvo, agudo e metálico, vibrou em seus

ouvidos. A lâmina curva chocou-se com estrépito contra um machado de dois

gumes. A violência do golpe arremessou o jovem guardião de seu cavalo. Caiu sobre

a relva do vale com um baque surdo. Rolou pelo campo uma dúzia de vezes até

conseguir fincar a espada sobre o chão e finalmente parar.

Desorientado, com uma dor pungente no cocuruto e uma infinidade de arranhões

e escoriações pelo corpo, Rudi usou sua lâmina como apoio para se pôr de pé.

Acabrunhado, a visão ainda estava turva e seus músculos doíam por causa da queda.

Figuras retorcidas de soldados se digladiavam ao redor. Sangue jorrava sobre a

grama. Cabeças, braços e pernas decepados se espalhavam pelo chão. Corpos

moribundos, encharcados por sangue, enfurnados em pesadas armaduras metálicas

jaziam à luz do sol.

Enxergando silhuetas disformes, ouvindo brados de dor e ondas de fúria, o caçula

de Saldivar brandiu a espada por instinto no exato momento em que a sombra de

um machado se assomou contra ele. A lâmina rasgou a pele de alguém e, no

segundo seguinte, ele a cravou sobre o peito de outro soldado inimigo que surgiu

ao seu lado.

Sangue espirrou contra seu capacete. Jorrou para o rosto, escorreu por seu nariz

e empapou sua cota de malha. Dois corpos tombaram sem vida com os golpes de

sua lâmina.

Uma figura colossal caminhava em sua direção.

O tilintar das espadas ao redor ressoava em seus ouvidos. A visão ficava menos

turva. Um homem de quase dois metros de altura ia crescendo para o lugar onde

254


estava. Usava um capacete largo, quase como uma redoma escarlate e cintilante,

com espaço para pelo menos mais duas cabeças. No cume do capacete, um único

chifre curvo, de ouro maciço, refletia a luz do sol. Era como a cabeça de um

rinoceronte. Um rinoceronte vermelho e dourado. Os braços musculosos do

bárbaro bem como seu tórax estavam de fora. Brancos como leite, eram cobertos

de pequenas sardas e pelos avermelhados. Pequenas cicatrizes marcavam os bíceps

e antebraços. Devia ser um experiente guerreiro: segurava o machado de dois

gumes com determinação e caminhava a passos largos, porém lentos. O olhar

frívolo e assassino estava focado. A cabeça de Rudi rolando sobre a grama era o

prêmio que desejava.

O filho mais novo de Saldivar deu uma cambalhota para trás. A lâmina do

machado zuniu alto pelos ares e fincou-se sobre a terra, onde antes Rudi estava

parado.

O bárbaro puxou o machado com ferocidade e agitou os monstruosos braços

com rapidez. Rudi arquejou. Girando nos calcanhares o mais depressa que pode, o

jovem guardião segurou a espada à frente do corpo com as duas mãos, cara a cara

com o inimigo.

O homem de braços pelados correu para o alvo. Ergueu o machado outra vez,

pronto para desferir o golpe. Rudi rolou para a direita numa fração de segundos e

logo após para a esquerda. Novamente, para a direita. O bárbaro aplicou uma

sequência de investidas rápidas. Tufos de relva cortados e porções de terra voaram

do chão. Rudi sabia que era impossível se defender para sempre. Além de forte e

grandalhão, o inimigo era rápido e astuto. A batalha acontecia ao redor. Poderia se

esquivar dos golpes daquele bárbaro por mais algum tempo, mas teria uma morte

inevitável se um segundo inimigo o golpeasse inesperadamente. Do lugar onde

estava, a impressão era de que os bárbaros estavam obtendo vantagem em cima dos

soldados sob seu comando. Aparentavam ser mais fortes, mais ágeis e experientes

em combate.

Brandindo a espada, Rudi golpeou o bárbaro com chifres de rinoceronte. O cabo

do machado interrompeu o ataque da lâmina antes que ela acertasse seu braço

direito. Agitando a arma na horizontal, o bárbaro desferiu um novo intento mortal.

Rudi pulou para trás por instinto. A ponta do machado abriu uma extensa fissura

sobre a armadura do jovem guardião que sentiu uma leve pontada sobre o peito.

Ofegante, Rudi tentava, sem sucesso, observar alguma hemorragia sobre a ferida.

Desvencilhando-se de outro ataque que passou de raspão por sua cabeça, o filho

mais novo de Saldivar agitou os dedos e uma poderosa rajada de vento elemental

derrubou o bárbaro. O homem de capacete escarlate caiu de costas sobre o campo,

desorientado. O machado zuniu pelos ares e aterrissou em algum ponto do calor

da batalha. Rudi ergueu sua espada e cravou-a sobre o peito aberto de seu inimigo.

Sangue jorrou para o alto, do peito e dos lábios do homem.

255


Rudi empurrou ainda mais a espada, até sentir a ponta da lâmina encontrar o chão

de terra. Os olhos cinzentos arregalaram-se para o jovem guardião. Num último

suspiro, o homem “rinoceronte” morreu.

O confronto acirrava-se a cada instante.

Soldados de Poyares perdiam as vidas em batalha. Sangue quente marcava a terra

como rubras cascatas inundando o vale. Rudi arrancou o capacete da cabeça e

vislumbrou o entorno. Os rostos na multidão de guerreiros eram variados.

Armaduras, capacetes e armas de variados tons e formas: nada no lado inimigo

tinha um padrão definido. Os guerreiros de Poyares, contudo, se destacavam no

campo de batalha, com as armaduras de bronze e a Serpente Astuta, símbolo do

reino, entalhada em ouro sobre as couraças e capacetes. Lutavam de forma

comedida e se esforçavam por manter a estratégia de bloquear o avanço do inimigo.

O terror era a expressão máxima e estampava o rosto da maioria. Eles vacilavam e

eram pressionados pelos exércitos inimigos.

Os bárbaros obtinham vantagem por não terem um padrão definido. Isso

confundia a mente de Rudi que já não sabia como conter a fúria implacável de seus

adversários.

Jamais havia visto um bárbaro. Durante a infância, ouvira todas as histórias

contadas pelos tios e por seu pai, a respeito dos invasores que aportaram ao sul de

Elstoen, vindo das ilhas mais remotas de Argúrius. De várias tribos e etnias,

estabeleceram alianças para se tornarem mais fortes em seus embates. Indispostos

a compartilhar, o desejo de conquistar as terras alheias era uma crescente

assustadora que há muito perturbava a paz no continente. No campo de batalha,

eram letais. Homens altos e baixos. Brancos, negros, morenos. Barbudos e carecas.

Com enormes machados, maças e espadas. Vestiam armaduras rudimentares.

Avançavam imbatíveis sobre os campos como demônios aterradores. Sem medo

da morte. Despedaçavam os exércitos poyarianos com uma destreza invencível.

Vislumbrando a iminente derrota, Rudi avistou algo que fez o coração disparar.

O combate corpo a corpo sobre os campos de Baetrafid era, na verdade, um

massacre sangrento. Centenas de homens perdiam suas vidas sob a lâmina dos

machados e espadas inimigas. Os exércitos bárbaros prosseguiam irrefreáveis. Um

rastro de corpos sem vida ficava para trás. Jaziam à luz ardente do sol sobre a relva

tingida de sangue coagulando.

Vegor se escorava atrás de uma grande rocha. O esconderijo em meio ao mar de

corpos era um refúgio para a chacina que presenciara, a poucos metros de onde

estava naquele instante. O coração palpitava em batidas aceleradas. O corpo tremia

dos pés à cabeça. O arrependimento por ter tocado aquele maldito chifre o

consumia. Uma dor pungente nas costelas o fazia arquejar, curvando-se levemente

para frente. Refazia mentalmente os últimos instantes até aquele momento.

256


Rudi sumira de seu campo de visão quando intimou um soldado a assoprar o

chifre e dar início ao chamado para a batalha. O mar de soldados cavalgando para

o cerne do confronto engolfara a última imagem do irmão mais novo: as mãos

firmes nas rédeas de sua montaria, o olhar atento ao embate próximo. Num ligeiro

movimento, os olhos de Vegor foram rápidos o suficiente para enxergar uma lança

cortando os ares, arremessada em sua direção.

Atirou-se em direção ao chão por puro instinto. Rolou várias vezes pela grama.

A cabeça e os braços batiam-se debilmente contra a grama e os pedregulhos no

caminho. O capacete protegera a cabeça de uma lesão maior, mas a armadura ficou

em frangalhos. Uma dor aguda fez Vegor prostrar-se. Uma ou duas costelas

fraturadas. No intenso cenário de guerra ao redor, não havia tempo para pensar em

ossos quebrados. Sobreviver era seu desejo mais ardente.

Ergueu-se com dificuldade, escoltado por quatro soldados poyarianos que

também temiam pela vida. Inexperientes em batalhas, brandiam suas espadas contra

os bárbaros que se assomavam de um modo débil e inocente. Davam-lhe cobertura

do jeito que podiam até que conseguisse se recuperar do golpe inesperado.

Uma flecha voou de algum lugar.

Certeira, atingiu o pescoço de um dos soldados da escolta, atravessando sua

traqueia. Uma segunda flecha cortou os ares. Cravou-se, explodindo em sangue,

sobre o olho direito de outro soldado. Vegor ficou atarantado. Ergueu a espada a

esmo, acabrunhado com a dor lancinante. Esquadrinhou ao redor quem era o

arqueiro de mira tão apurada que dizimava seu pelotão.

Novas flechas surgiram. Mais três guerreiros tombaram ao seu lado, mortos ou

uivando de dor.

Uma lâmina afiada zuniu. Estraçalhou o ombro de um soldado atrás de Vegor. O

guardião rodopiou onde estava, combalido, segurando a lateral do estômago.

Com longos cabelos dourados, um bárbaro de pele avermelhada o encarou. Os

olhos eram verdes como o oceano no verão de Candorn e o queixo quadrado, com

um fino cavanhaque loiro. Não usava armaduras. O tórax estava descoberto e

salpicado com o sangue de suas vítimas. Uma pele de lobo branco com grandes

manchas rubras e reluzentes adornava cada lado de seu pescoço. Um arco de

madeira de acácia cruzava suas costas.

O guerreiro com pele de lobo puxou a espada do ombro do soldado e o degolou.

Vegor assistiu à cena, atônito. Sangue jorrou para cima e para frente. A cabeça do

homem rolou sobre o chão.

Sem pestanejar, pôs-se a correr. A dor em seus flancos era atroadora, mas o desejo

de permanecer vivo suplantava qualquer aflição.

Agachando-se para não ser alvo de flechas, atirou-se para o primeiro abrigo que

encontrou: uma enorme rocha atravancando o campo. A última visão antes de

257


desabar atrás da pedra, era do guerreiro de olhos verdes terminando de obliterar

sua escolta.

Vegor não queria olhar. O medo daqueles olhos aterradores fazia-o tremer como

uma palmeira em uma impetuosa ventania. Mas permanecer escondido ali era

suicídio. Ele logo terminaria de executar os homens de seu pelotão e viria trás dele.

Precisava encontrar um jeito de fugir ou de arrumar um novo abrigo que o

mantivesse vivo.

Uma mão apareceu de repente.

Os dedos largos agarraram seu pescoço e o ergueram no ar. Vegor estava

sufocando. A mão do bárbaro apertava sua garganta como se quisesse arrancá-la

do lugar. O oxigênio se esvaía depressa. A luz do dia ia desaparecendo e escurecia

lentamente.

De chofre, despencou.

Sorveu o ar com tanta intensidade que o peito doeu.

Um estrondo como o de um furacão retumbou nos ouvidos de Vegor. Gritos

ensurdecedores se uniram ao barulho de uma ventania poderosa.

O que estava acontecendo? Era isso que havia do outro lado da vida?

Vegor abriu os olhos.

A cabeça doía. Estirado de barriga para cima sobre o campo, a visão ainda estava

turva.

Entre as diversas silhuetas que conseguiu distinguir ao redor, havia a de um

homem. Era negro, alto e ligeiramente esgalgado. Usava uma armadura prata. A

mão direita em riste descrevia círculos contra o céu, acima de sua cabeça. Ao

derredor, um tufão retumbante continha o avanço dos bárbaros, criando uma

barreira que separava o exército de Poyares dos batalhões inimigos.

A visão de Vegor voltou a normal; a cabeça parou de doer.

O homem impedindo a ascensão dos bárbaros com seu poder era Rudi. Os

guerreiros de Poyares vibravam, comemoravam aos berros, pulavam extasiados.

Brandiam as espadas para o alto, aclamando o guardião pela vitória.

Prostrado sobre o chão, envergonhado e tentando se levantar, Vegor vislumbrou

o outro lado através de uma nesga na ventania mágica que o circundava: o bárbaro

de olhos verdes e impiedosos o observava atentamente.

258


Capítulo Dezoito

Pelo Trono de Snartria

Levantando uma das pernas para cima, empinou o nariz e se esforçou para manter

uma convincente expressão petulante ao encarar os convidados que se espalhavam

sobre o salão. Petr estava muito à vontade. Nesse dia, muito mais do que jamais

estivera. Mudando de posição, erguendo a perna esquerda, encaixou o pé sobre o

assento e apoiou o braço no joelho.

Não estava nem aí se aquela não era uma atitude formal para a ocasião. Postavase

de um modo insolente e desleixado sobre o Trono Real. Recordando o avô,

imaginava como ele reagiria se o visse assim. Ele jamais aprovaria tal

comportamento. Reclamaria de sua postura, dos modos nada cordiais, ainda mais

na frente de uma plateia tão ilustre ou diante dos reclames certeiros que viriam da

megera abominável a quem ele era obrigado a chamar de avó. Entretanto, no apagar

das luzes, quando o silêncio imperasse sobre o castelo vazio e todos fossem

embora, sem que houvesse uma viva alma para reprovar sua conduta, os dois ririam

de tudo até cansarem, até que a barriga doesse de tantas gargalhadas e dormiriam

felizes, com as bochechas retesadas de tanto rirem.

A multidão de convidados se espalhava pelo salão. Apreciavam o banquete e

admiravam a suntuosidade do Palácio de Ônix muito bem arrumado para aquele

momento ímpar. Petr encarava os convidados que transitavam de um lado a outro

com seu olhar que se esforçava para parecer presunçoso — e realmente estava

dando tudo de si para que os outros comentassem sobre sua atitude ousada no

púlpito montado para abrigar o trono no ponto de maior destaque do lugar.

Resolvera que não serviria o vinho sob hipótese alguma, até que todos os

convidados o tivessem visto sobre o trono de um modo tão desbocado.

Entrementes, havia um porquê estratégico de sua parte. Queria todos os presentes

sóbrios e em perfeito juízo mental nessa noite de gala mais que especial observando

que o trono não estava vazio. Assumindo ou não como rei, deixava bem claro a

todos quem era que mandava em Snartria. E ninguém, nem mesmo a louca de sua

avó ou qualquer outro no reino, poderia ameaçar sua liderança.

Mantendo o esgar indelicado que provocava leves fisgadas nas maçãs enrijecidas

do rosto, Petr lançou olhares de esguelha para cada uma de suas mãos e o que havia

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nelas — o que também fazia parte de seu espetáculo premeditado. Na mão

esquerda, incólume e cintilante, repousava a coroa de ouro e incrustada de rubis

usada pelo homem mais sábio, justo e amável que as serenas terras de Snartria

jamais tornariam a ver. Um símbolo de poder tão suntuoso e frágil, mas alvo de

uma cobiça implacável. Arraigado aos dedos da mão direita, o cetro forjado em

diamante élfico e selado em puro ankur das Minas Vaelfarianas reluzia à luz dos

candelabros. Era esplêndido. Atraía olhares aos montes e a admiração daqueles que

passavam ao redor do trono. Na ponta do cetro, uma harpia translúcida estufava o

peito e empinava seu longo bico de uma forma quase tão atrevida quanto a de Petr.

A ave símbolo do reino fora talhada à mão em detalhes tão minuciosos que

arrebatava o espírito de qualquer admirador. O artefato fora um presente da Forja

Élfica a Hanna Zanotchka, sua mãe, a única mulher a liderar o Círculo dos Cinco.

Ambos objetos teriam novos donos então e Petr estava louco para poder ver a

reação de todos quando anunciasse sua escolha.

O grande salão de festas do palácio estava apinhado. As pessoas mais ilustres e

importantes de toda Anlevor e até de outros continentes atenderam ao convite para

este dia mais do que especial. Decidira que era hora de liberar o vinho. Cumprira

seu objetivo e acreditava que todos o tinham vislumbrado tão à vontade sobre o

trono. Era hora de deixar que seus convidados se embebedassem. Isso não faria

tanta diferença quando anunciasse sua decisão. De qualquer forma, eles ficariam

chocados.

O pescoço latejava de dor em ter que suportar o nariz em pé que se forçara

manter por tanto tempo. Apesar do formigamento nos músculos das costas, até

que fora divertido bancar o petulante por alguns momentos e ver as caretas que

iam de assustadas a reprovadoras. Algumas satisfeitas, como se soubessem que o

que ele fazia era um mero teatro proposital. Muitas com um sorrisinho insípido

estampando suas carrancas aduladoras. Desses em particular, Petr tinha um pouco

de asco.

Esquecendo o misto de rostos de pessoas que, em sua grande maioria, só via em

festas da realeza e a eclética paleta de expressões caricatas ao seu redor, Petr

devaneava, como tantas outras dezenas de vezes desde que retornara de Gelor-

Torine, com os eventos misteriosos que ocorreram ao norte do reino congelado e

nas inacreditáveis coisas que seus olhos vislumbraram enquanto tentavam

sobreviver aos temíveis wargs invernais. A intensa nevasca que se precipitava dos

céus era violenta e perturbadora, mas não o suficiente para pôr em xeque o que

acreditava ter presenciado. Os olhos não o traíram naquele platô congelado.

Embora jurasse não ser possível e ficar vários dias encucado com o que vira,

conjecturando dezenas, centenas de explicações possíveis e plausíveis, nem mesmo

a maior e mais mirabolante teoria o convencia do contrário: Conrod não usou sua

magia de alquimestre do vento para erguer aqueles lobos terríveis; o velho de

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cabelos brancos e rastafári parou o tempo e tudo ao redor para que pudessem fugir.

Não sabia quem era Conrod, mas, naquele dia, quando retornaram das montanhas

e os soldados de Lorde Marvan fugiram para o palácio atordoados com o ataque

dos lobos gigantes, o velho mágico disse que Petr precisava ir embora

urgentemente.

— Embora? — retrucou Petr; a cabeça doía só de tentar entender o que foi que

aconteceu nas geleiras: o tempo estagnara, uma luz fluorescente surgira no lado

oculto da montanha. — Não posso! Meu pai está lá em cima, você não percebe?

— Petr, precisamos ir embora. Se esses wargs descerem, vão devastar tudo que...

— Chermont, basta! — Petr não conseguia raciocinar. O transtorno consumia

sua mente.

— Siga as orientações de seu amigo e escudeiro. Vá embora, enquanto ainda é

tempo...

— Há uma chance mínima, quase remota, de que meu pai esteja vivo naquele

lugar — crocitava Petr, apontando com tanta efusividade que os dedos pareciam

prestes a saltar da mão; algo quente brotava em seus olhos e a voz embargava a

cada nova palavra — Não é possível que vocês não tenham visto. A luz. A luz

verde. Havia uma luz lá...

— Luz? — inquiriu Chermont, confuso e amedrontado, lançando olhares para o

paredão branco formado pela avalanche que quase os atingira. Não havia nada além

de uma massa branca e sem vida de pura neve.

Conrod abaixou-se e encarou Petr. As lágrimas quentes escorriam pelas

bochechas rosadas do menino naquele momento.

— Há um propósito para tudo, Petr. Bem como, há um tempo para todas as

coisas. Atente-se às minhas palavras, o tempo agora é de se ausentar. Vá embora.

Volte para casa, pois o tempo não deixará você sem respostas.

Confuso e contrariado, Petr sentiu a mão de Chermont puxando-o para cima do

dorso de um artiro. Ele não resistiu. Ambos cavalgaram para longe do palácio de

Lorde Marvan. A última visão daquele obscuro momento era a da figura misteriosa

de Conrod Baash em meio aos ventos impetuosos e cinzentos da nevasca trazida

pelas Montanhas Congeladas, firme em seu cetro reluzente. Não tinha ideia de

quem ele era, mas estava convicto de uma coisa: ele sabia muito mais do que aquilo

que revelara.

Vez ou outra, ainda assentado sobre o trono do Palácio de Ônix, mas rindo-se

satisfeito naquele momento, Petr lembrava que toda essa presepada a que se

prestava o papel não fora uma ideia insana de ninguém, nem mesmo de Chermont

que adorava pregar peças nos demais empregados do palácio. Estava orgulhoso em

poder dizer que articulara tudo isto sozinho e obrigou-se a ficar calado sobre seus

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planos, fazendo tudo às escondidas para que ninguém suspeitasse. Não comunicara

sua decisão a ninguém, nem mesmo ao velho amigo e mordomo do palácio.

Acariciando a coroa e o cetro em cada lado do trono, Petr analisava se a pessoa a

quem ele queria irritar com sua mirabolante encenação o estava observando. E o

que ele mais queria era ter certeza de que o olhar dela encontraria seu olhar de

sarcasmo e ironia. Passou a ter um apreço em torturá-la psicologicamente —

algumas vezes ele se perguntava se não era doentio demais. Gostava de vê-la

atordoada e ensandecida sem descobrir que decisão havia tomado. Embora

soubesse que o avô estaria decepcionado com essa atitude, tinha convicção de que

ele riria de tudo isso também. Vasculhando em meio ao mar de cabeças virando

taças e mais taças de vinho, Petr sondava em que lugar do imenso salão estaria

enfurnada sua avó Astúrias.

Era fato que nenhum dos convidados naquele lugar tinha algum apreço por ela.

Durante todos esses ciclos em que fora rainha, apenas a aturavam por causa do rei.

Assim como também era correto afirmar que a rainha Astúrias detestava cento e

vinte por cento das pessoas ali presentes naquela cerimônia. A antipatia pela velha

rainha e sua impopularidade em Snartria e nos vinte e cinco condados era tão

grande que ela ganhara um apelido nada agradável: Megera Real. Até os dias atuais

não se sabe se o “Real” do apelido deve ser escrito com “R” maiúsculo, indicando

sua majestosa antipatia ou com “R” minúsculo, atestando que ela era uma autêntica

megera. De qualquer forma, a maioria concordava em uma coisa: ambas formas

eram corretas quando se tratava de Astúrias.

Vasculhando pela multidão que se acotovelava pelo salão, jurava que tinha visto

sua sombra tresloucada e cheia de pompas perambulando por algum lugar dali.

Avistara Lorde Marvan comendo e bebendo como um porco esfomeado. Rei Trev

degustava alguma coisa do banquete e mantinha-se muito comedido, porém à

vontade, ao lado de seus ministros e alguns amigos que tinha em Snartria. Lady

Marini também estava por ali em algum lugar. Jurava ter visto seus longos cabelos

loiros agitando-se em meio à multidão. Vislumbrou uma figura corpulenta, com

bochechas que sempre o lembravam os grandes bolos fofos e redondos de abacaxi

servidos ao café da manhã. Reconheceu seu primo Wayne Wallensig II, o filho mais

velho de seu tio-avô Wayne de imediato. Os cabelos loiros escorridos que

atrapalhavam sua visão eram sua marca registrada desde a adolescência. Mesmo que

o contato com ele fosse raro, as memórias de sua relação com o primo eram

péssimas. Detestava as brincadeiras que fazia e mais ainda seu jeito bonachão e

adulador toda vez que vinha ao palácio. Possuía uma pré-disposição em correr para

bajular alguém de mais alta nobreza, como o rei, os condes ou mesmo os

conselheiros reais. Era estúpido e preguiçoso. Adorava ser servido e esbanjar as

comidas do palácio. Completamente diferente de Warren, seu irmão mais novo.

262


Jamais cogitaria dizer que Wayne II era o primogênito se Petr não soubesse que

Warren era o irmão mais novo.

Petr tinha uma leve sensação de que a natureza cometera um grave erro no caso

dos dois irmãos e que Warren é quem deveria ser o mais velho. Ao contrário do

irmão, Warren era centrado, responsável, coisa que Wayne II jamais foi. Com

cabelos loiros escorridos iguais aos do irmão, ele preferia não os repartir ao meio;

adorava amarrá-los em um coque, o que virou uma espécie de sinal característico

seu. Nas raríssimas vezes em que Warren deixou o longínquo condado de Landersig

para visitar a capital, sempre fora muito recatado e moderado. Evitava importunar

os empregados do palácio e preferia manter-se taciturno e contemplativo, como se

não desejasse estar ali ou como se as regalias do castelo fossem um absurdo

exagerado de mais para ele; algo que o fazia parecer muito com seu outro primo,

Roben. Casado, tomou a mão de Lady Lanisi ainda muito jovem. Esbelta, era

centrada e cordata como o marido. Uma verdadeira dama, dizia-se sobre ela que

poderia ser o que quisesse, inclusive rainha se algum pretendente herdeiro do trono

a tomasse como esposa. Contudo, caiu de amores pelo filho mais novo de Wayne

e, mesmo que o pai, o caricato e velho Lorde Jonnes Gelvor Zanotchka e a mãe, a

agitada, porém dócil Lady Naelise Ottonis virassem os narizes para esse

relacionamento, não tinham como proibir o amor de ambos. Atualmente, apesar

de ainda manterem um pé atrás com o pai do genro, aprenderam a amar Warren e

aproveitavam os momentos livres que tinha cuidando do netinho, Ian, e educando

a irmã mais nova de Lanisi.

Petr agitou-se de súbito sobre o trono.

O coração deu piruetas dentro do peito pela mera lembrança da irmã de Lanisi.

Os olhos afobados se arregalaram para os quatro cantos do salão; procurou com

desespero irrefreável por aquela que considerava a garota mais linda que existia e

que viria a existir na face de Eirin: Lana Ottonis. Lana era a irmã caçula de Lanisi.

Ao contrário da irmã mais velha, Lana herdara uma beleza que não era costumeira

aos Ottonis e excepcional nos Zanotchka. A pele aveludada e de tom leitoso —

esse, o mesmo da irmã — lembrava o toque de seda de uma bela orquídea, os

longos cabelos negros eram encaracolados nas pontas e o olhar, ah, era tão

encantador que Petr não fazia mais ideia de quantas vezes se perdera naquela beleza

arrebatadora. Não precisava falar nada — e de fato, era de pouca fala, porque seus

pais a ensinavam assim, mas bastava ela estar no recinto para que o universo ao

redor fosse um mero detalhe e ele caísse encantado por sua beleza e presença. Era

uma pena que nas vezes em que estava em sua companhia, a timidez e falta de

assunto fosse um lastimável e monstruoso elefante branco entre ambos. Mas ela

corava e era toda sorrisos quando estava com ele.

Deixando de procurar pela prima por quem nutria uma paixonite secreta, Petr

lembrou-se de algo. Uma coisa que, lá no fundo, o incomodava profundamente,

263


embora relutasse contra os sentimentos que afloravam nas vezes em que pensava

sobre isto. Outra vez, varreu todo o lugar com olhares apurados. Ele não estava lá.

De todas as cartas que escreveu, convidando um por um dos presentes na

cerimônia que pegou a todos de surpresa, a dele fora a primeira. Rememorava

quando se assentou com a pena e o tinteiro na mão para escrever seu convite. Não

sabia por onde começar. Passou horas a fio encarando o pedaço de papel, apertando

o bico da pena molhada com tinta escura. Os olhos se perderam sobre a pena

dourada e dela para a escrivaninha e de volta para a pena e em seguida para a janela

e o horizonte em um fulgurante pôr do sol. A noite irrompeu sem pudor e se

converteu em madrugada enquanto ele não conseguia saber como convidar seu avô

materno. Para falar a verdade, já nem se recordava muito bem de seu rosto. Sempre

fora ausente, jamais se importou com o neto, esquecido no continente além das

Águas de Argúrius. Órfão de pai, mãe e de avô paterno. Quando o sol brotava

novamente lá nos confins da abóbada celeste, decidiu que seria apenas cordial.

Direto. Sucinto. Não queria demonstrar desespero e muito menos fraqueza, uma

vez que ele sempre o desprezou. Para Hamm Louis Zanotchka, o convite era

lacônico: informava sobre a nomeação do próximo soberano da Suntuosa Snartria

e daquele que viria a ser o futuro Guardião de Anlevor. Nada de emoções. Nada de

sentimentos.

E ele não estava lá. Esquadrinhou a confusão de rostos conhecidos à procura de

alguma figura ruiva e de traços marcantes como os demais Zanotchka, mas não

avistou ninguém além dos que conhecia. No lugar do avô, seus olhos encontraram

outro ruivo. De expressão bondosa, sorria para ele. Roben, seu primo, o observava

de longe. Acima dos trejeitos sisudos e até de poucos amigos, ele era alguém em

que sempre poderia confiar cegamente. Havia momentos em que Petr até esquecia

que o primo Roben também era um Zanotchka, filho de Roben Louis Zanotchka

II, o irmão mais velho — e falecido — de Hamm. Ainda que a negativa do primo

em assumir como regente o decepcionasse, sua sugestão na melancólica sala de

estar em Graehamm fez Petr enxergar uma luz e ter uma excelente ideia. Não

conseguia ter raiva dele. Compreendia suas escolhas. Se estivesse bem e feliz longe

da capital como ele, jamais retornaria para o convívio com a megera e tresloucada

rainha.

Pouco amigável e com aquele quê corriqueiro de quem não está nada à vontade

em uma festa, apenas para cumprir tabela, Petr entreviu, com os olhos muito

atentos aos seus, o “Cara-de-Coruja”. Novamente em trajes negros e elegantes, o

queixo rígido como se seus dentes rilhassem de impaciência e o habitual olhar

compenetrado como os de uma águia sondando a próxima presa, Salazar Stanhorne

acenou para ele com um breve movimento da cabeça. Entretanto, havia algo de

diferente no líder do Conselho dos Guardiões naquela noite. Quase uma figura

paternal, Salazar esboçou um leve sorriso para ele e ergueu uma taça em sua direção.

264


Por um breve momento, Petr vislumbrou o mesmo esgar de seu avô Maximo. Um

gesto simplório que quase o fazia acreditar que o homem mais poderoso da mais

alta cúpula mágica de Eirin aprovava suas ações insanas na cerimônia arranjada no

Palácio de Ônix. À vontade com a atitude de Stanhorne, pela primeira vez, Petr

sorriu e acenou para ele com a mesma cordialidade e humildade que sentira.

Irrompendo pelos portões de entrada, além da multidão que abarrotava o

ambiente, alguém deslizou com rapidez para o salão e, em um lampejo de

esperança, Petr torceu para que fosse sua avó. Ainda que o rosto fosse bastante

parecido, bem como os cabelos grisalhos e o aspecto de pouco cuidado, a figura

meio encurvada e de trejeitos asquerosos e sempre suspeitos era seu tio-avô Wayne

Wallensig. Num breve instante, Petr suspeitou que sua avó poderia estar na

companhia dele. Mas a suspeita logo se esvaiu. O irmão mais velho de Astúrias era

avesso ao palácio. Evitava, sempre que podia, comparecer aos eventos reais na

capital. Desde que se entendia por gente, embora nunca descobriu o porquê, Wayne

não tinha uma relação amistosa com a irmã, muito menos com o cunhado ou os

sobrinhos. Especulava-se que nem mesmo com os filhos ele se entendia bem. Entre

as dezenas de fofocas e boatos que Petr conseguia captar pelos corredores, dizia-se

que Warren rompeu as relações com o pai depois de descobrir um segredo obscuro

e aterrador. Wayne, por sua vez, rejeitara as indignações do caçula e não parecia

nem um pouco inclinado a tentar se explicar ou mesmo aproximar-se do filho.

Preferia ignorá-lo, como se somente Wayne II fosse seu único filho. Quanto à irmã,

a única coisa de que tinha conhecimento era sobre algo do passado que abalara a

boa relação entre ambos. Uma coisa tão séria que seu avô Maximo ficou

transtornado na única vez em que o questionou; o repreendeu de um modo que

jamais vira, quando insistiu no assunto.

— Jamais, Petr. — Maximo assumira um tom sombrio e inquisidor, como nunca

antes fizera. — Jamais, eu repito, toque neste assunto. Muito menos perto de sua

avó. Você me entendeu?

— Mas...

— Sem ‘mas’. São problemas irrisórios, irrelevantes, que os adultos criam por

mera vaidade. Não vale a pena se importar com eles e muito menos se contaminar

com o que eles significam. Eu não quero que volte a falar neste assunto outra vez.

Você me entendeu, ou não?

— Sim, senhor — respondeu Petr, curioso, mas resignado.

— Vou precisar repreendê-lo outra vez quanto a isto?

— Não, senhor.

Era inútil acreditar que Astúrias poderia estar na companhia do irmão a quem

tanto odiava se a história do avô era verdade e se a relação de ambos nunca foi das

melhores. O fato era que sua avó sumira da festa. Um acontecimento

definitivamente anormal, visto que aparecer e chamar a atenção de todos para seus

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vestidos e joias era algo pelo qual Astúrias era apaixonada, mais até do que ameaçar

cinco vezes ao dia os empregados do palácio.

Um beijo inesperado sobre as costas da mão direita fez Petr acordar de seus

devaneios.

A atenção do garoto se voltou no mesmo instante para o homem alto e de porte

pujante à sua frente. Curvando-se em uma longa e exagerada saudação, Petr o

reconheceu de imediato e, embora ainda não tivesse tido a oportunidade de dialogar

com ele após o falecimento de seu avô, este era um dos poucos nobres de Snartria

que gozava da inteira confiança e amizade pessoal do antigo rei.

Lorde Aldair era seu nome.

Nas centenas de vezes que o vira na cidade, Petr sempre o observava de longe

com muita admiração. Havia algo de hipnótico em sua volumosa barba grisalha e

no bigode cujas pontas eram curvadas. Imaginava quantas horas ele não devia

gastar, modelando à exaustão, para que seus pelos faciais, abaixo do nariz levemente

adunco, ficassem perfeitamente curvos e apontando sempre para cima para se

encontrar com o rei. O olhar escuro era meio cansado e com muitas rugas, como

se ele fosse um guerreiro exausto depois de lutar dezenas de batalhas e entre o

cabelo sempre penteado para trás e as sobrancelhas negras e espessas, repousavam

outras rugas sinuosas sobre a testa.

O que Petr sabia a seu respeito era que Lorde Aldair era o Ancião. O Ancião era

o líder dos conselheiros reais de Snartria, o conselho estratégico do rei. Mesmo que

fosse impedido de participar das reuniões às portas fechadas quando seu avô ainda

era vivo e que, desde a morte do rei e o desaparecimento de seu pai, uma reunião

formal ainda não tivesse acontecido, embora tivesse recebido a visita de pelos

menos uns nove conselheiros diferentes desde o funeral, Petr sabia que o Conselho

era quem levava os anseios do povo e os principais problemas dos condados ao

conhecimento do rei. Discutiam estratégias militares e debatiam sobre os rumos da

nação nos mais diversos temas, desde as relações comerciais estabelecidas com os

reinos amigos, discussões sobre condições climáticas ideais para uma boa colheita

no plantio de safras estratégicas para o reino com apoio dos sacramentadores,

passando por julgamentos, condenações, divisão de terras, impostos, etc. O

Conselho era formado pelos vinte e cinco condes de Snartria, os líderes de cada

condado. Entrementes, Petr não se lembrava da fisionomia de todos eles. Contudo,

não era difícil identificá-los no meio da multidão. Estavam sempre bem ajustados

e elegantes. Costumavam desfilar com uma capa de veludo vermelho com bordado

dourado drapejada sobre os ombros para lhes dar algum destaque em eventos como

este. Exibiam uma bela insígnia da Harpia Voraz nas cores das bandeiras de seus

condados sobre o peito.

Petr recordava do rosto de apenas cinco deles. Bonachão e com uma fisionomia

agradável, com um sorriso de grandes dentes abaixo do cavanhaque longo e loiro,

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Lorde Vincurd, do condado de Altenaand era o tipo de pessoa que todos queriam

ter por perto. Adorava contar histórias e fazia questão de narrar antigas lendas de

Snartria. Narrava tão bem seus mitos e aventuras que havia sempre uma roda de

pessoas em sua volta, para ouvi-lo falar. De longe, ele lhe sorriu com os olhos e fez

um sinal de positivo. Diferente dele, Lorde Carmol era mais reservado. Raquítico e

esgalgado, sempre achava que ele estava doente. A pele era morena, queimada de

sol. Assim que o conheceu, teve muito medo de seu jeitão pitoresco e caladão, com

olhos saltados, parecendo bisbilhotar algo a todo momento. Descobriu com o

tempo que aquele era o jeito dele mesmo. Seu avô dizia que Carmol era muito

quieto, porém o mais experiente dos conselheiros. Cheio de tiques e de manias

esdrúxulas, Lorde Pottden era atarracado e puxava de uma perna. Adorava

conversar sobre armas, principalmente espadas. Fora um mestre-ferreiro de marca

maior que galgou posições até se tornar o conde de Aethvalida, mas seus muitos

cacoetes podiam assustar de vez em quando. Petr preferia cumprimentá-lo de

longe, sabia que se chegasse perto não conseguiria segurar o riso. Por último, Lorde

Zonnir, que, além de conde, era um dos grandes almirantes aposentados da marinha

de Snartria. O porte pujante e atlético e o corpo coberto de tatuagens eram seu

maior destaque. Não dava para deixar de notá-lo no meio da multidão e se Pottden

amava falar sobre lâminas, Zonnir entrava em êxtase ao conversar sobre os

mistérios dos mares. As histórias das viagens a bordo de corsários animavam

qualquer roda de amigos, embora esses contos nem sempre pareciam ser tão

verdadeiros quanto ele dizia.

— É uma honra poder estar em sua presença, Sua Majestade, em um evento tão

grandioso como o desta noite — crocitou Lorde Aldair.

— A honra é minha em poder contar com a sua presença, Lorde Aldair. — Petr

esquecera como a voz do conde era bonita, quase como se ele cantasse cada palavra

de sua frase.

— Faço votos de que Sua Majestade esteja tendo uma noite formidável.

Obviamente, sustento a esperança de que, com brevidade, honrará a memória de

seu avô e de seu pai, demonstrando a sabedoria herdada de Lorde Maximo,

anunciando uma decisão que manterá a Serena Snartria em um rumo livre de

incertezas e tiranias.

Petr esboçou um sorriso. Mesmo com a fala polida do conde de Trent-Kalir, o

maior condado do reino, ele sabia exatamente o que queria dizer.

— Creio que minha decisão satisfará os anseios do Conselho Real.

As maçãs do rosto de Lorde Aldair se contraíram exibindo novas rugas. Atrás da

barba grisalha, um sorriso cheio de dentes e exultante surgiu. O Ancião se curvou

e antes de se retirar, ergueu uma taça na direção de Petr.

— Vida longa aos nobres e valentes Bravior. Que Snartria seja sua herança por

longos ciclos e eternas eras!

267


Petr se pôs de pé. Não precisou pedir a palavra e chamar a atenção de todos para

que os convidados interrompessem a balbúrdia e a bebedeira sem fim para que as

dezenas de pares de olhos no imenso salão se voltassem para o ponto mais alto e

imponente do recinto. Os convidados estavam ali para isso, em uma intensa e

incontida expectativa. A essa altura, ele desistira de encontrar a avó. Uma

aglomeração de gente se acotovelando e se espremendo ao redor do trono em um

semicírculo quase não dava espaço para que vislumbrasse a expressão malhumorada

e curiosa de Astúrias no mar de rostos ao alcance de seus olhos. Os

portões foram imediatamente fechados pela guarda real. Até mesmo os empregados

do palácio se colocavam sobre as pontas dos pés nos extremos do salão para

poderem vislumbrar e ouvir seu discurso. Petr nunca se sentiu tão importante. Este

era um momento histórico, era seu momento.

— Nobres convidados, amigos, familiares, conselheiros — falava Petr, quase

gritando, na esperança de que, onde sua avó estivesse, pudesse escutar com clareza

cada palavra. — Fiz questão de convidá-los a este evento para um anúncio

importante. Um anúncio que mudará para sempre os rumos de nossa tão estimada

nação. A Serena Snartria jamais será a mesma.

Sobre as escadarias no extremo oposto, Petr a avistou. Sua avó descia cada

degrau, passo a passo, bem devagar. Não poderia deixar de usar seu vestido mais

chamativo, um longo vestidão dourado de quatro caudas e um ostensivo colar de

pérolas que cegaria as vistas de quem olhasse diretamente para ele. O olhar de

Astúrias era de espanto. Na realidade, um misto de medo e expectativa dominava

seus grandes olhos arregalados e carregados de uma maquiagem espalhafatosa.

Deslizava pela escada como se desfilasse, mas com cautela, agarrada ao corrimão

sinuoso como se a própria vida dependesse disso e fitava unicamente o neto em

seu discurso definitivo, ignorando alguns empregados do palácio que foram até ela

para ajudá-la a descer. Petr sorriu. De um modo cínico, escancarou os dentes

satisfeito por saber que sua avó o estava vendo. Satisfeito porque ela assistiria, do

melhor lugar possível, à estupenda decisão que tomara.

— Os últimos dias em Snartria não fizeram jus ao título atribuído a nosso reino.

Com a morte tão inesperada de meu avô e a mor... o desaparecimento de meu pai

nas Montanhas Congeladas de Gelor-Torine, vivemos momentos tenebrosos de

incertezas quanto ao futuro de nossa nação.

Petr sentia o coração pulsando em cada centímetro de seu corpo. Na pequena

pausa que fez, uma gota escorreu de sua testa e as pernas teimavam em querer

vacilar. Observou os rostos da multidão atentos a cada palavra que proferia. Os

conselheiros fitavam-no apreensivos, os primos e alguns tios presentes o encaravam

hesitantes, contorcendo o cenho e franzindo as sobrancelhas. Mas um breve aceno

268


de cabeça de Roben, que segurava o pequeno Robbes dormindo em seu colo, fez

com recuperasse a confiança para prosseguir.

— A decisão que tomei não foi uma deliberação fácil, mas estou convicto de ser

a correta neste momento tão conturbado. — Petr respirou fundo e ergueu a coroa

e o cetro. — Não poderia fugir de meu destino e, mesmo vacilante, tenho fé de que

há um propósito maior que me fez trilhar este caminho até aqui. Luto por um bem

maior. Um bem maior do que eu. Um bem maior do que a Serena Snartria. E, assim

como meu pai e minha mãe deram a vida por este bem maior, pelo equilíbrio e

harmonia dos povos de Anlevor, pelas vidas dependentes da minha magia, pelos

fracos que protegerei, eu, Petr Bravior, seguirei meu rumo como o Guardião que

este continente precisa.

Uma salva de palmas irradiou pelo salão. Ecoou de forma comedida ao passo que

um burburinho muito audível inundou as bocas da maioria dos convidados ao

redor. Petr observou tudo atentamente e aguardou. A expressão dos conselheiros

era de evidente desespero. Juntaram-se uns aos outros cochichando em alta

velocidade, lançando olhares decepcionados a todo momento para o garoto aos pés

do trono e dele para o pé da escadaria. Roben ficou atônito e Salazar sorria

abertamente como ele jamais vira. Mas o que Petr contemplava com muita

satisfação era o rosto radiante de sua avó Astúrias. Sobre o primeiro degrau, ela

vibrava. O sorriso escancarado de orelha a orelha era notório. Se pudesse pular, dar

piruetas de alegria, ela provavelmente o faria. Contudo, optou por manter a pose.

Iniciou seu trajeto no meio da multidão, empertigada e com o nariz empinado, até

o púlpito onde Petr estava, na iminência de ser convocada para a nomeação como

a soberana absoluta de Snartria.

— Entretanto, — Petr retomou o discurso e as vozes sussurrantes emudeceram.

Sabia que o sorriso que carregava em seu rosto era de um deboche incontido e

proposital — não poderia assumir tamanha responsabilidade e deixar Snartria sem

um soberano para governar. Depois de muito relutar, estou certo de que esta é a

melhor escolha. Até que meus dias como Guardião terminem e possa retornar para

o trono, anuncio a todos vós Chermont Wooden, meu fiel amigo, como o novo

Príncipe Regente da Serena Snartria.

Não houve aplausos. Um silêncio mortificante se instaurou de imediato assim

que Petr terminou seu anúncio. A multidão ao redor estava pasmada; o choque era

evidente nas reações estáticas e nos queixos caídos de espanto de todos. Nem

mesmo Chermont, com seus trajes malcuidados de mordomo do castelo, parado

nos corredores de acesso à cozinha parecia ter digerido muito bem o que Petr

acabara de anunciar. Chermont, o novo Príncipe Regente? O mordomo do palácio

teria plenos poderes? Fora uma reviravolta inusitada que pegou todo mundo de

surpresa, mantendo os convidados ao redor em um estado de perplexidade sem

fim. Petr queria cair na gargalhada diante das variadas reações, mas se limitava a

269


sustentar sua careta cínica sobre o púlpito. Astúrias estacara no momento em que

ele anunciara Chermont como o novo soberano. Empalidecera. Estava mais branca

do que as monstruosas camadas de neve de Gelor-Torine. A expressão da velha

rainha era um misto de perturbação e descrença; parecia prestes a enfartar ou voar

de onde estava e esganá-lo. A inquietação foi se convertendo aos poucos em um

ódio mortal e crescente.

Uma palma acalorada interrompeu o silêncio. Os olhares se converteram para o

lugar de onde ela irradiava. Petr acompanhou com os olhos a salva de palmas

solitária. Lorde Aldair deixou a companhia dos demais conselheiros. Vinha

caminhando em direção ao trono, prorrompendo-se em palmas esfuziantes e com

um esgar de exultação estampado em seu rosto, rindo-se sem pudor ou medo. Aos

poucos, os convidados acompanharam o Ancião e também desataram a aplaudir a

decisão de Petr, de uma forma mais acalorada do que antes.

Para surpresa dos presentes, Lorde Aldair não subiu ao púlpito onde Petr estava.

Dobrou à esquerda e puxou um acanhado Chermont de detrás das sombras das

pilastras dos corredores e o acompanhou até os pés do trono. Postaram-se ao lado

de Petr. O garoto abraçou o amigo, que ainda permanecia sem reação. Havia

lágrimas em seus olhos e uma nímia confusão na cabeça, refletida em sua expressão.

Deu espaço para que Chermont assumisse um lugar de destaque, bem no centro do

púlpito.

— Nobres cavalheiros e damas, lordes e ladies da Serena Snartria. Este é um

momento memorável de nossa triunfante história e que ecoará por toda eternidade.

— Lorde Aldair pediu uma taça de vinho e a ergueu o mais alto que pode. — Peço

a permissão ao nobre príncipe e Guardião de Anlevor, Petr Bravior, e proponho

um brinde à Sua Alteza, o novo Príncipe Regente, Chermont Wooden!

— Antes, Lorde Aldair... — Petr interrompeu.

Repousando o cetro a um canto, o garoto segurou a coroa com as duas mãos e

postou-se na frente de Chermont, que não parava de chorar e tremer.

— Confio em ti. — Petr repousou a coroa real sobre os cabelos desarrumados

do amigo. — Você é plenamente merecedor deste título e, por tudo que fez e tem

feito por mim nesses últimos ciclos, pela confiança devotada por meu pai e meu

avô à sua pessoa, eu te coroo com todas as honras e méritos que um legítimo

herdeiro de Snartria merece. Assente-se agora sobre o trono como o novo soberano

do reino, concedo-lhe esta dádiva com os poderes que me foram outorgados.

Afastando-se do amigo, Petr fez uma longa reverência, saudando-o.

— Vida longa ao Príncipe Regente Chermont Wooden, o Fiel.

— VIVA!

O tilintar de taças brindando seguido por novas palmas, desta vez menos

comedidas e mais exaltadas, ribombaram pelo salão. Os cochichos de antes se

transformaram em conversas conspícuas, quase gritantes, de surpresa e assombro.

270


Petr decidira descer do palanque. O momento era de Chermont; de ser honrado

como ele bem merecia. Os conselheiros se avultaram para o púlpito, ávidos em

poder saudar o novo príncipe regente. O ex-mordomo do palácio não sabia como

reagir com aquela surpresa inesperada e com tantos cumprimentos e felicitações.

Uma fila de convidados se formava para saudá-lo e até Lady Marini e Lorde Trev

incorporaram o grupo que se avolumava a cada instante.

Petr sentiu uma mão agarrar-lhe o ombro esquerdo de chofre. Dedos de unhas

grandes e afiadas fincaram-se em sua pele e o puxaram com furor para longe da

multidão, na direção de um dos corredores laterais de acesso às cozinhas. Virandose

para ficarem frente a frente e pressionando cada vez mais seus dois braços, o

garoto vislumbrou a expressão insana de sua avó Astúrias. Transtornada, os olhos

se comprimiam em uma cólera letal, como se estivesse possuída por um instinto

assassino, disposta a matá-lo ali mesmo, a arrancar seu coração e tripas com as

mesmas unhas afiadas que cravava sobre sua pele.

— Que traição é essa, moleque? Você perdeu a cabeça? — Astúria salivava de

ódio; os olhos vidrados encaravam com ferocidade o olhar assustado de Petr. —

Era a MIM que você devia indicar. Era EU quem devia estar assentada sobre aquele

trono como soberana do reino. Eu não aceito ser substituída por um alquimestre

de araque como Príncipe Regente. Eu ordeno que vá até aquele palco ridículo e

desfaça a grande merda que você acabou de fazer. Ou então, eu irei...

— Você não irá fazer nada.

Uma voz trovejou atrás de ambos e eles foram pegos de surpresa. Uma figura

imponente estava parada à sombra da entrada do corredor. Astúrias largou o neto

de imediato. Assomando-se em direção aos dois, a frouxa luz das lamparinas

revelou o rosto circunspecto e a expressão de ira mal contida de Salazar Stanhorne.

— Se é desejo de Petr que Chermont governe Snartria até seu retorno triunfal

para ocupar o trono como rei, assim será. — Salazar repousou as mãos sobre os

ombros de Petr, mirando o esgar perplexo de Astúrias. — O Conselho dos

Guardiões está ao lado dele, o apoiando e trazendo uma oposição virulenta e

avassaladora a quem quer que tente sabotar suas decisões.

Os lábios de Astúrias tremeram. Balbuciou palavras inaudíveis repetidas vezes.

Consumida pela raiva, deu as costas para Stanhorne e Petr, e saiu bufando e batendo

os pés.

271


Capítulo Dezenove

Cobra e Cão

Uma bola de fogo cortou os ares com tamanha velocidade que fez os pelos da

nuca de Heidlich se ouriçarem, deixando-o atarantado. Esforçando-se para

acompanhar o percurso da pequena esfera incandescente, por pouco seus olhos

quase não a observaram atravessar o pátio de pedra como um foguete em disparada

e chocar-se com tamanha violência em um dos alvos, fazendo-o explodir em mil

pedacinhos que se espalharam por todo o piso de lajotas brutas.

— Acertei! Acertei!

Ivyna berrava de alegria, extasiada por ter explodido o boneco de madeira, cujas

lascas naquele momento se amontoavam do lado oposto ao que estavam. Deixara

os vestidos, joias e os longos cabelos escovados de princesa e assumira pesadas

calças de algodão, cota de malha e uma trança bem apertada para esse dia de

treinamento. E cá entre nós, o golpe teria sido fantástico, com uma deslumbrante

esfera de magia em dimensões perfeitas, se Heidlich não a tivesse instruído a fazer

exatamente o contrário.

Cruzando a extensão do pátio em direção ao alvo que virara picadinho no chão,

Heidlich meneava a cabeça. Achava que tinha sido muito claro com a irmã mais

nova quanto ao que deveria fazer. Fora difícil convencê-la de que era seguro

treinarem ao ar livre e de que não, a mãe dos dois não perturbaria a santa paciência

de ambos e ralharia com ela por estar “brincando de mágica” e não tomando aulas

de etiqueta à mesa com Madame Cesir ou aprendendo a tecer mantas de lã de

carneiro em teares de madeira com Lady Silla. Colocara os alvos no extremo do

pátio com o máximo cuidado possível e preocupara-se inclusive em mantê-los

muito bem alinhados, obrigado, para que pudessem exercitar a magia indomada de

Ivyna. Mas ainda assim, a histeria e o êxtase da irmã bloqueavam seus ouvidos para

entender que tudo o que ele pedira, era acertar o braço do boneco de madeira.

Somente o braço. Nada mais do que o braço. E ela até poderia escolher qual braço

atingir. Em sua época de Academia, perdeu as contas de quantas vezes levou a mão

à palmatória — e ainda carregava algumas marcas daquela maldita vara de goiabeira

na palma da mão — por errar o quarto quartil do antebraço direito dos bonecos de

madeira dispostos estrategicamente sobre os campos de treinamento. No entanto,

272


eram outros tempos. E Ivyna, sabia-se lá porque motivo, foi impedida de ingressar

à Academia, o que Heidlich acreditava ser uma tremenda tolice e não havia

conseguido tempo para conversar com a mãe sobre isso.

Apesar dos reveses e questionamentos com relação às atitudes intempestivas de

sua mãe em relação à irmã, era incrível como sua relação com Ivyna tornara-se tão

fluida e fácil, mais até do que ele mesmo imaginara. Não viveu os ciclos ao lado

dela, não a viu crescer ou cuidou dela como um irmão mais velho deveria fazer e,

ainda assim, com seu retorno em condições adversas, sentia-se próximo da irmã.

As conversas com ela eram fáceis, como se dialogasse em papos descontraídos com

seu pai. A convivência convertera-se rapidamente em uma relação amistosa de

cumplicidade e, mesmo não falando tanto sobre coisas da vida particular, sentia que

a ligação entre ambos se tornara mais forte do que ele próprio esperava. Saber que

Ivyna possuía a mesma aspiração que ele, vinte ciclos antes, era algo maravilhoso;

o ponto em comum que unia os dois.

Aproximando-se da fuligem que cobria o chão e pisando sobre os míseros

cotocos esturricados que sobraram espalhados por todo lado, Heidlich ergueu os

olhos para cima. Um colossal círculo de fogo pairava no ar a alguns metros de sua

cabeça, circundando toda a extensão do pátio. O dia amanhecera cinzento. Uma

densa cerração inundara as terras altas do noroeste de Badorian. Típico da estação

mais fria do ciclo, quando as águas negras do Mulbe se tornam um grande platô

congelado, a neblina avança das matas fechadas em direção aos condados,

permeando pelas avenidas, ruas e vielas com o frio atroador e um característico

nevoeiro quase negro que engolfava até os menores cantos do extremo mais

enregelante do reino, incluindo a capital e os terrenos do palácio. Heidlich não

estava a fim de perder a oportunidade que tinha de treinar a irmã e, sabendo que

ela poderia desanimar diante do fenômeno natural que fora acontecer

inoportunamente no dia mais aguardado por ela desde que ele descobrira suas

aspirações a se tornar uma guerreira, decidira conjurar o exorbitante anel mágico

flamejante. As chamas alaranjadas crepitavam de um modo intenso e afugentavam

a escuridão melancólica — ainda que fosse quase oito da manhã e o sol estivesse

escondido em algum ponto atrás das nuvens. Iluminavam a arena improvisada que

criara de forma plena, como se um milhão de tochas incandescentes se

emaranhassem para clarear o espaço em que estavam.

O fogo ardente e inexorável brilhava de um modo peculiar. As chamas trouxeram

lembranças em sua mente, de poucos dias antes. Lembranças de coisas que,

entrementes, ele preferia esquecer, mas que, sem entender porque, elas a todo

momento retumbavam em sua memória, emergindo e desaparecendo, perturbando

sua paz.

Era a Cerimônia de Coroação.

273


A suntuosidade do palácio era ímpar, com um toque estonteante de decoração de

sua mãe e das tias. Os convidados desfiavam longos elogios para a arrumação, as

comidas, as bebidas, as músicas entoadas pelo coral e a orquestra e o evento de um

modo geral, mas nada convencia Heidlich de que este evento fora o pior e maior

desastre de toda sua vida. A verdade era que se recordava de breves lampejos e

pouco instantes marcantes. A grande maioria dos demais momentos ele sequer

conseguia recordar o que acontecera.

Recordava de um enorme capão vermelho de veludo e, em suas bordas, um

manto abastado de pele de lobo branco. Lembrava deles porque roçavam em seu

queixo e algumas vezes sobre o nariz e lhe davam uma imensa vontade de espirrar.

Felizmente, para sua sorte, conseguira conter os espirros a cada vez que as narinas

voltavam a coçar. Dado momento, os convidados se colocaram de pé e um capitão

da infantaria trouxe um objeto reluzente, intacto, descansando sobre uma grande

almofada vermelha. Os olhos se encheram de lágrimas, mas Heidlich sabia que não

era um bom momento para chorar, embora ele soubesse que, uma hora ou outra,

isto seria inevitável. Inevitável não lembrar que o objeto de metal nobre sobre o

travesseiro avançando lentamente, como mandava a tradição, era a coroa que seu

pai usara por tanto tempo. A coroa em breve repousaria sobre sua cabeça e ele não

estava certo se era digno de carregar um símbolo tão grande de poder e sabedoria.

Vacilava em suas convicções. Jamais chegaria aos pés do homem que tanto amou,

daquele que não foi apenas seu pai, mas também um grande amigo e que o deixou

de forma tão precoce, sem poder dizer-lhe um último adeus ou mesmo acompanhálo

na derradeira caneca de rum.

Lady Ianora se posicionou aos pés do trono. A idade a castigara de uma maneira

que Heidlich não esperava. Por pouco, não a reconheceria. Mas dentre todas as

belezas que o tempo levou da prima de sua mãe, uma permanecia intacta: a voz

encantadora. Abriu a boca para entoar uma canção da forma natural e singela que

somente ela sabia fazer. O timbre de voz perfeito enlevava seu espírito e trazia paz.

Os presentes se aquietaram. Os muitos pares de ouvidos esqueceram os demais

ruídos da cerimônia. Um a um, os convidados foram se calando e se postaram para

prestar atenção unicamente às letras entoadas. A mais encantadora canção de

Badorian, sua preferida dentre tantas músicas e sonetos, era então a maior

causadora de dor e remetia a um passado que ele sabia que não voltaria mais.

Nas veredas dessa vida, a vagar.

Nessa lida, qual peregrino, sozinho, sigo com meu pesar.

Divagando, devagar, rememorando;

Aflito e distante, me dispondo a sonhar.

Relembrar, a caminhar, quão distante estou,

274


Onde rios, cristalinos, correm até o mar.

Florestas, verdes-pastos; rosas, lírios e orquídeas;

A desabrochar, me fazem lembrar, meu doce e terno lar.

Pode o mundo inteiro desmoronar;

O desatino dos dias ser meu pesar;

Mas haverei de regressar;

Num grande e lindo dia, ao meu terno lar.

Lá, onde os campos relvados

São serenamente assoprados,

Cujos pomares em filas,

Tão verdes respiram, a leve brisa do mar.

Lá, onde as belezas naturais,

Tão doces, desnudas,

Arrebatam e encantam, num breve olhar.

Pode o vento contrário soprar,

O mar encapelado querer se assomar;

Das vagas, a vida, desatinar,

Mas haverei de regressar, feliz em tornar;

Tão breve estarei, em meu terno lar.

Lágrimas escorreram de seus olhos e foram imediatamente contidas antes que

qualquer um pudesse perceber. Não era dessa forma que imaginara regressar à sua

terra natal. Aliás, sequer passara pela sua cabeça um dia retornar ao palácio e

ascender ao trono. Odiava tudo aquilo de um jeito inimaginável. As riquezas, os

luxos e o requinte da corte. Os vestidos costurados com fios de ouro e os grossos

gibões cintilantes. As capas de veludo, os camisões de pura seda. A soberba e

prepotência dos que arrogavam para si o título de nobres, mas que de nobres nada

tinham. Vivera vinte ciclos acostumado ao frio extremo de perturbadoras

temperaturas negativas das geleiras de Boralioch. Aprendera, pelo exemplo ímpar

dos centauros, o que era a verdadeira humildade e a servir ao próximo. Havia mais

humanidade neles do que em qualquer guardião que o observava com seus olhares

altivos e um nímio esgar soberbo, presente naquela cerimônia. Passou longos

períodos sozinho em densas florestas úmidas caçando mercenários e outros tipos

de homens cruéis e sanguinários. O vapor intenso provocado pelo calor nos dias

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de verão quase o sufocava. Diversas noites, fora dormir com fome. Não conseguira

caçar nada. Não havia empregados do palácio para servir cordeiro assado, torta de

batata e sequer uma caneca de rum. Entretanto, a beleza das estrelas pontilhando

um céu enegrecido suplantava o ronco de seu estômago. Mesmo nesses momentos,

em que estava completamente solitário, lançado à própria sorte em suas muitas

missões arriscadas, jamais se sentiu tão sozinho quanto naquele momento.

Nada fazia sentido. Fora obrigado a atender um chamado. Intimado a vestir um

manto escarlate e a encaixar uma coroa sobre a cabeça com a alcunha de Sua

Majestade em seus lombos. Mas ninguém o ensinou a ser um rei. Fora um guerreiro

a vida inteira e não um nobre político. As dúvidas sobre o futuro de Badorian

debaixo de sua liderança eram uma crescente aterradora e cruel que o assolavam de

um modo perturbador.

— Vou falar pela última vez e espero, de coração, que você me ouça — dizia

Heidlich, impaciente, afugentando as memórias de sua mente. — Acho que fui bem

claro quando disse que era para lançar um balaço de fogo aqui — E apontou para

o braço esquerdo — ou aqui — e apontou para o braço direito. — Não importava

qual o braço, mas era para acertar um braço. Não evaporar o boneco de madeira

inteiro com seu poder!

Tão rápido quanto deu piruetas de alegria, Ivyna murchou. Os ombros decaíram

e o semblante da princesa foi de uma satisfação radiante para uma profunda

decepção. Do outro lado, Heidlich ria.

— Talvez seja o momento de aprendermos um pouco mais sobre estratégia de

batalha. — Heidlich aproximou-se da irmã, ficando muito próximo a ela e de sua

expressão contrariada. — É inegável que seu poder é assombroso. Eu diria até

colossal. Mesmo desobedecendo meu pedido, ninguém lança uma chama

concentrada daquela sem, no mínimo, perder um pouco das energias. E você sequer

parece abatida por isso. Ao contrário, está acabrunhada não porque fez uma mísera

esfera de magia, mas por ter explodido seu alvo.

— Me desculpa, irmão. Eu não...

— Esqueça as desculpas — Heidlich interrompeu, levantando o rosto da irmã —

concentre-se em mim e siga minhas instruções. Como eu disse, poder você tem de

sobra. Agora, só lhe falta estratégia.

Heidlich tomou uma distância razoável da irmã. Estendeu o braço direito. Com

o polegar em riste, esticou o dedo médio, formando um ângulo de noventa graus

com o indicador, que apontava exatamente para o meio da testa de Ivyna. A garota

observava com atenção, em um esgar que mesclava dúvida e apreensão.

— A estratégia de combate direto é a mais básica de todas as táticas de batalha

ensinadas na Academia dos Guardiões. Sugiro que grave cada palavra que eu disser

e cada movimento, pois você levará isto para a vida. Meus mais sinceros

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agradecimentos a Lorde Olov, o grande mestre que me instruiu. Esse método me

salvou de dezenas de enrascadas, acredite.

“Enfim, toda vez que estiver diante de um inimigo em um combate direto, um

duelo por exemplo, antes de cair na mão, é preciso ter em mente três coisas básicas

para um ataque preciso e a conquista da batalha: Expansão, — Heidlich apontou o

dedo médio — Extensão, — apontou para o dedo indicador — e Nível — com a

mão livre, segurou o polegar.

“Expansão, é a quantidade de poder que seu oponente pode desenvolver. Se ele

for muito alto, a ampliação da magia tende a ser maior do que a sua. Neste caso, a

melhor forma de derrotá-lo é usando a própria estrutura corporal dele. Inimigos

muito altos tem expansões limitadas de ataque para baixo. Então, é preciso canalizar

seu poder para bloquear ataques laterais e somente atacar de frente.

Preferencialmente, de baixo para cima, que é a zona em que ele estará mais

vulnerável.

“Extensão é o deslocamento de magia. Oponentes grandes, gordos ou fortes

possuem extensão acentuada, pois costumam atacar de frente e canalizar seus

poderes em ataques frontais. Geralmente, sua Expansão é baixa. O melhor ataque

para liquidar um duelo contra esses inimigos será sempre pelas laterais.”

Ivyna estava de olhos arregalados e ouvidos aguçados para cada palavra do irmão.

— Por fim, Nível. Há inimigos que conseguem combinar extensão e expansão

pelo desenvolvimento de ambos. Para estes, sim, você precisa ter atenção

redobrada, pois adquiriram o domínio de duas técnicas. Nestes casos, a melhor

defesa será o ataque. A melhor forma de derrotar esses adversários é explorando

seus níveis de magia. Ninguém consegue atacar e defender sempre pelas duas

formas. Suas energias se esgotarão em algum momento e ele apresentará algum

ponto fraco. Mas é preciso ter cautela, pois, quando você usa a tática do Nível, você

terá de explorar seus próprios poderes e estará exposta a também ter sua energia

afetada.

“Nos três casos, é preciso observar. Estudar seu oponente. Analisar o estilo de

luta, a estrutura corporal, o comportamento na batalha, forças e fraquezas. O que

ganha uma guerra não é a força ou poder, é a estratégia e a inteligência.”

Imitando o gesto do irmão, Ivyna fechara um olho e observava Heidlich do outro

lado da arena como se o polegar fosse a mira de uma besta e o dedo indicador uma

flecha prestes a se desprender do cordão tensionado do arco.

— Agora me responda, — Heidlich cruzou os braços, fitando-a com esgar de

iminente repreensão — pela sua careta de surpresa, não deve ter lido nem um livro

que te dei sobre técnicas de mãos para ataques mágicos, não é?

Ivyna contorceu o cenho como se Heidlich tivesse ofendido sua honra.

— Não somente li seus livros capengas de capas rasgadas, Sr. Heidlich, como

também decorei os inúmeros golpes descritos em cada página. Mais até do que as

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infindáveis regras de etiqueta idiota que nossa mãe me obriga a memorizar. E quer

saber de uma coisa? Você me subestima de mais. Não gosto de ver você me

tratando como se eu fosse uma criancinha. Tenho vinte e um ciclos de idade. Não

sou uma completa ignorante em magia. Papai me ensinou muitas coisas nos ciclos

em que você esteve fora. Treinamos por muito tempo em Hareborne e nos vales

de Azenvind. Foi só depois que mamãe descobriu que precisamos deixar o ar livre

e migramos para as galerias ou os calabouços do palácio para que ela não soubesse.

Não vou negar para você, aliás, que continuo achando muito perigoso nos

expormos tanto assim. Como se não bastasse treinarmos no pátio externo, você

ainda me coloca esse círculo flamejante sobre nossas cabeças. É quase como um

aviso para a mamãe — e a jovem ruiva nasalizou a voz, falando com um falsete

cheio de ironia — ‘Ivyna está lá fora brincando de mágica, você não vai lá impedir?’

Heidlich riu.

— Você está paranoica de mais, igual a mamãe.

— Paranoica?

— É, sim — inferiu Heidlich. — A propósito, se nossa mãe vier falar qualquer

coisa sobre o que estamos fazendo aqui, que venha. O rei agora sou eu. Quem

manda nessa bagaça toda agora sou eu. Minha palavra é ordem. Querendo ou não,

ela terá de me obedecer.

— Acho que o poder está dissolvendo o seu cérebro — falou Ivyna, debochada.

— Pelo jeito, já consumiu o pouco de inteligência que tinha. Você está se achando

de mais agora que carrega essa coroa na cabeça.

— Não estou me achando... — falou Heidlich, num tom cínico — Eu sou. E,

como você acha que estou te tratando feito uma criança, proponho tornarmos este

treinamento mais interessante.

— Interessante? — questionou Ivyna, desdenhosa — Vai fazer o que, colocar

mais desses bonecos de madeira pelo pátio?

O círculo de fogo coruscou de repente. A um estalar dos dedos de Heidlich, as

labaredas alaranjadas se agitaram e estremeceram, como se uma ventania se

arremetesse contra as chamas. O anel flamejante se movimentou, saindo do ponto

em que pairava no ar em direção ao chão. Na descida brusca, emitia um ruído

retumbante como de uma fornalha consumindo lenha e transformando-a em brasas

em alta velocidade.

— Proponho um duelo — disse Heidlich, tomando distância, sobrepondo a voz

acima do estalar ensurdecedor das chamas. — As chamas se fecharão ao nosso

redor, diminuindo progressivamente seu diâmetro, a cada dez segundos. Se em

quatro rodadas de dez segundos, você não me neutralizar, serei o campeão do

desafio e você ainda terá de dar um jeito de descobrir como não morrermos

queimados pelo fogo mágico.

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Ivyna vislumbrava, com um terror nítido refletido nos olhos, as chamas vivas

circundando os dois. Vacilou por um breve momento, avaliando se não havia algum

tipo de pegadinha e então mirou a expressão confiante do irmão. Não quis dar o

braço a torcer. Mudou as feições e aprumou-se. Empinou o nariz em um esgar

desafiador. Esganiçou-se com ímpeto para se fazer ouvir.

— O que eu ganho quando neutralizar você?

Heidlich sorriu para a irmã. Admirou-se com tamanha audácia que bateu breves

palmas para ela de um jeito bastante irônico. Questionava-se de qual parente ambos

herdaram essa petulância toda. Cinismo e insolência nunca foram características

dominantes de Cench e Falla. Continuou aumentando o espaço entre ele e Ivyna

até estar a alguns palmos de distância das chamas. O calor do fogo elemental fez a

pele arder de leve. Arrependeu-se por ter criado uma pira tão intensa.

— Se, e somente se, você, porventura, conseguir me derrotar, como troféu deste

duelo eu a inscreverei para competir no Torneio da Academia!

Ivyna prendeu a respiração. Heidlich imaginava se o coração da irmã não havia

parado subitamente. Pelo esgar de espanto dela, arrazoava se não tinha se

precipitado de mais em oferecer tal prêmio.

— Que vença o melhor! — Heidlich curvou-se em uma longa reverência para a

irmã.

Adiantando-se aos movimentos do irmão, Ivyna conjurou uma esfera de magia

do tamanho de uma bola de canhão e aumentou-a até que atingisse sua altura. Num

movimento das mãos, lançou-a na direção de Heidlich.

O guardião balançou os dedos. Num gesto abrupto do polegar e do dedo anelar,

uma faísca vermelha crepitou em suas mãos. A pequena labareda cresceu. Adquiriu

uma forma quadrangular, esticou-se ainda mais, até que, por fim, em fração de

segundos, apresentou-se como uma longa espada de fogo.

A lâmina flamejante zuniu nos ares e cortou a densa esfera de poder. As metades

do balaço mágico voaram pelos flancos de Heidlich e atingiram com estrépito duas

pilastras dos corredores contíguos ao pátio externo.

— Achei que tentaria alguma coisa menos... previsível? — debochou Heidlich.

Ivyna arquejou. O rosto ficara vermelho como um tomate tão rápido quanto os

olhos se comprimiram e um bico de insatisfação surgiu em seus lábios. Heidlich

não deixava de mostrar um sorriso cínico; sabia que conseguira cutucar a fera.

Dez segundos passaram como um piscar de olhos. Sem se dar conta, Ivyna

observou o círculo flamejante diminuir seu diâmetro. O cerco entre ela e Heidlich

se fechou consideravelmente.

Uma fumaça cinzenta ocultou a jovem ruiva. Não era a neblina que ocupava os

campos naquela manhã friorenta. A névoa era mágica. Os olhos de Heidlich

comprimiram-se para tentar enxergar em meio ao negrume que se adensava. De

um cinza desbotado, o nevoeiro foi adquirindo nuances mais obscuras e se

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avolumando. Aos poucos, ia tomando forma. Crescia em direção aos céus. Quando

atingiu uma altura vertiginosa, dois olhos amarelados e de íris verticais surgiram. A

cabeça em formato triangular oscilava para cima e para baixo. Com olhar frívolo e

ameaçador, o enorme basilisco mágico se apresentava. Arreganhava as presas

afiadas para o homem de cabelos louros com um misto de deboche e admiração

estampado na face a poucos metros de distância.

Oito, sete, seis...

A serpente empertigou-se e atingiu o ponto máximo. O ataque mortal era

iminente.

— Gostei do seu truque — gritou Heidlich; da mão uma energia azulada surgia.

— Mas eu prefiro cachorros...

Em um infinitésimo de segundo, que nem mesmo os olhos de Ivyna conseguiram

notar, outra fumaça emanou. Brotando do nada e dominando o perímetro mais

rápido do que qualquer um podia ver, ela se adensou, avançando sobre o gramado.

A jovem de cabelos vermelhos trançados ofegava, mantendo o controle do bote de

sua cobra mágica. Heidlich desapareceu em meio ao nevoeiro estratosférico da cor

do mar. Os olhos admirados de sua oponente seguiam na expectativa.

De chofre, surgiu.

Três cabeças caninas sobre um corpo coberto de pústulas se apresentaram. O

focinho enrugava-se em uma expressão assassina. Os olhos comprimidos eram

vermelhos e miravam as presas afiadas de sua rival de escamas. Os dentes afiados

rangiam de modo aterrador e a baba escorria de seus beiços para o chão do pátio.

O Cérbero elemental aguardava. Rosnando abaixo dos enormes focinhos

brilhantes, aprontava-se para encarar o basilisco diante dele.

Quatro, três...

O rosnado estridente reverberou nos ouvidos de Ivyna. A névoa negra e a azul

desapareceram. Basilisco e cérbero se encaravam sob os olhares atentos de ambos

irmãos. O longo silvo da serpente abissal reboou pelos ares. Três focinhos se

moveram e então, encurtando a distância entre eles, cobra e cachorro se

engalfinharam.

Heidlich moveu as mãos com destreza e rapidez. Ivyna gesticulava tão ágil quanto

o irmão.

Dois, um.

A cobra enroscou-se sobre o corpo pustulento do cachorro no mesmo momento

em que o anel de fogo encurtava as distâncias entre Ivyna e Heidlich. Fugindo do

calor causticante das chamas elementais, Ivyna vislumbrava sua serpente mágica

tentar esmagar o cão conjurado pelo irmão o mais depressa que podia. As feridas

tenebrosas do cachorro explodiam a cada nova tentativa de golpe e o corpo coberto

de escamas negras do basilisco encontrava dificuldade em sufocar sua presa.

280


As patas robustas do gigantesco Cérbero desferiam uma série de investidas contra

a cabeça triangular da serpente. Os dentes poderosos e afiados como uma lâmina

recém amolada tentavam abocanhar o pescoço escorregadio da cobra elemental.

O basilisco resistia com firmeza, mas as erupções azuladas sobre o corpo do

Cérbero impediam o corpo arrojado da serpente de aplicar seu poderoso golpe

final. O focinho do cachorro monstruoso aumentava a frequência de seus ataques.

Seria impossível resistir por muito tempo. Os caninos como estalactites

aterrorizantes estavam cada vez mais perto de encerrar a batalha.

Nove, oito, sete...

A contagem recomeçava na mente da jovem ruiva. Movimentava os braços com

imensa rapidez, como se conduzisse uma marionete ou mesmo a batuta para as

canções de uma orquestra, mas sem tirar os olhos do fogo que logo, logo estaria

mais perto de ambos.

As patas do Cérbero travaram o basilisco. O animal agitava a cauda, reverberando

seu chocalho. A língua bifurcada engrolava silvos de desespero. A bocarra do

enorme cachorro enganchou-se abaixo da cabeça do basilisco e com um único

golpe, dilacerou o corpo encrustado de escamas do animal.

A cabeça ofídica estatelou-se sobre o chão. O corpo escamoso ainda estremeceu

contra os céus até que finalmente tombou pela grama, em um baque ensurdecedor.

Cinco, quatro, três...

Assim como surgiram, cobra e cachorro desapareceram em espirais de fumaças

cinza e azulada. Heidlich e Ivyna se encararam outra vez, ofegantes. O rei de

Badorian aguardava em uma expectativa exacerbada o próximo golpe de sua

oponente.

— Devo lembra-la de que são somente quatro rodadas de dez segundos.

Ivyna viu o fogo deslocar-se outra vez. Encarou o irmão em seguida e correu para

mais perto dele. Era sua chance. A única chance. Precisava ganhar se quisesse

competir no Torneio da Academia dos Guardiões.

Era hora de arriscar o seu melhor golpe.

Agachou-se sobre o centro do pátio.

Sete, seis, cinco...

Os dedos da mão direita se moveram rápidos como um balaço em disparada.

Fizeram uma série de ligeiras combinações com a mão esquerda. Heidlich

aguardava e observava atentamente. Esperava. Embora estático, tentava decifrar os

próximos movimentos da irmã para poder se antecipar.

Quatro, três...

Faíscas azuladas coruscaram. Ivyna terminou a combinação de movimentos e

seus dedos tocaram a superfície enregelante do pátio externo.

Dois, um, zero.

281


Na iminência de atingir os corpos de Heidlich e Ivyna, o círculo de fogo não se

moveu. Uma nuvem de raios eletrizantes se espalhou para todos os lados do ponto

em que a jovem guardiã tocou o chão. Serpeando pelo mármore bruto, a magia de

Ivyna atingiu as chamas do irmão com veemência. Heidlich contemplou,

embasbacado, a onda azul enregelante neutralizar as labaredas indomáveis que os

cercavam a meio metro de acertá-los. O colossal círculo de fogo se convertera em

um grande paredão circular de puro gelo.

— Mas o que está acontecendo aqui?

O anel congelado evaporou-se em um estalar de dedos.

Uma voz carregada de insatisfação e surpresa ecoou. O timbre de voz era

inegável. Heidlich sentiu como se tivesse dez ciclos de idade outra vez e acabado

de fazer uma besteira muito grande. Sabia bem de quem se tratava. Os trejeitos de

mãe nunca mudaram, afinal. Ainda que em seus lábios houvesse uma incontida

vontade de rir, a inquietação de sua irmã o deixou apreensivo. Ivyna estacou.

Tremia dos pés à cabeça. Os olhos arregalados vislumbraram a expressão cética e

contrariada de sua mãe, parada a alguns centímetros onde antes havia uma parede

de gelo.

— Quantas vezes eu falei sobre isto? — Falla trotava pelo pátio, avançando em

direção à filha. Ivyna permanecia lívida e sem ação. — Este não é um ambiente

para uma dama. Você não tem que perder seu tempo treinando com seu irmão, há

muitos assuntos que você precisa saber antes de...

— Antes de quê? — A voz de Ivyna tremulou. A jovem ruiva reuniu um ínfimo

raio de coragem que emanou do fundo de sua alma. Decidiu que não queria mais

se calar. Era hora de encarar a mãe e mostrar que também tinha opinião, mesmo

que o medo de enfrentá-la estivesse estampado em seu rosto.

Falla arregalou os olhos. Parou no mesmo instante em que os lábios da filha

balbuciaram sua questão. As maçãs do rosto da rainha-mãe tremeram de forma

involuntária. Os olhos continuavam vidrados em Ivyna como se absorvesse o que

havia acabado de acontecer. Heidlich franziu o cenho; desde criança, sabia que isso

era um mau presságio.

— Você está me questionando? — Falla pronunciou as palavras pausadamente,

aumentando o volume em cada uma delas. A última soou como um berro

tresloucado.

Relembrando sua infância e adolescência, nas incontáveis vezes em que isso

aconteceu, Heidlich costumava seguir o ritual: recolhia-se à própria insignificância

e abaixava a cabeça para as broncas da mãe. Seguia cabisbaixo de volta ao palácio,

por fim, enfezado e desgostoso com as ordenanças de Falla. Contudo, contrariando

o que ele mesmo esperava, a reação de Ivyna foi diferente.

— Estou, sim — crocitou Ivyna; desta vez, sua voz estava um pouco mais firme.

— A senhora me impõe cargas pesadas. Cobra de mim aprendizados irrisórios e

282


antiquados. Regras de etiqueta em público, comportamento nos mais diversos

eventos, como coser, cuidar de casa, plantar, cuidar de animais, agir e pensar como

uma dama que viverá para sempre em função de um marido. Mas a senhora jamais

perguntou se eu quero ter um marido. A senhora nunca teve interesse em saber o

que eu realmente queria! Eu não quero uma vida de lady. Não quero ser uma dama

da corte e viver de fachada para uma nobreza imbecil que se gaba de glórias de eras

passadas. Eu quero ser uma Guardiã. A Guardiã de Eurodian, assim como Heidlich

foi.

O queixo caído de Heidlich e a expressão exacerbada de Falla denotavam a

proporção do susto que ambos tomaram. O desabafo de Ivyna foi claro como o

sol que se escondia por trás da densa neblina que cobria o pátio. Mesmo os guardas

reais a uma distância considerável puderam ouvir seu discurso exasperado.

Perturbado com o silêncio constrangedor que se instaurou entre os três, mas

pensando com seus botões, Heidlich estava em completo desespero, sem saber que

atitude tomar.

— Já para o seu quarto.

A voz impassível de Falla irradiou, antecipando-se em interromper o silêncio. Em

um sussurro desprovido de emoção, uniu-se aos ruídos estridentes do vento a

soprar pelo pináculo do castelo. Se Ivyna e Heidlich não estivessem tão próximos,

talvez não teriam escutado.

— Mas, mãe, eu...

— PARA SEU QUARTO, AGORA! — berrou a rainha. A apatia repentina

transformava-se em uma raiva incontrolável.

— Mãe, eu não vou obe...

Heidlich esticou a mão e segurou o braço da irmã. Interrompeu uma nova

investida dela em insistir naquela discussão que já tinha ido longe de mais.

— Ivyna, ouça nossa mãe. É hora de você se retirar e nos dar licença, por favor.

Ivyna fitou a expressão contundente do irmão. Interrompeu-se na hora. Vira

aquele esgar incisivo outras vezes: a mandíbula rígida como se rilhasse os dentes, o

queixo duro, os olhos azuis muito abertos mirando-a como se contemplasse a

aflição de seu âmago. Era como se dissesse, sem pronunciar mais nenhuma palavra,

que ela precisava ir embora imediatamente. Que este era o momento em que ele

interviria e agiria em seu favor. Como rei, somente ele conseguiria mudar a cabeça

de sua mãe.

A jovem assentiu. Virou-se e retornou para o interior do palácio.

O frio cinzento e desolador do pátio externo abraçou Heidlich e a mãe, a sós. O

guardião a encarou no fundo de seus olhos, meneando a cabeça, contrariado e

confuso com uma atitude tão mesquinha e uma reação irracional e intempestiva.

Falla permanecia indiferente; evitava encarar os olhos inquisidores do filho mais

velho.

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— O que é que está acontecendo, mãe? — Heidlich segurou os braços de Falla,

fitando dentro de seu olhar apático. — Por que tanto drama, tanto autoritarismo

quanto às decisões de Ivyna? Eu testei e comprovei sua magia. Minha irmã é tão ou

mais poderosa do que fui quando tinha a idade dela. O que ela mais anseia, em

todos esses ciclos, é poder concorrer ao posto.

— Ivyna não pode concorrer — pronunciou Falla, impassível. — Ela está

prometida em casamento, desde os quinze ciclos de idade, para o jovem Ropher

Ottonis, filho de Lorde Tranto Ottonis, da Austera Amistelar.

— Isto não tem lógica, Lady Falla Lohntrak. Eu apelo para que coloque a mão

na consciência. Por que obrigar Ivyna a fazer algo ao qual ela não deseja? Minha

irmã é muito poderosa e deixou muito claro que não deseja se casar contra a

vontade. Se é desejo dela viver a experiência de Protetora de Eurodian, que assim

seja.

Contrariando as próprias suposições sobre o rumo da conversa, Heidlich viu a

mãe desmoronar. Falla levou as mãos ao rosto de repente e começou a chorar.

Dentre todas as reações que poderia imaginar, lágrimas inesperadas e contraditórias

após um discurso autoritário eram a última coisa que esperava ver.

— Não posso perder mais um filho — balbuciava Falla. A voz embargada,

naquele momento, abafada pelas palmas das mãos. — Não, outra vez, não. Cench,

meu amado Cench partiu. Agora, perderei outro filho para o Conselho dos

Guardiões.

Heidlich balançou a cabeça e abraçou-a com ímpeto. O choro repentino da mãe

perturbava seu interior.

— A senhora jamais perdeu um filho para o Conselho. Ainda que meu retorno

tenha sido tardio e em uma situação adversa para nossa família, eu nunca estive

longe o suficiente a ponto de não poder regressar para o conforto do meu lar.

Os soluços de Falla ribombavam. O rosto ainda oculto pelas duas mãos, sendo

envolvida pelos braços do filho, a rainha se derramava em uma lamúria sussurrada.

O pranto abafado da mãe deixava Heidlich cada vez mais desesperado. A única

reação que martelou em sua cabeça foi segurar os dois braços da mãe e encará-la

nos olhos.

Não havia lágrimas. Não havia olhos vermelhos. Não havia sequer um esgar de

tristeza no rosto marcado pelo tempo e pelo luto recente de sua mãe.

— Entre todas as coisas que aprendi com a senhora, desde moleque, foi a ser

sempre verdadeiro.

Heidlich não largou os braços da mãe. Continuou encarando-a, dessa vez com

olhos semicerrados, desconfiado. Aguardava dela uma resposta verídica. Falla

aprumou-se. Enfrentou o olhar do filho com a mesma presunção de antes da

suposta choradeira.

284


— Existe alguma coisa que a senhora não está me contando e insiste, com

lágrimas fingidas, em esconder de mim.

A rainha tentou se desvencilhar das mãos de Heidlich, mas ele permaneceu firme

e obstinado, com os dedos arraigados aos braços da mãe. Olhando para todos os

lados de um jeito aterrador, a rainha desarmou-se. Fitou o filho mais velho com

uma expressão desolada, mas denotando sinceridade pela primeira vez, desde que

pisara no pátio.

— Dentre todas as coisas pelo qual eu poderia me arrepender, há uma guardada

a sete chaves. — Falla abaixou a cabeça, consternada. — Uma coisa do qual me

arrependo amargamente e que me corrói por dentro todos os dias. Algo que não

há mais com esconder e que preciso revelar a você.

285


Capítulo Vinte

Lealdade em xeque

Era pelo menos a vigésima sétima vez que Alezeia repetia o mesmo movimento:

balançava a cabeça devagar, denotando interesse, esboçava um sorriso cordato e

desviava o olhar para os portões de entrada do grande Salão de Vidro. Não era um

olhar curioso ou interessado em o que quer que tivesse de especial nas admiráveis

portas translúcidas do outro lado. Entrementes, eram portas belíssimas, diga-se de

passagem. Fabricadas em um diamante específico e peculiar, proveniente de Tulich,

raríssimo em toda Eirin e uma exclusividade dos artesãos de Achmat. Contrastavam

de um modo suntuoso com a beleza da ornamentação da festa; um baile em

comemoração ao solstício de inverno no hemisfério norte. O baile mais tradicional

e milenar de Eurodian. Uma tradição tão antiga, celebrada religiosamente todos os

ciclos no palácio do governador de Cruisand.

Aquele era um momento ímpar. Uma oportunidade de poder encontrar velhos

amigos e reiterar os laços de amizade, confraternizar e discutir o futuro. Em ciclos

passados, esses momentos eram sempre carregados de grandes reflexões e boas

risadas. Grandiosos acordos de cooperação e tratados de paz tiveram início em

festas como aquela, sempre iniciadas com uma boa taça de vinho, uma música suave

e um pouco de diálogo aberto para quebrar o gelo. Além do luxo e requinte aparente

desses eventos, nem todos conseguiam compreender que, por trás da soberba e

altivez característica da humanidade, principalmente dos que galgavam posições

elevadas na sociedade, havia um verdadeiro propósito que sobrepujava as bebidas

caras, as joias cintilantes pesando nos pescoços e a ostentação exibidas desde a

decoração até os menores adornos dos convidados: as relações políticas. Alezeia

demorara a entender como a sacramentação e a exigência por pureza e abnegação

podia coexistir com estilos de vida tão depravados, relações com humanos tão

mesquinhos e amantes de si mesmos.

Enxergue além do que os seus olhos acreditam ser a realidade. Contemple além da ignorância,

além da presunção humana, além da vaidade. A máxima da Sacramentação não é a harmonia,

é a fé. Tenha fé na humanidade, Alezeia.

As palavras de seu antigo maedor ecoaram em sua cabeça e a ajudaram a

compreender, muitos ciclos mais tarde. Depois de tanto relutar e questionar,

286


enxergou que a paz podia nascer de momentos contraditórios e até mesquinhos.

Mesmo que as intenções da grande maioria não fossem nobres, se houvesse uma

fagulha de humildade, uma ínfima chama de perdão e graça, isto seria suficiente

para beneficiar o futuro de gerações, para salvar o destino das nações. Entretanto,

havia elfos intitulados sacramentadores que se deixaram levar pelos luxos e pela

jactância; que não conseguiam vislumbrar além do engodo das riquezas e não mais

se importavam com o real propósito de seus chamados. Orgulhosos, arrogantes,

amavam mais as benesses da alta sociedade do que a resignação clamada pela

sacramentação.

Quando retomou sua visão para o interminável monólogo de Bovir a respeito

dos incontáveis benefícios do chá de carqueja-de-Mistral para aliviar as dores que

sentia nas juntas provocadas por uma forte gripe que o lançou na cama por quase

um mês inteiro, Alezeia não conseguiu fugir dos olhares curiosos de Lorde Argus.

O rei da Magnífica Mistral também se envolvia na irrelevante conversa com o

anfitrião da festa. No alto de seus longos cabelos, que aquela noite pareciam mais

loiros do que o comum, e de suas vestes vinho muito elegantes, ele até tentava

parecer interessado. Estava acompanhado da esposa, Lady Iamira. Esta, sim,

parecia bem à vontade em sua prosa com o governador. A rainha de Mistral tinha

traços semelhantes aos do marido. Era loira e alta como ele e dona de uma beleza

ímpar. Sempre gentil, possuía um dom que poucos humanos e mágicos tinham: o

de saber lidar com os mais variados tipos de pessoas. Sabia como deixar uma pessoa

confortável em sua presença e tornava qualquer conversa interessante, por mais

chato que fosse o assunto. Diferente de Argus, ela não tinha tato para reparar nos

detalhes. Não conseguia observar os sinais tácitos de que alguma coisa não estava

bem.

E Alezeia sabia que o rei de Mistral havia reparado nela. O esgar intrigado, a

quantidade de vezes que desviava os olhos em sua direção de uma forma tão rápida

e furtiva que nem mesmo Lorde Bovir conseguia notar, reparando seu estado

aflitivo, a todo momento mirando a entrada do salão, denotavam que, mais uma

vez, Argus sabia que algo perturbava a paz dela.

Ignorando o fato de que não estava interessada em revelar o verdadeiro motivo

de sua inquietação, Alezeia mirou outra vez os portões transparentes. Além das

muitas cabeças de convidados espalhados pelo salão, ora dançando, ora dispostos

em pequenos grupos para conversar ou mesmo apreciar uma boa bebida, ela tinha

a esperança de entrevir, ao longe, depois dos campos externos, alguma carruagem

conhecida. Aguardava uma diligência com o brasão da Ordem dos

Sacramentadores. Infelizmente, o que via eram archotes incandescentes, guardas

reais e carruagens luxuosas que se abriam para convidados opulentos, com títulos

reais e uma indiscutível presunção exacerbada estampada em suas faces e trajes

pomposos.

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Outra vez, dedicou os ouvidos e os olhos a Lorde Bovir, mas sem

necessariamente prestar atenção. Perturbou-se em seu íntimo. A qualquer

momento, sabia que o governador de Cruisand faria a pergunta que tanto a

inquietava, a raiz de todos os males e preocupações: onde estava Menfesis. Pela

primeira vez, ela não saberia o que responder a ele.

O convite era enfático. Seria um crime contra o carinho que o governador possuía

por ambos. Uma tradição tão antiga e celebrada por ela e Arturo desde eras muito

remotas, quando ambos eram humildes arcanos prontos a servir. Recordava, no

fundo de suas mais longínquas memórias, a primeira vez em que pisou naquele

lugar. À época, abominava tudo que vinha dos humanos: suas festas, suas roupas,

os olhares lascivos que lançavam em sua direção quando passava por eles. Não

conseguia compreender porque os sacramentadores tinham de estar envolvidos em

tanta hipocrisia que se arremetia com fúria contra tudo o que sua religião mais

valorizava. Mas a sabedoria do tempo foi transformando suas opiniões, mostrando

que podia, sim, haver beleza em meio a tanto horror, salvação onde imperava o

caos. Menfesis, por sua vez, era fascinado. Inocente de mais para enxergar o que

ela vislumbrava. Encantado com tudo o que jamais viu ou teve antes de ingressar à

Ordem, perdia-se no meio de tanto luxo e suntuosidade.

Em que momento no tempo este Menfesis, ingênuo e modesto, se perdeu? Em

que instante se transformara no elfo frívolo e solitário que preferia se esconder da

presença de todos?

A verdade era que Alezeia estava acabrunhada. Insistia em tentar mostrar-se forte;

persistia em negar que uma crise havia se instaurado numa instituição tão antiga e

respeitada em toda Eirin, a religião mais antiga e venerada para tantos elfos

devotados. Entretanto, a força que tentava manter e demonstrar ia se esvaindo

pouco a pouco, minada pela ausência e fraqueza de seu líder máximo. Cansara do

isolamento de Menfesis, agonizava pela falta de informações a seu respeito. Mais

do que a presença do Supremo-Chanceler de Purysia, sentia saudade de seu velho

amigo, sonhador e obstinado, inspirador e conselheiro de eras atrás. O amigo que

enfrentou, de forma sábia e corajosa, um conflito que quase abalou as estruturas da

Ordem, sem que isto resvalasse sobre a sociedade e abalasse a confiança das nações.

Alguém que conduziu com equidade e justiça um dos períodos mais tenebrosos da

sacramentação moderna.

Não obstante tantos problemas que vinha enfrentando sozinha, outra coisa a

incomodava de modo perturbador e se tornara uma pedra incômoda em seu sapato:

Klaus Trishnann, o recém-nomeado sacramentador de Perspicácia. Na única vez

em que Menfesis deu as caras no Oráculo do Tempo, após selar o Acervo

Sacramental e se isolar de vez na torre da Grande Bússola, o jovem sacramentador

não saiu de seu encalço, seguindo-o por onde quer que fosse. O jeito adulador, o

olhar inquisidor para os outros elfos e arcanos e a obsessão pelo poder, estampada

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em suas expressões bajuladoras, faziam-na questionar o quanto Menfesis não fora

precipitado em indicar um elfo tão mesquinho e prepotente para um cargo deveras

elevado. Ao passo que os demais sacramentadores recém-nomeados seguiam em

suas peregrinações por conhecimento nos reinos de seus novos Octaedros,

Trishnann ignorara por completo o aprendizado anterior e desprezou as

recomendações de seu padrinho. Preferiu manter-se o mais próximo possível do

Salão da Bússola, como um autointitulado arauto do Supremo Chanceler, ainda que

Arturo não tivesse outorgado tal poder a ele.

Menfesis abriu as portas de seu isolamento uma outra vez. Dessa vez, para se

reunir a Klaus, às portas fechadas. Os arcanos e sacramentadores, confusos,

corriam, de imediato, para relatar tudo à Alezeia. A única coisa que podia fazer era

ouvir e tentar minimizar as fagulhas de uma possível crise, colocando panos quentes

na situação, sempre reiterando que estava tudo sob controle. Mas, no fundo, a

angústia a consumia, pois nem ela mesma tinha tanta certeza. A visita inesperada

de Lorde Moronov em Purysia caiu como uma bomba quando todos descobriram

o real motivo de sua visita. O Conselho cobrava respostas. Exigia informações

sobre os boatos de um conflito interno que colocava a Ordem em xeque. Logo, ela

mesma não seria mais respeitada e o caos, tão temido e mitigado pelos elfos, viria

à tona. Outrossim, encontrava-se questionando por que Menfesis preferia falar com

um jovem e inexperiente sacramentador e não com ela. Por que evitava sua

presença, mas não se incomodava com as bajulações de um estranho novato?

Ainda não havia descoberto as respostas para suas indagações perturbadoras,

mas, desde o fatídico encontro às escuras com Klaus, o palácio se transformara em

um verdadeiro inferno. O mais novo líder do Octaedro de Perspicácia não parecia

satisfeito em assumir tamanha responsabilidade, parecia querer mais. Ao sair da

presença de Menfesis, que permaneceu enclausurado em sua fortaleza solitária,

Trishnann passou a se achar o novo líder de Purysia. Andava de um lado a outro

dando ordens aos arcanos, como se fossem seus escravos particulares. Ordenou

que o protetorado reforçasse a guarda em toda encosta, como se a ilha estivesse na

iminência de um ataque militar. Exigia dos demais sacramentadores relatórios e

tarefas surreais, sempre gritando e ordenando como se eles o pertencessem. Alezeia

observava, de mãos atadas, sentindo-se completamente impotente. Indagava-se se

a sanidade mental de Menfesis não se corrompera de vez. A gota d’água se deu

numa tarde de domingo, quando o palácio ficou mergulhado em uma densa

penumbra e as tochas dos salões e corredores ainda não crepitavam suas chamas.

— Ei, você aí! — Klaus caminhava a passos largos. Nariz empinado, inspecionava

cada archote com redobrada atenção quando cruzou o caminho de uma arcana

recém-chegada à ilha. — Por que essas luzes ainda não estão acesas?

Por uma irônica coincidência do destino, Alezeia cruzava o hall de entrada

quando vislumbrou a fatídica cena. Ainda que decidisse fazer vista grossa para tudo

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o que acontecia e não se abater em seu âmago, aquela situação fora o estopim para

constatar que um colapso sem precedentes se arremetia.

— Eu... eu não sei... — gaguejava a arcana aturdida. Tremia de medo, olhando

para todos os lados sem saber o que fazer.

A expressão de Klaus transformou-se de repente. O corriqueiro olhar de

desprezo desapareceu e deu lugar uma carranca transtornada, consumida por um

ódio descontrolado.

— COMO É QUE É? — vociferou Klaus, se assomando em direção à

inexperiente elfo — Sua elfo imbecil, arcana inútil. Como ousa responder-me que

não sabes porque as luzes não estão acesas? Ordeno, imediatamente, que...

— Klaus Trishnann! — crocitou Alezeia.

A voz firme e serena ecoou por todo hall; soou mais alto do que ela imaginara,

ribombando sobre os ouvidos de todos, atraindo a atenção de uma comitiva de

arcanos e um pequeno grupo de sacramentadores que seguia pelas escadarias

principais, virando os olhos para a cena que se seguia. Klaus ergueu a cabeça e

mirou, com uma expressão assassina, o rosto impassível de Alezeia. A jovem arcana

girou a cabeça, atordoada, fixando os olhares no mesmo alvo de Trishnann.

— Acredito — Alezeia caminhou lentamente até ficar bem próxima de Klaus —

que esta exacerbada ambição por poder está afetando suas faculdades mentais.

— Como você ousa... — balbuciou Trishnann, comprimindo os olhos.

— Como você ousa esquecer-se completamente que os pilares de nossa religião

nos levam à resignação, humildade e temperança? — Alezeia interrompeu,

mantendo o timbre inabalável. — Como você ousa ignorar o vasto aprendizado

obtido desde seus mais ignóbeis ciclos como arcano, amando mais sua própria

ignorância, presumindo ser a força maior do que a inteligência?

— Creio eu, nobre e eminente Alezeia, — inferiu Klaus, com um tom carregado

de ironia — que talvez não estejais à par das mudanças que nosso líder máximo,

Arturo Menfesis, tem efetuado em nosso meio. Dentre elas, enquanto ainda

perdura seu período de meditação, outorgou poderes de Mediador a mim para

cuidar de Purysia com o objetivo de manter a ordem e a harmonia de nossa religião,

da forma que eu julgar necessária.

Alezeia sorriu. Mesmo que não fosse sua intenção e desejasse ter parecido afável,

a forma singela com que exibiu os dentes e encarou o jovem sacramentador soou

de um jeito debochado. Klaus se inquietou; estufou o peito e rilhou os dentes;

arquejava de um jeito abissal. As orelhas pontudas assumiram um tom púrpura e as

veias de seu pescoço saltaram de modo assustador.

— Segundo a seção quarenta e cinco, inciso nove, de nossas Leis e Preceitos

Pétreos, as decisões sobre alterações e outorga de responsabilidade só serão

consideradas válidas quando definidas em sessão solene da Ordem, com o aval do

Supremo Chanceler de Purysia e da Superiora Chanceler — falou Alezeia,

290


pontuando cada palavra com uma serenidade ímpar — e eu te informo, inócuo

sacramentador, se é que és digno de um título tão nobre, que somente por cima do

meu cadáver eu concederia os poderes de Moderador à sua pessoa.

Klaus respirou fundo. Mirou o olhar pacífico, porém firme de Alezeia. Os lábios

tremiam involuntariamente; uma fúria incontida o dominava pelas palavras que

acabara de proferir, mas nenhum som saiu de sua boca. Limitou-se a sair de sua

presença, batendo os pés de um jeito pesado sobre o piso do hall.

— O QUE É QUE VOCÊS ESTÃO OLHANDO? — berrou Klaus,

tresloucado, vislumbrando os olhares curiosos dos sacramentadores e arcanos

estacados ao redor, observando a discussão. — ANDEM! VÃO EMBORA! — E

seguiu por um corredor, sem ousar olhar para trás.

A avalanche de preocupações que assolava sua mente desapareceu quase que por

completo quando Alezeia girou o pescoço e vislumbrou o que os demais rostos

contemplavam, de queixo caído, encantados e enlevados, descendo as escadarias

principais do Salão de Vidro.

No alto de uma beleza deslumbrante e de uma opulência arrebatadora que

cativava cada convidado da festa, até mesmo as suaves melodias da orquestra foram

interrompidas, dezenas de figuras importantes de Eurodian prenderam suas

respirações e um silêncio se instaurou para os presentes conseguirem admirar a

plenitude do esplendor da bela elfo que deslizava graciosamente pelos degraus,

sorrindo e acenando para todos. Alezeia sorria de um modo bobo. Um sentimento

de orgulho ardia em seu peito. Esqueceu as preocupações por um instante. A

inexperiente e dócil arcana que um dia teve a oportunidade de ensinar, tão inocente

e sempre solícita em seus afazeres e no serviço sacramental, tornara-se então um

ícone extasiante, admirada pelas principais lideranças do continente, finalmente

conhecendo o rosto daquela que viria a ser a nova representante do Octaedro de

Hegemonia. Uma apresentação estonteante, carregada de leveza e resplendor,

como mandava os preceitos da religião. Uma das poucas decisões de Menfesis que

Alezeia considerava assertiva, ainda que tomada em um momento conturbado e de

forma equivocada, profanando princípios tão antigos de Purysia, violando inúmeras

leis e normas pétreas, desagradando os demais sacramentadores que ainda não

haviam completado suas eras perpetatem.

— ... Não é mesmo, Alezeia?

A pergunta de Bovir fez Alezeia despertar de seu transe, ainda arrebatada pela

elegância e imponência de Dhara em meio à multidão. A música irradiava pelo salão

outra vez; permeava entre os convidados e os impulsionava a se ajuntarem e

deslizarem pelo recinto em valsas acaloradas. As maçãs do rosto queimaram com a

sensação de não estar dando devida atenção; a sacramentadora sorriu de forma

automática e educada.

291


— Perdão — proferiu Alezeia, retornando de seu estupor. — Acho que me perdi

em pensamentos. O que dizia?

Bovir soltou uma longa gargalhada. A simpatia exacerbada do governador de

Cruisand era uma marca registrada. Os dentes grandes, levemente protuberantes e

o longo bigode escuro que escorria em direção ao queixo estavam sempre prontos

a se abrir em um esgar caricato e contente. Argus, ao seu lado, balançava a cabeça

e arregalava os olhos para ela, como se tentasse transmitir uma mensagem

desesperada.

— Ficamos todos arrebatados com a beleza ímpar da nova Octaedro de

Hegemonia. Uma belíssima apresentação para os convidados, sem dúvida. Mas eu

perguntava a respeito de Menfesis. Há tempos não o vejo. Imagino que esteja

atafulhado de trabalho, ele não costuma se ausentar dos meus eventos.

Alezeia estremeceu. Observava a expressão curiosa de Lorde Bovir aguardando

uma justificativa, no mínimo decente, para o dissabor da ausência de uma figura tão

ilustre em um evento daquela magnitude. Argus fez uma careta ao seu lado, seguido

de um muxoxo. Bovir desviou o olhar. Franziu o cenho para os tiques bizarro do

amigo ao seu lado. O rei de Mistral esticou a mão para um garçom e pegou uma

nova taça de vinho, virando-a de uma só vez.

— Lorde Bovir, é que Menfesis está...

— Espero não estar atrapalhando esta prosa que parece deveras interessante.

Alezeia, Argus e Bovir foram pegos de surpresa e giraram onde estavam para

vislumbrar quem era o dono da voz grave e firme, que de tão polida vibrava como

uma música suave em seus ouvidos. Argus fitou o interceptor e respirou aliviado

por ter interrompido sua tentativa de ajudar Alezeia.

— Você nunca atrapalha, Sisno.

A presença majestosa de Sisno Sannfrye obliterou qualquer vestígio de

constrangimento que surgira nos míseros segundos em que a coragem de Lorde

Argus vacilou vergonhosamente. Sisno era a maior referência viva de sabedoria e

liderança de Purysia. Se havia alguém que podia ser considerado o maior

contribuinte para a aproximação dos sacramentadores com os humanos mágicos e

não mágicos e a boa relação da Ordem com o Conselho dos Guardiões, este alguém

era Sannfrye. Um elfo de feições amistosas, sempre cordato e extremamente

atencioso a quem todos admiravam e em quem se espelhavam. Não havia um único

arcano ou jovem elfo aspirante à sacramentação que jamais tivesse ouvido falar

dele. Com um jeito elegante e educado, era um elfo sereno e extremamente político.

Era considerado um dos sete mais sábios sacramentadores da história. Ainda que

não pertencesse a um dos clãs dos Etéreos, esforçou-se ao longo de eras para forjar

a reputação e o prestígio de que possuía ante à comunidade élfica. Não obstante

era o grande mentor de Menfesis. Vira o atual líder da Ordem ascender de um

jovem e ingênuo arcano, seu próprio arcano, à cadeira mais alta do Oráculo do

292


Tempo. Imaginava, contudo, os dissabores que não estava passando pela falta de

prestígio de seu maior e mais querido aprendiz. Dizia-se que detestava holofotes e

que preferia os bastidores — o que para Alezeia fazia bastante sentido, pois jamais

quis acreditar que fosse apenas abnegação o fato de não almejar o posto de maior

destaque em Purysia, visto que ele possuía as qualidades necessárias e o apoio de

centenas de sacramentadores para tal. Quando a principal lei de Purysia fora

quebrada, foi o maior articulador para a deposição do antigo líder da Ordem. Foi

legislador e juiz, acusando o líder deposto por todos os seus crimes. Uniu os Oito

Octaedros e a maior parte dos elfos conselheiros, jogando-os contra o ex-Supremo

Chanceler, sem que ele tivesse a menor chance de se defender. Diante da

oportunidade de liderar os sacramentadores, preferiu que seu pupilo levasse todo

crédito e a glória de salvar o destino da harmonia do tempo, transformando

Menfesis no mais novo líder da Ordem. Ninguém jamais entendeu muito bem essa

história, mas todos confiavam em Sisno e sabiam que ele fora o grande condutor

da única revolução ocorrida na sacramentação. Alezeia tinha suas dúvidas.

Questionava-se se as intenções de seu contemporâneo de sacramentação eram

realmente nobres e altruístas, embora ele nunca tenha dado razões para duvidar de

sua conduta e intenções.

— Concede-me a honra desta dança? — Sisno ergueu a mão para Alezeia.

— Ma... Mas é claro, Sisno — respondeu Alezeia, um tanto surpresa com o

convite inesperado.

— Com a sua licença, cavalheiros. Tomarei esta bela dama de vossas presenças e

a conduzirei ao longo de uma valsa. Ainda que eu não seja um exímio dançarino,

prometo devolvê-la sã e salva.

Bovir gargalhou e brindou ao casal que se deslocava para o centro do salão. Lorde

Argus bebericou de uma taça e fez um gesto com o olhar, instigando Alezeia a

aproveitar a dança e fugir das questões do qual ela preferia não responder.

Deixando-se conduzir por Sisno até o centro do salão, Alezeia piscou para Dhara

que aguardava ao pé da escada, quando passou por ela. A jovem elfo sorriu de volta

de um jeito que era um misto de gratidão e inocência, mas também de garra e

compleição. Nunca tivera a experiência da maternidade, mas imaginava que os

sentimentos de uma mãe deveriam ser os mesmos que experimentava naquele

instante. Orgulho por uma filha do coração, que viu crescer em sabedoria e estatura

e que desabrochava perante a sociedade, com determinação e garra, para o mundo.

A mão de Sisno repousou em sua cintura sem titubear. Ao passo que a outra

segurava seus dedos de uma forma delicada, ambos deslizaram para o meio, onde

outros pares também dançavam. Bailavam de forma graciosa, com uma elegância

ímpar, sem improvisos e ela descobriu uma nova habilidade que desconhecia de seu

amigo elfo.

293


— Alezeia, quero ser franco e direto contigo e acredito gozar de sua confiança

para isto: o que está acontecendo com Menfesis?

A pergunta surpreendeu Alezeia. Encarou os olhos azuis como um profundo

oceano de Sannfrye. Ele tinha esse dom: o mundo podia estar desmoronando, o

caos imperando de uma forma assustadora, mas a serenidade e a racionalidade se

mantinham inabaláveis. Outra vez, se pegava questionando por que ele nunca

almejou a cadeira de líder e como a Ordem estaria muito melhor se, com toda sua

sabedoria de eras, ele a liderasse. Era amigo dos Guardiões, admirado pelos elfos e

sacramentadores e respeitado pelos maiores reis de Eirin.

Alezeia sorriu, desgostosa e resignada. Gostaria, no profundo desespero que

habitava seu âmago, de ter essa resposta para dar ao amigo que a conduzia tão

preciso pelo salão. As maçãs do rosto queimaram e ela sabia que Sannfrye notara o

rubor violento que a dominava. Não era difícil ler suas expressões de pesar ao longo

do salão.

— Sisno, com toda franqueza e sinceridade que habita meu coração, eu não sei

pelo que Menfesis passa. Sequer possuo conhecimento do que acontece na Sala da

Bússola. Menfesis acolheu o isolamento e o chamou de amigo. No fundo, algo o

perturba, sei que seu coração está em profundo desespero, mas eu não sei pelo que,

pois ele não confia mais em mim. Ele não confia mais em ninguém.

— Alezeia, julgo de minha parte que, talvez, em toda minha carreira como um

humilde servo da sacramentação, dedicando o melhor de meus ciclos e a plenitude

de minhas ciências, tenha cometido um erro gravíssimo. Um erro que se reflete em

consequências desastrosas para o Oráculo do Tempo e que põe em xeque todas as

conquistas arrebanhadas ao longo de eras: escolher Menfesis em vez de você para

líder da Ordem.

Alezeia arregalou os olhos. O queixo despencou com o baque da sentença

inesperada. Do que Sisno estava falando? Ouvira realmente o que achava ter

ouvido? Sisno... arrependido? Arrependimento não era um sentimento comum

entre os elfos. Externá-los tão franca e abertamente não era visto com bons olhos.

— Sei que compartilhamos de um sentimento mútuo. Infelizmente, nossas

escolhas têm consequências. Não podemos alterar o curso do tempo, ainda que

tenhamos poder para tal. Passamos por isto ciclos atrás. Já vivenciamos isto. Mas

somos reféns de nossas escolhas. Meros lacaios de suas consequências. Não era

Menfesis quem devia ocupar aquela cadeira...

— Sisno, se está propondo que eu...

— Não estou propondo que, por influência de um discurso de arrependimento,

possua a pretensão de comover seu coração para que usurpes o trono do líder da

Ordem. Sim, Alezeia, tomo seu espanto como surpresa diante de minha sentença.

Assim como um mero humano, o arrependimento me consome. Não somos

294


levianos para sermos levados por sentimentalismo e é sua racionalidade, a maior

virtude que admiro em você.

— Não consigo compreender, Sisno.

— Os sacramentadores estão insatisfeitos, Alezeia. Isto com certeza está patente

às suas percepções. Sabes que Menfesis cometeu o maior dos sacrilégios,

interrompendo as eras dos antigos e nomeando novos e despreparados

sacramentadores. Os maiores pensadores élficos de nossa atualidade questionam

todos os dias tal decisão. Os Etéreos são os maiores inquiridores. Não há um dia

sequer que não receba uma carta deles à procura de respostas para o que classificam

como uma crise dentro de nossa religião. A liderança de Menfesis está em xeque. A

ausência de governo em Purysia abala a credibilidade da Ordem, construída sob

muito esforço e resignação ao longo de tantas eras. A confiança das nações na

sabedoria dos sacramentadores está sendo despejada na sarjeta. A harmonia do

tempo não pode ser prejudicada pelos delírios, que beiram o infantilismo, de

Menfesis, que não é mais um arcano de pernas raladas como o foi há tanto tempo.

— Sisno, eu compreendo a insatisfação que permeia toda Eirin. Você não é o

único a receber centenas de cartas e questionamentos. A minha alma chora pela

indiferença de Menfesis e suas...

— Alezeia, perdoe minha indelicadeza em interromper suas palavras, mas não

estou aqui unicamente para compartilhar contigo de meu tolo arrependimento de

não ter dado a você a liderança de Purysia quando bem pude. — A expressão de

Sannfrye assumiu um tom soturno quando ele a interrompeu. — Menfesis foi

pesado e medido. Uma difícil, porém necessária, decisão está tomada: os antigos

sacramentadores e eu decidimos destituir Menfesis.

Alezeia ficou atarantada. Arregalou os olhos para a expressão impassível de Sisno

em declarar tal sentença com tamanha calma.

— Sisno, por tudo que há de mais sagrado, vocês não podem fazer isto. — Em

seu íntimo, Alezeia se abatia. O desespero ia tomando conta de seu corpo, pouco a

pouco. — Você sabe o que isto significa. Um levante dos Oito seria considerado

alta traição.

— Possuo plena consciência, Alezeia, do que isso significa. Fui eu mesmo quem

escreveu essas leis e posso citar a ti em qual alínea, parágrafo e inciso seríamos

condenados. Entretanto, períodos conturbados exigem medidas extremas. Eu não

vim até aqui pedir sua permissão, Ada Alezeia Turim. — Sisno sorriu de uma forma

singela, quase paternal. — A decisão está tomada. Menfesis tornou-se poderoso

demais para ser combatido por qualquer um de nós. Até mesmo você, se quisesse

levantar-se em armas e combater a tirania de Arturo, seria um irrisório e pífio

obstáculo para o vasto poder que ele possui.

— Mas, então, como vocês pretendem...

295


— Partiremos ao amanhecer. Incursionaremos para buscar o único elfo que

possui capacidade para deter Menfesis e reestabelecer a confiança dos povos élficos

na Ordem. A única e derradeira dúvida e que ainda me mantém conduzindo-a ao

longo desta valsa suave é: a quem você é leal?

Alezeia estava estarrecida.

— Sisno, você não pode estar falando de...

— Adryan Varnor — pronunciou o sacramentador, sem titubear, o nome que fez

Alezeia estremecer e arregalar ainda mais os olhos assustados.

— Sisno, mas nós...

— Sei muito bem o que fizemos a ele. Não precisas recordar-me dos tenebrosos

eventos de quase uma era atrás. Ambos estávamos lá quando tudo aconteceu.

— É impossível, Sisno, que Adryan tenha sobrevivido à horrenda condenação

que infligimos a ele.

— Há rumores, Alezeia. Rumores de terras longínquas e inóspitas, de que Adryan

ainda vive, habitando as Terras Distantes de Turmis. Há boatos que afirmam sua

nova alcunha: Rei Elfo. Contudo, sem querer alongar-me, pois a música em breve

cessará e não pretendo atrair mais atenções para nós, pois até as paredes aqui

possuem olhos e ouvidos. Minha questão permanece sem resposta: a quem você é

leal, Ada Alezeia Turim?

Espreitando a conversa, uma ninfa das águas esgueirou-se pelo lugar. Correu

pelas paredes do Salão de Vidro e lançou-se às águas salinas e revoltas de Argúrius.

Disparando em ultra velocidade, singrou os oceanos e alcançou o Oráculo do

Tempo. Klaus Trishnann aguardava. Contemplava um céu azul pontilhado de

estrelas, no auge da noite em Purysia. A ninfa serpenteou por uma das torres e

materializou-se ao lado do sacramentador. Contou a ele tudo o que ouvira na festa

de Bovir.

Trishnann sorriu de ponta a ponta da orelha.

— Menfesis vai adorar saber a respeito desta alta traição.

296


Capítulo Vinte e Um

Perdidamente Apaixonado

O barquinho aportou no pequeno cais de um jeito nada suave. Madeira com

madeira se chocou e seu único tripulante, além do próprio condutor, quase foram

arremessados para dentro das águas geladas. A noite imperava havia algumas horas

e as estrelas brilhavam com vívido esplendor. Uma gloriosa lua reinava, insólita, em

um céu enegrecido livre de nuvens ou de qualquer sinal de avenatis flutuando pela

abóbada celeste.

Os avenatis eram uma presença constante esta época do ano e tornavam os céus

turmisianos um espetáculo à parte, de dar gosto de admirar. Monstros nômades,

colossais e exorbitantes, eram as maiores criaturas voadoras de Eirin e faziam dos

céus sua morada. Contemplados lá de baixo, se assemelhavam e muito com as

grandes nuvens esbranquiçadas típicas da Primavera durante o dia. E, quando a

noite ia surgindo, no lusco-fusco do fim de cada dia, pintavam a imensidão com

uma miscelânea de tons que variavam do laranja ao púrpura. Uma suntuosa aurora

boreal de nuances quentes. Apesar de abissais, eram criaturas mágicas

extremamente dóceis e amistosas. Nas hibernações de inverno, forneciam um óleo

natural muito valioso, usado de diversas formas: desde combustível para lareiras até

a aglutinantes para forjas de minerais mágicos com pedras preciosas. Como não

pairavam sobre os céus da Austera Amistelar, provavelmente estavam em suas

transições migratórias, interrompendo a letargia estagnada a que viviam durante o

verão e a primavera e se locomoviam pelo espaço, rumando em direção ao sul, para

além dos limites da Cordilheira Negra, em direção às Terras Distantes, quando

sumiam no horizonte para regressarem somente no ciclo seguinte.

Com o coração acelerado, Louk desvencilhou-se de sua capa de couro e pulou do

barco. Chapinhou pelas pequenas poças de água parada acumuladas sobre a doca

de madeira quase apodrecida; por um instante viu-se indagando por que o pai nunca

reformou aquela plataforma. Tudo bem que o acesso predileto dele e de toda

nobreza tornara-se o Arco Real, a triunfal entrada recém-inaugurada com exaustivas

escadarias que brilhavam até no escuro, mas por eras aquele pequeno cais

maltratado e castigado pelo tempo foi a principal forma de se chegar ao castelo e,

atualmente, não passava de uma doca abandonada e esquecida.

297


Sob à luz vacilante das tochas engastadas ao longo do sinuoso caminho entre as

rochas tortuosas e escarpadas, morro acima até o palácio dourado, brilhando com

as luzes incandescentes de alguns cômodos ainda acesas, Louk vislumbrou o grande

lago que circundava a escarpa do castelo. Sempre acreditou que o grande lago

Tiwara (poça negra, em antigos dialetos turmisianos) tinha o estranho formato de

um coração. Embora seus amigos, principalmente Ropher e Mark, afirmassem

categoricamente que ele estava enganado, que na realidade o lago tinha o formato

de um fígado de bebum perfurado por uma flecha em chamas, em dado ponto do

caminho percorrido, ele conseguia enxergar o formato desenhado de um coração.

Meio torto, mas ainda um coração. Esforçando-se para tentar observar,

comprimindo os olhos e testando vários ângulos, jamais conseguiu enxergar da

forma como seus amigos descreviam.

Havia uma razão ainda mais forte para fazê-lo vislumbrar o lago de tal jeito. Nesse

dia, muito mais do que antes. Regressava à Amistelar radiante, arrebatado por um

sentimento dominante. A leveza o abraçava, como se estivesse flutuando. Um misto

de sentimentos esquisitos preenchia seu coração. Sentia-se bobo, perdido nas

inúmeras lembranças que ocuparam sua viagem de volta para casa. Nem percebera

o tempo passar. O gosto do beijo ainda estava em sua boca. A pele macia e delicada

do ser angelical, a quem tomou nos braços, perambulava em sua memória,

marcando-o como uma cicatriz feita à ferro e fogo. Toda vez que fechava os olhos,

ficava como quem sonha. Rememorava, a todo instante, o rosto perfeito, o sorriso

gracioso e os olhos cheio de vida de Dhara Lovrens, a bela elfo por quem estava

perdidamente apaixonado.

Apaixonado. Completamente apaixonado. Doente de amor. Essas palavras

martelavam em sua cabeça porque o coração dava cambalhotas no peito sempre

que regressava àquele momento único, eternizado no tempo, mesmo que por

breves segundos, em que seus lábios pressionaram a boca suave de Dhara e pôde

sentir seu hálito quente, sua língua doce como mel. Puxar sua cintura mais próxima

a dele e com uma das mãos acariciar os cabelos tênues da esplendorosa elfo em

seus braços.

A certeza dominante em sua mente era de que, pela primeira vez, estava

plenamente feliz. Pela primeira vez, a paixão dominou suas faculdades mentais. Um

sentimento sem precedentes, suplantando qualquer outra paixão de toda sua vida.

Fazia as outras mulheres com quem ficara, meras memórias insignificantes e sem

sentido. Mesmo que não fosse uma mulher, Louk tinha a certeza de que era com

Dhara que ele queria viver todos os ciclos possíveis, até ver o fim de seus dias em

Eirin. Ainda que houvesse tantas diferenças entre ambos, como o fato de sua

longevidade, saberia que, quando chegasse sua hora, morreria feliz por ter

encontrado alguém que valeu à pena.

298


— Sua Alteza está bem? — Um dos guardas do palácio o observava com uma

expressão desconfiada.

— Melhor, impossível, meu amigo. Melhor, impossível! — respondeu Louk,

radiante, sacudindo o soldado.

Subiu as escadarias bem devagar, flutuando pelos degraus. A cada nova piscadela,

vislumbrava as luzes esplendorosas do palacete de Lorde Bovir. A orquestra

dedilhando suas notas suaves ao fundo. À sua frente, Dhara sorria. Ela discorria

sobre como a Ordem dos Sacramentadores funcionava, mas nada daquilo

importava. Não conseguia tirar os olhos de sua beleza descomunal. No silêncio que

se seguiu, depois de explicar como estava fadado ao posto de Guardião, pegou-se

rendido à paixão exacerbada. Um sentimento que nenhuma das suas maiores

loucuras, buscando uma felicidade momentânea, foi capaz de proporcionar. Um

sentimento que preencheu um vazio de sua alma, carregado há tanto tempo e que,

por diversas formas, tentou saciar. A louca paixão o acertou de repente e o fez

admitir: por ela, desistiria de tudo.

Estacou de súbito, no meio da escadaria. Encarou o belo céu estrelado ao seu

redor e tudo pareceu se esclarecer diante de seus olhos.

Era este o momento. Jamais tivera tanta certeza que chegara a hora de seguir seu

coração e ser feliz. Fazer o que achava correto, não o que os outros queriam que

ele fizesse. Deixar de lado as regras e leis impostas pelo pai e pelos demais clãs e

voar rumo ao destino que, mesmo parecendo incerto, lhe traria a verdadeira

felicidade.

Correndo afoito pelas escadas, tomou a decisão que mudaria sua vida e com

certeza abalaria as estruturas da Austera Amistelar, já tendo como certa a decisão

de Lorde Leoris, seu pai, o rei. Decidiu abdicar da indicação para Guardião. Outros

jovens guardiões aceitariam de bom grado o “fardo” de ser o protetor do continente

e viver acorrentado aos grilhões infligidos pelo Conselho. Quem não gostaria de

ser o grande herói de Turmis? Bald, Mark, Gavor saltariam de emoção se fossem

indicados ao cargo por ele. Jano, com seu jeito “certinho” de ser e toda sua caretice

seria o primeiro a aceitar a missão. Bald se sentiria honrado — e Louk apostava que

seu amigo choraria feito criança ao saber — os Ottonis adorariam este ato de

bondade por parte do herdeiro do trono. Com certeza, Herm teria total aprovação

de seu tio mal-encarado, Salazar, e dos outros irritantes Stanhorne. O que Louk

mais queria era deixar a vida insossa na corte para trás e viver para fazer Dhara

Lovrens feliz. E que se explodisse o mundo se todos achavam que isto era errado.

Se ela o amasse e sentisse o que ele também sentia, o restante, até mesmo o

Conselho dos Guardiões, a Ordem dos Sacramentadores, os Cinco Continentes e

o raio-que-o-parta, tudo, seria um mero e insignificante detalhe para o amor dos

dois.

299


Abriu a porta de carvalho em um arroubo e trombou com Ropher. O amigo de

cabeça raspada e expressões corriqueiramente cínicas trajava um longo pijama

listrado. A cara era de sono e os olhos não se aguentavam de exaustão por ser tarde

da noite. Em uma das mãos, pairava uma pequena labareda de fogo elemental.

Encarou o amigo enlevado e pressuroso com uma desconfiança muita característica

estampada em seu rosto.

— O que está acontecendo? Viu uma fadinha brilhante? Está com essa cara de

retardado por quê?

— Retardada é a sua irmã, aquela vadia que dá para todo mundo em Carabact.

Deve estar batendo ponto perto dos vinhedos a essa hora da noite.

— Ô, rapaz! Você é maluco? — Ropher estufou o peito, empinou o nariz e meteu

o dedo indicador no meio do rosto de Louk. — Mais respeito comigo. Veja lá como

é que você fala da irmã que eu nem tenho.

— Cala a boca, eu sou seu pai! — esbravejou Louk, também estufando o peito.

Os dois desataram a rir.

— Imitar Lorde Flynn desse jeito, a essa hora da madrugada, é jogo sujo! — disse

Ropher, ainda rindo. — Mas, enfim, o que está acontecendo?

— Talvez seja muito tarde e sua memória fraca esteja sendo afetada pelo sono,

mas você se lembra qual sempre foi o meu maior questionamento?

Ropher coçou a cabeça. Contorceu o cenho em um esgar confuso.

— Hum... Ah, já sei. Por que Lorde Nomur Gundorf tem tantas linhas de

expressão na testa?

— Não, idiota...

— Ah, então, é: por que Lady Vália tem cinco dobras de papeira embaixo do

pescoço que mais parecem um bolo de carne com bacon?

Louk levou a mão à testa.

— Agora, sério. Ao menos tente lembrar, sem levar na sacanagem, qual era o meu

maior questionamento na vida...

— É claro que eu me lembro — falou Ropher, emitindo um longo bocejo. —

Seu maior questionamento sempre foi se, um dia, você encontraria a verdadeira

felicidade, se alguma coisa faria sentido na vida pra você e tal. Até cheguei a pensar

que você entraria em depressão por isso e...

— Ropher, eu encontrei!

Ropher arqueou as sobrancelhas em uma expressão de dúvida.

— Do que você está falando? Eu sempre achei que aquela loucura nos Pilares da

Magia em Paragon fosse motivo forte o suficiente para te deixar feliz...

— Meu amigo, eu ainda não posso te contar detalhes, mas você logo saberá.

Contudo, posso te afirmar algo agora sem sombra de dúvida. — Louk agarrou os

dois braços do amigo e o encarou, com um largo sorriso no rosto. — É algo um

milhão de vezes maior do que isso. Eu finalmente encontrei a minha felicidade!

300


Ropher comprimiu os olhos para o amigo, encucado.

— Ok, se você diz...

— Onde está meu pai?

— Seu pai? — inquiriu Ropher, confuso — Bem, até onde sei, está em uma

reunião de emergência com os conselheiros, desde o fim da tarde, na Sala Oblíqua.

— Preciso falar com ele.

Antes que Louk desembestasse a correr pelas escadarias, Ropher segurou o amigo

pelo ombro. Encarou a expressão radiante dele e arqueou uma das sobrancelhas.

Jamais o vira com tal brilho no olhar em toda sua vida.

— Olha, meu amigo, hã... seu pai parecia muito apreensivo quando entrou na

reunião hoje. Na realidade, até meu pai estava, mas ele não comenta muito comigo

os problemas internos do reino. Eles estão há horas lá. Sequer jantaram. Não creio

ser uma boa hora para você interromper essa reunião.

— O que eu tenho para dizer não pode esperar — pontuou Louk, rindo de um

jeito aparvalhado para a inquietação impressa no rosto do amigo.

Desviando-se das mãos do amigo, Louk pôs-se a correr pelas escadarias, rumando

para a torre da Sala Oblíqua. Uma última questão de Ropher ecoou pelas paredes

de pedra do palácio e ribombaram em seus ouvidos.

— AO MENOS PODE ME DIZER QUAL É O MOTIVO DESSA SUA

REPENTINA FELICIDADE?

Louk estacou. Parou no último degrau e vislumbrou a figura intrigada de seu

amigo, na penumbra do fogo mágico que pairava em seus dedos.

— Quem sabe um dia você entenda que eu encontrei o grande amor da minha

vida e não é fruto de um casamento arranjado como o seu, com uma guardiãzinha

qualquer de Badorian que você sequer sabe o nome direito.

Avançando pelas escadarias e corredores do castelo, Louk não tinha a mínima

noção de que horas da noite deveriam ser. Sabia que era bem tarde mesmo, pois o

estômago começava a roncar alto de fome. A última refeição no navio, uma

suculenta lagosta, fora servida assim que o sol se pôs, na divisa entre céu e mar, no

longínquo horizonte laranja e azul. Pelas palavras de Ropher e sua aparência

derrotada, era madrugada em Amistelar. Os corredores por onde passava estavam

mergulhados em completo silêncio. Mesmo o crepitar das chamas estralando sobre

as lamparinas arraigadas às paredes ribombava em seus ouvidos e, vez ou outra,

conseguia identificar um sonoro ronco enquanto deixava as portas dos dormitórios

para trás. O suor escorria em cascatas e empapava sua camisa. Algumas vezes,

descia pela fronte e invadia suas vistas, ardendo de forma pungente. As pernas

quiseram vacilar por um instante. O estômago roncou alto quando subiu um novo

lance de escadas. Mas estava obstinado. Era este o dia em que mudaria sua sorte

para sempre.

301


A Sala Oblíqua era o salão oficial de reuniões do reino e o principal aposento do

castelo. Louk só não conseguia entender porque precisava estar tão distante dos

demais cômodos do palácio e em um lugar tão alto. Afinal, era o lugar mais utilizado

pelo conselho real e por seu pai. Diziam que era estratégico, mas Louk nunca viu

uma estratégia tão sem sentido em um salão estar na torre mais alta e mais afastada.

Ouvira os Gundorf discutirem, diversas vezes, que a Sala também era um abrigo

fortificado contra invasões e segura o suficiente até para investidas violentas, como

as de dragões-rubi — que, diga-se de passagem, havia um bom tempo não eram

avistados por aquelas bandas do continente. Louk se habituara à sala da torre mais

alta e levemente tortuosa e desalinhada — daí o apelido de “oblíqua” — afinal, seu

pai passava mais tempo enfurnado nela, em reuniões intermináveis, do que com ele

e com seus dois irmãos mais novos. Jamais teve real interesse pelos assuntos

discutidos lá. Detestava discussões maçantes e que não levavam a lugar nenhum,

ainda mais com pessoas intragáveis como as dos demais clãs aliados. A verdade é

que nunca teve a menor pretensão de um dia ascender ao trono para assumir a

liderança do reino. Ainda que fosse o primogênito e o próximo na linhagem, essa

não era sua pretensão. Talvez este fosse o maior desgosto de seu pai que sempre

conduziu a Austera Amistelar com mãos de ferro.

O conselho real conseguia ser ainda mais tedioso do que os concílios quase

diários em que se embrenhavam. Era formado por todos os velhos das demais

famílias de guardiões que possuíam uma aliança para governar Amistelar — numa

notória e descarada imitação do modelo de governo do Conselho dos Guardiões.

Muitas vezes, Louk pensava que talvez este fosse o motivo pelo qual o reino possuía

a alcunha de “austero”. As quatro famílias que detinham o poder máximo sobre o

maior reino de Turmis eram considerados os clãs de guardiões mais contumazes de

toda Eirin. Prezavam por valores e crenças arcaicas que Louk considerava

extremamente antiquados para os dias atuais, como o fato de obrigar seus

descendentes a casarem com outros guardiões escolhidos a dedo por eles, sem a

menor sombra do que eles adoravam chamar de “mistura” ou miscigenação entre

os guardiões e as demais raças mágicas, consideradas por eles como “menos

nobres”. Por este motivo, apoiavam e até fomentavam o casamento entre primos,

tudo em razão da garantia de uma máxima pureza do sangue guardião para

perpetuação do que discorriam como “poder sem mácula”.

O casamento de Ropher estava sendo cuidado, nos mínimos detalhes, por Lorde

Tranto e Lady Nubia, seus pais, com a supervisão particular da irritante Lady Sally

dos Gundorf desde adolescente; estavam ávidos por garantir que a união fosse a

mais nobre possível. Louk jamais achou essa questão de “pureza racial” algo

relevante. Nunca se importou com esse aspecto. Considerava irrisório para a vida

que levava. Sabia que quando encontrasse um grande amor, o que acreditava ainda

demorar muitos ciclos para acontecer, casaria com ela e a faria muito feliz,

302


independentemente de seu sangue guardião, mestre, alquimestre ou élfico. Mas

tinha consciência que para seu clã isto era um assunto intocável, indiscutível,

principalmente para os Stanhorne, que eram implacáveis nesse sentido. Por isto,

tinha muita pena de seu amigo e de sua ausência de liberdade. A razão disso tudo,

Louk estava convicto, era de que os Stanhorne, os Ottonis, os Gundorf e até

mesmo sua família, os Savya, queriam manter as aparências de uma suposta pureza,

em nome de uma supremacia dos guardiões sobre os demais, quando a supremacia

que deveria existir era em virtude da proteção do mundo e não em questões de

raças.

A motivação dos quatro clãs era uma tácita vaidade enrustida, permeada pela

inveja sem precedentes dos nobres que ocupavam as mais altas cadeiras da corte.

Os Gundorf, por várias gerações, foram o clã mais famoso e prestigiado do mundo.

Reconhecidos pelo poder imensurável do maior guardião que Eirin já conheceu,

viviam atualmente do resquício das glórias do passado e da fama que um dia

tiveram. Amargavam o trágico final a que Lorde Hazer fora acometido, mesmo

após tantos ciclos de sua hegemonia. Preferiam elucidar em seus muitos contos e

versos às mesas de jantar e nas festas da nobreza, somente os momentos de glórias

e apagar de forma contundente a parte sombria de seu passado, nos últimos e

tenebrosos ciclos de sua vida. Após Hazer e sua grande vergonha, os Gundorf

jamais conseguiram qualquer lugar de destaque na política mundial.

Os Ottonis, ainda que conseguissem disfarçar muito bem, invejavam o extenso

poderio do clã Savya. Mesmo em um sistema de indicação pelo rei, que tentava ser

o mais democrático possível com às demais famílias, jamais tiveram um nome de

expressão em sua história como Guardião de Turmis. Além disto, eram taxados de

preguiçosos, esbanjadores e altamente glutões, embora essas opiniões se

mantivessem em completo sigilo, perambulando somente nos burburinhos e

cochichos pelos corredores do palácio. Claro, havia suas raras exceções. Contudo,

quando não estavam sendo altamente desagradáveis com os empregados do

palácio, se metiam em intensas discussões e embates com os Savya sobre os rumos

do reino, nunca deixando de ser uma forte oposição às decisões da família real.

Entrementes, havia uma aliança implícita, notória e muito sólida entre os

Stanhorne e os Savya, que vinha de décadas e sustentava as aparências na corte. Os

Stanhorne eram a família mais poderosa de guardiões da atualidade e, para Louk,

os mais acintosos e irritantes. Salazar, seu líder máximo, assentava-se sobre a mais

alta cadeira do Conselho havia muito tempo e forjou, ao longo dos ciclos, um

enorme prestígio ante às famílias de guardiões de Eirin e alguns poucos e

irrelevantes desafetos também. Não era político e tampouco bom com as palavras

como Lorde Moronov, mas sabia agir por trás dos panos, sendo um articulador

implacável e um líder que inspirava confiança e medo ao mesmo tempo. Contudo,

a maior frustração dos Stanhorne residia no fato de não terem sido os reis da

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Virtuosa Candorn. Tentaram de muitas formas, no passado, usando até de artifícios

escusos e sórdidos, tomar o trono do maior reino de Elstoen, mas sua tentativa foi

obliterada pelas famílias de guardiões de lá. Mas, como tinham o mundo em suas

mãos, através do Conselho dos Guardiões, isto acabou se tornando um mero

detalhe. Os Savya eram os donos do trono de Amistelar há mais de dez gerações.

Quando a Grande Era das Trevas eclodiu, foram considerados guerreiros

magistrais, liderando extermínios de hordas de ogros e elfos sombrios pelo leste

eurodiano e o norte turmisiano. Nas Batalhas Sangrentas de Etrid, receberam a

alcunha de “lendários”, quando, ao longo de nove sangrentos embates,

combateram incursões rebeldes de centauros vindos de Líria e que ameaçavam

Amistelar, Frandar e Zavir no maior banho de sangue da história do continente.

Estimularam o êxodo dos guardiões de Eurodian para os demais continentes,

fomentando a fundação dos maiores reinos do mundo. O tempo foi passando e os

Savya acomodaram-se sobre o trono e optaram pela regionalização, limitando-se ao

interior das fronteiras de Turmis. Lutaram arduamente para a fundação de um reino

sóbrio que se tornou rígido, austero, porém unificado. Ao passo que os Savya

mandavam sobre a política nacional e ocupavam o trono de Amistelar, os

Stanhorne ascenderam de forma meteórica e alçaram status mundial. Influenciaram

a legislação mágica, assumiram o protagonismo ante às decisões estratégicas

mundiais a respeito da magia e foram determinantes na política com os elfos

sacramentadores. Enraizados sobre esses objetivos, nenhum dos dois clãs tinha

pretensão de um dia isso mudar. Os Savya estavam satisfeitos com o trono e os

Stanhorne com a política internacional.

Deparou-se com a monstruosa porta de entrada da Sala Oblíqua, depois de

percorrer quatro corredores e cinco lances de escadas em um longo aclive. Negra

como as Águas de Crispoles no ápice da madrugada, a porta não rangeu tanto

quanto ele achou que faria. Agarrado à maçaneta dourada, enfiou a cabeça para

dentro do local e espiou a reunião que ocorria. Dezenas de pares de olhos se

entreolhavam de um jeito apreensivo e Louk podia quase afirmar que estavam

assustados. Nomur, Dorner, Tranto, Vália, Sinnair, Birtromb, Chalees, Paviv,

praticamente todos balançavam as cabeças e estampavam em seus rostos uma

feição irrequieta. O que quer que estivessem conversando, deveria ser algo

realmente sério, pois Louk jamais os vira assim.

Apurou os ouvidos. Ficou inesperadamente feliz que ninguém ainda tivesse

notado sua imensa cabeça sobre o vão entreaberto da porta. Era a oportunidade

para ouvir o que fazia tantos rostos se contorcem de inquietação.

— ... quando disse. Mas, talvez, Vossa Alteza esteja ignorando nossos conselhos.

Não sei se por temor ou porque optou por desviar os ouvidos de nossas

304


recomendações. Esses atos rebeldes não são isolados e há ciclos nós os avisamos,

desde que o primeiro atentado, em Fal-Candrema, ocorreu.

Ainda que não visse o rosto, a voz rouca e cansada era conhecida. Pertencia a

Lorde Seimur Stanhorne. Arrogante como sempre, era típico dele ser acintoso e

hostil com seu pai.

— Nós sabemos a origem de tudo isto. Há tempos que Bucamar desafia a

autoridade desta corte. E o que nós fazemos? Aceitamos o jugo ignóbil e irracional

que o Conselho nos impõe, acolhido de bom grado por Sua Majestade.

— Nossa resposta tem de ser imediata. Bucamar precisa ser obliterada por nossos

exércitos e por nossa...

— Jamais ignorei o que esse concílio me indica. — Uma nota de estafa ecoou, na

voz cansada de Leoris, quando interrompeu Lorde Paviv e, se o que Ropher dissera

era verdade, as muitas horas enfurnado naquela sala deviam estar afetando-o. —

Mas, contrariando-o Lorde Seimur, para mim, essas ações de degradação jamais

deixaram de ser o que disseste: atos isolados e sem qualquer ligação. Não podemos

tomar nenhuma atitude precipitada e tampouco afirmar que a Cidade dos

Rejeitados está ligada aos ataques recentes.

— Mas, milorde, chegamos a um consenso de que a demanda é urgente. Carece

de respostas duras e imediatas. Se essa rebelião, que até então considerávamos

isolada e irrisória, atingir as principais cidades e os condados mais importantes, uma

guerra civil poderá se instaurar.

— Espero que os senhores não estejam esquecendo das advertências do

Conselho. Homens não são criaturas das trevas. Não estamos lidando com

centauros, ogros ou trolls. São pessoas.

— São reles plebeus que ameaçam a hegemonia secular desta Casa. Não podemos

permitir que...

— Ei! O que você está fazendo aqui?

A apreensão desapareceu nos variados pares de olhos ao redor da grande mesa.

Dava lugar a um espanto inesperado em observar a cabeça de Louk na fresta da

porta, ouvindo e vendo tudo que se passava na interminável reunião. A pesada

cadeira do rei se arrastou e os olhos de Leoris, num misto de cansaço e surpresa, se

encontraram com os do filho. O esgar do rei transtornou-se de imediato.

— O que está fazendo aqui? — perguntou o rei, ríspido.

— Pre-pre-preciso conversar com o senhor, meu pai.

Lutou contra a dicção vacilante, mas foi inevitável para Louk gaguejar diante de

tantos olhos observando-o ao mesmo tempo. Aliada à nímia exaustão, a expressão

reprovadora ia crescendo pelos rostos dos conselheiros do rei ao redor da mesa. O

carão magrelo e encovado de Lorde Seimur, e seus olhos enormes de profundas

olheiras, fez Louk querer enfiar a cabeça no chão, como um avestruz apavorado. O

muxoxo de Lorde Tranto e Nomur quase o fizeram bater em disparada para longe.

305


Mas, não sabia exatamente porquê, permaneceu firme, encarando a expressão

abatida e furiosa do pai.

— Será que você não está vendo que estou ocupado?

Os demais conselheiros balançaram a cabeça, concordando com o rei.

Aguardavam numa ansiedade incontida que o primogênito do rei respeitasse a

hierarquia e as tradições para com os anciões, pedisse mil desculpas e cerrasse a

porta para que pudessem terminar a extenuante e duradoura reunião. Contudo,

Louk não se moveu do lugar.

Inabalável, o filho mais velho do rei extinguiu da face qualquer resquício de

fraqueza. Encarou o pai no fundo dos olhos, desafiando a autoridade de todos,

inclusive do rei.

— Minha questão também é urgente. Preciso de sua atenção, meu pai,

imediatamente.

— Louk, eu não vou repetir. Saia, agora.

Era o momento de se ver livre do autoritarismo irracional que o perseguia desde

à infância. As posições tresloucadas de seus familiares nos clãs ali presentes

exauriram os resquícios de sua paciência. Não podia ser outra hora, tinha de ser

imediatamente. A demanda era urgente. Não queria esperar por uma nova

oportunidade. O momento de se libertar da nobreza maçante e imbecil era aquele.

— Quero que os senhores, milordes, e você, meu pai, saibam: estou abdicando,

oficialmente, de minha indicação para Guardião de Turmis.

Os olhares esgotados assumiram uma expressão atarantada. De chofre, um a um,

os conselheiros se colocaram de pé. Num arroubo inesperado de fúria, o rei

avançou em direção à porta. Louk se sobressaltou. Com expressão dura e pisando

forte sobre o chão de pedra, Leoris arremeteu-se sobre o filho como se na iminência

de esmagar um monstro causticante.

A mão do rei pressionou o peito de Louk. O jovem guardião foi ao chão com o

golpe violento. Vislumbrou as paredes negras de pedra e o teto passarem por seus

olhos como um borrão enegrecido. Bateu a cabeça no piso com violência e uma

dor causticante atingiu os cotovelos e as costelas. Ouviu o clique agudo da

maçaneta. Um burburinho generalizado irradiou do lado de dentro. Captou alguma

coisa sobre o rei não ter controle nem mesmo da própria família, antes de a porta

se fechar. Os dedos do pai pressionaram seus dois braços na sequência, colocandoo

de pé outra vez.

Estava frente a frente com pai.

O olhar esgotado do rei exalava uma cólera acumulada e profunda. Linhas de

expressão por causa do tempo e estresse marcavam seu rosto. A cicatriz que nascia

um pouco acima do olho esquerdo e morria quase no queixo, da qual Louk jamais

soubera a origem, mesmo insistindo muito para que o pai revelasse, estava

protuberante e estranhamente avermelhada naquele momento. A barba, que um dia

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fora loura, tinha grandes tufos cinzentos e desgrenhados. O nariz levemente

aquilino tremia por causa do ódio que o arrebatava no momento.

— Você enlouqueceu? — trovejou a voz de Leoris. Louk pôde sentir o bafo

carregado do pai. O mau hálito era pungente. Ele podia jurar que havia uma nota

de gim ou rum misturada com café.

— Só assim mesmo para ter a sua atenção, não é, meu pai?

Louk se desvencilhou dos braços fortes do pai.

— Eu não sou mais um moleque para você me escorraçar da sala desta forma.

Eu não quero ser tratado como um menino, não estou à mercê de suas decisões

sobre o meu destino. Eu não quero mais ser Guardião e isso está decidido.

— Você, por acaso, quer lançar o nome do clã Savya num lamaçal de vergonha?

— Leoris parecia não acreditar. Balançava a cabeça e vociferava na direção do filho.

— Seu nome foi aprovado com louvor por todo o conselho. Isso jamais aconteceu.

Salazar fez menção positiva a você e apoia sua indicação. Você tem noção de

quantas noites fui dormir tarde, preparando um discurso convincente sobre suas

qualidades para assumir esse cargo? Quer destruir o prestígio de nossa família?

— É sempre sobre o senhor, não é, pai? Para não manchar seu nome e a

imaculada autoridade que tem. Estou pouco me fudendo para esse prestígio imbecil

que vocês tanto prezam. Não quero viver agarrado a essas tradições bossais

simplesmente porque o senhor quer. Quero decidir por mim, sobre o que é melhor

para minha vida e não que vocês, reunidos nessa sala, decidam sobre como deve

ser meu futuro.

— Não, isto não é possível. Não pode ser verdade... — Leoris esfregava as mãos

sobre o rosto e coçava os cabelos louro-acinzentados e curtos com as pontas dos

dedos. — Diz para mim que isso é um longo pesadelo. Não passa de um terrível

pesadelo.

— Eu encontrei o amor da minha vida — falou Louk, encarando o pai.

A expressão de Leoris mudou. Comprimiu os olhos na direção do filho, como se

não acreditasse no que tinha acabado de ouvir. Permaneceu fitando-o, balançando

a cabeça, aguardando as próximas palavras de Louk.

— Quero abdicar da minha vida no palácio e viver ao lado dela. Quero viver para

fazê-la feliz, longe desse lugar. Dê-me a minha parte na herança e irei embora

imediatamente.

Leoris permanecia embasbacado, taciturno. Meneava a cabeça de tal forma que

ela parecia prestes a saltar do pescoço.

— Não acredito que estamos tendo esta conversa. Não é possível.

— Sejamos francos, meu pai. O senhor nunca se importou comigo. Nossos

encontros como pai e filho só se dão em alguns raros banquetes e em festas no

palácio. O que o senhor ama de verdade é o trono, o poder, as glórias de ser o rei

da sua tão amada Austera Amistelar. Eu vou embora e prometo não importuná-lo

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mais, como fiz hoje. Ah, e não precisa se preocupar quanto a um herdeiro quando

o senhor estiver velho e cansado. Leonora e Leonis estarão aí quando a hora chegar.

— Quem é ela? — interrogou Leoris, respirando ruidosamente — De qual

família? Você sabe que pode casar-se com ela, viver bem no palácio, ela pode ter

uma vida de princesa na corte e ainda assim, você ser Guardião. É a Brim Ottonis,

Luma Gundorf? Alguma Stanhorne?

Louk sorriu.

— É Dhara. O nome dela é Dhara Lovrens, a elfo mais bela que existe no mundo.

Um som oco estalou no corredor. As costas da mão do rei cortaram os ares. Os

dedos estatelaram-se com estrépito sobre a face direita do filho. Louk girou sobre

o próprio eixo com o impacto do golpe e, cambaleando, caiu outra vez, batendo a

cabeça no chão.

— VOCÊ SÓ PODE TER FICADO LOUCO! EU JAMAIS APOIAREI ESTE

AMOR BESTIAL E PROFANO, MOLEQUE!

Louk se recompôs. O topo da cabeça latejou e um sorriso cínico brotou entre

seus lábios. A raiva se converteu em petulância à medida que se erguia do chão.

Ficou em pé novamente e mirou no fundo dos olhos do pai. Com a ponta dos

dedos, massageava o lado do rosto que ardia como brasas vivas.

— EU LARGARIA TUDO POR ELA. ABRIRIA MÃO ATÉ MESMO DESSA

HERANÇA MALDITA.

Avançando para a porta, Louk empurrou o pai para um canto. No interior da Sala

Oblíqua, os conselheiros ficaram visivelmente aparvalhados com o transtorno

notório em seu rosto machucado e se colocaram de pé no mesmo instante.

— Anseio que os senhores, a suposta nata de uma geração mesquinha e fútil de

guardiões desta terra, tenham ouvido a conversa do lado de fora. Gravem muito

bem este dia, pois faço questão de carregar na minha memória as feições

embasbacadas de cada um de vocês quando eu virar as costas e me retirar. Que

todos os Savya, Ottonis, Gundorf e Stanhorne saibam que estou abdicando de

minha indicação para Guardião para me casar com uma elfo.

Os olhares se arregalaram instintivamente, tendo o filho do rei como o centro

das atenções. O espanto era generalizado. O horror pelo que acabara de dizer estava

gravado em cada rosto presente. Louk fez uma longa e sarcástica reverência, antes

de sair da Sala, batendo a porta com força, com um sorriso largo estampado na

face.

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Capítulo Vinte e Dois

Sangue por Sangue

Recostou a cabeça sobre a cabeceira da cama e o cocuruto ardeu com a pancada

inesperada na madeira dura. Esfregou os dedos sobre o ponto dolorido até que a

sensação desagradável passasse. Acabou despertando um pouco de seu estupor,

mas não da preguiça dominante que o abraçava em meio ao conforto dos lençóis e

travesseiros. Os olhos percorreram, desinteressados, o teto de madeira e fixaram

em um local específico. Pintado de ouro, grandes manchas sinuosas e escuras se

espalhavam em vários lugares. Puro mofo. Um provável reflexo das tempestades

que, vira e mexe, assolavam o Porto e acumulavam poças de água da chuva,

minando pelos telhados gastos, com dezenas de telhas de barro ausentes, levadas

pelo vento. Mas isso era irrelevante.

Estava no maior quarto do bordel mais razoável da zona portuária de Candorn.

Razoável, pois Vegor não podia afirmar ser o melhor prostíbulo do reino. Alguns

quartos (e até algumas prostitutas) deixavam muito a desejar, aquém da qualidade

esperada pelo preço que pagava. Ainda assim, o bordel era um dos mais altos e

caros da colina que circundava a região do Porto. No Clorido, a região que abrigava

a maior parte dos bordéis do cais, era assim: quanto mais alto o puteiro, menos

intragável e pútrido ele era e, consequentemente, mais caro. Para um marinheiro,

um mercador de navio e até mesmo para os piratas disfarçados de mercadores que

aportavam em Candorn, havia prostitutas das mais variadas e para todos os gostos

e, principalmente, preços. Os mais miseráveis, geralmente os marinheiros de porão,

de aspecto sempre malcuidado, sujos, sem dentes e com um olho de vidro ou uma

perna de pau (às vezes, os dois) se contentavam com qualquer coisa. Os casebres

mais molambentos, caindo aos pedaços e cheirando a chiqueiro e urina do Baixo

Clorido eram a salvação para seus desejos desenfreados de descarregar no meio de

qualquer par de pernas. Menos de um candolin era suficiente para poder se

satisfazer. Entretanto, pagando tão pouco, não se podia exigir muita qualidade. Os

mais abastados, na maioria das vezes os mercadores, aportando com suas abissais

caravelas drapejadas de metais reluzentes, fardos de seda pura, sacas recheadas de

cereais, tonéis de vinho tinto e baús apinhados de ouro e joias resvalando pelas

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amuradas dos navios, tinham a oportunidade de se deliciarem com as prostitutas

mais luxuosas da cidade. Obviamente, longe da podridão dos barracos mais escusos

e sórdidos das regiões mais baixas de Clorido. Os bordéis mais requintados e, na

teoria, melhor asseados, ficavam bem expostos, com amplo destaque no cume da

colina, com luzes vermelhas ou roxas bem chamativas, para atrair aqueles que

tinham bastante ouro para gastar.

Vegor se dava ao luxo de gastar o tanto de ouro que quisesse, afinal, era somente

o herdeiro da maior autoridade da Virtuosa Candorn e que durante muitos ciclos

foi o grande herói dos reinos de Elstoen, o primogênito do rei. Gostava de se dar

ao luxo de torrar a fortuna que tinha com quantas e quais mulheres quisesse. Era

seu hobby favorito.

Chegara pouco depois que o sol se pôs. As luzes chamativas dos prostíbulos mal

tinham se acendido no lusco-fusco que pintava os céus. Como evitava chamar

atenção para sua figura real, tampouco sem fazer alarde, viera numa carruagem

discreta. Arrancou as bandeiras, o Corcel Alado e qualquer menção à corte. As

noitadas em Clorido não eram vistas com bons olhos por alguns candorianos

bisbilhoteiros dos vilarejos no caminho. Embora ninguém o julgasse e ali fosse uma

“terra sem lei”, aprendeu com o tempo a tomar determinados cuidados. Não queria

cometer o mesmo vexame duas vezes e ter de ouvir os sermões de suas tias outra

vez. Mas, com o tanto de ouro que trouxera, era difícil passar despercebido que o

filho do rei acabara de chegar.

Pulou da carruagem encapuzado dos pés à cabeça. Um manto de saco de cereal,

nada muito requintado para não dar pinta. Puxou uma das alças do pesado baú

abarrotado de moedas de ouro e seguiu seu caminho no cume do morro. Havia

ouro suficiente ali dentro para comer todas as prostitutas de cinco diferentes

bordéis do Alto Clorido por pelo menos uma semana. Na outra ponta do baú,

igualmente encapuzado e sem nenhum frufru, seu fiel amigo de todas as loucuras,

Kevan, o ajudava a carregar bordel a dentro.

Enrolado entre um emaranhado de lençóis, completamente pelado, com as

pernas entrelaçadas nas das duas morenas que acabara de comer e que roncavam

alto, deitadas em seu peito, Vegor sentia um leve odor pungente de urina misturada

com goza. Não tinha jeito. Mesmo nos prostíbulos mais caros, a catinga era sempre

a mesma. O que variava era a intensidade. Toda vez que o dinheiro ia se esgotando,

Vegor e Kevan eram obrigados a descer a ladeira e baixar o nível. O que mais

gostava no amigo era que ele não tinha melindre: no final do dinheiro, descabeladas,

raquíticas, velhas, qualquer uma, era uma boa opção. Comiam a de luxo e a sem

dente; a de banho tomado, com cheiro de almíscar e a fedorenta e com bafo de

onça. Kevan era o legítimo irmão que gostaria de ter. Não o trairia jamais, muito

menos da forma como Rudi o traiu. Acintoso, ansiava por usurpar um lugar que

nunca seria digno, que era seu por direito.

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Desviando os olhos do teto mofado, deu uma boa olhada no ambiente ao redor.

As pesadas cortinas de veludo vermelho contribuíam para o clima quente dentro

do quarto. A luz fraca dos lampiões lançava um brilho tremeluzente e melancólico

sobre as paredes, a cama oval e o emaranhado de lençóis marfim espalhados pelo

chão. Quadros bizarros de molduras douradas descascando drapejavam algumas

paredes. Pareciam ter sido pintados por alguém com tremedeira; dezenas de

rabiscos sem nexo em cores quentes se espalhavam pelo aposento. Um enorme

desperdício de tela, tinta e tempo. Notou Kevan estirado a um canto.

Completamente bêbado e com a bunda de fora, lambia o pescoço e descia até os

seios de uma prostituta que ria histericamente, numa risada nasal e irritante como

um porco com rinite fungando — Vegor não sabia se os tremeliques da mulher

eram pelo dinheiro ou pelo nível de embriaguez; mas por dinheiro e bebida, elas

topavam qualquer coisa. O clima sorumbático que o engolfava trouxe à tona uma

lembrança. Uma memória intrusa e maldita que invadiu sua mente com violência.

Os campos relvados cobertos de sangue. O tilintar das espadas. O galopar dos

cavalos. Tripas voando, braços decepados, cabeças degoladas. Vozes em agonia.

Uma silhueta monstruosa se desenhava à sua frente, sempre que fechava os olhos.

A figura aterrorizante, com um capacete de longos chifres sinuosos, peitos de fora

e olhos assassinos mirava-o, obstinada. Caminhava com um machado na mão na

iminência de arrancar-lhe a cabeça, sem titubear. Vivera o maior trauma de sua vida.

Uma inconsequente decisão de seu pai, influenciada pelos tresloucados conselhos

de Mastenion e Callan, que o colocou na mira das lâminas mortais dos bárbaros

sanguinários.

Jamais devia ter tocado aquele maldito chifre também. Mas quem imaginaria que

sua decisão desencadearia o maior banho de sangue dos últimos ciclos? Só queria

mostrar quem mandava no campo. Não era para se trucidarem com espadas,

machados, martelos e porretes na região mais inóspita de Elstoen. Queria provar

que era um bom líder e voltar para casa são e salvo, convencendo o pai de que era

digno do título. Fora uma ideia idiota, tinha que admitir. Uma ideia tola, em um

momento inoportuno e que quase lhe custou a cabeça. Para sua própria sorte,

ninguém havia descoberto que fora ele o ignitor da chama avassaladora que cobriu

os campos relvados com a nuance escarlate do sangue de centenas de soldados e

guerreiros.

Um estampido repentino fez Vegor emergir do torpor que voltava a dominá-lo.

Um som alto e forte eclodiu de algum lugar. Repentino, cadenciado, alteava a cada

segundo e dominava os corredores externos do quarto onde estava. Portas se

escancararam em algum lugar. Um vozerio apressado e violento ressoava de forma

abafada. Maçanetas rangiam alto e carvalho semipodre se chocava contra as paredes

de pedra fria e lascada. A algazarra era crescente.

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Empurrou as prostitutas para longe. Vegor assentou-se sobre a cama, tomado

por um desespero repentino e prestou atenção. Os ouvidos estavam apurados. Os

olhos arregalaram e vidraram na porta de entrada do dormitório. Os pelos da nuca

se ouriçaram. Não de tesão, mas de medo. A balbúrdia ia ficando cada vez mais

próxima, cada vez mais aterradora e audível.

A porta se escancarou de chofre. A fraca luz branco-pérola do luar que irradiava

do corredor revelou, para dentro do aposento, uma silhueta corpulenta e

ameaçadora. Com o coração a mil, Vegor se pôs de pé e, involuntariamente, gritou

como uma garotinha assustada.

— Achei! Ele está aqui.

A voz grave reverberou pelo quarto. Um fuzuê de lençóis emaranhados se agitou

como cortinas esvoaçando com os ventos de uma forte tempestade. Um misto de

luzes incandescentes e dos tons avermelhados das cortinas de veludo sambaram

ante a vista turva e amedrontada de Vegor. Tombou de cara no chão frio e úmido.

A marcha de botas e o tilintar das armaduras metálicas invadiu o quarto. Risadas e

gargalhadas ecoaram nos ouvidos do jovem guardião. A dor lancinante na cabeça

por causa da queda não o deixaram distinguir quem exatamente estava ali e por que.

Outras vozes surgiam no ambiente. Pescou algumas poucas palavras engroladas de

vozes grossas e esganiçadas, mas carregadas de deboche, que se juntavam aos

gritinhos histéricos das prostitutas alarmadas.

— ... gritou que nem uma menininha desmamada!

— Arrombado!

— ... assim. E, finalmente, encontramos esse maldito bastardo que matou nossos

irmãos.

— ... tocou o chifre e começou a batalha...

— ... meu primo só tinha quinze ciclos de idade. Um bárbaro desgraçado

estourou seus miolos com uma lança sem pensar duas vezes e...

— ... de sangue poyariano inocente derramado por uma causa fútil...

— ... e matá-lo aqui mesmo. Quem saberia? Podemos falar que ele tentou esf...

Um ruído agudo ribombou com estrépito. Dedos estalaram sobre um rosto

qualquer.

— Tira a mão da minha coxa, seu verme imundo e desgraçado. Pra tocar isso

aqui, só por dois mil candolins bem aqui na minha mão.

— O que você vai ter é um pau grosso no meio da sua bunda, sua vadia

desgraçada!

Outra vez, a dor. Repentina, fez Vegor quase desmaiar. Uma mão esquálida de

dedos raquíticos agarrou seu couro cabeludo. Com a cabeça girando e a visão

distorcida da pancada no chão, vislumbrou um rosto encovado e marcado por

cicatrizes profundas e sórdidas, enfurnado em um pesado capacete de bronze. A

boca escancarada exibia um sorriso sem dentes e uma feição buliçosa. A única

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reação que veio à cabeça, que latejava causticante, foi de puxar um lençol e se cobrir

como pudesse.

— É realmente ele. Vegor Wullith. Bêbado e pelado.

Gargalhadas explodiram pelo aposento fechado.

A falta de ar repentina pressionou os pulmões do jovem guardião. A pele ardeu e

ele sabia que não era pela dor ainda persistente na cabeça. As maçãs negras de seu

rosto deviam estar púrpuras, queimando de vergonha. Humilhado, estava exposto

ao ridículo por aqueles homens esdrúxulos que o procuravam.

— Larga essa daí, Cael e vamos embora. Já o encontramos!

— Calma, eu tô quase acabando aqui e... Ei! Quem é esse aqui?

Ouviu alguém arrastar um corpo. Camadas de lençóis balançaram e foram jogadas

a um canto. A voz de Kevan emergiu. Engrolou uma reclamação, mas bêbado

como estava era difícil distinguir suas palavras. Uivou de dor, por fim, com um

golpe que recebera.

Novas risadas.

— Esquece esse bebum maricas aí. Tá todo gozado, fedendo e com o rabo cheio

de rum. Deve ser o namoradinho desse arrombado aqui. Vamos embora. Já

encontramos nosso troféu. Precisamos levá-lo porque Lorde Brenrar está

impaciente.

O mundo girava a seu redor. A cabeça doía a ponto de quase fazê-lo desmaiar. O

ar ficava mais denso, pesado e sentia dificuldade de sorver oxigênio para os

pulmões. Os braços retesados e doloridos foram imobilizados pelos lençóis, que

eram usados como cordas para travar seu corpo. Como um porco prestes a ir para

o abate, foi lançado sobre o ombro do soldado mais alto e, então, passou a ver o

mundo de cabeça para baixo.

O brilho do luar irradiando nos corredores do casarão quase o cegou assim que

a tropa de soldados irrompeu pela porta de volta ao sereno. Pela nesga de espaço

entre o braço e a pança do soldado que o carregava, observava as portas dos outros

quartos, escancaradas e os olhares curiosos das prostitutas e de seus clientes

assustados vislumbrando o grupo de militares que marchava, rindo e cantarolando,

em direção à saída do bordel.

Nas vielas fétidas e enlameadas, já no ponto mais baixo de Clorido, as risadas

histéricas e o deboche dos guerreiros em uma marcha cadenciada ecoavam em seus

tímpanos. A cantoria animada despertava a atenção de todos os prostíbulos ao

redor. Inúmeras cabeças brotavam nas portas e janelas, curiosas, observando a cena

excêntrica. Bebuns largados sobre as calçadas e mendigos maltrapilhos riam sem

saber exatamente do que ao acompanhar a procissão bizarra que seguia seu

caminho, ladeira abaixo, rumo à saída, feliz e cantando. Faziam primeira e segunda

voz. Tenores berravam os versos masculinos; falsetes desafinados imitavam um

soprano esganiçado.

313


Oh, bela donzela, por que estais tristes?

Por que não admiras minha espada em riste?

Bravo soldado, que queres comigo?

Beijar sua boca, lamber seu umbigo!

Enche-me agora de beijos ardentes,

Mas não me deixes assim, de repente.

Bela donzela, quem achas que sou?

A honra em Poyares, meu pai me ensinou.

Tão másculo, viril, não me deixes só.

Vou agora à guerra, destruo o inimigo sem dó.

As faculdades mentais de Vegor voltavam aos eixos preguiçosamente conforme

a cabeça ia deixando de latejar. O raciocínio se encaixava no lugar outra vez e ele

conseguia juntar as palavras e frases ditas — e cantadas — por seus captores para

ver se algo fazia sentido.

Poyares? Lorde Brenrar?

Então os soldados desbocados e violentos que o levavam na corcunda não eram

os bárbaros do Sul que habitavam seus pesadelos. Eram guerreiros de Poyares.

Devia ter percebido de imediato; o sotaque forte de caipiras iletrados do interior de

Elstoen não negava suas origens. Respirou aliviado por alguns instantes, mesmo

que sorver o ar podre cheirando à urina fosse tão complicado, travado como estava.

Mas devia haver alguma coisa errada. Por que eles afirmaram tão categoricamente

que ele era um “troféu”? O que Lorde Brenrar queria tanto com ele? Haviam dito

algo sobre matá-lo no quarto ou era coisa de sua mente?

Um baque inesperado.

A boca do estômago doeu. Novamente, ficou sem ar. O nariz chocou-se contra

algo peludo. Fora atirado de qualquer maneira em cima de alguma coisa. Cordas o

envolveram acima dos lençóis e o travaram em um nó apertado nos braços e nas

costas. As risadas irônicas e gemidos histéricos ecoavam em seus ouvidos com um

leve som da rebentação sobre rochedos. Não conseguiu discernir muito bem onde

estavam, mas pelo odor acre e o cheiro de sal e peixe podre, deviam ainda estar em

qualquer viela baixa, fora de Clorido.

As gargalhadas cessaram de súbito. Alguns assovios persistiram e Vegor ouviu

um relinchar. O estômago voltou a doer. Amarrado onde quer que estivesse,

quicava em trotes curtos e pressurosos. Pelos movimentos intermitentes e o forte

cheiro de merda, estava travado sobre o dorso de um cavalo que aumentava os

solavancos, correndo a todo gás pelas ruas do cais.

314


— Ei! — Vegor ouviu a própria voz engrolar. O queixo estava meio frouxo; cair

de cara no chão lhe fizera um mal ainda maior do que esperava. — Posso ao menos

saber... onde vocês estão me levando?

— Tá com medinho, princeso?

— Você vai pagar pelo grande mal que provocou aos nossos irmãos poyarianos!

Um alvoroço descomunal dominava a Ágora do Princípio. Começou como um

burburinho quase inaudível, insignificante. Um cicio de passarinho teria sido mais

gritante. Até que tomou proporções abissais. Uma verdadeira balbúrdia repentina

e ensurdecedora irradiava nos arredores do palácio real. Gritos e berros

reverberavam do lado de fora, agitando as vidraças do castelo. Uma marcha

constante e poderosa fazia o chão tremer. Derrick, Trawlin e Hallzer ficaram

alarmados. Logo, estavam perambulando pelos corredores, enrolados em suas

roupas de dormir, aflitos, lançando olhares de preocupação para o lado fora. Airis,

Deelya e Betine deslizaram imediatamente para as janelas e colaram os narizes nos

vidros. O movimento exterior era assustador. As filhas de Deelya e Trawlin corriam

de um lado a outro, agitadas, enfurnadas em seus robes de seda, com toucas de

dormir na cabeça, envolvendo os longos cabelos enrolados.

Mastenion exteriorizava uma preocupação sem precedentes.

O que estava acontecendo? Um levante contra o rei? Um ataque surpresa?

A expressão acabrunhada se refletia sobre o espelho do quarto. Andando sem

rumo certo, ainda de pijamas, lançava olhares angustiados pelas janelas. Seguiu seu

instinto e saiu à procura do rei. Conhecia o protocolo de proteção real, mas insistia

em garantir a segurança de seu velho amigo. Airis fez menção de abordá-lo, mas a

ansiedade aflorando à pele a fez voltar atrás e deixou o marido sair do quarto.

Loubor carregava uma tocha pelo corredor adjacente. Atarantado, observava o

movimento exterior. Os dois se entreolharam numa fração de segundos quando se

encontraram. Tiveram a mesma ideia, aparentemente. Mas a expressão prolixa e os

passos pressurosos de Mastenion deixavam claro que ele estava tomando uma

atitude imediata. A tensão o impeliu a correr para as densas trevas do terceiro andar

e rumar para o hall de entrada do castelo. A intuição berrava em seus ouvidos que

Saldivar não estaria em seu dormitório.

Avançou pelas escadarias, descendo de dois em dois degraus, diminuindo a

distância entre ele e a entrada do palácio. A poucos metros do salão, deu de cara

com Callan. Desperto e armado com uma pequena lâmina, a expressão do general

era igualmente alarmante. Os poucos fios ruivos de sua cabeça estavam

desarrumados e a julgar pelo estado de sua camisa mal abotoada e amarrotada, devia

ter pulado da cama com o susto e colocado qualquer roupa que viu pela frente.

Ambos se entreolharam por um breve momento e assentiram. Como se tivessem

lido o pensamento um do outro, seguiram para o primeiro andar o mais rápido que

315


conseguiram. O objetivo era o mesmo. Precisavam garantir a proteção de Saldivar

de um possível ataque iminente.

Estacaram assim que atingiram o hall de entrada.

Empertigado e taciturno, Saldivar estava lá; a serenidade costumeira desaparecera

de sua face. Usava ainda seu pijama de seda azul. Os cabelos grisalhos estavam

bagunçados, como de alguém que foi arrancado da cama de repente. Soberba, a

lendária espada candoriana, estava firme em sua mão esquerda. Sóbrio, ainda que

tenso, posicionava-se em frente aos portões altos da entrada do palácio, pronto

para travar uma verdadeira guerra. Dois guardas rumavam para remover as travas

de cada lado dos portais, tremendo de medo.

Mastenion e Callan se entreolharam outra vez. Caminharam até ficarem lado a

lado com o rei. Mastenion à esquerda. Callan à direita. Não ousaram dizer nada.

Estariam ali pelo rei, em nome de sua lealdade, para o que desse e viesse. E, se essa

era sua vontade, assumiriam quaisquer que fossem as consequências.

A brisa cálida da madrugada agitou as vestes dos três homens quando as portas

se escancararam. O vozerio alvoroçado invadiu o grande hall, como o som

tonitruante de uma manada de animais selvagens e furiosos. Gritavam histéricos da

Ágora do Princípio. Na escuridão dominante do alto da madrugada, a multidão em

frenesi se apresentava em uma monstruosa aglomeração como meras figuras e

silhuetas sombrias e indistinguíveis. Era impossível afirmar quem eram ou mesmo

o que gritavam. Os berros eram confusos, dissonantes. Milhares de vozes bradavam

ao mesmo tempo. Saldivar, Callan e Mastenion, mergulhados em um silêncio

mortificante, acompanhados dos guardas, avançaram em direção ao foco da

agitação, acompanhando com os olhares cautelosos, qualquer movimentação fora

do comum ao redor.

— Lorde Saldivar! Eu o cumprimento por seus cabelos brancos e sua vasta

experiência, mas meu povo me impeliu a estar aqui.

Saldivar hesitou. As muitas rugas de sua testa se contorceram de um jeito peculiar;

conhecia aquela voz enérgica e poderosa que bradava das sombras da multidão.

— Lorde Brenrar? — sussurrou Mastenion, confuso, o nome que perambulava

na memória do rei.

— Perdoe-me por este alvoroço inoportuno no meio da noite e por perturbar a

paz de seu sono — sussurrou a voz vigorosa, tentando se fazer ouvir em meio aos

alaridos ensurdecedores. Outras vozes distintas tentavam pedir às multidões que

fizessem silêncio. — Mas meu povo, Lorde Saldivar, clama por um sangue inocente,

derramado há muitos hectares daqui, nos campos de Baetrafid.

Os gritos tornaram-se histéricos novamente. A multidão se ouriçou ainda mais

com as palavras de seu rei. O povo poyariano bradava a plenos pulmões e Callan

conseguiu distinguir um ou outro berro de “assassino” e “justiça” entre os alaridos

ensandecidos. Mastenion puxou uma pequena adaga da cintura, alarmado.

316


Uma labareda esmeralda e cintilante coruscou nos ares. Invadiu os céus como um

furacão abissal e flamejante que se origina do nada. A escuridão da noite

desapareceu para dar lugar a um brilho verdejante e intenso como o de uma aurora

boreal, iluminando as ruas da capital. Os gritos da multidão cessaram assim que a

chama elemental serpeou por sobre as cabeças de todos os presentes na praça,

ribombando nos ouvidos de cada um como o fogo ardente a crepitar sobre lenha

cortada. Uma voz potente, mas cansada, retumbou de supetão.

— CHEGA!

Cruzando a praça de forma agressiva, Saldivar sustentava a chama esmeralda que

irradiava sobre todos. Furioso e contumaz, cortou por entre as estátuas dos antigos

reis de Candorn até atingir o centro da ágora. Os olhos semicerrados miravam o

rosto redondo e de cavanhaque negro e bem aparado de Lorde Brenrar. A coragem

parecia tê-lo abandonado de repente. Encarava o rei guardião com cautela. Uma

leve ponta de temor ocupou seus olhos vacilantes. Mastenion e Callan seguiram no

encalço. O general empunhava firme uma machadinha na mão direta e sua

costumeira adaga na mão esquerda.

Antes que alcançasse o rei de Poyares, Saldivar se deteve no meio do caminho. A

luz incandescente que alumiava a todos então revelou outros rostos conhecidos.

Lorde Grenbolth se postava, no topo de seu cavalo negro, encarando-o com

profunda reprovação. Ao seu lado, o mirrado Lorde Hagar-Evon, de Anvor-Elíada,

também o observava. Lady Yisi, em uma longa capa escarlate, estava impassível,

sustentando o mesmo olhar inquisidor de Lorde Danrel, de Turvoreio, que

meneava a cabeça para o rei de Candorn. Identificou Lorde Teonar um pouco mais

atrás, igualmente desgostoso e, ao seu lado, o velho Lorde Nolstain fazia um

muxoxo, como se descontente de estar ali.

— Mas o que é isso aqui? — crocitou Saldivar, espantado, observando com

atenção os rostos de seus amigos monarcas. — Vieram, por acaso, me destronar?

— Não, Lorde Saldivar. — Lady Yisi avançou. Os cabelos negros e curtos

balançaram quando ela tirou o capuz felpudo da cabeça. O rosto redondo e coberto

de sardas não demonstrava a fraqueza que enxergou na expressão de Brenrar. —

Temos um profundo respeito por sua figura ao longo de tantos ciclos, devotando

sua vida a nos socorrer em momentos tão adversos.

— Então, por que estão aqui?

Lorde Danrel avançou até ficar frente a frente com Saldivar. A trança negra,

coberta de pequenos amuletos e outras miçangas, pendendo em seu ombro direito,

cintilava à luz verde-esmeralda.

— Viemos clamar por justiça!

— JUSTIÇA!

— JUSTIÇA!

— JUSTIÇA!

317


Aos berros do povo por justiça, gritando eufóricos mais uma vez, um cavalo

malhado veio trotando pelo meio da multidão. Parou a poucos metros de Saldivar

que não tirava os olhos da cena. Um soldado parrudo desceu do alto da sela. Mal

cabia dentro da armadura de bronze e que trazia a Serpente Astuta de Poyares em

destaque sobre o peitoral. Desengonçado, puxou as calças frouxas para evitar que

caíssem e tirou da parte traseira de sua montaria o que parecia ser um pacote, um

fardo pesado de algodão. Saldivar demorou um tempo para perceber tratar-se de

alguém enrolado em um lençol velho e maltrapilho.

— Meu exército foi dizimado pelos bárbaros nos campos de Baetrafid em uma

batalha que jamais deveria ter acontecido. — Lorde Brenrar achegou-se para perto

de Saldivar. Callan e Mastenion deram um passo à frente, sempre alertas. — Uma

guerra estúpida que ceifou a vida de centenas de homens honrados cuja única

missão era intimidar, na intenção de conter o avanço dos intrusos em nossas terras.

Intimidar, apenas. Estar presente nos campos para mostrar que pelotões reais

faziam rondas por ali. Pequenos batalhões em que a grande maioria eram jovens

inexperientes. A intenção sempre foi mostrar que as terras possuíam um dono.

— Como eu orientei — inferiu Saldivar.

— Mas alguém resolveu tocar o chifre. Um dito cujo decidiu que poderia

enfrentar os exércitos bárbaros, com os poucos guerreiros que lá estavam. Um ser

mesquinho e petulante descumpriu a única merda que eu disse para não fazer, que

era envolver-se em um embate direto com os malditos intrusos que assolam nossas

terras.

Lorde Brenrar parecia fora de si. Cuspia as palavras, de olhos arregalados,

vociferando com profundo ódio no coração.

— Eu levei duas semanas, Saldivar. Duas malditas semanas, recolhendo corpos

desmantelados, em um campo banhado de sangue. Disputando espaço com corvos

e abutres, montava um quebra-cabeças de braços, pernas e cabeças decepadas, até

identificar, entre os poucos que sobreviveram, quem foi o imbecil que decidiu tocar

o corno e partir para o embate sangrento. Qual não foi a minha surpresa em

descobrir quem era o verdadeiro culpado.

O rei de Poyares deu um passo para trás. O soldado que acabara de descer de sua

montaria afrouxou as cordas do homem envolto em lençóis e o largou aos pés de

Saldivar. Os olhos do rei de Candorn se arregalaram de imediato quando

reconheceu quem era o homem prostrado aos seus pés.

— Vegor!

— Seu filho, Saldivar, incendiou o coração das tropas ao soprar o chifre e dar

início ao banho de sangue de Baetrafid!

A multidão inflamou-se novamente. Gritavam outra vez por justiça, bradando

que o filho do rei era um assassino. Uma satisfação notória ocupava a expressão

dos demais reis ao redor. A felicidade era nítida em expor ao antigo Guardião a

318


irresponsabilidade de seu herdeiro, que provocou a morte de centenas de soldados.

Esperavam do soberano de Candorn uma reação imediata. Uma decisão que fizesse

justiça às mortes provocadas por seu filho. Ainda que não expresso em palavras,

ansiavam por uma condenação severa que fosse agradável a todos.

Ao lado de Mastenion e quase quebrando os dedos cerrados sobre o cabo de

madeira da machadinha e da pequena lâmina, Callan estava tão estupefato quanto

Saldivar ao contemplar os olhos do próprio filho, ajoelhado e humilhado, no chão.

A ideia de colocar Vegor e Rudi à prova, comandando batalhões do reino amigo,

partira dele e de Mastenion. Não passava de um simples teste. Uma avaliação de

liderança ante a indecisão que pairava no ar. Jamais passou por sua cabeça que uma

simples prova desencadearia uma verdadeira carnificina. Uma ponta de

arrependimento brotava em seu coração por ter sugerido o desafio e muito mais

por colocar Saldivar em xeque, na presença dos demais reis.

— O que está acontecendo?

Rudi se aproximou de Callan, confuso. O general o abraçou e o segurou pelo

ombro. Fez um breve sinal para que fizesse silêncio e não se metesse.

— Fique aqui e confie na sabedoria de seu pai. Não há nada que possamos fazer.

Os berros eram cada vez mais causticantes. Brenrar e os outros soberanos ainda

aguardavam. Ajoelhando, Saldivar encarou o filho face a face. Lágrimas escorriam

dos olhos vermelhos de Vegor. Ele tentava de todas as formas esconder a nudez

com os lençóis, imundos com lama e bosta de cavalo. O medo era evidente em seu

rosto.

— Você tocou aquele chifre? — questionou Saldivar, movido por uma íntima

compaixão.

Vegor nada disse, apenas balançou a cabeça confirmando.

— Que essa culpa recaia sobre mim! — bradou Saldivar, pondo-se de pé

novamente. Soberba caiu sobre o chão, ao lado de Vegor. O rei de Candorn abriu

os braços. Estava vulnerável de propósito, completamente à mercê da vontade dos

demais reis e do povo poyariano. — Se clamam por sangue, se clamam por justiça

e desejam um sacrifício em favor das vidas inocentes ceifadas em Baetrafid, estou

pronto. Entrego-me no lugar do meu filho para que satisfaçam seu desejo de justiça.

As multidões se alvoroçaram como nunca. Explodiram em uma algazarra

generalizada na iminência de avançarem para trucidar Saldivar em plena praça

pública. Callan, Mastenion e Rudi, bem como os demais Drunírio, Campwell e

Wullith que deixaram o palácio para se concentrar na ágora, se movimentaram para

acudir o rei. Mas foi Lorde Nolstain quem interveio, seguido por Lady Yisi.

— Basta! Não queremos o sangue de um homem inocente, nem mesmo por

substituição, para saciar nosso desejo de vingança.

— Não podemos aceitar esta troca — falou Lady Yisi. — Não é esta condenação

que queremos.

319


— Sofremos nos últimos ciclos com a invasão de nossas terras pelos bárbaros.

— Lorde Danrel aproximou-se de Saldivar, ficando entre ele e o povo que avançou

em sua direção. — É inegável sua luta indômita, Lorde Saldivar. Que tipo de nobres

seríamos se vertêssemos seu sangue? Se o matássemos para massagear nossos egos?

— Mas não podemos sair daqui sem uma condenação para o verdadeiro culpado!

— exclamou Lorde Brenrar, aproximando-se de Saldivar.

Lorde Danrel, Teonar e Hagar-Evon se achegaram, deixando suas montarias.

Lady Yisi e Lorde Nolstain vieram no encalço.

— O que imagina que farei, Lorde Brenrar? — inquiriu Saldivar, no pequeno

círculo fechado formado pelos oito reis de Elstoen. — Você trouxe seu povo aqui

para clamar a morte de meu filho.

— Eu quero a cabeça de Vegor! — Brenrar destilou sua sentença, sem titubear.

— Só por cima do meu cadáver! — vociferou Saldivar.

— Milordes, nenhuma violência resolverá esta intempérie — inferiu Lorde

Hagar-Evon.

— Nada do que decidirmos aqui será aceito pelo povo. Eles querem um nome.

Querem alguém a quem possam esfolar vivos — falou Saldivar. — Vamos ao

castelo. Conversaremos no Salão de Reuniões, às portas fechadas e decidiremos

esta questão.

O clima de tensão perdurava no interior do grande salão. Saldivar e os reis de

Poyares, Turvoreio, Mondrária, Anvor-Elíada, Legur, Nogaza e Sincar adentraram

o recinto com os ânimos aflorados, arrastando consigo um resignado e emudecido

Vegor, enrolado então em um longo capão vermelho, arrumado às pressas, para

esconder sua nudez. O alarido do povo não silenciava um segundo sequer do lado

de fora. A gritaria persistia, cada vez mais retumbante e eufórica, invadindo as

janelas altas do palácio, pressionando os oito reis a tomar uma atitude quanto aos

seus anseios em relação ao grande culpado de trazer a desgraça que se abateu sobre

Elstoen. No ante salão, os Wullith, Campwell e Drunírio aguardavam, ansiosos e

atoleimados.

— Há muitos ciclos nós sofremos com a assolação dos bárbaros, Saldivar —

desabafava Danrel, encarando o rei de Candorn. — Você ajudou-nos muito no

passado, isto é inegável. Devemos nossas vidas a você e quem pensa diferente, é

mentiroso e ingrato. Mas você está velho, cansado e os selvagens do Sul aproveitam

da inércia dos guardiões e de nossa impotência ante à política do Conselho, para

avançar sobre minhas terras e sobre os territórios de Poyares. Não dá para

continuar assim.

— Trazer o povo poyariano até o cerne do meu reino para exigir vingança por

um erro do meu filho não resolverá nada! — vociferou Saldivar, mirando os rostos

de Danrel e Brenrar com uma cólera incontida. — Pretendem criar uma crise em

320


Elstoen? Porque se vossas intenções eram colocar-me em xeque e me envergonhar

na frente de minha família e de meu povo, vocês lograram êxito.

Lorde Brenrar lançou a capa sobre uma cadeira. A passos largos, cruzou o salão

e aproximou-se de Saldivar. Com o indicador em riste e consumido por um ódio

letal, pressionava o peito do rei com ousadia e petulância.

— Um quarto dos meus territórios está sob o domínio dos bárbaros que aportam

no extremo-Sul. Eles invadem terras, saqueiam vilarejos, estupram nossas filhas e

matam nossos filhos sem o menor pudor. Nossas forjas trabalham dia e noite, mas

já não há guerreiros para vestir as armaduras e empunhar as espadas. E o

inconsequente e irresponsável do seu filho não consegue liderar um maldito pelotão

para patrulhar os campos e evitar as investidas de uma horda de selvagens. O que

você chama de vingança, eu chamo de justiça. Somente quando eu sentir o sangue

quente das veias de Vegor sobre minhas mãos é que terei paz.

Saldivar permanecia impassível.

À frente do filho, que continuava prostrado sobre o chão e de cabeça baixa, o rei

ouvia cada palavra com o mesmo ar desafiador de Lorde Brenrar. O queixo duro

sustentava uma feição carrancuda; a nímia expressão abatida e de poucos amigos se

desenhava por trás da barba grisalha e desgrenhada. Optava pelo silêncio, obrigado

a ouvir tais palavras e engoli-las à seco.

— Então você nunca terá paz — sibilou Saldivar, taciturno.

— Senhores, por favor... — Lady Yisi se postou entre os dois reis — Não somos

animais e tampouco os selvagens que tanto combatemos.

— A grande questão é que precisamos fazer algo a respeito. — A calvície

dominante de Lorde Nolstain coruscou à luz dos archotes quando ele se levantou.

— Necessitamos de um novo Guardião que combata os invasores e os expulse de

nossos territórios.

— Com menos política e mais força! — exclamou Lorde Teonar. A juba ruiva e

revolta como a de um leão estava contida em um grande rabo de cavalo mal

arrumado.

Lorde Grenbolth e Lorde Hagar-Evon balançaram a cabeça, concordando.

— E este Guardião, Saldivar, não pode ser seu primogênito — se pronunciou

Lorde Danrel, aproximando-se de Lady Yisi, Brenrar e Saldivar.

À sombra do pai, Vegor ergueu a cabeça. As palavras do rei de Turvoreio

aguçaram seus ouvidos. Acertaram seu peito como uma faca afiada que atinge em

cheio o coração. Atônito, levantou-se. O desespero era patente em sua face. Ainda

que estivesse completamente pelado por baixo da capa escarlate que o cobria e que

tanto puxava para evitar expor sua nudez, encarou cada um dos oito soberanos de

Elstoen com uma agonia perturbadora no olhar.

— Não. Por favor, não. — Vegor ouviu a própria voz, vacilante e embargada,

ecoar sobre o salão. Os olhares ao redor se voltaram para ele de imediato. —

321


Cometi um grande erro. Imperdoável, inconsequente e irresponsável, como os

senhores mesmo disseram e repetiram. Mas vocês não podem fazer isto comigo.

Sou capaz de me tornar o Protetor de Elstoen. Sou capaz de defendê-los desses

bárbaros.

Gargalhadas sarcásticas interromperam sua súplica. Observou, aturdido, os

rostos de Lorde Danrel, Teonar e Hagar-Evon em suas feições de ironia. Lady Yisi

balançava a cabeça com uma notória repulsa. Lorde Nolstain meneava a cabeça,

como se estivesse com pena dele. Lorde Brenrar emanava indiferença. Uma fúria

implacável estampava sua face.

— Você não é capaz nem mesmo de se vestir adequadamente, moleque —

crocitou Lorde Hagar-Evon, acintoso.

Atarantado, Vegor correu para encarar o pai. Esperava enxergar em seu rosto

uma expressão de compaixão e de misericórdia por sua súplica aflitiva e pelo estado

deplorável em que se encontrava. O que viu foi um esgar exausto e apático, livre

de sentimentos, externando uma vergonha ímpar por trás das grandes rugas que

marcavam sua face.

— Pai, — suplicava Vegor. Lágrimas escorriam de seus olhos de forma

involuntária. Lutava contra as emoções para não deixar transparecer o tamanho de

seu desespero — o senhor não pode ir contra a tradição. Eu exijo que você diga

isso a eles. Nossas leis são determinantes. O filho mais velho assume o manto de

Guardião e...

Um estalo agudo reverberou pelos quatro cantos do salão fechado. As risadinhas

maliciosas que persistiam cessaram imediatamente. Os olhos dos sete reis,

arregalados e apalermados, se fixaram em um único ponto. A palma da mão cortou

os ares com fúria. Dedos se estatelaram sobre a face direita, marcando-o de forma

violenta. O golpe impetuoso do próprio pai fez Vegor rodopiar sobre os

calcanhares e cair de borco no chão.

— Não venha citar para mim as leis de nossa nação! Não está em posição de

exigir nada. Você envergonha nosso reino, envergonha nossa dinastia, envergonha

o nome dos Wullith e dos demais clãs. Durante vários ciclos, você negligenciou seu

chamado de primogênito. Não pense que foge ao meu conhecimento que você

rouba de nosso tesouro pessoal para gastar em bordéis nos confins da cidade. Era

para você ter se preparado, Vegor. Era para você assumir este posto. Mas tudo o

que você fez foi gastar nosso ouro com prostitutas, bebidas, farras e sabe-se lá mais

o quê. Vidas inocentes morreram por sua total irresponsabilidade. Se para proteger

nosso continente, preciso quebrar uma mera tradição hierárquica, estou pronto a

fazê-lo sem titubear.

— Exigimos que Rudi seja o indicado... — inferiu Lorde Danrel, pressuroso,

ainda embasbacado.

322


— Sim — acrescentou Lorde Brenrar. — Foi por causa dele que não perdemos

mais homens. Ele conteve o avanço dos bárbaros usando sua poderosa magia.

— Rudi provou seu próprio valor até mesmo em seu retorno, Saldivar — falou

Lady Yisi, concordando com os demais. — Obliterou aquele troll como se fosse

uma simples barata.

— Ainda que isto não minimize a culpa de seu filho mais velho e que ele deva

pagar de alguma forma pelo que fez, desejamos que Rudi seja o próximo Guardião.

— Sim. Queremos Rudi como Guardião.

Saldivar balançava a cabeça, acuado pelos desejos dos outros soberanos ao seu

redor.

O discurso dos reis se assomou sobre Vegor. Como uma espada afiada, terminava

de dilacerar seu peito e rasgar seu coração, sua esperança e seus sonhos. Inflamado

por suas exigências, o primogênito do rei observava o próprio pai assentir em

concordância com os demais. Consumido por um furor inexorável que emanava de

seu interior, esqueceu-se da dor lancinante e da vergonha do tapa que marcava sua

bochecha e colocou-se de pé outra vez.

— NÃO! — berrou Vegor e todos emudeceram com seus brados ensandecidos

— EU SOU O ÚNICO HERDEIRO DIGNO DESTA POSIÇÃO. EU DEVO

SER O GUARDIÃO. RUDI NÃO MERECE ESTA INDICAÇÃO!

Os gritos reverberaram pelas paredes. O silêncio imperou repentino. Uma súbita

rajada de vento agitou as pesadas cortinas do salão. Lorde Brenrar e Lorde Danrel

ficaram atônitos; desembainharam suas espadas, de chofre. Lady Yisi puxou um

escudo que deixara repousando sobre a mesa e ficou em alerta. Os olhos que o

encaravam estavam dominados de temor. Saldivar fitou o filho, sobressaltado.

Recuou para longe, achegando-se para onde Brenrar e Danrel empunhavam suas

armas. Os dedos de Vegor apertavam algo frio e rígido. Os braços retesados se

esticavam para frente. Sem se dar conta, as mãos se apropriaram de Soberba. Ao

seu redor, uma ventania elemental assoprava pelo perímetro como um furacão em

formação.

— VEGOR! JÁ BASTA! — berrou Saldivar, obliterando as ondas de ar que

sacudiam as paredes e a mobília, lançando Vegor contra as portas de entrada.

Acossado, Vegor agarrou-se à espada. Sob os gritos e protestos dos outros reis e

de seu pai, rodou a maçaneta e abriu os portões de madeira. Na penumbra do ante

salão, o rosto lívido de Rudi foi a primeira coisa que seus olhos focaram. Erguendo

Soberba e cego de raiva, Vegor avançou sobre o irmão mais novo, como uma

serpente prestes a dar o bote.

Uma pancada certeira atingiu o filho mais velho de Saldivar no estômago. Puxou

o ar com força. Os pulmões doeram de tentar sorver o oxigênio. Acabrunhado, a

cabeça girou, mas conseguiu reunir forças para erguer-se e confrontar quem o

golpeara. Entre ele e Rudi, Callan o encarava. A mão direita firme no cabo de uma

323


machadinha afiada e a esquerda na pequena faca de estimação, pronto para agir.

Disposto a matar ou morrer se fosse necessário.

— Não me obrigue a tomar uma atitude que eu não queira, Vegor!

Respirou fundo, com dificuldade e aguardou. A dor na boca do estômago ainda

era intensa. Mirou os olhares espantados de Mastenion, Airis, Trawlin, Hallzer,

Derrick, Loubor, Deelya e dos demais guardiões ao redor. A um canto, irrompendo

pela porta do salão, o esgar estarrecido de Saldivar surgiu, ladeado por Lorde

Brenrar e Lorde Danrel e sua expectativa desenfreada sobre no rosto.

— Um dia, todos vocês irão pagar!

Como uma flecha atirada por um exímio arqueiro, Vegor disparou por um

corredor. Carregando consigo a espada lendária de Candorn, sumiu na escuridão

da noite.

324


Capítulo Vinte e Três

Vingança na Floresta

Uma voz trovejou no silêncio mortificante da mata fechada. Emergindo do

pesadelo, Zakkar se pôs de pé num salto, atônito e alarmado. Por puro instinto,

agarrou-se ao caule de um salgueiro próximo e pulou para o topo, apoiando-se em

cima de um galho forte e retorcido. Abraçando os joelhos, desapareceu entre as

folhas altas. Escondido na copa da árvore, percebeu que estava faminto. O desejo

por manter-se vivo e alcançar a maior distância possível da capital fez-no esquecer

completamente de se alimentar. O estômago roncava de fome e as energias iam se

esvaindo a cada segundo. A fraqueza dominava o corpo. Moveu um dos braços e

apoiou-se sobre outro galho. Fez pressão com o pé para não tombar dali ao chão.

A cabeça girou. Achou por um instante que ia desmaiar.

Caminhara sem rumo certo. Embrenhou-se floresta adentro, em meio às árvores

de troncos brutos e raízes pitorescas e à densa mata abrupta e hostil até que a

exaustão o impeliu a tombar aos pés de um velho salgueiro no limiar de uma

pequena clareira e desmaiar de sono e cansaço.

Perdera completamente a noção das horas. Ante o desespero do ataque surpresa

ao palácio, não tivera tempo sequer de chorar. Deslizando por uma corda de lençóis

improvisada, fugiu como um cão covarde para evitar ser assassinado, enquanto sua

família era enfileirada no saguão de entrada e obliterada por uma força militar

sombria e esmagadora. As imagens execráveis da brutalidade que presenciara

estavam muito recentes em sua mente e, toda vez que fechava os olhos, elas

retornavam, vívidas como se tivessem acabado de acontecer, fazendo-o lembrar

que aquilo não era um terrível pesadelo, mas a dura realidade. Era real: o pai

assassinado com uma espada cravada no peito, sua família prostrada prestes a

sucumbir pelas lâminas de guerreiros mascarados, a cidade em chamas, destruída;

homens, mulheres, elfos, anões, duendes, centauros convertidos em pilhas de

corpos de cidadãos miliatenses mortos pelas ruas da capital, cobertas de cinzas que

pairavam sobre os ares cálidos da noite iluminada pelo fogo que ainda ardia em

várias edificações. Uma realidade que esgotava as esperanças de Zakkar.

Acabrunhado, relutava contra o desejo de se derramar em lágrimas.

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A Floresta Demoníaca se apresentava como sempre a viu: abafada, úmida,

coberta por centenas de árvores de aspecto hostil. Lúgubre e angustiante.

Aterradora como em seus piores sonhos. Jamais imaginara que sua vida dependeria,

um dia, daquela que era o maior dos seus medos. As raízes protuberantes e os

galhos retorcidos figuravam como vultos fantasmagóricos ao longo do caminho. O

negrume funesto era intenso e sufocante. As folhagens se emaranhavam de forma

intrincada nas copas das árvores. Era impossível afirmar que horas do dia seriam.

As silhuetas hediondas e difusas da mata provocavam arrepios na espinha.

Correndo pela terra enlameada, no frio dominante que se assomava, Zakkar estacou

várias vezes, o coração dando cambalhotas no peito, acreditando estar diante de

uma criatura das trevas, pronta para devorá-lo ali mesmo, sem que ninguém

soubesse. A cerração era quase palpável. Densa e cinzenta, permeava por cada

centímetro da floresta. Não conseguia nem saber em que ponto de Miliat estava.

Deixara para trás o crepitar das chamas consumindo a cidade e há muito o estralar

do fogo desparecera para dar lugar aos esdrúxulos e indecifráveis ruídos da noite e

a escuridão total. Agarrava-se à esperança de sobreviver embora sua fé fosse

vacilante, mas esquecera que os perigos da Floresta Demoníaca eram tão reais e

iminentes quanto o da emboscada na cidade.

Manter-se vivo era seu único objetivo. Estava sozinho. Exaurido. Desarmado e

fraco. Assolado por uma dor pungente. Uma presa fácil para os destruidores da

dinastia de sua família. O desejo de fugir de seus algozes só não era maior do que

sua sede implacável por vingança. Eliminar os traidores do Trono dos Ayarza era

o que mantinha sua cabeça no lugar para não sucumbir à angústia que se arremetia

contra ele.

Mais uma vez, a voz pujante retumbou. Alerta, Zakkar apurou os ouvidos.

Esforçava-se para não fazer nenhum ruído. Aguçava a vista na esperança de

conseguir enxergar alguma coisa, mas só vislumbrava a névoa cinzenta e opaca. As

retinas doíam. Lacrimejava de um misto de cansaço e curiosidade excessiva que o

fazia arregalar cada vez mais os olhos. Não tinha noção de que horas deviam ser,

mas as nuances cinza-chumbo estavam diferentes. Assumiam, ainda que

timidamente, tons alaranjados que invadiam pouco a pouco a cerração e se

misturavam ao cinza dominante. O sol devia estar raiando em algum lugar no

horizonte, mas sem a força necessária para penetrar as densas folhagens.

Nas variações de ruídos indistintos da floresta, a voz crescia, possante e

exasperada. Era impossível reconhecer de onde vinha. A única coisa de que Zakkar

sabia era que se aproximava do lugar em que estava escondido. Torcia, com todas

as suas forças, que a névoa pesada estivesse escura o suficiente para evitar que quem

quer que estivesse vindo o encontrasse escondido ali, até que fosse capaz de

descobrir se era ou não um inimigo.

326


O timbre intransigente tornou-se plenamente audível ao ponto de Zakkar

conseguir distinguir claramente cada palavra proferida. Outras vozes emergiam

junto à primeira. Gargalhavam, cantarolavam satisfeitos, falavam alto: uma

verdadeira algazarra, emitindo palavras ainda indistinguíveis. Aproximavam-se da

clareira a passos largos e rápidos.

— Já falei para vocês falarem mais baixo. O feitiço do dialeto acabou. Querem

que descubram a gente na floresta? Não esqueçam que ainda não estamos livres. Se

encontrarem a gente, lascou-se tudo.

A voz trovejante falou. Podia sentir sua presença a poucos metros abaixo de onde

Zakkar se escondia. Prendeu a respiração com medo de ser detectado. Apurou

ainda mais os ouvidos para prestar atenção.

— Deixa de ser chato, Giomar. Tu acha que realmente alguém vai vir atrás da

gente nessa floresta? Além do que os ogros que a gente soltou pra cima deles devem

ter matado o que sobrou na capital.

Outra voz apareceu. Esganiçada, passava por baixo do salgueiro sem pressa

alguma. Zakkar arregalava os olhos a cada nova frase. Ogros em Miliat? Havia muito

tempo não se ouvia falar dessas criaturas no continente. Foram exterminados há

eras.

— É verdade. Essas criaturas nojentas serviram bem para suas finalidades.

— Desbarataram os exércitos nas ruas de Miliat como se fossem ratos de porão.

— Deixaram o caminho até o castelo completamente livre!

Gargalhadas ribombaram sobre a clareira. Agarrado aos joelhos, o coração de

Zakkar disparou dentro do peito. Miliat? Os homens que passavam bem debaixo

de seu nariz eram guerreiros inimigos que invadiram Miliat. Esquecendo a fome

inexorável que ardia no fundo de seu estômago, esforçou-se para manter os últimos

fios de vigor para não perder nenhum detalhe do que aqueles homens falavam.

Quem sabe descobriria sobre os traidores de sua família?

— Acho que podemos montar acampamento aqui pra tirar um cochilo, o que

acham?

— Não, de forma alguma. Está amanhecendo e vocês já devem ter ouvido falar

sobres os monstros que habitam essa floresta esquis...

— Cara, a gente lutou a noite toda! Tá todo mundo na merda.

— E pior, enfurnados nessa bosta de uniforme preto e quente que esconde até o

rosto. Tô todo suado. Até minha bunda tá suando.

— E como sua a bunda, não é, Logar?

Novas risadas eclodiram.

— Vai se lascar, Boroni.

Arraigado ao galho do salgueiro, Zakkar se deu conta de que não eram tantos

soldados quanto tinha imaginado. Eram os mesmos timbres de vozes que se

repetiam em uma conversa despretensiosa. A não ser que houvesse algum mudo

327


no meio, não passavam de quatro homens, pelas suas contas. Deviam estar

puxando alguns cavalos também. Ouvira o trotar de ferraduras sobre as raízes

baixas e um relinchar quase imperceptível em meio ao falatório.

— ... Ok, ok. Vamos descansar, então. Mas só um breve cochilo e aí partimos.

Precisamos nos encontrar com outros três pelotões em Namit dentro de vinte dias.

E estamos muito atrasados!

— Deixa de ser exagerado, Giomar.

— Não esquece, Talurd, que nossa missão ainda não acabou. Não vai demorar

muito até que os outros condados saibam do ataque à capital. Lembrem-se que

ainda vamos fazer uma parada em Angabur e nos misturarmos ao povo. Ninguém

pode saber sobre nós e...

— De novo você com essa história? A gente está muito longe da capital. Matamos

quem tínhamos que matar. Pegamos o exército deles de surpresa e nossos pelotões

se dispersaram por inúmeras saídas distintas, como mandava o plano. Só os

condenados ficaram para trás para morrer. Mesmo que alguém tivesse conseguido

fugir do palácio e avisar sobre a emboscada, nenhuma tropa dos outros condados

ou de Neergúria, Pernítrulis ou Corínio chegaria a tempo de nos deter.

— Ou sequer nos encontrar.

— Exato! Foi tudo muito rápido e bem executado.

— Seguindo pela floresta agora, não tem erro.

— E quando vamos receber o restante do nosso pagamento?

— O restante estará em Pedra Negra.

— Em Pedra Negra? Naquele buraco entre Neergúria e Sombroceano?

— E tem outra Pedra Negra por acaso, imbecil?

— Mas não tinha um lugar mais isolado e podre do que lá, não?

— O que isso importa? O importante é que seremos bem pagos. Um emissário

estará nos esperando lá. De Namit até Pedra Negra é uma viagem de dois dias de

navio.

— Vocês não acham muito estranho sermos pagos em Neergúria?

— E o que isso importa, Logar? É ouro. Dinheiro. Muito dinheiro.

Pedra Negra? Zakkar arrazoava, confuso. Pedra Negra era um dos condados mais

inóspitos e esquecidos de Neergúria. Escondida em um profundo vale, vivia do

comércio de caranguejos de seus imensos manguezais. Abrigava também um reduto

de leprosos que eram enxotados das grandes cidades do reino. Mas por que

Neergúria estaria envolvida nessa chacina? Rei Belbert sempre fora um grande

amigo e admirador de Golmir, seu tio-avô, e as tensões que um dia existiram entre

Miliat e Neergúria eram um mero evento histórico irrisório que ficara no passado.

Nada fazia sentido. Será que Belbert havia mudado de lado? Mas o que motivaria

isto?

— Mas, diz aí, quem vocês acham que é o nosso contratante?

328


— Cara, esquece esse troço...

— Lógico que não. Eu quero descobrir quem é tão rico a ponto de gastar

toneladas infindáveis de ouro com uma legião monstruosa de assassinos

condenados. E o que tem de tão ameaçador em Miliat para alguém querer a família

real morta?

— Já falei pra esquecer essa merda, Boroni.

— Ouvi boatos...

O silêncio de uma curiosidade crescente instaurou-se de súbito e se arrastou por

breves segundos enquanto todos aguardavam que boatos eram esses. Assim como

Zakkar, os homens estavam na expectativa das revelações que viriam a seguir.

— Boatos, é? Conta aí.

— Conta, conta, conta.

— Ouvi um burburinho de alguns soldados... disseram que escutaram uns

comandantes dizendo que o fiador dessa chacina é o Conselho...

— O Conselho? Qual Conselho?

— Qual Conselho seria, idiota? Quantos Conselhos teriam ouro suficiente pra

uma coisa dessa? O Conselho dos Guardiões, obviamente!

— Fala sério, gente. O Conselho dos Guardiões existe para nos proteger e para...

— Cala boca, Giomar. Deixa o Talurd terminar a história.

— Disseram que há ciclos o Conselho estava insatisfeito com o rei de Miliat. Que

o estopim para essa decisão foi querer nomear seu filho impuro para o alto escalão.

Justo no Ano da ‘Ebeligilidade’.

— Elegibilidade.

— Isso aí, Giomar.

— Dizem que é o evento mais importante de eras, um marco histórico e não sei

o que mais e que o Conselho não aceitava a decisão do rei.

— Eu não duvido de nada. O Conselho dita as regras em Eirin, meus camaradas.

— O Conselho é brabo, parceiro.

— Fora que possui um poder ilimitado pra fazer o que bem entenderem. Não me

surpreende que eles decidam quais reinos devem ou não existir. Quem sobe e quem

manda no poder...

— O Conselho só faz o que ele quer...

— É verdade. O Conselho junto com aqueles elfos bizarros daquela ilha-não-seidas-quantas,

daquela seita bestial bizarra.

— Os Sacramentadores, Logar.

— Tá sabendo legal, hein, Giomar? Isso aí, mesmo. Eles mandam no mundo.

Fazem o que bem entendem.

— Sim. Quem nunca ouviu falar do extermínio dos drakoblards?

— Mas isso aí é mito, né, Boroni? Uma viagem sem pé nem cabeça,

convenhamos...

329


— Parem de falar tanta merda. Vocês pediram pra parar aqui pra cochilar e tudo

que vejo é vocês defecando pela boca, falando mal do Conselho. O que importa é

que estamos sendo muito bem pagos e em Pedra Negra vamos ficar milionários e

desaparecer. Lembrem-se que ninguém pode saber sobre nenhum de nós. Agora,

durmam, cambada. Logo, logo teremos de partir.

— Fala aí, Giomar. Tu ainda não disse qual crime tu cometeu pra parar aqui e

nem de onde tu veio.

— Vá dormir. E nada de roncar. Detesto gente que ronca.

Os roncos retumbavam pela clareira e se uniam aos ruídos obscuros dos grilos,

cigarras e outras aberrações soturnas escondidas na mata fechada. Invadiam a

mente perturbada de Zakkar, afetada pelas informações intensas que fora obrigado

a absorver. Processava o que ouvira da boca dos guerreiros, extasiado. Esquecera a

fome, embora a fraqueza ainda fosse real e perturbadora. Mas nada era tão atroador

quanto o que ainda ecoava em sua cabeça.

As peças do intrincado quebra-cabeça, de repente se encaixavam.

O receio de seu pai. A confusão no jantar em Neergúria. Os ânimos alterados e

o ataque dos conselheiros à mesa por seu sangue mestiço. Não fora uma reunião

para anunciá-lo como o indicado de Aladar. Isto era o que seu pai queria. Era a

última chance que o Conselho estava dando ao rei para nomear alguém de purosangue.

Alguém que não fosse meio-guardião e meio-alquimestre. Queriam alguém

inteiramente guardião. A petulância de seu pai em insistir pela nomeação do “filho

impuro” assinou sua sentença de morte. Uma sentença brutal e violenta.

Pendurou-se no galho e deslizou pelo tronco áspero do salgueiro. Era tão óbvio.

Como não percebera antes? A mente o forçava a não querer acreditar que era

possível. A insistência de seu pai e o enfrentamento ante aos conselheiros do modo

como os encarou, com a petulância com que os encarou, provocou consequências

terríveis. Aqueles que deveriam lutar pelo bem comum, agiram para obliterar

qualquer um que questionasse suas motivações. A magia, a pureza mágica, estava

acima da vida, incluindo a de guardiões leais há tantas eras, antagonizando as Leis

Primazes. Equilíbrio e harmonia não importavam. O que o Conselho prezava era

o poder. O poder à sua própria maneira. Inquestionável. Inviolável. Sob a pena de

uma morte sangrenta e aterradora.

O ódio crescente fez uma ideia brotar na mente de Zakkar. Descobriria quem era

o mentor da conspiração sangrenta que se arremetera sobre sua família. Sabia que

havia um mandante. Embora boa parte dos conselheiros em Neergúria torcesse os

narizes quando seu pai o anunciou, tinha de haver um líder. Um financiador das

atrocidades cometidas no palácio e que orquestrara essa chacina, pensando nos

detalhes mais sórdidos para que não houvesse testemunhas. Não contavam,

contudo, que o herdeiro do rei sobreviveria. Graças à perspicácia de Selena, estava

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vivo. Roubaria um dos cavalos dos soldados fugitivos, seguiria até Namit e lá

tentaria encontrar um dos generais para obter mais informações sobre o líder da

conspiração no Conselho.

A escuridão se dissipava, mas a cerração ainda era plena. Os raios de sol

penetravam a floresta com dificuldade, lançando insignificantes fachos de luz por

entre as copas das árvores. Isso ajudou Zakkar a enxergar melhor por onde andava

e para onde deveria seguir. Pisando de leve sobre a terra molhada pelo orvalho,

desviando das poças de lama para evitar escorregar, o jovem avançou pela clareira,

caminhando por entre os guerreiros dorminhocos.

Quatro homens estavam estirados no chão, desmaiados de cansaço. Os roncos

ensurdecedores reverberavam nos tímpanos de Zakkar e abafavam os ruídos de sua

passagem no meio deles. Vislumbrando o perímetro da clareira, concluiu que estava

certo sobre a quantidade de guerreiros. Aos pés de um salgueiro-chorão, um

homem gordo, careca e de barba ruiva e volumosa era o que roncava mais alto. Sua

pança excêntrica conseguia ser mais roliça e abissal do que a de seu tio Bernat. A

armadura negra era a mesma que vira ao fugir do palácio. Nenhum detalhe,

nenhuma insígnia. Absolutamente neutra. Próximo a uma aljava com poucas

flechas remanescentes, um homem loiro, magricela e de rosto marcado por

cicatrizes dormia profundamente. Roncava alto, mas ninguém superava o primeiro.

Tombado sobre um escudo e um machado, Zakkar entreviu a barba volumosa e os

cabelos acaju e selvagens de um anão, encolhido sobre um tufo de mato cortado

em uma cama improvisada, desmaiado de sono. Por último, avistou aquele que

provavelmente deveria estar de vigia: um homem esgalgado e de rosto macilento

que dormia profundamente com o queixo apoiado em uma espada. No limiar da

clareira, quatro cavalos, carregados de bolsas, cochilavam tranquilamente.

Era sua deixa.

Atravessou o espaço entre os dorminhocos, com todo cuidado possível. Mesmo

que o ronco dos quatro fosse uma espécie de orquestra mal-arranjada e dissonante,

sobrepondo-se a qualquer barulho na floresta e que nem mesmo uma bomba seria

capaz de acordá-los, Zakkar preferiu ser cauteloso. As preocupações que o

assolavam eram relembrar como deveria acordar um cavalo sem que o animal

relinchasse a ponto de despertar os homens estirados sobre a terra e encontrar

alguma coisa para comer, antes de morrer de inanição.

Aproximou-se de um dos cavalos. Malhado, com dois alforjes perdurados sobre

as costas, Zakkar contemplava da crina brilhosa do animal às patas robustas e sujas

de barro seco. Não lembrava como se acordava um cavalo. Deveria alisar o pescoço

ou dar tapas de leves até que o bicho despertasse? Se puxasse as rédeas, será que

ele se assustaria?

O estômago doeu outra vez. Zakkar prostrou-se, perdendo as forças. A fome

exauria suas energias. Acabrunhado, estava a ponto de desmaiar. Enfiou a mão no

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alforje, no desespero por encher a barriga. Os dedos agarraram algo macio e que

ele reconheceu de imediato. Não estava fresco, mas o cheiro era suave e agridoce.

Devorou o pão de milho em fração de segundos e logo estava metendo a mão para

comer outro e mais outro pão. A cada novo pedaço engolido, o vigor e as energias

cresciam em seu corpo e o desalento da inanição desaparecia.

Esticou o braço para arrebatar mais um pão e, sem se dar conta, agarrou a coxa

do animal. Os olhos do cavalo se arregalaram de espanto. As patas se agitaram e

Zakkar caiu com o susto. O relincho veio em seguida. Alto, estridente, se sobrepôs

até mesmo ao ronco mais alto, do soldado mais obeso entregue ao sono profundo.

Escudos e armaduras se agitaram. Uma espada zuniu pelos ares. O ruído abafado

de uma corda sendo tensionada se ouviu. Um pandemônio se instaurou na clareira

e rapidamente silenciou. Quatro homens encaravam um rapaz de estatura mediana,

sujo e acuado, segurando um pão de milho na mão, à frente de quatro cavalos que

relinchavam e pululavam, agitados, sem sair do lugar, preso por suas rédeas.

— Quem é você? — disparou o mais gordo deles. Era o homem da voz trovejante

que despertou Zakkar de seu sono pela primeira vez.

— Seu pior pesadelo! — pronunciou Zakkar, focando nos olhos do guerreiro

avantajado, revigorado pela massa de pães que devorara.

Uma serpente de água voou pelos ares num movimento furtivo da mão de

Zakkar. Golpeou o soldado mais gordo antes que pudesse brandir sua lança e

enroscou-se em seu pescoço como uma víbora assassina real.

A reação foi imediata. Apalermados com a rapidez de Zakkar, o guerreiro

esgalgado ergueu sua espada. Atravessou a clareira, cambaleando e atrapalhado, na

iminência de acertar o jovem intruso no estômago. Conjurando um escudo de fogo,

a chama elemental derreteu a espada como se ela fosse feita de manteiga. O soldado

magricela vislumbrou, embasbacado, o toco minúsculo que sobrara de sua lâmina

afiada e, no segundo seguinte, Zakkar converteu o escudo mágico em uma poderosa

adaga. Girando a arma na mão com destreza, cravou-a sobre o coração do soldado,

que caiu inerte no chão, jorrando sangue sobre a terra.

O guerreiro loiro e o anão ruivo ficaram atônitos. O anão de aspecto selvagem

agarrou seu escudo e ergueu o machado enquanto o loiro de profundas cicatrizes

disparou dezenas de flechas em sequência com tremenda agilidade. Zakkar

esquivou-se como pôde e agitou os braços e mãos em movimentos circulares.

Rajadas de vento em espiral surgiram. As flechas descreveram uma curva perfeita

no topo das árvores e retornaram, disparadas e em alta velocidade conduzidas pelos

ares elementais. Voltaram-se contra o homem que as disparou, crivando-se sobre o

peito e cabeça, dilacerando seu corpo em variados pontos. O loiro tombou pela

grama com o impacto do golpe, sem vida.

Guardião e anão se encararam. Uma chama pairava sobre a palma da mão de

Zakkar. Atrás do escudo, o anão comprimia os olhos para o jovem, estudando seus

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movimentos, na tentativa de prever quais seriam suas próximas artimanhas. Um

sorrisinho debochado ocupava seus lábios. As mãos minúsculas rodopiavam o cabo

do machado em seu próprio eixo. O guerreiro gorducho continuava vivo, mas não

por muito tempo. Sufocava a um canto, espremido pela cobra elemental que o

enroscava dos pés à cabeça, lutando para não morrer asfixiado.

— Você é bom, moleque.

— Vindo de um anão e da fama que possuem como exímios guerreiros, deveria

considerar isto um elogio? — inquiriu Zakkar, petulante.

— Considere o que você quiser. Eu disse que você é bom, não que é um guerreiro

de verdade. Depende de seus truques mágicos de araque para poder nos derrotar.

Quero ver me ganhar no mano a mano. Vem pra mão e vamos ver quem é o melhor.

Zakkar riu de deboche.

Notou uma espada cravada sobre a terra. Esvaiu a chama que pairava sobre seus

dedos, caminhou até a arma e puxou-a. Limpou a terra incrustada na lâmina na

barra da camisa e segurou-a com as duas mãos.

— Ok. Estou pronto. E você? Será que está?

Moveram-se lentamente pelo perímetro da clareira, sem desviar os olhares um do

outro. O anão não parava de exibir seus dentes amarelados, denotando a satisfação

não contida por estar em uma batalha mano a mano. Sem magias. Sem feitiços. Um

duelo à moda antiga. Abaixo do bigode e barbas volumosos e sujos, a confiança era

notória. Os olhos estavam vidrados na figura de seu adversário: um jovem rapaz

magrelo, de cabelos revoltos e olhos profundos, agarrado a uma espada. Zakkar,

por sua vez, apreciava o suspense dos longos segundos se arrastando, em que se

encaravam, espreitando, estudando o movimento um do outro, mas sem que

avançassem para desferir o primeiro golpe. Cansado de andar em círculos, o jovem

guardião sussurrou para seu adversário:

— Vamos ficar nos encarando ou vamos lutar?

— Está afobado? De fato, você não é um guerreiro... — trovejou o anão, irônico.

— Um verdadeiro guerreiro es...

— Afobado? Jamais, anão. — Zakkar interrompeu-o no mesmo tom de ironia.

— Só não tenho tempo para ficar encarando um velho nanico, barbudo e biruta

para o resto da vida.

— Um verdadeiro guerreiro não se apressa, não se desespera. Ante a um desafio,

sustenta a serenidade e a temperança para discernir o momento correto de desferir

um golpe.

O machado rodou e cortou os ares três vezes. Zakkar esquivou-se com destreza

de todas elas. Recordou-se das aulas de defesa pessoal com lâminas do velho

Soberorn. Ansiava que seus ensinamentos o tivessem ajudado a sobreviver à

emboscada. Era o mais notável espadachim do reino e quiçá do continente; sua

perda seria uma lástima.

333


A gargalhada do anão ecoou em meio à névoa suave e perene.

— Então, você também tem seus truques?

— Você pode se surpreender comigo, anão.

Boroni rosnou para ele como um cachorro com raiva.

— Pare de me chamar de anão, moleque insolente. Sou Boroni Machado

Certeiro. E não tenho esse nome por acaso!

Boroni se assomou para cima do oponente numa série de investidas rápidas e

violentas. Empunhava e descia o machado afiado mirando sempre nos pontos

vitais. Almejava encerrar o duelo com a vitória em suas mãos. Mais ágil e veloz que

o anão, Zakkar conseguiu escapar dos golpes em sequência por muito pouco.

Desviou da lâmina afiada por pura sorte, pelo menos quatro vezes, escapando de

perder a cabeça ou de sofrer um corte letal por um triz em todas elas.

Rodopiou, recuperando o fôlego, usando a espada como apoio para se pôr de pé.

Girando nos calcanhares, Boroni ergueu outra vez o machado. Pressuroso, Zakkar

ergueu a espada e zuniu-a nos ares. A lâmina acertou o escudo de aço e tremeu

como vara verde em ventania violenta. O estrépito agudo e estridente de metal se

chocando irritou os ouvidos de ambos. Erguendo o machado, o anão arremeteu-o

contra Zakkar, que o travou com sua espada com dificuldade. Movido pelo instinto

de sobrevivência, o jovem bicou o joelho de Boroni, que fez um “crec” alto e

estridente. Não foi um ensinamento de Alto Soberorn, aliás, seria algo que ele

criticaria veemente em uma de suas lições. Numa luta honrada, esse seria um golpe

sujo e desonesto. Mas esse não era um duelo de cavalheiros no palácio. Lutava pela

própria vida e sabia que na primeira oportunidade de matá-lo, o anão não hesitaria

em usar métodos nada honestos. O grito de seu oponente reboou pelos ares e ele

caiu de cara no chão, uivando de dor.

— Acho que você me subestimou, seu nanico miserável.

Zakkar fincou a espada na coluna de Boroni, sem misericórdia, até a lâmina

atravessar seu estômago e fincar sobre a terra. O anão vomitou sangue. Gemeu por

alguns instantes, ergueu os olhos para o jovem guardião e, abrindo um sorriso

debochado uma última vez, expirou.

Recuperando o fôlego e arfando ruidosamente, Zakkar desabou sobre um monte

de grama e musgo. Inspirou e expirou duas vezes e mirou o guerreiro sufocado pela

serpente mágica.

— Então, — proferiu o jovem, recompondo-se, ajeitando os cabelos revoltos,

encharcados de suor. Abocanhou um pedaço do pão de milho que teve de jogar a

um canto durante as últimas lutas — Giomar, não é?

Afrouxando o aperto da cobra de água, Zakkar viu o soldado remanescente

tombar ao chão, puxando o ar com força em um desespero descomunal. O monstro

elemental converteu-se em irrisórias gotículas e, assim como surgiu, desapareceu

no ar.

334


— Seu... desgra... desgraçado!

Giomar fez menção de atacá-lo com um punhal. Um breve movimento dos dedos

de Zakkar fez a miúda faca voar a meia altura e se fincar em um galho qualquer.

Ergueu o corpo pesado do último inimigo na clareira com um simples aceno e o

manteve a poucos metros do chão com a força de seu poder.

— Não seja tolo, Giomar. Você viu o que fiz a seus amigos. Nenhum deles está

mais aqui para contar a história. Agora fique quieto e me ouça. Ouvi cada palavra

que disseram desde que chegaram aqui e me despertaram do sono. Sei que vocês

pertenciam ao exército que atacou e assassinou minha família.

Os olhos de Giomar se arregalaram, surpreso.

— Sim, Giomar. Sou Zakkar Ayarza, o herdeiro remanescente do Trono de Jaspe

da Intrépida Miliat.

— Eu, e-eu n-não sei de n-nada.

— MENTIRA! Eu sei que você sabe de algo. Não foi à toa que deixei você por

último, mantendo a serpente de água apertando seu pescoço somente o necessário,

sem matá-lo sufocado. A marca que você carrega abaixo do pescoço entrega quem

você realmente é.

O soldado estremeceu.

— Quando passei por vocês dormindo, eu a vi. Você cometeu o erro de deixar a

marca da traição exposta. Somente alguém letrado e culto possui o sinal de uma

runasmagiam sobre a pele. — Zakkar puxou a camisa para baixo e exibiu um “R” e

um “M” cheio de floreios, limitados em um círculo, marcado em seu peito

esquerdo. — Não arriscaria dizer que você seja um rei ou pertença a alguma alta

nobreza, porque nenhum nobre honrado faria o que vocês fizeram no palácio, mas

posso inferir que você talvez seja um duque, um marquês, um general ou um

proeminente comandante de tropas que selou um pacto, marcando a própria pele

abaixo do pescoço, principalmente pelas marcas recentes desse selo.

Uma gargalhada maquiavélica e desesperada ecoou de repente. Zakkar franziu o

cenho, aguardando. O semblante dominado pelo medo e horror de Giomar deu

lugar a uma expressão carregada de ironia. Os dentes arreganhados em um sorriso

petulante encaravam-no como se estivesse em grande vantagem naquela disputa.

— Você não é tão idiota como me disseram, seu bastardo desprezível. Lorde

Wynsor, Marquês de Caleen-Endrar. Pode me matar, fazer o que quiser comigo,

mas eu jamais trairei meus fiadores. Jamais saberás quem mandou matar sua família.

Zakkar empertigou-se, furioso. Apertou ainda mais a magia que sufocava o

guerreiro. Wynsor estremeceu, sufocando. Debatendo-se e buscando um ponto de

apoio na esperança de poder escapar, o riso debochado era cada vez mais sonoro e

desafiador.

De súbito, cessou.

— Posso fazê-lo mais rico do que seu contratante.

335


O marquês caiu no chão e inspirou o ar com força. Outra vez, riu

descontroladamente: mais alto e mais descarado do que antes.

— Você não tem mais nada, moleque. Que é que podes me oferecer? É um

pobretão órfão que logo, logo será capturado e decapitado. Sequer vai ter um

funeral. Será colocado numa cova rasa e esquecido por todos. Morto feito um cão

assim como seu pai.

Zakkar respirou fundo.

— Acha que meu pai só tinha riquezas no palácio? — Zakkar mantinha o timbre

calmo e sereno. — Condado de Braeagor, Rua Baixa, número dezessete. Palacete

do Tesouro. Cofre quinze, código quatro-zero-zero-nove-vinte-zero-zero.

Encontrará todo ouro que desejar lá, eu prometo e, assim, poderá sumir do mapa

para sempre se você unicamente me disser quem bancou essas tropas.

Wynsor ainda sorria de forma acintosa, quando refletiu por um momento.

— O Conselho dos Guard...

— Que foi o Conselho, eu já sei, imbecil. Até seus soldados suspeitavam. Eu

quero um nome. O líder dessa conspiração!

O marquês respirou fundo. Comprimiu os olhos como se avaliasse se todo ouro

dos Ayarza valeria a pena em troca da informação que estava prestes a revelar.

— Lorde Hamm Louis Zanotchka, sob a autoridade e aval de Salazar Stanhorne.

Demorou alguns segundos para que Zakkar absorvesse o impacto das palavras

do homem diante dele. Zanotchka era o implacável vice-líder do Conselho. O

homem de duras feições que impelira nele, no jantar em Neergúria, um temor

descomunal. Contido e cordato, um guardião de poucas palavras cuja mente

maligna estava por trás do terrível trauma que era obrigado a enfrentar. O homem

que arrebatara suas esperanças de um dia ser o Protetor de Aladar.

— Pois bem, Lorde Wynsor. Que sua morte seja lenta e dolorosa.

O marquês arregalou os olhos, atarantado.

— O quê? Mas eu te disse quem era o mandante. Exijo minha recompensa. Você

me prometeu.

Zakkar sorriu, comendo o último pedaço de pão.

— Eu menti.

Aproximando polegar e indicador, a magia reluziu na penumbra da floresta e a

serpente de água renasceu. Aninhando-se sobre o pescoço de Wynsor, ela se

enroscou com ferocidade, apertando-se contra a traqueia do homem. O marquês

transitou de um tom avermelhado para púrpura em questão de segundos,

debatendo-se sem poder absorver o ar. Zakkar observava a cena com um fascínio

no olhar e um sorriso nos lábios. Na derradeira tentativa desesperada de manter-se

vivo, a cobra elemental apertou ainda mais o golpe. Um estalo se ouviu e a cabeça

de Wynsor pendeu de lado. O corpo caiu no chão, sem vida.

336


Caminhando devagar e observando o cenário ao redor, Zakkar limpou os

resquícios de sangue que restaram em seu rosto suado. Recuperou uma espada do

chão e a guardou em um dos alforges do cavalo malhado. Arrebatou outro pão de

milho, devorando-o com fúria e rapidez. Libertou os demais cavalos e os dispersou

floresta adentro com um tapa em suas ancas. Subiu na última montaria restante e

decidiu seguir sua longa jornada até o porto de Namit.

Os homens mais poderosos do mundo haviam destruído sua família. Jurou em

seu coração que não descansaria até que pudesse pôr as mãos em seus pescoços

para vê-los agonizar até a morte.

337


Capítulo Vinte e Quatro

O Desafio

O sol imperava sobre um céu livre de nuvens, ardendo como uma fornalha. Era

um dia atípico para aquela época do ciclo. A primavera em Eurodian costumava ser

agradável e até trazia dias quentes, com brisas cálidas a assoprar, impelindo os

campos de crisântemos e lírios a desabrocharem. Os triviais girassóis de Mandentur

se abriam e exibiam toda sua exuberância, tornando os passeios de charrete ou a

cavalo pelo condado mais próximo de Cruisand um maravilhoso espetáculo da

natureza. Mas, naquele dia, o clima estava estranho. Parecia uma manhã cristalina

do meio do verão. Os raios solares coruscavam sobre as cabeças, refletindo nas

intensas gotas de suor que se convertiam em cascatas, escorrendo pelas testas,

pescoços e narizes de todos. Castigavam a pele como brasas incandescentes.

Balançando a barra do longo vestido azul-turquesa, Ivyna se esforçava para

conseguir se refrescar em meio ao calorão infernal, mas sem muito sucesso. O suor

descia pelas pernas, por baixo das anáguas rendadas. Odiava ter nascido mulher em

momentos como esse e pelo simples fato de ter que vestir-se do jeito que estava

vestida: infinitas anáguas por baixo de um longo vestido, joias e mais joias pesando

sobre o pescoço; nos pulsos, variadas pulseiras cintilantes e brincos dourados

espalhafatosos pesando em suas orelhas. E ainda tinha a maquiagem. Uma

infinidade de pós de arroz espalhados no rosto contrastando em várias camadas,

rímel e modeladores torturando seus cílios, tinta vermelha nos lábios para dar

“volume”, como dizia sua madrinha Melina. Somado a isto, contava-se as três

terríveis horas arrumando os cabelos, enrolando-os à ferro quente para que

ficassem milimetricamente encaracolados em um penteado mirabolante para exibilos

em público, quase como uma obra de arte, obedecendo religiosamente ao que

mandava a etiqueta real.

Do alto da tribuna mais alta, observava, irritadiça e sem muito interesse, as

multidões ao redor. O povo se espremia, apinhando as arquibancadas da arena da

Academia dos Guardiões, engolfados por um frenesi extasiante. Bandeiras

flamulavam de um lado a outro, dos mais variados tamanhos e cores. A maior parte

delas exibia o grande Grifo Inquietante e as cores de Badorian. Mas umas mais

tímidas balançavam um corcel com duas asas em tons verde e prata e outras,

338


poucas, um leão empertigado e de aspecto hostil em prata e dourado. Tambores

irradiavam pelos ares junto ao som de cornetas estridentes e coros animados de

torcedores mais fanáticos. Fitas multicoloridas perambulavam por todo o perímetro

da arena, agitadas por muitas mãos e sendo balançadas pelo vento. E faixas, muitas

faixas, cada uma maior do que a outra. Exibiam o nome de seu guardião favorito

naquela que seria a maior disputa da arena dos últimos vinte ciclos.

Os torneios na arena eram triviais. O maior e mais badalado evento que ocorria

em Badorian. Movimentava milhares de pessoas dos mais variados lugares, de

dentro e fora do reino, deixando a capital apinhada de turistas e cidadãos dos mais

longínquos condados. Verdadeiras torcidas organizadas eram formadas. Lançavam

sortes em quem seria o favorito para conquistar o torneio daquele ano. Embora o

prêmio nem sempre fosse uma indicação ao posto mais cobiçado de Eirin, as

recompensas eram interessantes: um posto de Almirante, um cargo de Marechal,

uma ou outra vaga de General. Isso motivava não apenas os guardiões de Badorian,

mas os de outras famílias dos demais continentes, principalmente aquelas que

sabiam que jamais seriam indicadas em suas nações de origem. O torneio era

democrático. Dava uma chance para o melhor. Não era à toa que isso atraía

centenas de milhares de turistas, loucos para gastarem todo seu ouro, joias e o que

mais conseguissem investir no melhor lutador. Com isso, as casas de câmbio

ficavam abarrotadas de apostadores, arriscando dinheiro e bens nos guerreiros que

eles acreditavam serem o de maior potencial. Mercadores e vendedores de outras

partes do mundo aportavam em Mistral, Cruisand e Paragon e migravam

imediatamente para Badorian na esperança de aproveitarem a época para venderem

seus produtos e bugigangas. Elfos e duendes artificies esqueciam as desavenças e

se misturavam pelas ruas da capital, comercializando suas obras de arte, fazendo

esculturas de argila e caricaturas nas praças e centros comerciais. Caravanas de

druidas montavam acampamento nos arredores da cidade, ofertando previsões do

futuro por uma pequena quantidade de ouro. Artistas circenses, camelôs de

amuletos, centauros vendendo armas e outros artefatos confeccionados a mão,

cozinheiros de refeições exóticas, ilusionistas e variados tipos excêntricos

apinhavam Belrar.

Contudo, o alvoroço era maior neste ciclo.

O prêmio não era uma pequena fortuna e uma alta patente militar para o

campeão. A recompensa para o vencedor do torneio, depois de vinte ciclos, era a

mais cobiçada de todas: assumir o posto de Protetor de Eurodian. Grande parte do

Conselho dos Guardiões estava presente e se posicionava nas outras tribunas de

honra, pois não se tratava somente de uma Sucessão Honrosa como da última vez.

Pela primeira vez na história, o Ano da Elegibilidade aconteceria. Eurodian sediaria

um acontecimento ainda maior do que o Torneio dos Guardiões de Badorian.

Cruisand, Paragon e Vervaz seriam palco do maior evento de todos os tempos,

339


nunca antes ocorrido, nos próximos meses, quando os cinco Guardiões assumiriam

seus postos ao mesmo tempo, compondo o novo Círculo dos Cinco.

Desistindo de sacudir o vestido, Ivyna agarrou um leque próximo, agitando-o

freneticamente, sentindo a irritação crescer em ritmo acelerado. As gotas de suor

escorriam pelas têmporas, abrindo um sinuoso caminho por sua maquiagem

pesada. Pingavam das sobrancelhas em direção à orla do bojo das vestes. Respirava

fundo para não perder a paciência e sair correndo dali direto para o castelo. Queria

mostrar uma compostura digna de princesa, desafiando sua mãe que parecia

considerá-la ainda uma menininha mimada.

Assentado sobre a maior e mais requintada cadeira bem no meio da tribuna,

Heidlich assistia às lutas sem demonstrar qualquer sentimento ou esboçar reações

mais expressivas. Não parecia nada impressionado com qualquer lutador dos

duelos. Limitava-se a segurar o queixo rígido, alisando a barba loira e bem aparada.

Os olhos azuis concentravam-se no centro da arena, como se estudasse os dois

oponentes se digladiando lá embaixo. Adornado com a mesma capa longa e

vermelha que seu pai usava, ele lembrava uma versão mais jovem e robusta de

Cench. E muito mais burra e desleal.

O ódio, que a consumira dias antes, ressurgia outra vez pelo simples fato de

observá-lo empertigado sobre o trono em seu modo displicente. Traíra sua

confiança. Mas como poderia confiar em um dito cujo que estava ligado a ela pelo

sangue, mas que jamais teve uma atitude verdadeira de irmão? Quando nasceu,

Heidlich havia acabado de subir ao posto mais alto de Eurodian, sendo considerado

um dos mais jovens mágicos a se tornar Guardião. Desde então, vivia distante.

Seguia sua vida, isolado de Badorian e chegava a passar meses sem dar qualquer

notícia e até mesmo algum vestígio de que ainda continuava vivo. Veio descobrir

que tinha um irmão mais velho através das muitas histórias contadas por seu pai,

que sempre narrava seus contos como se o primogênito fosse uma lenda, um herói

lendário e invencível saído de uma das muitas estórias contidas nos livros infantis

que ocupavam a biblioteca do palácio. A mãe falava de Heidlich como quem

comenta de um parente distante. Era notório que Falla detestava o fato de também

não receber notícias do filho, mas quando ele surgia em Badorian, não deixava de

paparicá-lo um segundo sequer. Os momentos em que o via no castelo eram

raríssimos e todos o tratavam como se fosse um deus que desceu de seu plano astral

superior e resolveu visitar os meros mortais de Eirin para contemplar o favor de

sua graça e benevolência. Mas, para Ivyna, ele era um forasteiro de uma terra muito

distante. Perdido, deslocado e externando uma louca vontade de sumir o mais

rápido possível daquele lugar para poder retornar ao refúgio, vivendo entocado o

resto de seus dias, nos ciclos que ainda lhe restavam. Mas aquele homem, um

completo estranho que se assentava sobre o trono e governava uma nação ao qual

não pertencia, fora categórico: ela estava proibida de se inscrever no Torneio e não

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poderia, sob nenhuma hipótese, participar da competição. Conforme as

recomendações da mãe, deveria se concentrar no casamento.

As lembranças daquele dia ainda perturbavam sua mente e era impossível conter

o pranto desesperado sempre que recordava. Treinara a tarde inteira com o irmão

no pátio, convencida por ele de que era tranquilo lutarem em público, até serem

descobertos pela rainha que imediatamente teve um ataque de estresse ao ver sua

adorável filhinha fazendo o que ela sempre proibiu. Após investir contra a mãe,

fora interrompida por Heidlich. Algo em seu rosto lhe dizia que ele brigaria em

favor dela. Que o irmão, então rei, defenderia sua causa e convenceria a mãe de que

a irmã mais nova tinha potencial. Confiou cegamente que ele a salvaria de um

destino que não desejava.

Furiosa e a contragosto, subiu as escadarias em alta velocidade e enfurnou-se

dentro do quarto. Arreganhou as pesadas cortinas e enfiou as caras na janela. Dali,

era possível ver parte do pátio em que estava antes, junto ao irmão. A cerração não

aliviava, estendendo-se para além dos terrenos do castelo, mas graças às tochas que

alumiavam o entorno, conseguira vislumbrar a discussão acalorada em que Heidlich

e Falla estavam metidos. Desejava poder conhecer leitura labial para entender o que

estavam falando, embora da posição em que estava seria muito difícil discernir

sobre o tema do debate. Imaginava estarem falando sobre ela e as proibições sem

sentido da rainha. O ideal seria conhecer alguma magia que a fizesse ouvir de longe.

Ouvira falar algo sobre manipulação do ar para captar sons à distância, mas não

encontrara nenhum livro que a ensinasse a fazer isso na prática. Questionava-se se

haveria de ser uma matéria da Academia dos Guardiões, mas acreditava ser muito

improvável que ensinassem a bisbilhotar os outros usando magia.

Observando a conversa infindável, fitava o estado alterado do irmão, erguendo

os braços e gesticulando com frequência e da mãe, parecendo acabrunhada e

exasperada ao mesmo tempo. Imaginava Heidlich usando todos os seus

argumentos, movendo-se em um grande frenesi, demonstrando para a mãe como

a filha tinha potencial, força e habilidade para ser uma Guardiã, ao passo que Falla

tentava contra argumentar, sem fundamentos, abatendo-se com as palavras do

filho. Devaneando, compenetrada na cena, não notara alguém abrindo a porta e

adentrando seu quarto. Fitando, de esguelha, notou sua prima Laurie deslizar para

o interior do aposento sem fazer barulho. Assomou-se em direção à janela

rapidamente para ver o que tanto ela espionava.

— O que você está fazendo aí? — perguntou a prima, comprimindo os olhos lá

para baixo. Procurava o motivo da curiosidade de Ivyna no véu cinzento de névoa

que cobria tudo.

— Observando — respondera, o menos prolixa possível.

Laurie tinha a fama de ser uma baita fofoqueira. Filha de Lorde Silgard e Lady

Zalvena, era Heinhardt por parte de pai e Lohntrak pelo lado da mãe. Conseguira

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extrair o melhor de uma família e o pior de outra. Herdara a beleza do lado da mãe:

os cabelos castanhos e volumosos, olhos azuis, nariz empinado, rosto angelical e

uma postura exemplar de princesa. Qualquer pai de família adoraria ter uma filha

comportada e bela como ela. Embora não fosse o pior defeito dos Lohntrak, algo

dera errado em Laurie e a bisbilhotice sobressaíra de uma forma exagerada, sendo

tão intrometida como um Moronov. Adorava disseminar fofocas, chegando a

aumentar alguns pontos para tornar a história mais “interessante” quando muitas

das vezes não passavam de irrisórios boatos sem fundamento. Sabia que a prima

não era muito de confiança para segredos — embora sua vontade de se tornar

Guardiã nunca tivesse sido um segredo guardado a sete chaves, mas era dócil e

amava conversar com Ivyna por horas a fio, mesmo que fosse somente para rir dos

momentos engraçados na corte ou falar mal de algum parente chato.

— Tia Falla e o primo estão... discutindo?

— Sim — respondeu Ivyna, aflita.

— Por quê?

— Meu irmão... hã... — Sabia que seria impossível esconder de Laurie quando

Heidlich terminasse de convencer a mãe e então decidiu desembuchar de vez. —

Está tentando convencê-la a me deixar participar do Torneio...

— Sério, prima?

A alegria iluminou o rosto de Laurie. Logo, transformou-se em uma expressão de

dúvida.

— Mas eu não entendo. E seu casamento?

— Que se exploda meu casamento. Eu não quero casar, Laurie. Quero e vou me

tornar a Protetora de Eurodian.

Laurie fez um muxoxo, espantada.

— Sinceramente, prima, você vai me perdoar, mas eu não consigo entender

porque você quer tanto ser Guardiã. Você devia casar. Ouvi dizer entre as babás

que a família do seu pretendente manda em três cidades de Amistelar. Três, Ivyna.

Tudo bem que não são as três principais, mas elas formam um grande ducado do

reino. Você poderia ser uma duquesa poderosa.

Ivyna desviou a atenção da janela e encarou, irritadiça, o olhar sonhador da prima.

— E para quê, Laurie? Qual o propósito disso? Vou me casar com um cara que

eu nem conheço para viver amarrada a um homem que não amo e cujo casamento

foi arranjado pelos meus pais e pelos pais dele desde que eu era uma bebezinha.

Que raio de vida mais sem graça. Se ainda fosse por alguém que eu realmente me

apaixonei, seria diferente...

— E como você espera ser feliz como Guardiã? — inquiriu Laurie, na sua

peculiar expressão de dona da razão. — Você prefere viver isolada, no meio do

nada, enfrentando perigos que você nem sabe se vai conseguir vencer? É isso o que

você quer? Prefere sofrer com frio, ameaças monstruosas, gangues violentas,

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criminosos foragidos, correr riscos? É muito melhor ser uma duquesa bemsucedida

do que viver assim.

— Se houver um propósito no que faço e isso me fizer feliz, é o que quero, sim!

Lançou um olhar curioso para a janela e seus olhos não vislumbraram mais

Heidlich e sua mãe no pátio. O coração acelerou mais do que o habitual e a angústia

para saber no que resultara a conversa que mais parecia uma briga a arrebatou de

imediato porta à fora, deixando a prima falando sozinha, sentada sobre a cama.

Irrompeu pelas escadas em absoluto silêncio, consumida por um desespero

descomunal, descendo os degraus de dois em dois, quase tropeçando nos próprios

pés em três oportunidades. Queria respostas imediatas e que a tranquilizassem. Era

a primeira vez que tinha alguém a encorajando a lutar no Torneio. Estimulando-a

a ser uma Guardiã. O pai nunca foi avesso à ideia, mas não enfrentava a mãe nesse

sentido. Respeitava e acatava as decisões de Falla sem jamais questionar. Isso e o

fato de nunca sequer poder chegar perto da Academia dos Guardiões só contribuía

para deixá-la ainda mais deprimida e revoltada. Graças à prima e sua conversa fiada

sobre casamento, perdera os dois de vista. Corria contra o tempo para poder arguir

o irmão e ter a resposta de que tanto ansiava.

Heidlich cruzava o hall de entrada a passos largos. Havia passado da escadaria

dupla e se dirigia, taciturno e pressuroso, avançando em direção ao salão de jantar.

Notou a expressão dura da mãe, caminhando lentamente no oposto do salão. Os

olhos estavam avermelhados e o rosto inchado. Falla havia se derramado em

lágrimas, mas a encarava com um olhar fulminante da porta de acesso ao pátio.

Ivyna acreditou que era um sinal de resignação frente ao que o filho lhe havia dito.

Heidlich conseguira. Convencera a mãe sobre a decisão. Uma alegria indescritível

invadiu seu peito. Conseguiria afinal viver seu maior sonho. Contudo, o irmão mais

velho não parou para falar com ela. Seguia seu caminho obstinado, sem sequer olhar

para trás. Com um sorriso no rosto, correu até alcançar o irmão e o puxou pelo

braço.

Esperava enxergar em sua expressão o mesmo sentimento de felicidade que

experimentava, porém, o que viu fez sua alegria desaparecer. O esgar do irmão era

soturno. Sério, as mandíbulas estavam rígidas, os olhos encarando-a com o que lhe

pareceu asco. Exalava uma impaciência contida, respirando fundo ao encará-la.

— E então? — perguntou ela, na expectativa de obter a resposta que tanto

desejava.

Heidlich fitou a mãe por um breve momento e seus olhos voltaram, indiferentes,

para a irmã.

— Repensei a minha decisão — respondeu, ríspido. — Obedeça a nossa mãe e

esqueça essa ideia utópica de virar Guardiã. Você não nasceu para isso. Deves focar

em seu matrimônio e deixar as responsabilidades de protetor para quem está se

preparando há tantos ciclos na Academia.

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Desvencilhando-se das mãos da irmã, Heidlich seguiu seu caminho.

— EU TE ODEIO! TE ODEIO!

Sem se dar conta, ouviu a própria voz berrar para o irmão. Via os próprios sonhos

ruindo como castelos de areia invadidos por uma rebentação violenta. Não havia

nada que ela pudesse fazer. Os últimos resquícios de esperança que restavam,

morriam com a indiferença do irmão. Ele sequer reagiu ao seu desespero.

Impassível, seguiu seu caminho como se nada tivesse acontecido e desapareceu,

cerrando as portas do vestíbulo contíguo. Os gritos histéricos atraíram muitas

atenções. Laurie a observava, assustada do topo da escada. As tias Menzira e Alma,

ao lado da prima, arregalavam os olhos para o escândalo provocado pela princesa.

Artie e Lorde Kurkov surgiram, assim que Heidlich sumiu, atarantados. Caindo em

si, pegou-se chorando. As lágrimas corriam por seu rosto sem parar. Rolavam pelas

bochechas, desprendiam-se do queixo e morriam no assoalho. O desalento em

saber que não conseguiria o que tanto almejava provocava soluços altos e terríveis.

A realidade logo golpeava-lhe o âmago como um soco na boca do estômago. Um

golpe que arrebatava suas forças e transformava suas aspirações em desalentos.

— Minha filha, — Falla agarrou a mão dela de repente — isto é o melhor para

você. Não tenha raiva do seu...

— A senhora não sabe de nada — sibilou, meneando a cabeça. — A senhora me

obriga a viver uma vida que não quero e que interessa exclusivamente a você.

Quanto a senhora está ganhando com esse casamento arranjado, hein? Ou o quê?

Fama, prestígio, poder? Eu não quero mais saber da senhora, nem de mais ninguém.

Não quero mais estar no mesmo aposento que você, não quero cruzar contigo pelo

castelo e tampouco olhar na cara do imbecil do meu irmão.

Virando-se, retornou para o quarto e sumiu da presença de todos.

Contrariada e desgostosa, estava ali, na tribuna do Torneio. O sentimento de

traição misturado à fúria que carregava desde aquele fatídico dia era latente e decidiu

que não dirigiria a palavra a mais ninguém, nem mesmo às primas, muito menos à

mãe. Assim, permanecera muda, ainda que surpresa, quando a intimação de

comparecer à Arena dos Guardiões bateu à sua porta. Recebera o convite pelas

mãos do próprio irmão, que não ousou pronunciar uma única palavra. Aceitou o

papel timbrado, encarando Heidlich sem titubear. Com o coração em pedaços,

resolveu que estaria presente e que olharia no fundo dos olhos do futuro Guardião

ou Guardiã de Eurodian e rogaria a ele todas as pragas possíveis por não ser ela em

seu lugar.

Era a primeira vez que saía de seu quarto após da briga no hall de entrada, depois

de semanas. Ninguém no palácio ousou perturbá-la, é claro, exceto Laurie e

Annalis, a quem dispensou por pelo menos quatro ou cinco vezes. Recebia as

refeições à porta de seu aposento como uma presidiária e ficou alienada a qualquer

novidade que acontecia em Badorian, inclusive a de que seu pretendente estaria

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presente no Torneio. A seu lado direito na tribuna, Ivyna lançava olhares rápidos

em sua direção, tentando parecer discreta, torcendo para que ele não notasse o

quanto ela estava curiosa. Era a primeira vez que o via. Ele parecia alto e tinha um

belo porte atlético. Estava muito bem vestido, adornado com um grande sobretudo

azul-marinho que contrastava de uma forma interessante com sua pele negra. Um

broche dourado e prata com a figura de um leão rugindo reluzia em seu peito. Não

era exatamente como tinha imaginado, mas o achou atraente e despojado, no pouco

que se esforçava para ver sem que ele notasse sua intensa curiosidade. Parecia à

vontade, assistindo às lutas com real interesse, sem tentar impressioná-la de alguma

forma, exibindo músculos ou falando frases aleatórias sobre sua virilidade, como

alguns bocós que conheceu e que estudaram na Academia. Definitivamente, ele

estava se divertindo. Mas, no fundo, não conseguia se ver casando com alguém que

mal conhecia, por mais bonito, rico e legal que fosse, somente para cumprir os

caprichos de um acordo de sua mãe. Não era assim que ela queria que as coisas

acontecessem. Se era para casar com alguém, tinha de ser pela paixão, por ter um

sentimento tão profundo e arrebatador que a fizesse desistir de tudo para viver com

aquela pessoa especial. Tinha de haver romance, atração, uma ligação com alguém

que extrapolasse os desejos de um matrimônio perfeito e planejado por seus

familiares.

Uma salva de palmas ensurdecedora irradiou, enlevando a arena de uma forma

surreal. Ivyna despertou dos próprios pensamentos e seguiu a multidão, aplaudindo

de maneira contida, sem saber exatamente o quê. Focou o centro da arena e

percebeu um jovem caído no chão e outro, completamente esgotado e cheio de

marcas no rosto, ainda de pé, com os braços erguidos. Era a última luta. O vencedor

se apresentava para as ondas de espectadores em completo alvoroço. Fogos de

artifício estouraram, iluminando os céus. Tambores, cornetas e buzinas se acirraram

pelas arquibancadas. O público ia à loucura, pulando e gritando de seus lugares.

Identificou o último guardião de pé assim que notou os trejeitos presunçosos: era

o insuportável Aron Lohntrak.

— Grande luta, não?

Ivyna fitou o rosto de seu pretendente pela primeira vez, muito próximo do seu.

Ele a cutucara de um jeito despretensioso para comentar sobre a batalha e, então,

ela se deu conta de como ele era bonito. O rosto era desenhado. Os olhos grandes

transmitiam uma tranquilidade, como se estivesse contemplando o lusco-fusco no

horizonte. O queixo largo possuía um furinho delicado bem no meio e que não

passava despercebido. Mas o que realmente a arrebatou foi seu sorriso. Era

belíssimo, encantador. Na calmaria daquela expressão confiante, Ivyna ficou longos

minutos sentindo-se confusa e abobalhada, como se um magnetismo irresistível a

impedisse de desviar os olhos do rosto arrebatador que a encarava.

— S-sim — pegou-se proferindo, ainda enlevada. — Grande luta...

345


As arquibancadas silenciaram bruscamente e Ivyna só foi reparar porque o esgar

de Ropher, seu pretendente, tornara-se soturno de uma hora para outra.

Imediatamente, o jovem guardião ao seu lado mirou para além de onde ela estava

e focaram-se exatamente na principal cadeira da tribuna. Seguindo seu olhar, ela

observou o próprio irmão de pé. Com o longo capão pendendo dos ombros e a

coroa rutilando no topo da cabeça, o braço estava estendido e a palma da mão

aberta. Ivyna não compreendeu o que estava acontecendo.

— Como soberano da Suntuosa Badorian, eu o felicito, jovem Lohntrak, pela

demonstração de poder que assistimos. Posso afirmar que foi deveras assombrosa

e que, de fato, és um grande guerreiro.

Novas palmas surgiram pelas arquibancadas. O sorriso debochado e altivo de

Aron era visível no centro da arena. Nem todos conseguiam notar a ironia típica

que ele sempre carregava. Somente os mais próximos sabiam o quanto o filho de

Lorde Armie era insuportável, mesquinho e soberbo. Dos competidores do

Torneio, ele era o menos indicado a ascender a esse cargo. Mas Badorian prezava

pela isonomia: chances iguais a todos os nascidos guardiões, fosse ele um cara legal

ou um completo idiota como Aron. Ele se curvava, mesmo que exausto, em um

demorado cumprimento na direção da tribuna. Ivyna tinha lá suas dúvidas se não

havia um tom de sarcasmo até nessas saudações exageradas.

— Contudo, — Heidlich voltou a falar e as multidões emudeceram outra vez —

devo dizer-lhe que não foram lutas à altura de um grande oponente como você.

Em resumo, não me impressionaram como eu gostaria. Arriscaria dizer, inclusive,

que foram fáceis demais. Logo, eu proponho um desafio.

Um suspiro de admirável surpresa se ouviu das arquibancadas. Olhos se

arregalaram de todas as partes. Até mesmo Ropher emitiu um silvo longo e

impressionado com as palavras do rei. Ivyna comprimiu o olhar na direção do

irmão, sem compreender muito bem o que ele estava fazendo. Lorde Anturc e

Kurkov levaram a mão à boca. Lady Susan e Almena cochichavam baixinho,

lançando olhares curiosos na direção do rei. Lorde August era o único que parecia

abafar uma risadinha. Fã de intrigas do jeito que era, não a surpreendia o fato do

mais sórdido dos Moronov estar rindo-se à toa com o pandemônio generalizado

que tomou a arena após as palavras do rei.

O burburinho logo dominou as tribunas e o restante das arquibancadas. Alguém

desceu da tribuna abaixo e correu até o centro da arena. Postando-se ao lado do

jovem Aron, o Almirante Armie Lohntrak empertigou-se, estufando o peito.

Ajeitou os cabelos grisalhos no topo da cabeça. A voz possante irradiou a plenos

pulmões para que todos pudessem ouvi-lo.

— Sua Majestade, Lorde Heidlich Heinhardt, muito estimado és entre todo o

povo e perante a alta nobreza das suntuosas e abundantes terras de Badorian. Devo

lhe dizer, talvez o senhor não saiba, pois assentou-se sobre o Trono Branco há

346


pouco tempo e a inexperiência pode estar sublimando suas faculdades mentais, mas

o senhor não pode desafiar o campeão. O jovem Aron Lohntrak, por acaso meu

estimado primogênito, venceu as doze batalhas do Torneio por mérito próprio,

alçando grande vitória perante seus poderosos adversários. Sendo assim, Sua

Majestade, tendo um dia sido Guardião de Eurodian, não tem autoridade para

desafiar o campeão, pois seu tempo como tal já passou. És agora soberano em

Badorian e, volto a dizer, mui estimado e querido por todo seu povo aqui presente

e que, com esfuziante admiração, o saúda com intensas salvas de palmas.

As palmas e silvos se iniciavam pelas arquibancadas, quando Heidlich levantouse

e ergueu a mão, pedindo silêncio. O rei soltou a capa dos ombros e depositou,

ternamente, sobre a cadeira. Sorrindo abertamente um sorriso que Ivyna jamais vira

em seu rosto, um misto esdrúxulo de cinismo e presunção, ele desceu da tribuna

sem nenhuma pressa e caminhou pela arena até ficar frente a frente com o irmão

de sua mãe.

— Se bem me lembro, Armie...

— Almirante Armie Lohn...

— Eu o chamo como quiser, eu sou o rei.

— Perdão, Sua Majestade.

— Se bem me lembro, Armie, há vinte ciclos, nesta mesma arena, depois que

venci todas as lutas do Torneio, você me desafiou. Alegava que não me considerava

digno para a função e quis me expor ao ridículo na presença de nossa família, dos

clãs aliados e do povo. — Heidlich quase sussurrava, encarando o tio no fundo dos

olhos. — Talvez, eu não considere seu filho capaz o suficiente para assumir

tamanha responsabilidade.

— Devo lembrar-lhe, porém, estimado sobrinho — Armie argumentava em um

tom sério, sem deixar de exalar o escárnio em sua voz — que há dois fatores que

você não está observando: o primeiro, somente um oponente que se considera à

altura do desafio é que deve desafiar o campeão. Como você não é o oponente e

nem o pode ser, pois abdicou de sua posição perante o Conselho para assumir o

trono, seu desafio não é válido. O segundo, a antiga regra da Academia que permitia

o desafio ao vencedor foi abolida há quase quinze ciclos. Eu mesmo me encarreguei

de fazê-la, após minha malsucedida tentativa.

Heidlich sorriu para o tio. Havia uma ironia peculiar que conseguia ser maior do

que o do próprio Armie ou de seu filho.

— Estimado tio Armie, talvez a pouca experiência nessas coisas esteja

sublimando suas faculdades mentais, mas meu primeiro decreto assim que me

sentei sobre o Trono Branco foi tornar o desafio ao campeão do Torneio uma lei

pétrea de nosso país. Logo, nem mesmo o rei pode desfazer tal regulamento. Em

segundo lugar, não sou eu quem está desafiando seu filho, porque não ouso retomar

uma função que uma vez exerci e a fiz com tanto esmero.

347


— Se não é você, estimado filho da... minha irmã, quem então irá desafiar o

campeão? Não vislumbro oponentes dispostos a tal façanha.

— Como rei de Badorian, — Heidlich afastou-se até ficar bem perto da tribuna

— anuncio a desafiante: Ivyna Heinhardt.

As caretas céticas dominaram o entorno. Da tribuna às arquibancadas, dos

oponentes derrotados nas cadeiras mais baixas aos ilustres convidados das tribunas

reais, queixos caíam com a surpresa do anúncio do rei. A começar pelos

espectadores mais ávidos e animados com a competição até aos Heinhardt, Borovit,

Moronov e Lohntrak espalhados sobre as arquibancadas especiais, ninguém parecia

acreditar no que acabaram de ouvir. Os olhares estupefatos dos presentes se

concentravam de imediato em um único ponto enquanto o silêncio imperava. Nem

mesmo Ivyna acreditava. O espanto crescente no rosto de Ropher ao seu lado se

replicava para os demais guardiões espalhados pelas cadeiras ao seu redor. Embora

estivesse tão embasbacado quanto todos no entorno, no rosto do jovem de

Amistelar havia uma afobação incontida. Nunca presenciara uma reviravolta tão

intensa e chocante. Heidlich realmente fizera aquilo ou estava sonhando acordada?

Pronunciara seu nome como a desafiante do campeão? Pelo esgar aparvalhado das

pessoas próximas, tudo indicava que sim.

Ivyna se beliscou por um momento para constatar que não se tratava de um

sonho. Colocou-se de pé meio vacilante, sem saber muito bem o que deveria fazer

em seguida. Sentiu-se constrangida. As maçãs do rosto queimavam. Imaginava estar

da cor dos cabelos, rubra como uma chama acesa. Contemplou o rosto lívido da

mãe, uma cadeira depois da de Heidlich. Ela não acreditava no que estava

acontecendo. Atravessando a tribuna, a jovem desceu tímida pelas escadarias sob

olhares incrédulos de centenas de pessoas. Acanhada, com lágrimas enchendo os

olhos, contidas sobre as pálpebras para não parecer fraca ou medrosa, parou

próximo ao irmão.

— Por que isso agora, Heidlich?

— Porque eu acredito em você! — sibilou, piscando para ela. Naquele momento

tão breve e singular, entreviu trejeitos conhecidos, familiares. Sentiu-se envolvida

por uma estranheza peculiar. Eram as mesmas expressões confiantes do pai,

idênticas às que ele externava quando a via demonstrando seus poderes mágicos e

habilidades, habitando naquele instante a faceta bondosa no rosto do irmão.

Armie avançou, vermelho de raiva, até onde Heidlich e Ivyna estavam parados.

Debaixo do braço, carregava um enorme livro.

— A lei é bem clara, Sua Majestade — vociferou o tio, exasperado — O rei não

pode indicar um oponente. Está escrito aqui no livro das Crônicas do Reino. Ela é

enfática em afirmar que somente um oponente, de livre e espontânea vontade,

deverá desafiar o campeão. Você não pode obrigar a minha sobrinha a...

348


— Princesa Ivyna Heinhardt, filha de Cench Heinhardt e da rainha Falla

Lohntrak, você, por livre e espontânea vontade, sem qualquer tipo de influência,

pressão ou coação do rei, gostaria de desafiar o grande campeão do Quinquagésimo

Terceiro Torneio da Academia dos Guardiões?

— SIM! — berrou Ivyna, a plenos pulmões.

Um alvoroço se instaurou entre as multidões. Deixando de lado a letargia do

ceticismo, o público foi ao delírio, pulando e gritando com a reviravolta inesperada

que se apresentava. Parte das arquibancadas berrava o nome da princesa ao passo

que um pequeno grupo de espectadores gritava o nome do filho de Armie

Lohntrak.

— Então, — pronunciou Heidlich, sorrindo pelo canto da boca — desafie,

oficialmente, seu oponente para que não haja dúvida de que não há influência do

rei sobre este embate.

— Eu, Ivyna Lohntrak, Princesa de Badorian, a segunda na sucessão do Trono

Branco, por livre e espontânea vontade, sem ser influenciada, pressionada ou

coagida por ninguém, desafio o último campeão do Torneio da Academia dos

Guardiões.

Uma nova explosão de vivas irradiou pelos ares, seguida por fogos de artifício.

Heidlich posicionou-se atrás da irmã e apoiou as mãos sobre seus ombros, como

se fosse seu treinador. Contemplou a expressão estarrecida e furiosa do tio e do

primo, sob a cantoria extasiada da multidão.

— Muito bem, Almirante Armie Lohntrak — proferiu Heidlich, circunspecto. —

Acho que satisfizemos seu desejo por ouvir um desafio formal. Não há com o que

se preocupar, eu presumo. Se seu filho é tão forte como acreditas, creio que não

terá grandes dificuldades em vencer mais um oponente.

Impassível e sem pronunciar uma só palavra, Armie puxou o filho pelo braço

com violência, conduzindo-o até o lado oposto da tribuna.

Sob o clamor frenético de uma multidão em êxtase, aglomerada nas

arquibancadas na segunda maior reviravolta que o Torneio já vira em sua história

recente, Ivyna e Aron se posicionaram sobre a grama no centro da arena. A jovem

deixara de lado o longo vestidão azul e as pesadas anáguas que vestia por calças e

blusa leves de algodão e um colete de couro curtido com o brasão do reino em alto

relevo sobre o peito e as costas. As damas de companhia e até suas tias Katri e

Menzira insistiram que ela colocasse uma armadura ou mesmo partes dela em

pontos vitais. Tia Susan, em constantes muxoxos, quase a convenceu a usar uma

poção de corpo fechado para evitar ataques mortais. Não evitaria o efeito de alguns

golpes, mas pelo menos preservaria sua vida. Lançavam comentários em tom de

lamúria como se a jovem princesa fosse muito frágil para uma batalha e rumasse

349


para o abate. Ignorou seus conselhos, vestiu a roupa que a deixou mais confortável

e livre para poder duelar e seguiu para o meio do campo.

Uma onda de assovios e palmas encheu a arena quando ela entrou. Ivyna não

tinha noção de que o povo sentia tanto afeto por ela assim. Talvez, fosse muito

mais pelo fato de que seu tio almirante e o primo almofadinha fossem realmente

intragáveis e possuíam a antipatia da grande maioria dos badorianos. Mas esse

carinho da torcida deixou-a ainda mais confiante e determinada. Raramente tinha

contato com aquelas multidões em alvoroço. Sua mãe não a deixava sair com

frequência do palácio e, sempre que queria, precisava se utilizar de métodos escusos

para poder visitar a cidade. Ainda que exausto, com os cabelos sebentos de suor e

alguns hematomas espalhados pelo corpo, Aron não tirava do rosto a irritante

expressão de triunfo misturada à sua costumeira presunção exacerbada. Embora

fosse quatro ciclos mais novo do que ela, Ivyna sempre detestou a arrogância do

primo, assim como detestava o jeito altivo e prepotente do irmão mais novo de sua

mãe. Era como se ambos se achassem superiores ao povo e até mesmo aos demais

Borovit, Heinhardt e Moronov e a alguns Lohntrak, a quem sempre se referiam

como “os menos poderosos da família”. Sempre que podia, evitava interagir com

Aron, embora gostasse bastante de seus dois irmãos mais novos, Arnie e Aralis.

Achava que ainda havia alguma salvação para eles dois. Bastava não seguir os

exemplos do babaca de seu pai e do antipático irmão mais velho.

Aguardando o apito para a luta começar, Ivyna lançou um breve olhar para além

de Aron. Estava no lado oposto à tribuna que há poucos minutos ocupava. Jamais

imaginaria que o irmão tomaria uma atitude inesperada como aquela. Sempre

considerou Heidlich muito previsível e político em suas breves visitas à Badorian.

Alguém cujo jeito de ser e agir denotavam que suas atitudes eram planejadas e

triviais. Mas, naquele momento, fitava o irmão com um misto de surpresa e

admiração. Percebia o quanto realmente não o conhecia. Assentado sobre o trono,

abaixo de sua barba loira e cintilando à luz do sol, ele abriu um sorriso singelo em

sua direção e balançou a cabeça num movimento suave. Um breve aceno indicando

que ela tinha a confiança do irmão, como se mostrasse que tudo ficaria bem,

independentemente de qualquer resultado. Uma lágrima escorreu dos olhos dela.

Heidlich jamais pareceu tanto com a figura de seu pai quanto naquele instante. A

mesma expressão, o olhar paterno, o sorriso acanhado, mas que inspirava uma

certeza exemplar.

O apito soou, longo e estridente, se sobrepondo com dificuldade diante do

vozerio ensurdecedor. Ivyna observava seu oponente, suspeitando de que ele não

usaria dos métodos mais convencionais para ganhar seu último desafio. Ela tinha a

vantagem de Aron estar esgotado, tendo o uso constante da magia nas outras lutas,

consumido os resquícios de energia que ainda lhe restava. Não considerava isso

justo com alguém que enfrentou tantos oponentes e estava desgastado física e

350


mentalmente. Mas considerando quem era seu adversário, ignorou esse pequeno

detalhe. A vida não era realmente justa. Motivada pelo sinal do irmão antes da

batalha começar, Ivyna relembrou de suas últimas lições. Expansão, extensão e

nível. Um aprendizado que não constava em nenhum livro de magia que lera,

advindo da sabedoria e da vivência como Guardião de seu irmão. Pelo que

observara nas outras lutas, Aron era astuto. Ainda que estivesse cansado, não podia

considerá-lo um adversário a ser desprezado. A sagacidade do primo era elevada e

ele usaria o que fosse preciso para acabar de vez com ela, mesmo que não fosse a

estratégia mais correta. Se a vida não estava sendo justa com ele, ele não seria justo

no derradeiro desafio.

Duas labaredas surgiram das mãos de Aron. Arfando ruidosamente, o jovem

guardião ampliou as chamas o máximo que conseguiu. Mesmo a uma distância

considerável, Ivyna podia sentir a intensidade do fogo elemental crepitando entre

os dedos de seu oponente.

Decidiu esperar.

Estudava o oponente com um olhar clínico, exatamente como Heidlich a

orientara. Aron estava esgotado e usara todo seu poder contra os demais oponentes,

logo, sua Expansão era baixa e não conseguiria desenvolver uma magia que pudesse

afetá-la. Não era alto, beirava sua altura, o que se tornava uma vantagem para ela,

pois não precisaria se preocupar com ataques surpresa pelos flancos. Talvez

estivesse aí um ponto fraco dele, embora não fosse o único. Seu forte era realmente

a Extensão. Era letal nos embates frontais e diretos. As últimas três lutas do torneio

foram vencidas dessa forma. Contudo, dominava muito bem o Nível. Combinava

os poucos ataques laterais da Expansão e os golpes precisos de Extensão com

maestria. Ivyna sabia que este seria sim um tremendo desafio.

As labaredas se converteram em uma monstruosa bola de fogo vermelha que

voou das mãos de Aron. Ivyna se perguntava quanta energia o primo ainda tinha

para arriscar golpes diretos e frontais como aquele. Conjurando uma cortina de

vento poderosa, a guardiã converteu a esfera incandescente em uma serpente em

chamas. A criatura elemental viajou sobre o topo das cabeças das multidões e se

voltou contra o oponente.

Um suspiro de surpresa e terror invadiu as arquibancadas. Cada espectador

segurou a respiração com o assombro que estava diante de seus olhos. Era um

assombro de pirotecnia e pura magia. Um verdadeiro espetáculo como eles jamais

haviam visto. O olhar de Falla refletia um terror inigualável e os demais Moronov,

Heinhardt, Borovit e Lohntrak contemplavam a cena, impressionados e com o

coração na mão, à exceção de Armie, que seguia impassível nos arredores mais

baixos da arena. Heidlich estava sereno. Sobre a cadeira mais alta da tribuna,

segurava o queixo e se concentrava na batalha como se estivesse admirando o luscofusco

às margens do Mulbe, em um dia cálido de verão.

351


Aron rolou sobre a grama a tempo de escapar do bote certeiro da cobra

flamejante. O gramado da arena foi consumido pelo fogo e o cheiro de mato

esturricado invadiu as narinas de ambos. Erguendo-se, com a vista turva, as narinas

ardendo e o cansaço pesando nos joelhos, percebeu que seria inútil atacar a prima

com magia direta. Mesmo sendo uma princesa reclusa a sete chaves, ela tinha seus

truques na manga. Os músculos vacilavam. O corpo pedia arrego. Queria uma cama

quentinha, uma boa coberta e travesseiros macios para poder se jogar sobre eles.

Dormiria por horas, dias se fosse possível, até recuperar as energias. Mas aquele

momento ímpar valia pela eternidade. Era a chance de se tornar uma lenda, maior

até do que o imbecil que um dia foi chamado assim e que naquele momento

arrogava para si o título de rei. Subestimara a prima mais do que achara. Mas quem

imaginaria que a jovem e indefesa princesa entendia tanto de duelos e desafios? Se

quisesse ganhar essa luta final, precisaria adotar outra estratégia. Mesmo que essa

tática não fosse a mais nobre.

Correu até ficar frente a frente com Ivyna e desferiu uma série de socos. O

primeiro passou a centímetros do rosto da guardiã, que se esquivou por puro

reflexo. O segundo, o terceiro e o quarto soco foram golpes ao léu que não

atingiram seu objetivo: o maxilar, a garganta e a têmpora direita. A prima,

aparentemente, fora muito bem treinada. Era versada em defesa pessoal para a sua

surpresa e a dos espectadores ao redor. A aparente calmaria foi dando lugar ao

desespero e Aron, mesmo fazendo o melhor que podia em sua sequência de golpes

e chutes, via-se esgotado: tanto de vigor quanto de ideias de como sair vitorioso.

— EU SEREI O CAMPEÃO DESSE TORNEIO. SEREI EU O GUARDIÃO

DE EURODIAN!

Ivyna arregalou os olhos para o transtorno súbito que dominara o primo. Gritava

feito um menino mimado, tendo o desespero dominado sua cabeça.

Aron correu para longe do cerne da batalha, perturbado. Os olhares curiosos de

todo o estádio se voltavam para o oponente que tomava distância rumo às fileiras.

Acompanhavam o desenrolar do desafio com intensa curiosidade quanto ao que

estava prestes a acontecer. Próximo à tribuna mais baixa, o jovem guardião

arrancou a espada que o pai carregava na cintura. A bainha de couro da arma

rasgou-se de cima a baixo. Com o impacto inesperado da atitude do filho, Armie

tropeçou e caiu no chão. Empunhando a lâmina, Aron correu de volto ao campo,

arremetendo-se contra Ivyna com uma fúria tresloucada, refletida em seus olhares

arregalados e o esgar ensandecido.

Um, dois, três, quatro investidas mortais da espada. A multidão estava de pé,

suspirando a cada novo golpe. Falla levou a mão a boca. Ropher agarrou a mureta

da tribuna, quase caindo lá de cima. Sequer ousava piscar, concentrado em qualquer

movimento na batalha. Os olhos de todos vidraram na cena imprevisível que se

desenrolava. Ivyna desvencilhava-se dos golpes com facilidade. A lentidão do

352


primo era notória e a mira previsível só externavam seu desespero em ganhar o

torneio a qualquer custo. Os métodos nada dignos se sobressaíam e qualquer coisa

valia para sair dali com a vitória, como roubar a espada do pai e atacar de modo

desvairado.

Aron balançou a espada num movimento rápido, inflado por uma cólera que

estampava seu rosto exaurido. Bufava de ódio, puxando o ar com dificuldade,

plenamente fora de si. Os olhos injetados denotavam sua louca vontade de

derramar o sangue da própria prima. Ivyna esquivou-se outra vez, a espada

passando a centímetros de seu pescoço. Falla levantou-se da cadeira, bem como

Ianora, Silla e Almena, atarantadas. Brenda Borovit e Vanda Moronov correram até

a rainha e seguraram seus ombros, inquietas. Kurkov e Anturc aproximaram-se do

trono, na ânsia de interpelarem o rei para tomar uma atitude quanto ao iminente

desatino que estava prestes a acontecer. Heidlich, contudo, não se abalava. Os olhos

serenos do rei acompanhavam o desenrolam do duelo sem muita preocupação.

Outro golpe mortal da espada cortou os ares, num zumbido oco e audível. Prestes

a ter o braço decepado pela lâmina do primo, Ivyna conjurou um escudo redondo

e flamejante que travou a espada de Aron instintivamente. Possesso de raiva, ele

agarrou o cabo da arma e pressionou-a contra o escudo de fogo com vontade.

— Não adianta, priminha — falou Aron, forçando a lâmina cada vez mais. — Eu

serei conhecido como o guardião que matou a frágil princesinha na arena, sob os

olhos assustados da corte e a apatia de seu rei. Eu mudarei a história de Eurodian

como o maior guerreiro que esse continente já viu e ainda colocarei em xeque a

liderança do imbecil do seu irmão.

Ivyna ouvia cada palavra de seu execrável adversário sem deixar-se abater. Sabia

que, quando não era possível ganhar pela força, a melhor tática era o terror

psicológico; proferir palavras que pudessem desestabilizá-la. Mas ela continuava

firme. Obstinada, sabia o que tinha de fazer e jamais haveria momento melhor para

provar seu valor do que diante do povo e de sua família. Como a protetora do

continente, ela tinha de inspirar e não provocar o medo e o terro como ele fazia.

A lâmina não derretia com o fogo elemental. A cada instante, ela se aproximava

de dilacerar sua carne e nervos. Mas uma espada forjada em aço élfico e banhada

em qualquer mineral mágico como as de Vaelfar não derreteriam tão facilmente

com um simples escudo mágico conjurado. Se continuasse do jeito que estava,

tentando conter o avanço do primo, perderia o braço e a batalha. A expressão

ensandecida marcando o rosto de Aron forçando a espada, demonstrava que ele

não teria a menor cerimônia em tirar sua vida, se fosse preciso, para poder ganhar

o torneio. Só havia uma chance de reagir. Ela precisava ser rápida.

Empurrou o escudo para frente. Aron cambaleou para trás com a reação

inesperada, erguendo a espada para golpeá-la outra vez. Com a outra mão, o fluído

vermelho da magia de Ivyna emanou. O barulho impetuoso como o de um furacão

353


destelhando casas irradiou pela arena, tomando as multidões de assalto. Um ruído

ínfimo e agudo surgiu, interrompendo a ventania que perturbava as arquibancadas.

Cortando os ares e reluzindo à luz do sol, Iluminum, o antigo sabre que pertencera

a seu trisavô, a maior relíquia de Badorian, se acomodou sob seus dedos.

A lâmina da rapieira de Aron chocou-se violentamente com o sabre lendário de

Ivyna. Faíscas coruscaram com o impacto. O baque estridente reboou pelos ares.

Ambos desferiraram golpes repetitivos em um embate alucinante de espadas. As

arquibancadas estavam em êxtase. A euforia dos espectadores incendiou a arena. A

cada novo golpe, gritos histéricos dominavam as bocas dos presentes no entorno.

Os soldados ao redor do estádio esqueceram suas funções, largaram capacetes,

lanças e espadas e concentraram os olhares no embate digno de espadachins.

Ropher estava de pé, pulando e vibrando ao lado de Autran e Amus Borovit. Os

três berravam da tribuna, torcendo por sua favorita naquela disputa. Falla

desaparecera, provavelmente preferiu não mais assistir aquela barbárie que tanto

reprovava, mas suas irmãs continuavam lá, menos aflitas dessa vez do que antes.

Uma pequena parte torcia por Aron e a maioria pela vitória de Ivyna. Kurkov e

Anturc esqueceram a ideia de intervir na luta e se apoiavam sobre a amurada, de

olhos arregalados, extasiados com o duelo. Contudo, Heidlich era o único imutável.

De pernas cruzadas e segurando o queixo, o rei não expressava qualquer

sentimento. Mantinha-se compenetrado, com olhos fixos como os de uma águia a

contemplar os movimentos de sua presa.

— Você nunca será Guardiã — proferiu Aron, ofegante, resistindo aos ataques

de Ivyna com a força que ainda restava. — Esqueça esse delírio. Você não nasceu

para isso. Eu estudei e me preparei para ser o protetor que esse continente merece.

— Essa exacerbada soberba será sua derrota, Aron. — Ivyna avançava,

desferindo golpes cada vez mais violentos. — Você não é meu inimigo. É só um

moleque mimado e arrogante que acha que Eirin deve se dobrar aos seus pés

porque, ganhando este torneio, passará a ter um título. Se você quer ser Guardião

para provar ao mundo que é o melhor ou o mais forte, então você é um imbecil

desprezível que não merecia sequer estar aqui.

Enchendo-se de confiança, Ivyna avançou sobre o primo com destreza. Ergueu

Iluminum e atacou-o com violência. As forças de Aron se esvaíam e ele mal

conseguia se manter de pé. Defendeu a primeira e a segunda investida com muito

custo. A lâmina do sabre subiu com voracidade e desceu precisa sobre o meio da

rapieira.

Um grunhido de dor retumbou e as multidões silenciaram de chofre. Centenas

de pares de olhos se comprimiram ao mesmo tempo para identificar e entender o

que acabara de acontecer. Heidlich se pôs de pé, pela primeira vez, desde que a luta

começara. A sobriedade desaparecera do rosto do rei para dar lugar a uma

preocupação crescente. Ivyna afastou-se de imediato, atarantada, jogando o sabre

354


para longe. Iluminum partira a espada de Aron ao meio, rompendo a lâmina como

se ela fosse feita de papel. Com o sangue quente e o cansaço latejante assombrando

suas faculdades mentais, o jovem guardião contemplou, estarrecido, os dois

pedaços do que antes fora uma espada élfica sobre a grama, ao lado de sua mão

decepada em uma sórdida poça de sangue empapando a grama.

O silêncio do espanto não durou mais do que alguns segundos. A euforia histérica

das multidões incendiou a arena. Esquecendo o oponente derrotado, uivando de

dor, berravam o nome de Ivyna, vibravam e pulavam sobre as arquibancadas.

Dezenas de pessoas invadiram o campo, de chofre, avançando em direção à

campeã. Fogos de artifício iluminaram os céus e cornetas e tambores retumbaram

pelo entorno, abafando os gritos aflitos de Aron, caído sobre o chão, perto de uma

poça de sangue. Ela tentou avançar até o primo para ajudá-lo, mas foi interrompida

por uma aglomeração de homens, mulheres, elfos, anões e centauros em polvorosa.

Viu o corpo ser erguido do chão e jogado para cima enquanto gritavam seu nome

aos quatro cantos, comemorando sua vitória triunfal e espetacular. Não era um

sonho. Era realidade. Não conseguia acreditar. Vencera o desafio final e, pela

primeira vez na história de Eurodian, uma mulher seria nomeada a protetora do

continente. Lançou olhares curiosos para a tribuna e, entre os vivas e arremessos

do corpo em direção aos céus, encontrou a expressão de felicidade de Ropher,

Autran e Amus, pulando e comemorando. Kurkov e Anturc aplaudiam de forma

comedida e, apesar da apreensão estampada em seus rostos, havia uma nesga de

alívio e felicidade que ocupava seus sorrisos. A mãe definitivamente não quisera ver

o duelo até o fim e as irmãs dela escapavam do palanque principal com uma

aparência de terror em suas faces. Certamente, iam socorrer o outro sobrinho. Com

a coroa muito bem alinhada na cabeça e a longa capa vermelha contrastando com

os cabelos e barba loiros e volumosos, Heidlich aplaudia de pé, mais contente do

que qualquer um ao redor. Exibia a imponência de um legítimo rei. Um rei justo e

leal, à altura do Rei Cench. O rei que a Suntuosa Badorian merecia.

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Capítulo Vinte e Cinco

Um Chamado Obscuro

Menfesis caminhava de um lado a outro na Sala da Bússola, com as mãos para

trás. O som dos sapatos arrastando, preguiçosos, sobre o piso de mármore era o

único ruído que interrompia as ondas fustigando o quebra-mar da ilha. O mar

encapelado parecia zombar de suas preocupações, como uma risada funesta

afetando a sua dor. Lá fora, contemplava o sol se escondendo atrás da linha do

horizonte em pleno oceano e o dia se convertendo em noite mais uma vez. A

contemplação em que se enfurnara perdurava por tanto tempo que perdera a conta

de quantas vezes vira o sol nascer, se impor, presunçoso, sobre a abóbada celeste e

desaparecer em seu lusco-fusco melancólico, trazendo densas noites, pontilhadas

de estrelas. Caminhava para a terceira noite consecutiva em que o sono fugira por

completo. Os olhos ardiam, os músculos se retesavam e o corpo apresentava largos

sinais de estafa. Mas havia algo pior do que o sono e o cansaço o impedindo de

deitar-se na cama e adormecer. Uma coisa que perturbava sua mente havia dias,

meses.

Lançou olhares depressivos para os ponteiros da bússola. Como se tivessem

despertado de um sono profundo de eras, eles se agitavam de modo descomunal,

prestes a explodir. O prelúdio do caos absoluto. Nos últimos quatros meses, os

ponteiros se moveram em direção ao norte seis vezes — mais do que em todos

seus ciclos como líder da Ordem — diminuindo o ângulo entre eles, prestes a se

unirem, completamente em riste. Não havia um padrão. Não tinha uma lógica

plausível que determinasse os motivos desses movimentos. O passo descrevendo

pequenos arcos era aleatório. Sem precedentes de catástrofes, sem oscilações

significativas na malha, nenhuma vibração fora do padrão. Muito em breve, a

qualquer momento, os ponteiros estariam mais um grau próximo do Norte. Então,

viria o fim: o Caos Absoluto.

A risada debochada de C’Niha, o fogo ardendo sobre o Vale D’Além-Prata

queimando os corpos dos druidas martelava em sua mente como uma cena

diabólica, envolvida pela melodia angustiante e ritmada dos versos da derradeira e

maldita profecia. A profecia que não o deixava dormir. A predição que o fizera

tomar inúmeras ações desastrosas, acreditando ter interpretado corretamente:

356


trocara os Oito Pilares com medo de sua falta de governança. Nada adiantou. A

bússola seguia seu curso. Inabalável. Inalterável. Eliminara desafetos, cobriu rastros

e bloqueou qualquer acesso aos demais sacramentadores para que eles não

descobrissem a verdade. A verdade que não queria admitir: sua era estava em ruínas.

A governança, pela qual tanto prezava, em frangalhos e sua estrutura abalada por

uma crise que permitira se instaurar. O conhecimento sobre os augúrios e vaticínios

do tempo, que cultivou por tantos ciclos e eras, sucumbiam diante de uma variável

fora de seu controle. A liderança da Ordem, conduzida com mãos de ferro,

endossada por seus principais aliados, posta em xeque.

Assim como suas esperanças se esvaíam na medida que os dias resvalavam pelas

semanas, convertendo-se em meses de angústia e aflição, rememorou que havia

algum tempo deixara de receber os conselhos de alguém importante.

Durante ciclos, julgou ser um mito. Uma lenda fabricada nos recônditos do

Oráculo do Tempo, contada para causar temor entre os arcanos recém-chegados e

os elfos mais ingênuos. A velha estória contada pelos corredores e dormitórios

permaneceu adormecida por toda uma era, quando assumiu o pilar de Austeridade.

Já não passava tantos dias, lendo pilhas de livros ou estudando sobre a magia do

tempo em Purysia e sua rotina estava consumida com os assuntos urgentes da

proteção do tempo em Amistelar, Frandar, Líria e Zavir. Um dia, no entanto,

descobriu que até mesmo certas lendas se revelavam como estarrecedoras verdades.

Certa noite, ele surgiu.

Atravessava os corredores próximo ao Salão da Grande Bússola com uma pressa

incontida, quando uma figura misteriosa apareceu. Coberta por trevas, o rosto era

impossível de distinguir. A presença etérea, quase como a de um fantasma ou

espírito, o fez estacar de imediato. Envolto por vestes negras, seu olhar penetrante

era a única coisa visível, reluzindo em um tom âmbar, em meio à fraca luz dos

archotes espalhados por toda a extensão do corredor. A despeito de todas as

estórias aterrorizantes, para Menfesis, não era assustador. Era, estranhamente,

convidativo. Como se a presença mística diante dele o convidasse a aprender mais

sobre a sabedoria de tempos antigos, como se pudesse lhe dizer como resolver os

problemas que habitavam sua mente e pareciam impossíveis de solucionar, àquela

época.

A voz, como um sussurro cansado e aflito, lhe revelou coisas terríveis e perigosas.

Um sacrilégio fora cometido sem que ninguém soubesse. Um pecado que poria em

risco a ordem e a harmonia do tempo, provocando um caos jamais visto

anteriormente. Um prelúdio apocalíptico poderia insurgir naquele que era o maior

temor dos elfos sacramentadores. Homens, mulheres, crianças, elfos, anões,

centauros, mágicos e não-mágicos, todos corriam perigo de extinção por uma

deturpação execrável cometida pelo elfo que mais deveria zelar pelo bem da

harmonia do tempo: o Supremo-Chanceler de Purysia.

357


Apalermado, tomou as devidas providências. Orientado pela figura etérea que o

aconselhava, desvencilhou-se dos problemas irrisórios enfrentados em seu pilar e

fez o que nenhum outro sacramentador em toda história da Ordem jamais fez:

firmou uma aliança com os principais sacramentadores da época, muitos dos quais

foram arcanos contemporâneos seus; clamou pela sabedoria de um dos principais

elfos sacramentadores da ilha, Sisno Sannfye, de quem recebeu o aval para enfrentar

o mal que ameaçava o mundo de Eirin e buscou o auxílio de parte do Conselho

dos Guardiões para obter êxito completo — seu único e maior arrependimento.

Com aliados tão poderosos a seu favor, obliterou aquele que ousava profanar a

Sacramentação do Tempo. Subir ao posto mais alto em Purysia foi algo natural, por

sua liderança e atuação. No tempo certo, recompensou aqueles que estiveram ao

seu lado. Novos Pilares ascenderam ao poder, os laços com os Guardiões foram

fortalecidos e tudo ficou bem por algum tempo...

Uma batida frenética na porta interrompeu seus pensamentos.

Quem, a essa hora, ousava atrapalhar sua reclusão? Teria de trocar a guarda do

Salão mais uma vez. Mais uma leva de soldados que não prestava para manter a

ordem do lado de fora. As batidas continuaram intensas e um vozerio escandaloso

irradiava além das portas. Inspirando profundamente, Menfesis reconheceu a voz

histérica e irritadiça inconfundível no vestíbulo contíguo. Detestava pensar em

arrependimentos e vinha pensando em muitos desde que o iminente caos se

avizinhava de sua governança, mas, se havia algo com o qual também se arrependia,

era ter nomeado precisamente aquele sacramentador intempestivo como

Moderador de Purysia, durante sua reclusão. Não o conhecia bem, mas admirou-se

com sua proatividade e com o fato de ser tão solícito. Mas, de uns tempos para cá,

sua paciência estava se esgotando. Perturbava-o de tempos em tempos, querendo

relatar os pormenores dos acontecimentos na ilha, até mesmo de coisas irrisórias e

fúteis que ninguém ligava. Questionava-se, em primeiro lugar, como seu mentor o

havia aprovado para iniciar os ciclos de preparação de assunção a um dos

Octaedros. Mas o que poderia fazer? Os sacramentadores de confiança estavam

ficando escassos, muitos sequer haviam iniciado suas eras preparatorem. A maioria

parecia distante da maturidade exigida para a responsabilidade demandada. Aos

montes, os que estavam em vias de terminar seus estudos preferiam dedicar muitas

horas aos burburinhos pelo Oráculo do Tempo, conjecturando sobre boatos, com

certeza arrazoando a respeito de sua ausência ou da visita intragável e deletéria de

Lorde Moronov, o pífio chanceler do Conselho dos Guardiões.

Abriu as duas portas do Salão em um movimento brusco, convertendo a estafa

que o engolfava em uma impaciente irritação. O vestíbulo estava dominado pela

penumbra do começo da noite, quando vislumbrou Klaus Trishnann. Os cabelos

longos e brancos, desgrenhados, contrastavam com uma veia que saltava em sua

têmpora proeminente. Vermelho como um pimentão, ralhava com os dois

358


protetores que empunhavam suas lanças, impedindo o jovem sacramentador de

invadir o salão. Atrás do elfo enfezado, uma ninfa das águas arregalava os olhos

para a cena, curiosa e assustada ao mesmo tempo. As águas de seu corpo eram azuis

escuras, quase negras e revoltas como as ondas de Argúrius. Agitavam-se de um

lado a outro, como um oceano encapelado, ao longo de suas pernas, quadris e seios.

Era uma ninfa vinda dos oceanos. A cólera crescente que dominara Menfesis foi

dando lugar a uma intensa curiosidade.

— Posso saber o que se passa aqui e porque ousas perturbar a paz deste recanto

de contemplação? — trovejou a voz de Menfesis e encerrou o embate entre os

soldados e o sacramentador. Os olhares de todos se voltaram de imediato para ele,

assustados.

Os soldados rapidamente recompuseram-se e estacaram em posição de guarda.

Trishnann passou os dedos finos sobre os cabelos escorridos, tentando se

recompor o mais rápido que pôde, dando sequência a uma exagerada saudação. O

olhar da ninfa se fixou nos olhos austeros de Menfesis.

— Oh, Magnífico Primeiro-Líder da Ordem dos Sacramentadores e Supremo

Chanceler de Purys...

— Chega de formalidades, Klaus! — Arturo avançou para além dos soldados,

que logo se recolheram aos seus postos, quase grudados à frente das portas. — Eu

lhe fiz uma pergunta e é imperativo que tenhas uma plausível justificativa para vir

perturbar a ordem e a paz deste lugar. Se não houver um tema que me faças

convencer de que sua presença aqui, com uma voluptuosa ninfa dos mares,

corrompendo e perturbando a paz de minhas reflexões não é de caráter emergencial

ou essencial para o perfeito funcionamento do tempo, eu juro, Klaus, farei valer

meu poder como líder e o punirei de modo exemplar!

Klaus arregalou os olhos verde-água como Menfesis jamais vira. Atrás dele, o elfo

sentiu os soldados se distanciando cada vez mais, quase invadindo o Salão da

Bússola para se esconderem da ira que irradiava do líder dos Sacramentadores. No

encalço de Trishnann, a ninfa deu dois passos para trás, cabisbaixa.

— Oh, Magnificente Primeiro-Líder, eu peço...

Menfesis respirou fundo.

Era esse jeito nodoso do jovem sacramentador que ele detestava. Durante os

primeiros dias de seu isolamento, o jovem sacramentador serviu como um grande

executor, mantendo a paz e a ordem necessária em Purysia. Em ordenar e fazer as

coisas acontecerem, ele era um excelente e talentoso orquestrador de organização

e produtividade. Mas esse comportamento pelego a todo instante era algo

exaustivo.

Klaus dobrava-se ao meio, com os cabelos cobrindo seu rosto, quase prostrado,

desfiando um longo discurso com bajulações desprezíveis e infindáveis desculpas

por seu comportamento desprovido de sapiência e tão infantil.

359


Odiava aduladores. Assim como jamais fora com a cara de Lorde Moronov e seu

jeito sabujo de ser na presença de autoridades ou em meio aos Guardiões, nos

eventos em que precisava estar presente, Menfesis também se forçava a esconder o

desprezo que tinha por figurões de Purysia como Poledores Früg, Nelis Naziv,

Rodris Rannidge e outros tantos bajuladores, que precisavam usar de tal artifício na

esperança de conseguir algum prestígio, dentro e fora da Ordem. À época, fora

persuadido por Sisno. Admirava e, ao mesmo tempo, possuía asco por essa

capacidade de argumentação tão preponderante de Sannfrye. Era impossível

discutir com Sisno e sair vencedor. O antigo líder de Hegemonia possuía um dom

de envolver qualquer pessoa com seus argumentos e persuadir até mesmo os mais

turrões. Fora convencido por ele a nomear sacramentadores medianos para

tamanha responsabilidade. Uma leviana política da boa vizinhança que aceitara de

bom grado: foram grandes apoiadores de sua insurreição, reconhecidos pela

comunidade élfica como proeminentes sacramentadores, mesmo que duvidasse da

capacidade deles de enfrentar as intempéries do tempo. Conjecturava se tal

reconhecimento não era mero interesse, prostituído de barganha por um prestígio

e influência dentro da Ordem, principalmente por parte do clã dos Etéreos em sua

limítrofe insistência por interferir nos assuntos do tempo. Era um grande

contentamento, no meio de toda a crise que enfrentava, poder saber que esses

nomes já não eram mais líderes dos Octaedros. E nenhum argumento de Sannfrye

fora forte o suficiente para convencê-lo do contrário.

— Guardas! — berrou Arturo, interrompendo o fio de bajulações de Klaus. Os

guardas correram e emparelharam com o líder, prontamente. — Prendam este elfo

imediatamente. Levem-no para o cárcere das masmorras próximas ao velho cais e

sumam com a chave!

Os guardas arreganharam um largo sorriso, satisfeitos com a ordem de Menfesis.

Largaram as lanças, que ecoaram pelo vestíbulo com estrépito e agarraram os

braços de Klaus Trishnann. Soltando gritinhos histéricos e suplicando misericórdia,

a voz esganiçada do jovem sacramentador era inutilmente abafada pelas palmas das

mãos dos guardas que tentavam arrastá-lo pelos corredores. Girando nos

calcanhares, Arturo lançou um olhar de desprezo para a ninfa à sua frente e agitou

a cabeça em direção à janela, indicando por onde ela deveria desaparecer. Agarrou

a maçaneta dos portões do Salão da Bússola. A mente voltava a devanear sobre a

crise, quando a voz exasperada e quase inaudível de Klaus reboou, distante,

informando algo que o fez pasmar de súbito.

— Acredito que deverias saber... Há uma conspiração para derrubá-lo!

Atarantado, Menfesis ordenou que o soltassem imediatamente.

Desvencilhando-se das mãos de seus algozes, recompondo-se, Klaus bufou e

mostrou uma carranca encolerizada para os guardas. Empertigando-se e

empinando o nariz, caminhou elegantemente pelo corredor e parou bem ao lado

360


da ninfa. Sustentava um notório olhar malicioso de quem tem algo estarrecedor a

revelar.

— Sabes que não admito qualquer leviandade, Trishnann, tampouco admito que

possuas, por usurpação, intentos de querer arrogar para si minha atenção com

aleivosias desprovidas de fundamento categórico.

— Bem conheço que governas com mãos firmes, magnificente Chanceler e que,

de maneira alguma, cometeria o perjúrio de tecer, diante de vossa presença, tal

engodo para lograr êxito em atrair vossa atenção. Até a mais ardilosa esparrela

sucumbiria ante vossa sabedoria.

— Tens minha atenção, Klaus — inferiu Menfesis, cruzando os braços, atento

— Não a enfades com vitupérios irrisórios.

O jovem sacramentador mirou os olhos oceânicos da ninfa e balançou a cabeça,

em sinal de positivo. No instante seguinte, ela moveu os lábios devagar, como se

prestes a cantar uma linda melodia. A voz dócil, porém firme, mas com uma nota

de preocupação encheu o lugar, reverberando sobre o teto alto. Menfesis arregalou

os olhos, estarrecido. Era difícil de acreditar. De uma ponta a outra da orelha, Klaus

emitia seu sorriso mais satisfeito. O Supremo Chanceler de Purysia escutava as

palavras ditas pela ninfa, atônito. Não era a voz da criatura das águas. Ouvia em

alto e bom som, como se as palavras reverberassem pelas paredes em volta, a

reprodução de uma conversa entre Alezeia Turim e Sisno Sannfrye.

Alta traição.

A pior de todas que sofrera em sua carreira.

Uma traição sem precedentes, cometida pelas duas pessoas que jamais imaginaria

um dia intentarem algo contra sua liderança. Ada Alezeia Turim, a Segunda-Líder,

sua antiga confidente, ousava dizer que sua mais antiga amiga e auxiliadora. Alguém

a quem tanto considerou e por quem brigou incessantemente, ainda que ela

relutasse em aceitar, para assumir o posto de segunda na hierarquia da Ordem.

Confabulava formas de engabelá-lo e manter as aparências de normalidade em

Purysia enquanto os demais ex-sacramentadores buscavam resgatar um sucessor,

liderados por Sisno.

Justamente, Sisno.

O mesmo Sisno a quem um dia chamou de maedor. O mais culto, íntegro e

influente sacramentador, acima de qualquer suspeita. O melhor e mais desenvolto

intermediador de grandes conflitos, principalmente aqueles que envolviam os

humanos, que o ensinou a contornar as mais diversas escabrosidades dos homens,

profundo conhecedor das riquezas da verdadeira política e da mais douta cultura

da harmonia entre os poderes mágicos que regiam o mundo. Assim como fez com

o sacramentador que o precedera, arquitetava então uma sucessão imediata, traindo

a confiança que um dia lhe depositou. Uma apunhalada traiçoeira que o feria de

morte, obliterando um governo que fez tudo o que era possível para evitar o pior.

361


Enumerando mentalmente cada lei transgredida por Alezeia, Sisno e pelos exsacramentadores,

Menfesis tomou uma dura decisão. Algo que deveria ter feito há

tempos. Uma coisa que ignorara havia muitos ciclos, na crença de estar com a razão.

Chegara a hora de adotar medidas drásticas e urgentes, antes que fosse tarde.

Seguiria um conselho que optou por desprezar no início de sua era perpetratem e que

naquele momento lhe traria duras consequências.

— Retire-se de minha presença, Klaus e leve consigo esta ninfa lasciva.

A voz de Menfesis era um mero sussurro impassível. Trishnann franziu o cenho,

descrente.

— Mas, Supremo-Chanceler, é imperativo que vossa mercê tome providências

imediatamente!

— Cumpra o que lhe ordeno, agora — sibilou Arturo — ou mandarei os guardas

arrastarem-no por essas suas cãs até os mais pútridos calabouços!

Sem titubear, mas com um semblante incrédulo, Klaus deslizou para longe do

vestíbulo. Um turbilhão de dúvidas explodia em sua cabeça. Os guardas,

empunhando as espadas em riste, encaravam-no com profundo desprezo. Como

uma corrente marinha a chocar-se com estrépito nos corais, a ninfa das águas

serpenteou pelo mármore polido, esgueirou-se por entre as janelas e se lançou da

torre em direção ao mar. Retirou-se sem deixar vestígios, assim como seu mentor.

Sozinho, Menfesis escancarou as portas do Salão da Bússola. Estava decidido. Lá

dentro, a figura oculta o aguardava. A mesma que conhecera antes de ascender ao

posto mais alto em Purysia e revelara coisas terríveis. Envolta em mantos negros

como da última vez, estava coberta pelas trevas sufocantes da escuridão

arrebatadora da noite. A criatura estendeu o braço e, abaixo das vestes funestas, a

sua mão esquálida se revelara, convidando-o a adentrar. Pela fraca luz da lua que se

projetava de um ponto isolado, vislumbrou um sorriso tortuoso e cansado por

baixo do capuz.

— Venha ao meu encontro, Arturo. — A voz etérea reverberou pela abóbada de

vidro. Ressoava de todos os cantos; vários timbres ecoando ao mesmo tempo em

um tom carregado de mistério. — É chegado o momento de conhecer coisas

assombrosas que não sabes!

362


Capítulo Vinte e Seis

Razão e Emoção

Assentada ao redor de uma fonte, Dhara tocava a superfície incólume da água,

inspirando vigorosamente a brisa fresca da manhã a agitar as flores dos jardins

posteriores, trazendo consigo o odor agradável das madressilvas. A fragrância era

acolhedora e remetia às lembranças longínquas de seus primeiros ciclos como

arcana. O tempo costumava agir de formas misteriosas, brincando com memórias

e sensações de dias tão remotos e que pareciam ter acontecido em uma outra vida.

Chegara à Gradia, afinal. Era o último destino de sua peregrinação pelas principais

cidades do Octaedro de Hegemonia. Por quase um ciclo inteiro, desde que fora

nomeada por Menfesis a nova sacramentadora do mais importante Pilar de Eirin,

dedicara-se a aprofundar seus conhecimentos sobre os fatores climáticos, a

geografia e demografia e bem como as oscilações e vibrações mais características

das três principais cidades, começando por Paragon, depois Cruisand e, finalmente,

Gradia.

Fora um período de intenso aprendizado. Uma enxurrada de informações para

absorver em poucos meses. Muito além do saber a respeito da malha do tempo, a

Peregrinação que precedia a Grande Consagração serviu para aprender sobre

política. As relações politizadas eram um quebra-cabeça de infinitas peças de

tamanhos infinitesimais, que embaralhavam qualquer lógica que aprendera ao longo

de sua carreira. Nem mesmo os intrincados cálculos sobre os muitos ângulos da

malha e suas intermináveis combinações e probabilidades de reações oscilatórias

eram tão difíceis de compreender como as relações com os humanos — e levara

mais de cinquenta ciclos para adquirir tal conhecimento matemático.

Ainda que Borana fizesse questão de realçar como deveria se comportar na

presença das autoridades humanas, para Dhara tudo não passava de uma futilidade

ilógica e desprezível. Perdera a conta de quantas festas, jantares, bailes e cerimônias

precisou frequentar em todos esses meses. Quase toda noite, um evento diferente.

Enquanto ao longo do dia, em suas caminhadas pelas cidades, fazendas, à beiramar

ou nas aglomerações do povo nas ruas, buscava compreender quais

Convergências Sazonais eram características da malha do tempo, à noite precisava

se atentar a cada palavra e instrução de sua madrinha sobre como deveria se

363


comportar no que ela chamava de “a nata da sociedade moderna”. Variadas regras

de etiqueta, modelos de vestidos e anáguas diferentes para cada tipo de ocasião,

formas de iniciar uma conversa com algum rei importante ou mesmo parecer

interessada quando a conversa era entediante. O motivo de tanto aprendizado

sempre lhe parecia banal, embora sua maedor insistisse que seria algo de extrema

importância dali para frente. Evitava admitir, pois saberia o quanto isso magoaria

Borana pelo tanto que ela se dedicara em transmitir eras de conhecimento a respeito

dos homens poderosos, mas tal conhecimento exalava uma sórdida mesquinhez a

que os Pilares dos Octaedros eram obrigados a incutir em suas cabeças, moldando

o próprio caráter ao que era imposto pelos poderosos, tendo que conviver com o

que considerava, desde o primeiro evento que participou, uma ode à ganância, à

futilidade, ao narcisismo e às emulações. Sentimentos antagônicos ao que a

verdadeira religião dos elfos tanto apregoava. A dura realidade que se forçava a não

admitir: puritana para as camadas mais baixas da sociedade e lasciva para os

poderosos, a Sacramentação se prostituíra com o luxo, o requinte e o poder

daqueles que governavam o mundo.

Capturou algumas pétalas de madressilvas repousando sobre o espelho d’água e,

então, levantou-se da borda da fonte. Admirando o entorno da cidade, dos jardins

do palacete, vislumbrou a Casa dos Guardiões, bem no centro de Gradia.

Imponente, reluzia aos primeiros raios do sol e se destacava em meio às demais

construções. O conto popular mais famoso era de que os Guardiões precisavam de

um lugar para abrigar seu famigerado Conselho — do qual fariam parte os anciãos

e os mais destacados das principais famílias guardiães. Contudo, não consideraram

as cidades mais famosas do mundo, Cruisand e Paragon, como os melhores

destinos. Não eram dignas o suficiente, mesmo tendo emanando sobre elas os

Pilares da Magia e possuíam uma fama que ofuscaria o brilho de uma sede para o

famigerado Conselho. Precisavam de uma cidade só para eles. Uma cidade para

construir um monumento que fosse tão deslumbrante e suntuoso quanto as torres

mágicas de puro poder. Queriam ter seu próprio destaque no mundo. Como era

impossível competir com os dois maiores destinos de Eirin, decidiram ocupar uma

cidade mais próxima e torná-la tão famosa com as outras duas. Escolheram Gradia,

que antes se chamava Older-Agana, e a tomaram para si, separando-a

definitivamente de Vervaz. Reformaram-na por completo, apagando para sempre

qualquer resquício da antiga vila paupérrima de pescadores que um dia existira ali.

Ergueram em tempo recorde dois magníficos museus, uma imensa arena, sete

auditórios e um colossal anfiteatro com dezenas de aposentos luxuosos,

posicionado estrategicamente bem no meio da cidade e de frente para o mar,

chamado até os dias atuais de A Casa dos Guardiões. Tudo com muito ouro, joias,

metais mágicos refinados e bastante requinte. Ouvira essa mesma história, com

pequenas e irrisórias variações, de três pessoas distintas nos lugares por onde

364


passou, nas vezes em que não precisava estar rodeada de reis, duques, princesas,

governadores ou sacramentadores e suas conversas mesquinhas e entediantes.

A saudade dessa vida simples da qual precisou abdicar ainda era uma constante

em sua vida. Mesmo que tentasse não dar vazão a esses sentimentos tão humanos,

era inevitável. As conversas com gente simples, as velhas histórias de seu pai, as

receitas de sua mãe: esses momentos peculiares na rotina de pessoas normais eram

mais valiosos e marcantes do que tantas festas e cerimônias com gente importante

que mal conhecia. Pessoas comuns em rotinas comuns revelavam muito mais sobre

a cultura e a sabedoria de um lugar do que aquelas com quem precisaria conviver a

partir de sua Consagração.

Esvaindo da mente tais pensamentos que não levariam a lugar algum, contemplou

novamente a imponente Casa dos Guardiões e suspirou. Logo, conheceria o Leão

de Gradia. Estivera nos mesmos eventos que ele ao longo do ciclo, mas jamais

foram apresentados oficialmente. Borana sempre tecera inúmeros elogios ao líder

do Conselho dos Guardiões: um homem culto, douto em variados temas e

absolutamente reservado. Salazar Stanhorne era o tipo de homem íntegro que

prezava pelo cumprimento das leis e pelo equilíbrio entre os poderes mágicos e que

não admitia qualquer forma de corrupção. A madrinha insistia que ela precisava

causar a melhor impressão possível. Afinal, substituir o ilustre Sisno Sannfrye, o

elfo que era um verdadeiro ícone dentro da Ordem e de quem Stanhorne era amigo

íntimo, seria uma difícil missão. Faltava pouco menos de um mês para o último

evento da exaustiva programação que encerraria sua Peregrinação e consequente

era preparatorem: o Ano da Elegibilidade. Inédito em toda a história de Eirin, lera

incansavelmente sobre isto nos muitos regimentos dos Guardiões. Quando os

cinco Guardiões nomeados de Eirin declinavam de seus postos em um período

inferior a um ciclo completo, fosse por sucessão real, morte, desaparecimento ou

abdicação em função da idade ou cargo, o Conselho deveria reunir-se em

assembleia de três dias e declarar um período preparatório nos reinos-guardiões

para uma ascensão em cada continente dos cinco novos Protetores Mágicos. Um

novo Círculo dos Cinco ascenderia e uma cerimônia com três grandes eventos

marcaria este momento ímpar. Gradia seria o palco do primeiro evento, uma prova

para testar a lógica dos Cinco. O segundo evento aconteceria em Paragon, com

uma demonstração do poder dos novos Guardiões. Cruisand, por fim, abrigaria o

evento em que a habilidade de liderança seria testada. Com isto, o novo líder do

Círculo dos Cinco seria nomeado. Uma fascinante — e espalhafatosa — forma de

comemorar a nomeação daqueles que deveriam garantir o cumprimento das Três

Leis Primazes e a segurança das nações.

Passado isto, viria a Grande Consagração. Os novos Oito Pilares retornariam de

suas peregrinações após um ciclo e se reuniriam outra vez em Purysia. Seriam

lavados com óleos de mirras adanescas para se purificarem do mal e de quaisquer

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contaminações que pudessem ter adquirido nesses meses. Por cinco dias, deveriam

rezar os cordéis frugais e alimentar-se apenas de água, damascos, romãs e nêsperas.

O banho com óleos aromáticos de ouro e nardo era o último passo do ritual de

preparação. Vestiriam túnicas e mantos de seda branca costuradas com fios

dourados e se apresentariam no Átrio da Ordenação, onde seriam aclamados como

os novos Oito Pilares da Sacramentação do Tempo. No Átrio da Ordenação, a

aclamação dos novos Oito marcaria um novo tempo dentro da Ordem. Uma nova

era para oito elfos sacramentadores, cheios de falhas, anseios e temores como

qualquer outro elfo, demonstrarem seu valor na proteção do tempo, garantindo a

consonância mágica que lhes cabia.

Ansiava por este grande dia, vislumbrando seu retorno à Purysia para tal

momento majestoso e único em sua história de vida, mas uma dúvida ainda

atormentava seu coração. Uma confusão que sob hipótese alguma deveria existir.

Buscava de variadas formas fugir de um sentimento tão tolo e mais do que proibido

que, no entanto, jamais experimentara. Além do Salão de Vidro, com a brisa da

noite assoprando sobre ela, o gosto daquele beijo ainda estava marcado em sua

memória. Por mais que lutasse contra, não conseguia não pensar em Louk Savya.

Ao final de cada noite, ao deitar a cabeça sobre o travesseiro, a imagem de seu rosto

grudado ao dela, de seus lábios beijando-a com ternura, das mãos dele acariciando

sua pele e cabelos. Sonhos impuros e involuntários se seguiam a isso. Sentimentos

proibidos de coisas que ela nunca experimentou, ansiando saber o que havia além

de seus beijos. Arrepios lascivos percorriam seu corpo e faziam-na estremecer.

Desejava-o ardentemente, de um jeito inimaginável. Ainda que lutasse contra e se

forçasse a não admitir, estava perdidamente apaixonada por um guardião que lhe

roubara um beijo em Paragon e a beijara ardentemente, escondido da visão de

todos, em Cruisand.

Surpreendendo-a, ele fez uma declaração que a deixou desconcertada. Desistiria

de tudo por ela. Abdicaria do principado, da indicação a Guardião, das riquezas,

unicamente para poder viver em função desse amor até o fim de seus dias. Tais

palavras balançaram seu coração de uma forma tão humana. Antes que pudesse

concluir sua justificativa, ele a beijou novamente; dessa vez, ardente e calorosa. E,

deixando-a com um turbilhão de dúvidas, voltou para o Salão de Vidro sem falar

mais nada.

Queria poder dizer que sim, que também largaria a Ordem, o Octaedro de

Hegemonia, seus ciclos de estudo e preparação para poder viver esse amor que

jamais experimentara. Poder se deliciar com esses sentimentos que a faziam

verdadeiramente feliz, como não se sentia havia muito tempo. A razão e a emoção

travavam um conflito emblemático. O seu maior receio era de que, pela primeira

vez, a razão saísse derrotada desta batalha.

— Admirando o romper da manhã?

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Dhara esboçou um breve sorriso. A voz dócil e suave de Borana interrompeu seu

estado absorto, trazendo-a novamente à realidade. Contornando a fonte no meio

do pátio, a elfo mais velha sentou-se ao lado dela. Elegante como sempre, cruzou

as pernas e contemplou a beleza do sol nascente sobre o longínquo horizonte.

— ‘Contemplando a manhã, o frescor da brisa matutina invade-me e acalenta-me

a alma. Oh, quão magnífica és, estrela esplendorosa que rompe ao amanhecer: atraime

com seu brilho, inspira-me com seu fulgor e enobreces-me o espírito, aditando

ao conhecimento a sabedoria e o seu valor’.

— Ah, os Cânticos Sacros de Alindoor! — exclamou Borana, extasiada —

Admira-me que ainda te lembres desses versos tão revigorantes. Demonstras uma

memória salutar incomparável. A última vez que tive contato com eles foi há

algumas eras, quando ainda era uma jovem arcana.

— Jamais os esqueci, madrinha — sussurrou Dhara, enlevada com as lembranças

do aprendizado dos Cânticos Sacros. — Fora uma época deveras marcante para

minha aspiração ao sacramental aprendizado. Devaneios de momentos singulares

em que se exigia pouco mais do que manter a mente aberta ao saber iminente.

— A singularidade é uma utopia, minha doce Dhara. — Borana ainda

contemplava o horizonte; os olhos vidravam em ponto algum no esplendoroso

dilúculo. — Embora as pessoas, quer homens, elfos ou outro ser vivente derivado

da racionalidade, dediquem-se ardentemente a escapar ou esgueirar-se de seus

destinos, há uma beleza inigualável no que tange a complexidade. Poucos são os

doutos, seres dedicados a compreender tais sistemas e biotas, que de fato são

versados a respeito desta temática. A maior parte dos que desejam e tentam,

fracassam: enlouquecem durante o caminho. Compreender a complexidade é uma

via de mão única, sem retorno. Aqueles que se entrelaçam com o emaranhado

abstruso e intrincado que permeia os muitos sistemas desta vida são virtuosos e

dignos de louvor.

Dhara mirou o rosto de sua maedor. Não havia uma nota de alteração. Como

sentara sobre a amurada da fonte, ela permanecia. Pernas cruzadas, mãos no joelho,

a elfo mais velha tecia seu discurso como quem comenta lembranças formidáveis

de sua história de vida. Eram nesses momentos que ela buscava concentrar-se em

cada palavra da madrinha, ouvindo-a atentamente. Considerava maior sabedoria

nisto do que nas muitas regras de convivência dentro da alta sociedade.

— O motivo pelo qual os que almejam desvairam-se ou cedem ao longo do

caminho é porque não estão preparados para tal grandeza. Compreender o

complexo é uma arte. É percorrer tortuosas vias, cujas curvas estão repletas de

aprendizados sutis que carecem de contemplação peculiar para que se possa extrair

aprendizado. Invariavelmente, é decidir contra os próprios princípios. Remar

contra a maré que te impulsiona, mas também deixar que a maré te carregue por

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um pouco de tempo, em nome de uma virtude ainda não conhecida ou

desesperadamente desejada.

Uma breve pausa se seguiu. Nada mais do que o silêncio perdurou entre as duas.

A brisa da manhã assoprou pelo grandioso pátio, provocando pequenas oscilações

sobre as águas mansas da fonte, retinindo nos ouvidos das duas elfos.

— Entender o complexo, Dhara, exige tempo. — Borana encarou Dhara pela

primeira vez, desde que viera ter com ela. — Exige paciência. Exige contemplação.

Exige abnegação. Minha adorável aprendiz, minha doce arcana que muito em breve

tornar-se-á uma líder importante neste mundo mau. Abraçar as responsabilidades

de um Octaedro é chegar ao ápice do aprendizado sobre a complexidade. O ápice

da complexidade da malha do tempo é alcançado através de muito estudo e

preparação, algo que, a essa altura, sua mercê demonstra total domínio e apreço.

No entanto, a complexidade do emaranhado de incertezas que permeiam esta

sociedade exige muito mais do que tão somente teorias e conhecimentos escritos.

É tácito. Doutorar na complexidade desta sociedade é cultivar a paciência em temas

que não se explicam pela razão. É relacionar-se com o que se ufana, ainda que a

razão puritana da sacramentação repudie com substancial veemência essas relações

desprezíveis. Dominar a complexidade desta sociedade é entrelaçar-se com o

execrável e, ainda assim, manter-se lúcido e são. Entendes isto, minha doce Dhara

Lovrens?

Dhara encarou a madrinha. Uma firmeza obstinada exalava em sua voz. A maioria

de seus conselhos sempre parecera habitar o limiar de uma superficialidade, aquém

à vasta experiência e saber de eras que tanto ansiava. O discurso sempre fora

voltado para relacionamentos, a maioria políticos, comportamento, etiqueta,

postura e liderança. Era a primeira vez que tecia um aconselhamento tocante e

intenso, carregado de alegorias. Enlevada por suas palavras, Dhara não conseguia

esboçar nenhuma reação diante da derradeira questão.

— Nasceste com um propósito, Dhara — continuou Borana, mirando o fundo

de seus olhos, como se pudesse vislumbrar o que perturbava o íntimo de sua alma.

— É notório como a magia do tempo flui em você. Nas suas atitudes, no seu

comportamento, em seus discursos e no teor fundamentado das palavras que

professas em qualquer prosa ou discurso, manifesta-se de uma forma fascinante e

inspiradora a beleza pura da sacramentação. Uma pureza formosa que jamais me

apercebi em qualquer sacramentador que tive a honra de poder lecionar e

acompanhar em suas preparações. O propósito da missão que recebeste é nítido e

cristalino como as águas que jorram desta fonte.

Dhara sorriu. Não esperava de Borana palavras de elogio tão profundas. De sua

parte tivera uma relação de íntima cordialidade e sensatez, típicos de mestre e

aprendiz. Muito em função do curto espaço de tempo para uma preparação de

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posição dentro da Ordem, jamais houvera espaço para amabilidades tão longânimes

entre as duas.

— Não jogues seu dom fora por causa de um sentimento proibido como a paixão.

A sentença categórica fez Dhara arregalar os olhos. Nos instantes em que maedor

e aprendiz se encararam, a mais velha esvaiu o esgar contemplativo e assumiu uma

feição de verdadeira apreensão. Beirava o desespero. Desespero tal que não se

comparava ao que ocupava o rosto da elfo mais nova. Qual seria a possibilidade de

Borana ler pensamentos? Como ela podia saber sobre esses sentimentos que

embaralhavam sua mente?

— Por mais que tenhas tentado esconder, Dhara, há uma notória e crescente

dúvida que sobrepuja a obstinação que antes exalava em ti. Nos últimos dias, em

pequenos detalhes, tenho-me apercebido da presença de sentimentos confusos em

sua pessoa. Há tamanha pureza pelas questões do tempo em ti, que não tendes

como mentir a respeito de emoções tipicamente humanas.

Empertigando-se, Dhara não evitava o olhar de sua madrinha. A voz se mantinha

tão firme quanto em seu discurso inicial. Ela sabia que Borana sabia. O coração

acelerando no peito, com sentimentos e incertezas aflorando à pele, não se atreveu

a emitir réplica ou questionamentos. Apurava os ouvidos, posicionando-se como a

humilde serva e aprendiz que era, para as próximas palavras de sua maedor. O receio

em seu coração — quase uma certeza — era de que seu iminente discurso

terminaria destruindo para sempre a confusão de sentimentos que a dominava.

— Não caias na jactância de acreditar que há um futuro em uma paixão proibida.

Homens e elfos não nasceram para se relacionar nesta vida que se desenrola com

tamanha brevidade. O lugar dos humanos é a tortuosa maldição que os enfada ao

longo dos ciclos. Presunçosos, ignorantes, amantes de si mesmos, são engolfados

pelas próprias bravatas ao longo de suas jornadas. A perdição desta sociedade é

ditada pelas decisões exacerbadas dos homens, motivadas por algo que nós, elfos,

desviamos: as emoções. Os caminhos dos homens, quer mágicos ou não, são

carregados de maldade. Por essa razão, suas vidas são breves.

As folhas e flores ao redor farfalharam com um vento um pouco mais intenso do

que a brisa a assoprar no começo da manhã. O silêncio instaurou-se entre as duas.

Um ruído de pigarro, inesperado, como quem pretende interromper uma reunião

para comunicar algo, fez Borana e Dhara virarem as cabeças para a entrada do pátio.

Sob um dos muitos arcos cobertos de madressilvas do perímetro, Louk Savya

estava parado. As mãos para trás escondiam alguma coisa e emitia um som gutural

na esperança de conseguir interromper a conversa sobre a fonte. Devia estar

aguardando havia algum tempo ali. Cética, Dhara sentiu o coração pulular no peito

em um arroubo repentino de emoções análogas aos da varanda do Salão de Vidro.

Torcia para ele não ter ouvido as últimas palavras de sua maedor.

369


Borana fez um aceno com a cabeça, mostrando um sorriso simpático e autorizou

o jovem guardião a interromper aquela prosa para vir ao encontro delas.

— Rememore o que tenho dito, Dhara — sussurrou Borana ao mesmo tempo

em que se levantava, ajeitando o longo vestido marfim. — Nasceste com um

propósito que sobrepuja qualquer sombra de emoção e sentimento. Proteger o

octaedro que cobre os Pilares da Magia é seu destino. Somente alguém com a

pureza que tens e a liderança que inspiras pode obliterar o mal que os humanos

disseminam e proporcionar esperança às nações por meio da sacramentação.

Sem aguardar por uma resposta ou questão, Borana deixou a fonte e caminhou

em direção ao palacete em que estavam hospedadas. Passou por Louk e

cumprimentou-o cordialmente.

— Essa sua professora é bastante educada — crocitou Louk, ainda escondendo

as mãos. — Fico até com medo de cometer algum delito ou, como vocês gostam

de falar, um pecado na frente dela. Vai que ela me coloca de castigo, ajoelhado no

milho, ou sei lá e...

— Louk!

Dhara interrompeu o discurso do jovem guardião. Louk emudeceu de imediato.

Fez desaparecer do semblante o esgar irônico que sustentava, mas em seus olhos e

feições havia um brilho apalermado típico de emoções humanas. A fisionomia da

elfo era impassível. Aprumou a postura em pé diante dele e se esforçou para seu

olhar não denunciar o misto de sentimentos confusos que a consumia. A voz mais

firme do que nunca. Não haveria jeito de resolver tal dilema de forma fácil.

— Sim, Dhara... — Louk sibilou; o silêncio entre ambos perdurou por mais

tempo do que ela gostaria.

— Não há uma forma de externar a ti tal sentença sem que isto provoque

lancinantes sentimentos, mas é o único modo de encerrarmos esta questão —

prosseguiu Dhara, contemplando as irises azuladas do guardião, esperando não

vacilar em suas próximas palavras. — Nós não podemos ficar juntos.

A expressão de Louk assumiu um tom apreensivo.

— Dhara, é claro que nós podemos... Se é pelo que as pessoas vão dizer, eu...

— Louk, basta! Nossas vidas não estão entrelaçadas no espaço-tempo. Não

existem probabilidades favoráveis para um amor proibido e que beira a bestialidade.

Eu rogo, desse momento em diante: devemos seguir por caminhos distintos.

Suplico sua anuência para que compreendas. Nasci com um propósito cristalino e

devo zelar por tal desígnio.

Inesperado como a lufada de vento que atingiu as madressilvas, fazendo-as

esvoaçarem pelo pátio e cobrir o chão com pétalas amarelas, Louk agarrou Dhara

e a beijou de uma forma intensa e desesperada. Diferente da ocasião no Salão de

Vidro, a elfo não correspondeu. O guardião sentia-se pressionando os lábios nos

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de uma estátua de mármore: sem vida, sem emoções. Impassível, denotava uma

frigidez antagônica ao que ele sentia. Ela sequer moveu os lábios ou tocou-lhe.

Afastando-se dela, Louk não compreendia. Observando no fundo de seus olhos,

não havia em Dhara um pingo de desejo ou paixão. Não parecia ser a mesma de

Cruisand. Aquela a quem tomou nos braços e lhe devolveu um beijo apaixonado e

envolvente. Não havia sentimentos. Não havia nada.

— Eu não te amo, Louk — proferiu Dhara, sem titubear. — Não sinto qualquer

coisa por você. Rogo-lhe, em uma derradeira tentativa: siga seu caminho e eu

seguirei o meu.

Virando-se, Dhara retirou-se do pátio, deixando Louk e seu coração despedaçado

para trás.

371


Capítulo Vinte e Sete

O Anúncio do Rei

Parada em frente a um colossal espelho que ia do chão ao teto, Selena vislumbrava

o próprio reflexo sem um pingo de animação. Drapejada com joias extravagantes,

colares de pérolas que pesavam sobre o pescoço e brincos de rubis e diamantes

quase do tamanho de suas orelhas, encarava a imagem dela mesma que mais

detestava.

Enfurnada dentro de um longo vestido azul-turquesa, grossas gotas de suor

escorriam pelas pernas perdidas em algum lugar no meio das dezenas de camadas

das vestes que era obrigada a usar para dar volume a seus quadris até que ficassem

largos e exagerados como os de uma dona de casa parideira. Os cabelos escovados

foram arrumados em mínimos detalhes, de modo a parecerem muito maiores e

encorpados do que realmente eram. O cocuruto ainda doía pelas intermináveis

horas que precisou se submeter à escova de sua segunda irmã mais velha, Meredith,

até que o cabelo estivesse do jeito que ela queria. Os olhos também não escaparam:

cílios postiços, delineador e sombra se misturavam de um jeito chamativo e

perturbador. Dando o toque final àquela cena execrável refletida no espelho, quilos

de pós de arroz, cremes e outras maquiagens empastavam as maçãs do rosto e

bochechas. Não arriscava dar um sorriso sequer, com medo de desmanchar da face

a dolorosa e exaustiva produção a que fora submetida.

As irmãs mais velhas não paravam de andar de um lado a outro do quarto, dando

os últimos retoques de sua arrumação. Arrochavam o espartilho a cada cinco

minutos, achando que não estava marcando devidamente a cintura — entrementes,

Selena acreditava que em algum momento desmaiaria, com falta de ar, de tanto que

elas o apertavam. As quatro falavam até pelos cotovelos e a cada vez que ela

acreditava que o assunto das irmãs havia esgotado, elas começavam a abordar algum

novo tema sem, contudo, deixar de retocar a maquiagem, alisar o cabelo, posicionar

o barrete sobre o topo da cabeça, ajustar a barra do vestido e decorá-lo com fitilhos

dourados. Estática diante do espelho, perdera as contas de quanto tempo estava ali,

imóvel, sendo arrumada pelas quatro em seu aposento, vendo a aparência singular

pela qual tanto prezava ser transformada em um emaranhado de roupas fúteis e

pintura facial para disfarçar imperfeições.

372


Meredith Vycard era a mais espalhafatosa e perfeccionista. A segunda mais velha,

não tinha tanta sabedoria quanto Caeleen, a primogênita, e tampouco sua

delicadeza. Perdia a paciência com grande facilidade. Fora a responsável por fazer

da infância de Selena um verdadeiro inferno. Transformou a irmã caçula em uma

espécie de serviçal em tempo integral. No fundo, Selena agradecia a irmã por esses

dias terríveis. Aprendeu a ser forte e destemida e a resolver qualquer tipo de

problema por causa dela. Quando atingiu a maioridade, casou com um nobre

qualquer de Amistelar e sumiu de Aladar. Vez ou outra, lembrava que tinha família

e uma mãe idosa e regressava à Miliat, com suas conversas fiadas e assuntos fúteis.

Ao contrário de Meredith, Caeleen era um doce de pessoa. Particularmente, para

Selena, a mais bela de suas irmãs. Casada há quase dez ciclos e com três filhos,

tinham uma habilidade descomunal de manter os cabelos castanhos sempre

brilhantes e escovados. As unhas eram impecáveis e bem cuidadas. A maquiagem

no rosto realçava os belos traços naturais, fazendo-a parecer muito mais nova do

que era. Selena não entendia como a irmã mais velha conseguia conservar uma

aparência de dar inveja, cuidando do marido e de três filhos. Visitava os parentes

em Namit com muita frequência e sempre passava as férias de verão na casa da

mãe. Desembarcava em Miliat abarrotada de presentes, desde tecidos finos e

vestidos de gala feitos por ela até compotas de doces de abóbora e geleias de laranja

e banana. Era de longe a irmã favorita, principalmente pelo número infindável de

mimos que recebia dela. O marido, Lorde Randell Gundorf, era um amor de pessoa,

o homem perfeito para ela. Amoroso e atencioso, passava intermináveis horas

papeando com seus tios de Namit e adorava acompanhá-los nas pescarias à beiramar.

Julien e Joline eram gêmeas. Foram as irmãs com quem mais brincou na infância,

antes de se mudarem para Badorian, para estudar na Academia dos Guardiões.

Ambas tinham uma conexão esquisita, que Selena atribuía a uma magia própria das

gêmeas. Costumavam ter os mesmos sonhos, sentir as dores uma da outra, ter os

mesmos gostos por roupa e até as mesmas manias. Chegavam a completar a frase

uma da outra em várias ocasiões. Eram divertidas até que conheceram seus maridos

e ficaram irritantemente esnobes e sem graça. Não que eles fossem esnobes, mas

com a vida de condessa que passaram a levar em Badorian, a realidade de luxos e

as responsabilidades na alta sociedade mudaram-nas completamente. Vinham com

alguma frequência à Namit, geralmente nas festas de fim de ciclo e no aniversário

da mãe. Não cansavam de contar as mesmas histórias de como a vida em Eurodian

era muito melhor do que em Aladar e outras intermináveis ladainhas irritantes.

Quase dois meses se passaram desde aquele fatídico dia em que sua vida fora

virada de cabeça para baixo. As notícias se espalharam como fogo consumindo

palha seca. A queda do Trono de Jaspe. O palácio invadido na calada da noite por

uma legião misteriosa e sem rosto circulou rapidamente pelos reinos vizinhos e até

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para outros continentes. Caeleen, Meredith, Julien e Joline desembarcaram com

seus maridos em Miliat com uma comitiva vinda de Amistelar e de Badorian poucos

dias após a invasão. Os primeiros a chegar foram representantes do Conselho dos

Guardiões. A cidade ainda crepitava e os primeiros raios solares surgiam no

horizonte quando o tal Zanotchka chegou à capital. Selena reconheceu-o de

imediato. Lembrava dele na reunião na casa do rei de Neergúria e foi o primeiro a

se retirar após a discussão. Somente quando a poeira abaixou e as cinzas assentaram

sobre as ruas pilhadas de corpos e escombros que todos tiveram dimensão do

tamanho do ataque.

As explosões, os clamores e súplicas por misericórdia, pedras rolando e espadas

tilintando ainda ecoavam no fundo de sua mente como memórias agourentas de

um momento digno de ser esquecido. À noite, quando as trevas dominavam os

céus, ao deitar-se sobre a cama, terríveis pesadelos a assombravam. As primeiras

madrugadas foram as mais difíceis. Durante muitos dias, desejou fugir daquele

lugar. Ansiou por retornar à Namit, ao conforto da casa de sua mãe idosa, mas algo

em seu íntimo gritava que ainda não era hora. Parada ali, em um dos poucos

aposentos do castelo que não tinha se tornado meros escombros esturricados ao ar

livre, segurava as lágrimas que teimavam em querer escorrer pelo rosto pintado,

aguardando o término dos últimos arranjos em seu vestido. A ladainha de suas

irmãs mais velhas não conseguia impedir as lembranças daquela madrugada

retornarem para atormentar sua mente. Com as memórias, relembrava o motivo do

porquê ainda não era hora de deixar Miliat.

O fogo consumia a cidade para além dos muros do castelo. Berros horrendos,

súplicas e o choque de espadas retumbava pelos corredores, aposentos e salões.

Zakkar ainda estava a meio caminho do chão e ela sentia que o tempo estava se

esgotando. Naquela noite, muito antes do ataque surpresa, tivera um presságio

ruim. Por ser a filha temporã de uma família com quatro irmãs, fora obrigada desde

nova a se ater aos pequenos detalhes para não cometer nenhum deslize. Os

cuidados com a barra do vestido, atenção às peculiaridades das regras de etiqueta,

entender para que serve cada um dos talheres à mesa, entender os sinais das pessoas

de quando está sendo entediante, expressiva demais e tantas outras minúcias.

Acabou se tornando uma notória observadora. Quando o crepúsculo atingiu seu

ápice em Miliat e retornou ao palácio para se preparar para o jantar, notou um

comportamento estranho dos guardas. Entrementes, seriam gestos e olhares que

passariam despercebidos para qualquer membro da realeza — o que, de fato,

aconteceu. Mas não para ela. Os sinais estavam ali. Irrisórios, quase imperceptíveis.

Por baixo da armadura pesada com a Fênix Indomável marcada sobre o peitoral,

os olhares eram ansiosos, piscavam mais do que o normal. E mais do que o normal

para guardas dos portões, que deveriam manter-se impassíveis e estáticos, eles se

mexiam, trocavam de perna, tremiam as mãos que seguravam as lanças. Os

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primeiros ruídos anormais surgiram à meia-noite, uma agitação fora do comum.

Espadas agitando-se, armaduras rangendo de forma diferente, passos pressurosos

pelos corredores. O mau agouro se confirmava. Alta traição. Uma conspiração para

tomar o Trono de Jaspe. Se antes estava agitada e sem sono, naquele momento

estava atônita, acordada e de prontidão.

Levantando-se de fininho da cama, esgueirou-se por uma das passagens secretas

que iam de seu quarto até as varandas da ala leste do castelo. As passagens secretas

se espalhavam por pontos estratégicos dos andares superiores e levavam até às

galerias subterrâneas e dali para uma saída nas galerias de águas torrenciais que

saíam nos campos de centeio, mais de cinco quilômetros longe do palácio. Fora

projetada para uma fuga, em caso de emboscada, para a família real. Zakkar e ela

conheciam essas passagens como a palma de suas mãos. Adoravam brincar de

esconde-esconde por ali. Perdera a conta de quantas vezes derrotara o tapado do

Guilloch na brincadeira, que jamais descobriu sobre a rede de túneis secreta. O

vento assoprava pela varanda, agitando as trepadeiras ornamentais que pendiam

dos arcos. Lá embaixo, ela vislumbrou algo que a deixou boquiaberta: uma legião

de soldados marchava, silenciosa. Espreitavam as principais entradas do palácio,

espadas em riste, rumo a um ataque iminente. Num instante, estacou. Uma

explosão eclodiu na ala norte. Correndo pelos corredores da passagem secreta,

subiu ao ponto mais alto da maior torre para ver o que estava acontecendo. Os

olhos refletiam uma cena aterradora e inacreditável: a capital estava em chamas.

Exércitos negros letais pilhavam as casas e construções no entorno do castelo,

assassinavam pessoas e soldados de Miliat, ogros aterradores eram soltos pelas ruas,

destruindo tudo o que viam pela frente. A legião vultuosa invadiu os portões de

entrada do palácio em questão de segundos, fazendo suas armaduras chacoalharem

com estrépito. Atarantada, retornou às passagens secretas para poder avisar ao rei

sobre a emboscada. Vozes ameaçadoras engrolavam algo em um dialeto que ela

não soube reconhecer. Estavam perto demais. Gritos e súplicas ecoaram de

repente. Uma nova explosão. Vozes vociferavam como se estivessem a metros de

distância. Uma sombra passou por seus olhos e então, se deu conta: estavam usando

os corredores ocultos para impedirem qualquer fuga. Lançou uma magia no acesso

à varanda e correu desabalada até seu quarto. Dali em diante, nada tirava de sua

cabeça que alguém internamente os traíra.

A voz do lado de fora do quarto de Zakkar ficou mais alta, ensurdecedora. O

amigo guardião descia muito mais devagar do que deveria pelo emaranhado de

lençóis amarrados. Revirava os olhos pelo fato de ele ser astuto e fugaz algumas

vez e tão lerdo quando precisava ser mais ágil. Não poderia culpá-lo, contudo. Ver

o pai ser assassinado a sangue frio, os tios e tias, os demais amigos da família sendo

postos de joelho, aguardando uma morte iminente, em uma emboscada traiçoeira

na calada da noite, deveria ser algo perturbador. Ser obrigado a fugir para evitar

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uma morte certa, sem rumo, a esmo e ainda sem garantias se sobreviveria.

Provavelmente, não teria essa reação se fosse com ela. Se fosse sua família, as irmãs

ou mesmo a mãe ajoelhada e prestes a morrer, não tinha nem ideia do que teria

feito.

Batidas frenéticas na porta ecoaram dentro do aposento. A voz do lado de fora,

grave e ameaçadora, clamava por um nome específico: o de Zakkar. Não era uma

invasão para exterminar o clã dos Ayarza, Vycard e Greenhan. Por que não

gritavam por ela? Era uma chacina direcionada, o alvo principal era a família real.

Quem estivesse no caminho ou tentasse impedir, morreria, mas o objetivo final era

extirpar os Ayarza. A fechadura não aguentaria por muito tempo e logo a madeira

da porta se romperia pelos esmurros, socos e pontapés que alguém dava sem parar.

Ameaças contundentes bradadas a plenos pulmões ao príncipe de Miliat ecoavam

do lado de fora. Estava ficando sem tempo. Decidiu que precisaria arriscar. Era

tudo ou nada.

A porta do quarto de Zakkar se escancarou. Escondida atrás dela, Selena

vislumbrou as costas do soldado inimigo varrendo o perímetro ao redor,

empunhando uma espada em riste, pronto para atacar. Enfurnado em uma

armadura preta, uma longa crista vermelha pendia de seu capacete pitoresco. Por

instantes, acreditou ter visto aquela armadura peculiar em algum lugar, mas não

conseguia lembrar de onde. Levado pela curiosidade, o soldado observou a cama

vazia e correu até a janela aberta.

Sem titubear, Selena inspirou profundamente.

Os pulmões se inflaram de ar e ela segurou a respiração. Selena moveu os dedos

com destreza e deles fez fluir sua magia. A porta se fechou outra vez em uma fração

de segundos. Percebendo o movimento, o soldado virou-se e encarou uma guardiã

enfurecida, ainda de camisola e cabelos despenteados, prestes a acertar um golpe

em sua cabeça. A esquiva do inimigo armadurado não estava em seus planos e

Selena viu-se desferindo um, dois, três, quatro socos enquanto ele desviava de todos

com agilidade.

Levantando a espada, foi a vez de ele revidar. Desferiu golpes mortais e

desesperados a esmo. Selena conseguia escapar da lâmina, cortando os ares com

ruídos abafados, por questões de milímetros e frações de segundos, esgueirando-se

e pulando pelo quarto como podia, derrubando móveis e quebrando o espelho.

Essa não podia ser uma briga tão difícil. Não era um soldado tão preparado assim.

Outra vez, sua magia se manifestou.

Reluzindo pelo quarto, uma serpente de águas elementais emanou de seus dedos

e enroscou-se sobre a armadura negra do soldado, cobrindo cada centímetro de seu

corpo, como uma víbora prestes a devorar sua presa. Apertando-o vigorosamente,

ela movia os dedos, fazendo a cobra elemental enrolar-se mais e mais. Estalos

tonitruantes ressoavam pelo quarto. Cada osso era esmagado no aperto que se

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intensificava. Tomando o cuidado de cobrir a boca e evitar gritos desesperados,

denunciando sua posição, o rosto do guerreiro se contorcia de dor. Convicta de

que já não havia ossos para quebrar, Selena fez a serpente elemental desaparecer e

largou o soldado, que caiu como pastel amassado sobre o assoalho.

Uma ideia se formava em sua cabeça. Precisava agir rápido porque sabia que

outros inimigos viriam atrás do primogênito do rei, já que ele não estava de joelhos,

pronto para o abate, diante de seus algozes. Assegurou-se de que a porta ainda

estava trancada e lançou uma magia para mantê-la bloqueada. Conferiu a passagem

secreta do quarto e torcia para que sua outra magia na varanda ainda estivesse

impedindo os soldados inimigos de chegarem até ali. Certa de que nada a

atrapalharia, puxou alguns lençóis do armário de Zakkar, tantos quanto conseguiu.

Enrolou o soldado dos pés até o pescoço, como se estivesse colocando aquele

corpo moribundo para dormir. Ergueu-o do chão com alguma dificuldade e o pôs

sobre a cama. Curiosa em saber se suas expectativas eram verdadeiras ou não,

puxou o capacete para descobrir se era um soldado da realeza traindo seu próprio

rei ou algum infiltrado de um exército inimigo e desleal. Abaixo do pesado elmo

negro, um rosto moreno e careca se revelou. O nariz era bulboso e variadas marcas

do que pareciam cortes superficiais de lâminas se revelaram. Não era alguém que já

tivera visto em Miliat. Contudo, algo chamou sua atenção. Abaixo do pescoço,

próximo à nuca, uma marca redonda, rústica e grosseira, como um feitiço de

runasmagiam, mas feito às pressas. Era de um vermelho vivo e reluzia fracamente.

Runasmagiam demoravam pelo menos três dias para cicatrizar e se assemelhava à

uma marcação feita à ferro quente, como os que usam para assinalar bois e vacas.

No entanto, ela não sabia distinguir de onde era aquele sinal. Não pertencia a

nenhum reino vizinho. Não era a insígnia de qualquer reinado em Aladar.

Recostando a cabeça do soldado desconhecido sobre a cama como quem acaba

de embalar um bebê, Selena correu até a porta da entrada secreta. Moveu os dedos

acima da cabeça, fazendo um rodamoinho no ar. Uma chama brotou das palmas

de suas mãos e ela foi moldando e moldando até que assumiu o formato de uma

pequena esfera. Continuou aumentando a bola de fogo até ela ficar pesada de mais

para suportar. A esfera incandescente caiu sobre o chão, chamuscando o assoalho

de madeira, sem parar de ganhar volume e tamanho. Atingiu o teto em fração de

segundos e as vigas começaram a estralar. Selena trancou a portinhola da passagem

secreta e tomou distância por uma das galerias estreitas, com precaução.

Vozes distintas surgiram no quarto. Quatro, cinco, talvez seis timbres diferentes.

Exaltados e ameaçadores. Certa de que estava a pelo menos cinco dormitórios de

distância do quarto de Zakkar, pressionou o polegar contra o dedo médio e

instintivamente tapou os ouvidos.

Um estalar de dedos foi suficiente.

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Uma explosão de proporções estratosféricas pode ser ouvida até por quem lutava

pela vida nas ruas além dos muros do castelo. As estruturas do palácio tremeram

com o impacto do estouro e, onde estava, Selena sentiu um bocado de poeira cair

sobre a sua cabeça. Aguardou um pouco mais e tirou os dedos dos ouvidos. Torcia

para que a bola de fogo elemental tivesse estourado antes que os demais soldados

inimigos descobrissem sobre o corpo moribundo enrolado na cama. Embora, pelas

proporções da detonação, não acreditava que alguém teria sobrevivido para contar

a história. A ideia era forjar a morte de Zakkar, causando um pequeno incêndio no

quarto. Talvez tivesse exagerado um pouco na intensidade de seu poder.

Ofegando, mas tentando manter a cabeça no lugar, fervilhando com inúmeros

questionamentos sobre a marca misteriosa no pescoço do soldado inimigo, Selena

se esforçava para manter o foco. O sono começava a afetar suas faculdades mentais.

O dia fora exaustivo e sequer conseguira pregar os olhos. O choque de que tudo

aquilo era real a atingia como um soco inesperado na boca do estômago. Através

do estreito corredor das galerias da passagem secreta, sorver o ar úmido e

impregnado com pó que se precipitava do teto baixo, era quase impossível.

Desejava que tudo aquilo fosse um terrível pesadelo e que logo acordaria para sua

vida normal. Que logo despertaria e poderia disputar corridas a cavalo com Zakkar,

aprontar alguma peça com Guilloch e jantar à mesa com Lorde Bartel e Lady Elma.

Infelizmente, a dura realidade a perturbava. Uma conspiração tomara a cidade de

assalto. Saber que jamais veria tio Bartel, assassinado diante de seus olhos, e

provavelmente Bernat, tia Elma, Tordund, Olotiel, tia Tressilda, tia Prisca, tio

Ansell, era difícil demais de aceitar. E Zakkar. Ah, Zakkar. Arrepios de temor

percorriam seu corpo ao pensar que talvez jamais fosse reencontrar Zakkar outra

vez. Que provavelmente o encontrariam durante a fuga e que o matariam sem dó,

nem piedade. Fugir pela janela talvez não fosse a melhor das ideias. Se tivesse

pensado melhor e arrumado uma forma de escondê-lo.

Os olhos se enchiam de lágrimas e, em meio ao pó cinzento e à escuridão que

cobria as galerias, Selena se via sentada sobre o piso gelado, com os cotovelos

apoiados em cima dos joelhos, segurando o próprio rosto. Soluços involuntários

escapavam de sua garganta. O choro era inevitável e angustiante e impossível conter

as lágrimas escorrendo entre seus dedos. A dura realidade que se desenhava a fez

desejar uma morte rápida.

Um ruído inesperado, seguido de um brilho incandescente fez os sentidos se

aguçarem. Os soluços cessaram, assim como as lágrimas desapareceram no mesmo

instante. Metal batendo contra metal ecoava, estrepitoso, pelas galerias e lá no final,

onde os túneis faziam uma curva e subiam em direção aos aposentos do rei, ela

vislumbrou dois soldados enfiados nas grosseiras armaduras negras, com uma longa

crista escarlate, esgueirando-se pelo caminho. Um deles carregava uma tocha na

378


mão, alumiando o caminho. Ambos, com espadas longas erguidas, na iminência de

encontrar algum fugitivo.

Os olhares dos inimigos se encontraram com os olhos marejados de Selena, no

único fio de luz que tremulava sobre as galerias úmidas. Houve um infinitésimo de

milésimo de segundo em que as reações dos três pareceram durar infindáveis

minutos de tensão. Expressões sobressaltadas, os cabelos da nuca em pé, ouvidos

aguçados, uma surpresa patente que fazia descair o maxilar em marcha lenta e

desejos antagônicos em cada lado do estreito corredor: o de vida e o de morte.

No instante do tempo em que a realidade cessou de transcorrer tão lentamente,

Selena saltou de um pulo. Esquecendo os sentimentos depressivos, o desejo de

morte logo se transformou em um ardente anseio pela vida e, muito mais, por uma

sede insaciável de justiça. Correu desabalada na direção oposta, com os pedregulhos

do corredor machucando seus pés e a cabeça batendo em pontos mais baixos pelo

caminho. Seguia sem um destino certo, sem se dar conta por onde ia. A escuridão

era sua única amiga naquele momento e desejava poder ter um pouco de sorte a

seu favor. Os ouvidos apurados no intenso breu sufocante eram invadidos com o

som metálico das armaduras dos soldados se agitando enquanto eles corriam para

alcançá-la, gritando ameaças no dialeto desconhecido do mesmo soldado que

matara no quarto. Dobrou uma esquina e depois outra. Atrás dela, mais passos

pareciam ter se juntado aos que a perseguiam em constante aceleração. Novas vozes

ecoaram de súbito e, então, teve certeza de que havia bem mais do que os dois

soldados que avistara anteriormente em seu encalço. Percebeu que precisava agir.

E se o exército inimigo estava cercando todas as entradas e saídas das passagens

secretas? Se havia homens perseguindo-a logo atrás, haveria outros nos principais

pontos de fuga. Era tolice acreditar que conseguiria escapar pelos túneis se, como

acreditava, uma conspiração se desenrolava no castelo. Quem quer que fosse, devia

ter pensado nisso por meses, por ciclos, arquitetando cada pequeno detalhe,

estudando todas as entradas e saídas, inclusive as secretas, nos poucos pontos de

fuga existentes. Teria de fazer alguma coisa e o mais depressa possível. Não sabia

que rumo estava tomando e nem se tal caminho a levaria à salvação ou perdição.

Seria arriscado outra vez, mas era necessário. Situações extremas demandavam

medidas extremas.

Ofegante e com o coração pulsando no ritmo de sua corrida, adentrara um declive

quando uma nova ideia lhe ocorreu. Os pés escorregaram em seu freio abrupto. As

vozes aterrorizantes se aproximavam e a luz bruxuleante da tocha ficava um pouco

mais viva, conforme avançavam. Selena se deu conta de que nenhum deles lançara

sequer uma magia em sua direção. Torcendo para que não houvesse nenhum

alquimestre na tropa prestes a colidir com ela, a guardiã sorveu todo ar que podia e

prendeu a respiração. Torrentes de águas elementais jorraram de suas mãos abertas

pelos corredores estreitos. Os jatos, como de quedas d’água violentas, logo

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inundaram os túneis, do chão ao teto, cobrindo cada milímetro. A intensidade das

muitas águas arremessou os soldados inimigos contra as paredes encharcadas. As

minúsculas galerias interligadas que antes serviam para uma fuga da família real,

pareciam dessa vez uma estreita piscina, imergida em um vigoroso negrume.

Mergulhada na escuridão, Selena segurou o pouco ar que ainda tinha nos

pulmões. Desesperada por oxigênio, observava somente as trevas tonitruantes ao

seu redor, com uma pressão terrível sobre os ouvidos. Na esperança de que seu

poder tivesse matado seus perseguidores, ela lançou uma magia em uma parede

antes que os pulmões estourassem e morresse afogada ali mesmo.

As paredes se romperam como numa explosão atroadora e as águas mágicas

jorraram para fora com violência. Selena foi arremessada do interior dos túneis

secretos como se cuspida de um vertiginoso tobogã. Sorveu o ar com força e

arrastou-se pelo chão de pedra. Os pulmões latejaram quando se colocou de pé. A

cabeça girou e, por um momento, achou que desmaiaria. Ensopada, coberta de

arranhões nos braços, pernas e no rosto, mas com o coração palpitando pela

adrenalina, ainda se acostumava à claridade pungente do lado de fora, quando se

deu conta de onde havia saído. O piso de mármore polido do vestíbulo circular de

acesso aos aposentos do segundo andar do castelo refletia os poucos archotes que

ainda permaneciam acesos, presos à parede. Um imenso rombo na parede à

esquerda dava vista para a cidade queimando e uma longa coluna de fumaça preta

subia em direção aos céus. Uma esplendorosa lua cheia reinava sobre a abóbada

celeste livre de nuvens. Com águas na altura das canelas, escorrendo pelas escadarias

e pelo buraco abissal na parede, viu no entorno vários guerreiros miliatenses

embrenhados em embates violentos contra os soldados inimigos. Ainda aturdida

com os últimos acontecimentos, uma dor lancinante perturbava sua cabeça.

Começava a sentir um esgotamento físico, principalmente depois de usar tantas

magias que exigiram bastante esforço. Estava ficando sem energia, até mesmo para

manter-se em pé.

Uma marcha avassaladora irradiou para além das escadarias. Acabrunhada, Selena

vislumbrou legiões de soldados de armaduras negras avançando em direção ao salão

do segundo andar. Carregavam espadas, lanças e tochas, vindo como uma força

demoníaca para extirpar qualquer viva alma que estivesse pela frente. Observou as

pilastras mais próximas das escadarias, sentindo o cansaço pesar em suas vistas. A

que estava perto do rombo na parede fora afetada gravemente pelo que quer que

tivesse feito aquele buraco enorme. A outra ainda estava intacta. Entreviu os

soldados de Miliat ao seu redor resistindo com suas últimas forças ao avanço dos

inimigos, perdendo a batalha e também suas vidas. O derradeiro arroubo de energia

que ainda restava foi suficiente para fazer a última coisa que acreditou ser necessária

para conter o avanço inimigo e evitar mais mortes.

380


Um clarão resplandeceu pelo teto alto, incomodando as retinas de todos os

guerreiros ao redor. Espadas caíram no chão, lanças se estatelaram sobre o piso de

mármore e os soldados inimigos desabaram com a luz intensa, atropelando uns aos

outros em sua marcha. Como um balaço chispante atirado por um navio de guerra,

uma onda colossal e fragorosa ribombou sobre os vários tímpanos ao redor.

Voando das mãos de Selena, a magia cruzou o salão circular e atingiu em cheio a

única pilastra intacta.

Os pés ainda molhados com os resquícios da água elemental que escorria do

rombo da passagem secreta, Selena sentiu o chão tremer. Tombou para trás de

repente ao som retumbante de concreto e pedras desmoronando. Atarantada, com

o cocuruto latejando pela queda brusca, entreviu soldados, espadas, portas, tijolos,

lanças, pedaços de mármore e forros do teto despencando e deslizando, juntamente

com seu corpo. O vestíbulo inteiro desabava como uma avalanche em direção ao

primeiro andar.

Escorregando pelo mármore molhado, Selena tentava se agarrar a alguma coisa,

embora soubesse que seria em vão: todo o segundo andar se precipitava rumo ao

átrio contíguo ao Salão do Trono. Blocos de concreto pendiam do teto e

esmagavam vários soldados inimigos escorregando durante a queda, acertando

alguns poucos guerreiros de Miliat também. Os gritos que precediam as mortes

eram angustiantes e se juntavam ao coro de ruídos estrondosos das pedras

desabando por todos os lados. As pesadas pilastras tombavam sobre as escadarias

e passavam por cima dos exércitos de preto como um rolo compressor.

Então, parou de escorregar.

Imaginava se estaria morta. Se estava, que sensação esquisita era ter morrido.

Estirada em algum lugar indefinido, as articulações doíam e a cabeça latejava. Nem

em seus piores dias de menstruação sentira tantas dores. Havia um gosto estranho

na boca e tinha quase certeza que era sangue. O estômago roncou de repente. Será

que havia fome após a morte? Preferia não abrir os olhos e acreditar que estava

morta ou de que tudo o que acabara de acontecer tratava-se apenas de um sonho

ruim. A barriga roncou alto e vozes histéricas fazendo coro ao som de espadas

tilintando com violência invadiram seus ouvidos. Não havia morrido e, sim, era

tudo real.

Uma mão forte surpreendeu-a de chofre. Os olhos ainda fechados, com cada

centímetro de seu corpo implorando por cama e remédios contra dor, Selena se

entregou ao esforço repentino de alguém tentando fazê-la ficar em pé. Torcia que

fosse algum aliado, pois, se fosse um soldado inimigo, morreria ali mesmo e sem

muita resistência. As últimas energias que sobraram para lutar foram exauridas

quando lançou as bombas no vestíbulo do segundo andar.

— Selena! Selena! Fique em pé, garota!

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A voz era trovejante e seria ameaçadora se não a conhecesse. Era o tom grave e

com uma nota de rouquidão de alguém que conhecia — e que entrementes, amava

irritar até ele perder a paciência e sair resmungando seus costumeiros palavrões.

Uma cavalar injeção de ânimo ao ouvir aquela voz conhecida tomou-a de tal forma

que sentiu as energias se renovarem. Ao abrir os olhos, Alto Soberorn a encarava

com sua nímia expressão contrariada e um misto de surpresa e desconfiança. O

rosto encovado, de proeminente nariz adunco, do antigo general de Miliat e melhor

espadachim de Aladar de todos os tempos, estava coberto por fuligem, poeira e

gotículas de sangue misturadas e a barba, que costumava ser acaju em dias normais,

estava terrivelmente cinzenta. A mão esquerda sustentava Superiora, a espada que

jamais vira uma derrota em duelos oficiais — segundo ele próprio, embora

houvesse lá suas controvérsias.

— Foi você que explodiu o segundo andar?

— Todo, não... — respondeu Selena, abrindo um sorriso cansado — Só o piso

aqui de cima...

— Onde está Zakkar? — perguntou Soberorn, olhando ao redor.

Um alerta ligou em Selena que, por um breve instante, havia esquecido

completamente que o reino estava sob ataque. Embora achasse muito difícil que o

velho Soberorn fosse capaz de trair o Trono dos Ayarza — por trás de toda sua

pompa de guerreiro e machão, ela sabia como ele era dócil como uma criancinha

— não podia deixar de lado que uma conspiração transcorria em Miliat e uma

traição sem precedentes permitira a entrada de tropas inimigas, alcançando o rei e

seus aliados. Até que se provasse o contrário, qualquer um era suspeito em

potencial. Mesmo que sua intuição gritasse para confiar em Alto Soberorn, Selena

preferiu dar vazão à dúvida e não contar a verdade.

— Eu não sei, Sob — mentiu Selena. — Consegui fugir do meu quarto e acabei

parando aqui...

Alto Soberorn encarou-a com uma expressão de desconfiança. Ela esquecera

como ele adorava testar alguém caso duvidasse de sua sinceridade. Mas a situação

extrema em que estavam exigia uma medida nada agradável. Não poderia falar-lhe

que ajudou Zakkar a escapar e que cobriu seus rastros até descobrir se poderia ou

não confiar nele.

— Onde estão os demais? Tia Elma, tio Bartel...

Um profundo pesar ocupou o rosto carregado de rugas de Alto Soberorn. Os

olhos se fecharam com tamanha tristeza e um esgar angustiante de dor dominou

seu rosto flácido, como alguém que acabara de perder um grande amigo — o que

não deixava de ser verdade, os dois eram parceiros de pitos e prosas de longa data.

— Sinto dizer-lhe que não pude evitar que ceifassem a vida do meu velho amigo...

A expressão do velho espadachim fez uma lágrima escorrer dos olhos de Selena.

382


— Fui informado de que nossa nobre rainha foi cruelmente assassinada por esses

porcos desalmados enquanto tentava fugir.

— E tio Bernat?

— Lorde Bernat e Lorde Guilloch estão na Sala do Trono — crocitou Alto

Soberorn; o ânimo em sua voz fez a expressão de tristeza mudar de súbito. —

Apesar das baixas que tivemos, meu nobre amigo Bernat conseguiu deter as mortes

e conter o avanço dos exércitos inimigos. Ele os atraiu para uma armadilha que fez

na Sala do Trono. Bernat está ganhando tempo para nós. Pediu-me que fosse

imediatamente ajudar alguns soldados do reino que ainda resistem na ala sul contra

um ataque de ogros. A maioria de nossas tropas foi desbaratada nas ruas da capital

por essas malditas criaturas e os que sobraram estão sob as amuradas abaladas do

castelo. Vá até lá ajudar os dois enquanto vou derrotar uns monstros que ainda nos

atormentam!

Sem sequer esperar por uma resposta da guardiã, Alto Soberorn virou-se e partiu

por entre os escombros em busca de ajuda.

Atordoada com tantas informações cuspidas de uma vez, Selena moveu-se em

direção ao Salão do Trono. Arregalando os olhos no trajeto, se deu conta do

tamanho do estrago que sua explosão fizera. Não tinha percebido, até aquele

momento, que quase implodira parte da ala norte do castelo. Entre centenas de

corpos estirados no chão — a maioria do exército inimigo — blocos de concreto

se amontoavam junto a pesadas vigas de madeira do teto partidas ao meio, as

pilastras do segundo andar espatifadas contra as paredes do primeiro piso e montes

de pedaços de mármore espalhados a esmo. Um aglomerado caótico de entulho e

corpos moribundos, regado pela água elemental que não parava de resvalar do

buraco no túnel e com uma nuvem cinzenta de poeira pairando no ar. No entorno

daquela visão pitoresca, soldados remanescentes de Miliat terminavam de

exterminar os últimos inimigos ainda insistindo em lutar.

O caos imperava no Salão do Trono. Corpos jaziam sobre o piso manchado de

sangue, em pilhas indistintas de soldados inimigos e aliados. Espadas, escudos,

lanças, arcos e flechas se espalhavam por todo perímetro, desprendidos de seus

donos mortos espalhados pelo lugar. As cortinas de veludo das janelas foram

consumidas pelo fogo e as vidraças eram meros buracos cobertos por estilhaços de

vidro. Grandes marcas esturricadas de uma batalha mágica se desenhavam sobre as

paredes. A flâmula colossal com a Fênix Indomável do brasão da Intrépida Miliat

queimava e o Trono de Jaspe estava rachado ao meio. A saída principal do Salão

do Trono fora bloqueada por uma muralha de corpos e uma magia parecia uni-los,

como uma argamassa em um muro de tijolos. Alguns guerreiros inimigos lançavamse

pelas janelas e conseguiam adentrar.

No centro do Salão, vislumbrou uma imagem que jamais imaginaria em toda sua

vida. Guilloch empunhava uma espada e um escudo e, ainda com parte do pijama

383


listrado com buracos e marcas de queimado, continha o avanço das tropas inimigas,

desferindo golpes mortais, usando a força bruta como ela jamais vira.

— Selena! Rápido!

Virando-se para atender a voz desesperada que a chamava, ela avistou tio Bernat

um pouco à frente do trono partido ao meio. Uma aura fluorescente emanava de

sua mão esquerda e se espalhava em direção ao portão principal. Era ele quem

sustentava a muralha de corpos, pressionada por uma força externa, prestes a se

romper. Na mão direita do guardião, os dedos se agarravam a uma espada. Se sua

energia fraquejasse e o poder cedesse, estaria preparado para uma batalha corporal.

Uma ideia ocorreu à guardiã naquele instante.

— Quando eu contar três, — Selena parou ao lado de Bernat, prestes a fraquejar

— você desfaz sua magia.

— Eu não posso... — falou Bernat, a voz falhando. Havia nele intensas marcas

das batalhas que teve de enfrentar. — Soberorn ainda não chegou com as tropas...

— Confie em mim! — pediu Selena, balançando a cabeça.

Relutante, Bernat não resistiu e abaixou a mão esquerda. A muralha de corpos

explodiu pelos ares, com uma legião de novos inimigos invadindo o salão com força

descomunal e avassaladora. Uma labareda extraordinária irradiou das mãos em

concha de Selena e se precipitou em uma espiral torrencial de chamas vermelhas na

direção dos portões de entrada no momento em que erguiam espadas e lanças para

desferir golpes mortais contra eles. Guilloch pulou para trás, fugindo do ardor do

fogaréu e Bernat gargalhava, satisfeito. Gritos de sofrimento ecoaram pelo salão e

o cheiro de carne derretida exalou pelo ar. Bernat e Guilloch tratavam de matar os

remanescentes que conseguiam escapar do poder das chamas elementais.

Alquimestres do reino surgiram e se posicionaram ao lado de Selena para conter

os soldados com chamas elementais. Alto Soberorn apareceu com a cavalaria e

empunhava sua espada na dianteira das tropas. Inimigos conseguiam escapar das

chamas e saltar pelas janelas, mas davam de cara com os exércitos destemidos

comandados pelo velho espadachim e embrenhavam-se em verdadeiros embates

sangrentos.

Selena deixou a magia de lado e arrebatou para si uma espada perdida encravada

no peito de um guerreiro estirado. Brandiu sua lâmina duas vezes e acertou a

carótida de um inimigo. Avançando para onde Bernat e Guilloch lutavam, deixou

pelo menos dois soldados mortos pelo caminho.

— Alquimestres, aqui!

Bernat terminava de limpar o sangue de sua espada quando berrou para um grupo

de soldados alquimestres que adentrou o Salão para que ajudassem Guilloch na

batalha. O guardião desbaratava pelotões com uma força assombrosa e uma

coragem inesperada e surpreendente. Agarrando Selena pelos ombros, o irmão de

Bartel arrastou-a até a parte de trás do que sobrara do Trono de Jaspe.

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— Você está bem? — Bernat a esquadrinhava dos pés à cabeça. Parecia assustado

com a quantidade de arranhões, hematomas, sangue e poeira que cobria seu corpo.

— Na medida do possível... — respondeu Selena, ouvindo os embates ficando

cada vez mais acirrados no salão.

— E Zakkar? — O rosto de Bernat se transformou; os olhos vidraram nos dela

e o desespero por notícias de seu sobrinho era notório — Você viu Zakkar?

Selena respirou fundo e tentou não piscar os olhos.

— Não. — Selena mentiu novamente e, desta vez, a resposta cortou-lhe o

coração. A tentação de falar a verdade só não era maior do que a desconfiança que

perdurava. — Acordei com as primeiras explosões. Quando abri a porta, vi o quarto

de Zakkar em chamas e fugi pelas passagens secretas.

Bernat emudeceu. Os olhos continuavam fixos nos dela, movendo as

sobrancelhas como se absorvesse cada palavra. O olhar inquisidor do irmão de

Bartel a incomodou profundamente e suas feições indicavam que ele não parecia

nada convencido com a história que acabara de narrar. Tentou mentir de modo

convincente, sem titubear, pronunciando cada palavra de forma cristalina e com os

olhos bem abertos.

— Certo — pronunciou Bernat, estarrecido — Fomos traídos, Selena. Traídos,

invadidos e subjugados por um reino que considerava como irmão e parceiro de

nossa nação. Meu irmão jaz no saguão de entrada do palácio com uma espada

cravada no peito. Minha cunhada assassinada ao tentar fugir do dormitório. Até o

momento não encontraram seu corpo. E Zakkar. Ah, Zakkar! Meu amado

sobrinho, carbonizado em seu próprio quarto. E eu... eu... não pude fazer nada.

O irmão de Bartel abaixou a cabeça em um sinal de luto. Com o polegar e o

indicador, esfregava os olhos e emitia um som gutural que Selena achou ser um

soluço consternado pela dor da perda de seus familiares. O soluço ficou mais alto

e ele se prostrava sobre os joelhos cada vez mais. Acabrunhado em um sofrimento

incontido, Selena percebeu, entre os arranhões, queimaduras e sangue seco sobre a

pele de Bernat, uma marca diferente abaixo de seu pescoço. Uma marcação como

de ferro quente. Vermelha. Um sinal marcado sobre a pele que não vinha de

qualquer batalha. Uma marca mágica. O mesmo estigma que vira horas antes no

soldado que invadira o quarto de Zakkar.

O espanto foi tamanho que deixou escapar um grunhido. Cobriu a boca com as

mãos, mas o escarcéu de espadas e escudos se digladiando e rajadas de fogo

elemental para além do trono rachado abafou o ruído. O que vira na noite anterior,

o comportamento esquisito dos soldados, seus trejeitos nada comuns e a marcha

silenciosa de inimigos em direção às principais entradas do castelo sem qualquer

resistência dos guardas, não era mero acaso. Não imaginava que uma traição tão

asquerosa, desumana e sanguinolenta viria justamente de Bernat, o tio Bernat, o

irmão diplomático e respeitado do rei. Mas ele com certeza não teria agido sozinho.

385


Uma ação dessa magnitude exigia a participação de mais conspiradores. Se antes

desejava ardentemente ficar em Miliat e descobrir quem eram os traidores da coroa,

naquele momento sua motivação era maior e com razão. Iria até as últimas

consequências. Permaneceria na capital para investigar até descobrir quem eram os

conspiradores e provar que Bernat era o grande vilão a ser combatido.

— Selena? Vamos?

A voz enérgica e irritante de Joline ribombou em seus ouvidos, desembaraçando

o emaranhado de lembranças que ocupava sua mente e trazendo-a de volta à dura

realidade. A irmã mais nova era a única no quarto, as demais já haviam saído.

Somente ela e Selena restavam no recinto. Pior do que seus piores e mais sórdidos

pesadelos, encarou a si mesma com o rosto maquiado, o cabelo arrumado e o

vestido plenamente decorado. A Selena, versão cerimônia fúnebre, refletia no

espelho e estava pronta para ser exibida em público.

O sol a pino queimava os cocurutos das multidões presentes diante da tribuna

montada do que sobrara dos portões de entrada do palácio real. O povo miliatense

— ou o que restara dele — viera em peso para um anúncio extraordinário solicitado

pelo remanescente herdeiro do Trono dos Ayarza. Cidadãos dos condados de

Canfrat, Athelsírlia, Beorlonar e até do outro lado do país, como Namit e Gendosir,

estavam presentes. Ao redor deles, as construções arruinadas pela invasão à capital

se apresentavam de um jeito medonho. Telhados destruídos, muros derrubados,

casas e edifícios consumidos pelo fogo. Uma visão de terra arrasada, arrancando a

esperança de qualquer um. Elfos, anões, mestres, alquimestres, não-mágicos,

duendes e até centauros que viviam no limiar da Floresta Demoníaca se

acotovelavam próximos ao palanque. Eram artesãos, comerciantes, pescadores,

ferreiros, marceneiros, pintores, bardos, andarilhos, músicos, cozinheiros,

agricultores: pessoas simples que perderam tanto ou que vinham de todas as partes

do reino para prestar solidariedade e ouvir a resposta de que tanto ansiavam, após

quase dois meses daquela fatídica madrugada de sangue e cinzas.

O suor escorria das têmporas de Selena como rios selvagens. Entrementes, uma

de suas características que mais detestava e se detestava por ter puxado justamente

isso da família de seu pai. Queria poder suar como gente normal e não como uma

porca com uma cachoeira a jorrar de suas axilas. O desespero irrefreável de sua

maquiagem estar derretendo naquele sol de meio-dia perturbava sua mente.

Milhares de facetas impacientes sob um calor de rachar miravam o centro da

tribuna, contemplando um púlpito improvisado, aguardando o único guardião que

ainda não havia dado as caras. Os demais estavam presentes. Os Greenham do Sul

vieram tão logo souberam do ataque surpresa, assim como seus primos Vycard de

Namit e Braeagor. As irmãs de Selena estavam postadas elegantemente, cada uma

mais enfeitada que a outra — e particularmente ridículas, exibindo seus vestidos

386


emperiquitados de forma exagerada, quando muitos miliatenses da capital perderam

tudo o que tinham. Aguardavam impacientes sem jamais perder a pose,

acompanhadas dos maridos e filhos. Vislumbrando a fileira de guardiões

empertigados, Selena notou duas coisas: tio Golmir também estava presente e

abatido de uma forma sem igual, como nunca antes vira. Acostumara-se a vê-lo

sempre alegre, bebendo e contando histórias, na companhia de amigos. Essa

felicidade sempre o fazia parecer mais novo do que realmente era. Naquele

momento, contudo, o peso dos ciclos fazia jus diante da aparência derrotada que

exibia. Além da ausência incômoda de Bernat, a segunda coisa que notara era a falta

de sua própria mãe.

— Meredith! — Selena sibilou para a irmã ao seu lado — Meredith!

O cunhado deu com o cotovelo no braço da esposa.

— Oi, irritação da minha vida. — Meredith sequer virou o rosto; respondeu pelo

canto da boca, com os olhos vidrados na multidão à sua frente — O que você quer

agora?

— Cadê nossa mãe?

— Você é louca, por acaso? Mamãe não aguenta mais viagens longas. E, imagine

só, se ela estaria derretendo debaixo desse sol de rachar?

Uma trombeta ressoou e as muitas cabeças no entorno, da tribuna à multidão

aglomerada, cessaram os burburinhos e cochichos. Bernat surgira no extremo do

palanque. As vestes reais eram impecáveis e os detalhes dourados reluziam com a

incidência dos raios solares. Contudo, no rosto abatido sustentava uma

consternação que quase convenceu Selena, mas que certamente tocava os corações

de todos ao redor. Atravessou a tribuna numa marcha elegante e imponente, ainda

que ele estivesse cabisbaixo e com ombros decaídos. Caindo em lágrimas, entregouse

em um abraço apertado em Golmir, no final da fila. Julien soluçou alto. O marido

de Joline teve que amparar a esposa porque seus joelhos fraquejaram e ela quase

deixou a filha cair no chão. Selena revirou os olhos, torcendo para que essa

presepada acabasse logo de uma vez.

Bernat deixou o abraço do tio e caminhou em direção ao púlpito no centro.

Quando ele se posicionou para falar, os únicos que não choravam na fila de Ayarza,

Vycard e Greenham eram Selena, por motivos óbvios e Guilloch, impassível,

estufando o peito e arqueando os braços, tentando exibir os músculos.

— Valorosos e intrépidos miliatenses de todos os condados de nosso amado

reino. — Bernat impostava a voz, tentando fazer sua mensagem atingir as multidões

ou parecer majestoso, Selena não sabia muito bem. — É sabido de vocês a respeito

do grande infortúnio que atingiu nossa amada terra, há quase dois meses. Naquela

fatídica madrugada, as vidas de meu irmão, minha cunhada e meu sobrinho

sucumbiram ante à crueldade de um inimigo inesperado. Uma força vultuosa

dominou nossa venerada capital, sitiando o palácio, incendiando e pilhando nossa

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cidade, esmagando nossos amigos e irmãos sem um pingo de misericórdia.

Confesso que fui, de forma exacerbada, cobrado por respostas e por uma postura

diante da desgraça que nos alcançou. Hoje, estou preparado. Passado o luto, sintome

pronto para comunicar-lhes que descobri quem é o grande responsável por

tamanha traição!

Bernat fez um gesto e dois soldados trouxeram uma capa vermelha com

ombreiras brancas e felpudas e a coroa real.

— No entanto, antes de revelar-lhes o nome de nosso algoz, mesmo em meio ao

caos, não podemos deixar de condecorar atitudes grandiosas que permitiram que,

aqueles que estavam no palácio naquele dia, pudessem sobreviver à tal chacina

impiedosa. Há quem tenha atitudes nobres e demonstre sua coragem para encarar

a tirania covarde de um exército desonrado. Quero chamar para se colocar ao meu

lado: meu filho do coração, Guilloch Ayarza.

A um aceno de Bernat, palmas irromperam da multidão ao passo que Guilloch

dava três passos adiante, ainda de pulmões inflados, parando bem ao lado do irmão

de Bartel.

— O melhor espadachim do reino que, como sempre, fez jus ao nobre título de

Alto, a ele conferido ciclos atrás: Soberorn.

Soberorn veio mancando, agarrado à sua espada como se sua vida dependesse

disso e enxugando as lágrimas que escorriam de seus olhos.

— À bravura e lealdade incondicional desta que, para mim, foi uma grata surpresa

ao demonstrar tamanha coragem e ousadia: Selena Vycard!

Arregalando os olhos, Selena vislumbrou várias cabeças virando para encará-la.

As maçãs do rosto aqueceram instantaneamente. O rubor em sua face devia ser

visível à quilômetros de distância. O medo de estragar o vestido ou mesmo cair ao

tentar andar com tantas anáguas empilhadas sobre as pernas quase a fizeram

permanecer onde estava. Impulsionada por Meredith, foi obrigada a dar três passos

para frente, sem ainda saber muito bem como reagir diante dos aplausos e do

anúncio surpresa.

— Quero chamar também meu nobre tio Golmir. — Aplausos abafaram por um

momento sua fala, enquanto o respeitado ex-Guardião acenava para as multidões,

parando ao lado do sobrinho. — Meu tio Golmir, que deixou as terras de Gradia e

ajudou-me a identificar os traidores do reino.

Os aplausos ficaram mais efusivos após a última fala de Bernat e, então, ele pediu

silêncio.

— Contudo, o traidor foi revelado. Após dois meses de intensa investigação,

encontramos o líder dessa conspiração tentando fugir pela floresta e ele, assim

como muitos soldados inimigos que capturamos, confessaram que estavam a

mando de Lorde Belbert, em uma investida para devastar nossa amada terra, por

uma vingança que atravessava gerações.

388


Os ânimos do povo se exaltaram. As pessoas gritaram enraivecidas, berrando

palavrões e maldições contra Neergúria. Entre os olhares assustados e surpresos

dos Vycard e Greenham, Bernat inflamou seu discurso de ódio, incitando as

multidões encolerizadas.

— NEERGÚRIA É A GRANDE TRAIDORA DE NOSSO REINO! OS

CULPADOS PELA DESGRAÇA QUE SE ABATEU SOBRE MILIAT!

Selena encarou Golmir por instinto. O olhar do ex-Guardião de Aladar encontrou

o dela: ceticismo misturado a um choque repentino com a notícia habitava seu

rosto. Ela sabia o que Bernat tentava fazer. Instigava o povo de Miliat contra o

reino ao norte por uma velha rixa de eras e que, há muitos ciclos, deixara de existir.

Um plano para desviar a atenção do verdadeiro vilão nessa história funesta. Queria

poder contar a verdade e ter alguém em quem pudesse confiar, mas as últimas

pessoas dignas de sua lealdade sucumbiram ao ataque surpresa.

Trombetas ressoaram novamente: os pedidos por silêncio de Bernat não faziam

mais efeito. Os guardas com a capa vermelha depositaram-na sobre os ombros do

irmão de Bartel e, em seguida, a coroa foi encaixada em sua cabeça.

— A partir de hoje, como único sucessor vivo e herdeiro direto do trono, uma

vez que meu tio abdicou dessa herança ciclos atrás em favor de meu irmão,

abandono a posição de Primeiro-Ministro do reino e me autoproclamo o Rei e

Soberano sobre as longânimes terras da Intrépida Miliat!

Salvas de palmas ecoaram e bandeiras flamulando a Fênix Indomável foram

hasteadas em pontos estratégicos no entorno das multidões.

— Anuncio também Guilloch — Bernat levantou a mão de seu afilhado em riste

— como o novo Guardião de Aladar. Provou que sua valentia indômita é digna de

tal recompensa e que está pronto para defender nossas terras de quaisquer perigos

que possam ameaçar a paz e o equilíbrio das nações. Juntos, trabalharemos firmes

para reconquistar a glória e imponência de nosso reino, defender a honra de nossos

povos e suas gerações e recuperar a lendária Vingança de Aladar, a espada de meu

pai, roubada de nossas terras por esses malditos traidores.

Outras palmas e fogos explodiram nos céus sem nuvens. O coração de Selena

doeu. O maior sonho de Zakkar, uma aspiração que perseguiu por tantos ciclos,

dedicou-se com tanto esmero e afinco, entregue a um incompetente imbecil que

mal conseguia lutar. Não sabia se Zakkar sobrevivera à fuga, uma ponta de

esperança em seu coração teimava em achar que sim, mas, se estivesse vivo, seria

uma ofensa contra sua memória e ao tempo e esforço que tanto dedicou para

assumir esse posto.

— E como último anúncio, comunico meu casamento oficial.

Um grande suspiro de surpresa reboou pelos ares. Ninguém arriscou falar nada,

na expectativa de que ele declarasse quem era a dita cuja e quando este casamento

aconteceria o mais rápido possível. As fofocas sobre as motivações do antigo

389


Primeiro-Ministro de Miliat nunca ter casado renderiam uma bela trilogia literária

se fossem escritas.

— Após tantos ciclos e diante de tal infortúnio, descobri que minha vida precisa

de um sentido que somente o casamento pode consolidar. Como seu novo rei, não

os deixarei órfãos de uma rainha. Assim que as cerimônias do Ano da Elegibilidade

passarem, celebraremos juntos meu matrimônio com alguém que provou sua

lealdade à Casa dos Ayarza: Selena Vycard!

Segundos de silêncio se seguiram em que os olhares ao seu redor se viraram outra

vez para ela, antes que as palmas calorosas irradiassem novamente. A perplexidade

dominou os rostos dos Vycard e Greenham sobre a tribuna, incluindo o de Selena,

surpreendida com uma notícia tão espantosa quanto perturbadora.

390


Capítulo Vinte e Oito

Inclemência

A cidade portuária de Namit ia surgindo ao pé da colina. Com a lua minguante

pairando sobre o negrume da madrugada que cobria os céus, as Águas de Crispoles

vistas dali eram serenas e assim seguiam por toda imensidão do oceano, numa

infindável calmaria, até que o marasmo de suas ondas remotas tocava as nuvens de

tons purpúreos no longínquo horizonte. Majestosa como sempre, do jeito que

lembrava, a cidade era um reduto de construções antigas de tamanhos e proporções

variadas, pontilhada por uma centena de luminares incandescentes, como um

colossal organismo vivo. Dizia-se que Namit nunca parava, o que de fato era

verdade em virtude de seu suntuoso porto. Reformado havia poucos ciclos para se

tornar o maior dos Cinco Continentes, abastecia toda Aladar, abrigando dezenas

de galeões, fragatas, corvetas e caravelas. Mesmo sendo o mais extenso, as filas de

embarcações para atracarem sobre os terminais e liberarem suas cargas eram

intermináveis. Sobre as madeiras negras das docas do porto, o movimento era

constante. Não importava a hora do dia, capitães e marujos estavam sempre

correndo de um lado a outro vendendo suas mercadorias. Os galeões e as fragatas

tinham destino certo. Os maiores navios a aportarem descarregavam fardos de

tecidos finos, ouro, joias, madeiras especiais e armamentos pesados — a maioria

vinda de Vaelfar, Tulich, Aralyart e Sananzaria. As corvetas, juncos e escunas

chegavam abarrotadas de cereais e especiarias, além de coisas exóticas trazidas de

outros continentes. Ao longo dos bares, tavernas e hotéis do entorno, vendedores

e ambulantes comercializavam de tudo o que se podia imaginar: desde frutas e

peixes quase frescos a badulaques, ervas de fumo e artesanato excêntrico. Não era

tão difícil passar despercebido em meio aos tipos esdrúxulos e estirpes abissais que

ocupavam as ruas e adjacências do porto.

O desejo insaciável por vingança fez Zakkar finalmente chegar ao local que tanto

ansiava. A cada dia que passava, embrenhado na densa floresta hostil, a ambição

por encontrar os algozes que derrubaram a dinastia dos Ayarza e assassinaram sua

família crescia exponencialmente. Cavalgara por muitas noites entre a mata

agressiva e atroadora, sem ter a certeza se estava no rumo certo. Não tinha bússola

e tampouco conseguia enxergar a lua e as constelações no céu para poder se guiar.

391


A cada vez que erguia a cabeça, assentado sobre o dorso de um mustangueneeguriano

malhado, as únicas coisas diante de seus olhos cansados eram as copas

traiçoeiras de ciprestes e pinus. Os galhos retorcidos como verdadeiras garras

infernais se emaranhavam lá no topo, tornando-se uma intrincada teia de madeira,

cheia de veios e incontáveis vertentes que se espalhavam por metros, talvez

quilômetros, impedindo que qualquer nesga de luz penetrasse por entre suas folhas.

Conseguia ter uma noção do dia ou da noite pelas variações de cor da cerração que

permeava os ares úmidos sobre a mata densa. Imaginava que em algum ponto, a

luz do sol estaria invadindo a redoma enredada da vegetação e produzindo uma

mudança nas nuances da intensa neblina. Perdera a conta de quantos dias vira a

bruma cinzenta que castigava seus olhos mudar de um tom chumbo quase opaco

para uma coisa entre o alaranjado e o vermelho. Contou nos primeiros dias a

quantidade de mudanças de cor, mas com o passar do tempo, não conseguia ter

certeza mais.

Os pães acabaram quatro dias após obliterar os soldados inimigos que encontrou

na floresta. Arrependia-se de ter devorado tantos pães de milho quando desceu

daquele salgueiro. Mas lembrava de quase desfalecer de fome e então chegava à

conclusão de que não havia muito a fazer. Descobriu alguns biscoitos e um pedaço

minúsculo de charque em uma das bolsas e tentou racionar o máximo que pode.

Não estava certo se encontraria uma caça ou um caçador ao longo do caminho. Se

estivesse no rumo certo, em uma linha reta pela Floresta Demoníaca, para chegar

ao outro lado de Miliat, em pouco mais de vinte dias estaria em Namit. A

expectativa de encontrar os outros inimigos do reino ardia em seu peito. E, ainda

que isso não fosse possível, com as informações que conseguiu, partiria rumo à

Pedra Negra para executar sua vingança. Movido unicamente pela dor, pelo ódio e

por uma obstinada intuição, viu as horas cavalgando floresta a dentro se

convertendo em dias. Cada vez que a neblina mudava de cor, um pouco de sua

esperança se esvaía e a aflição pela escassez de comida e água assolavam sua mente.

Havia duas mudanças de cor da névoa, os biscoitos tinham acabado.

Como a assolação de uma morte por inanição e o desalento de não saber se seguia

no rumo correto, o medo de se deparar com algum monstro escuso era uma

constante. Nas vezes em que ele e seu cavalo interromperam a viagem insólita para

poder dormir, os sonhos nunca eram bons. Os devaneios tonitruantes em que

embarcava todas as vezes que fechava os olhos, traziam à memória um vislumbre

do castelo em chamas. Uma espada atravessava o coração de seu pai e pilhas de

mortos se espalhavam sobre as ruas de uma cidade destruída. Um dragão vermelho

sempre surgia nesses terríveis pesadelos. Imponente, sobre o alto de suas abissais

asas espinhentas e da cor do sangue, ele emergia da Floresta Demoníaca e

sobrevoava a capital. Com um olhar diabólico, exibindo irises verticais como as de

uma serpente, arreganhava seu longo focinho e cuspia um fogo infernal em

392


assombrosas espirais. Acordava ensopado de suor, todas as noites. Vasculhava cada

canto de floresta, cada nesga entre as árvores, para além dos arbustos e rochas em

destaque, comprimindo os olhos e aguçando a vista, na iminência de que, a qualquer

momento, um poderoso dragão emergiria das trevas indissipáveis e o consumiria

com suas chamas carregadas de enxofre.

Certa feita, deparou-se com uma criatura abissal em meio às trevas dominantes

da floresta. No primeiro olhar, acreditou estar diante de uma poderosa serpente,

um basilisco talvez, em razão da gigantesca cauda cheia de escamas, que se arrastava

pelo chão. Atônito, desmontou do cavalo e tapou a boca do bicho, arrastando-o

para trás de um salgueiro. Se fosse de fato um basilisco e os detectasse ali, seriam

mortos antes que pudesse dizer “malditos traidores do reino”. Encostado no tronco

áspero, o animal ergueu o longo rabo e, em meio à penumbra que os cercava, ele

vislumbrou patas grossas e peludas como as de um bode. Confuso e atarantado, se

esforçava para manter a respiração o mais compassada e calma que conseguia.

Imaginando se não era um basilisco devorando uma cabra gigante, Zakkar ouviu

um rugido e então tudo se esclareceu. Lembrou das aulas que tivera sobre os

animais exóticos que existiam no mundo. Aprendera sobre seres bizarros dos mais

variados tipos e, de todas as criaturas que estudara ao longo da vida, esta era uma

que jamais imaginara encontrar na Floresta Demoníaca. Embora, não imaginasse

um dia ter de lutar pela própria vida, embrenhando-se na floresta mais perigosa de

Eirin. Ante as sombras fantasmagóricas da mata, uma quimera terminava de

devorar sua presa. A cabeçorra de leão projetava uma juba colossal para a terra,

sendo impossível discernir que animal sucumbira ao seu ataque mortal. As patas

traseiras de bode estavam em pé e as dianteiras abaixadas. A longa causa se mexia

preguiçosamente. Devia estar farta de comer o que quer que tivesse atacado e logo

terminaria sua refeição.

Recostado sobre o tronco do salgueiro, Zakkar se forçava a pensar seus próximos

atos. Puxava pela memória o que lembrava sobre quimeras. Eram animais gigantes,

uma mistura incongruente de leão, bode e serpente e se alimentavam de equinos.

Encarou o olhar pacífico do cavalo de imediato, temeroso pela vida do mustangueneerguriano

roubado. Se a quimera adiante estava de bucho cheio, não acreditava

que atacaria ambos para devorá-los. Embora quadrúpedes fossem seu alimento

preferido, ela terminava um jantar. E como uma luz que se acende de repente,

recordou de uma coisa que fez uma ponta de esperança brotar em seu coração.

Impetuoso, bisbilhotou de esguelha e percebeu a poderosa criatura afastando-se

de sua presa, caminhando a passos lentos e preguiçosos para dentro da mata

fechada. As lembranças de seus dias de estudo insurgiam vívidas como o nascer do

sol que não via há dias. Quimeras são a combinação esdrúxula de leão, bode e

serpente, são carnívoras e têm uma preferência pela carne de equinos. Ao se

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sentirem saciadas, rumam para beiras de leitos de rios, onde podem dormir por até

três dias consecutivos.

Cada centímetro do corpo pulsou de um modo frenético. A adrenalina o invadia

e a morbidez daquele cenário melancólico se esvaiu de repente. Uma chance real

de conseguir escapar da floresta surgia, rumo ao destino que tanto almejava, com

uma certeza maior de que chegaria até lá, sem contar apenas com a sorte.

Pulou de detrás do salgueiro com o cavalo em seu encalço. Estirado sobre as

raízes protuberantes de um cipreste, um unicórnio cinza — ou o que restara dele

— jazia moribundo. As costelas, limpas até o último fiapo de carne arrancado,

estavam expostas de um jeito grotesco e o sangue do animal se espalhava pelo

entorno. Era uma pena contemplar um animal tão bonito e difícil de se encontrar

transformado em uma carniça abandonada. Embrenhou-se entre os arbustos,

acompanhando as pegadas de bode da quimera, que sujavam o terreno com o

sangue do unicórnio. Caminhou por algum tempo, desvencilhando-se de galhos

mais baixos, cipós e plantas hostis pelo trajeto. Puxou as rédeas do mustangue por

pelo menos três vezes, quando ele empacou para se alimentar em um matagal

qualquer no percurso e por duas, parou para acalmar o animal. Os pés vacilaram

em uma descida e escapou de sair rolando por um triz. Firmou os passos e seguiu

descendo por um solo instável. A encosta que percorria parecia não ter fim e a cada

metro arrebatado em sua constante descida, perseguindo as pegadas entre a

vegetação selvagem, arrazoava se suas memórias sobre quimeras não estariam

erradas.

Um ruído borbotoante surgiu. Água e em abundância. Deixou a cautela de lado

e pôs-se a correr morro abaixo, puxando o cavalo pela ladeira. O som de águas

correntes ficava mais audível e arbustos e folhas ásperas vencidas pelo caminho

provocavam pequenos cortes e arranhões em suas pernas e braços. Esgueirou-se

por entre árvores de caule fino e retorcido e os pés chafurdaram sobre lama.

Uma clareira se apresentava, com salgueiros e ciprestes no entorno, pedras

cobertas de musgo e mato pisado pelos animais silvestres que passavam por ali. Ao

meio, as águas cristalinas de um rio seguiam um fluxo intenso. Vislumbrando o

cenário animador com ardente expectativa, Zakkar montou sobre o dorso de seu

mustangue-neerguriano e seguiu pelos flancos do riacho.

Não tinha muita certeza quanto tempo se passou seguindo o curso das águas. Um

belo dia, o riacho dobrou de tamanho e a encosta foi ficando mais alta e menos

selvagem. As árvores aumentavam sua distância, tornando-se menos assustadoras.

Foi a primeira vez que viu a lua depois de tanto tempo. Não era das mais belas e

sequer brilhava com o esplendor a que se acostumara. Era lua nova, misturando-se

a um céu obscuro e carregado de nuvens. Não parou de cavalgar até que seus pés

tocaram areias reconfortantes e seus olhos contemplaram o mar revolto de

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Crispoles. O rio o conduzira até a enseada de Braeagor. Dali, para Namit, era uma

viagem de dois dias e bastava seguir pelas colinas.

Encarou os luzeiros da cidade portuária com determinação e uma fome insaciável.

O estômago roncou tão alto que até o cavalo tomou um susto. A motivação para

chegar à Namit e encontrar os porcos assassinos de sua família era tão grande, que

esqueceu as dores constantes no estômago vazio e continuou firme em seu trajeto.

Mirou o semblante esgotado de seu mustangue-neerguriano e apalpou a crina negra.

O momento de se separarem havia chegado. Estava ali para matar ou morrer.

Exterminaria os conspiradores e partiria para Gradia, para erradicar Hamm Louis

Zanotchka e Salazar Stanhorne e quem mais estivesse envolvido na traição ao

Trono de Jaspe. Não sabia muito bem como o faria, mas sabia que faria. Ansiava

por colocar as mãos no pescoço dos mandantes daquele assassinato. Livrou-se das

rédeas e lançou o cabresto do cavalo no meio do mato. O animal fez um pequeno

gesto, que Zakkar entendeu como uma reverência, e sumiu pelas colinas, entre as

árvores.

À luz do luar da alta madrugada, Namit estava exatamente como gostava de se

lembrar. Construções de madeiras tortuosas e empilhadas umas nas outras,

permeadas por vários archotes à luz de velas, se espalhavam pelos vários caminhos

que levavam ao cais. Estalagens em cima de tavernas, mercados que pareciam

pousadas e pousadas que pareciam prostíbulos, peixarias à céu aberto e albergues

esdrúxulos era um pouco do que se podia ver pelos becos e vielas estreitos mais

distantes do palacete do conde. Por lá, a coisa era diferente. Edifícios elegantes e

construções faraônicas desfilavam pelas avenidas cobertas de palmeiras e ruas

espaçosas. Mas Zakkar preferia a periferia do porto do que o vilarejo no entorno

do palácio. Não havia luxo e nem requinte, mas ali, entre vias estreitas e fedorentas,

a ação acontecia de verdade. Quem estava atrás de um território sem lei, bastava

virar na Rua dos Albergues e ir até o final dela, mas se o desejo era ter emoções

indescritíveis, a Alameda da Lama era tiro e queda: lá aconteciam coisas que não

valem à pena ser escritas aqui.

Caminhando pelas ruas de lajotas, ele afanou algumas roupas a esmo e o que

sobrou de sardinhas fritas sobre uma mesa de bar. Acalmou a fome por alguns

instantes, mas aquilo era insuficiente e logo precisaria de mais. Deu uma boa olhada

em seu rosto quando passou por um espelho quebrado, pendurado na parede. A

barba cobria todo o queixo, tão malcuidada e suja como a de um mendigo. Abaixo

dos olhos, tenebrosas olheiras e sobre o rosto como um todo, tipos variados de

arranhões e cortes. Mal distinguia a si mesmo e o que se tornara. Imaginava se

alguém o reconheceria naquele estado. Mesmo duvidando que o descobririam,

cobriu o rosto com um pano. O medo de ser encontrado persistia e não estava

certo se havia ou não alguém em sua cola ou à espreita pelo porto, para matá-lo.

395


Como único herdeiro de Bartel, era uma peça valiosa para assassinos contratados

ou caçadores de recompensa.

Desceu por uma viela pútrida, cheirando a urina de cachorro e carniça, pensando

por onde começaria a procurar quando uma conversa aos berros atraiu sua atenção.

Vinha de dentro de um buraco esquisito com uma placa de taverna faltando

algumas letras. Grudou os olhos nos vidros ensebados da janela e teve de tirar dois

mendigos pedindo esmolas e uma prostituta maltrapilha oferecendo um programa

por alguns centavos de seu encalço. Passou a manga da camisa roubada nos vitrais

e quanto mais esfregava, mais sujo e gorduroso ficava. Seria impossível eliminar a

banha de carne de porco tostada ao sol impregnada. Deslizou até a porta e

vislumbrou pela fresta o ambiente quente, mal iluminado e cheirando a toucinho.

Não queria ser notado bisbilhotando a conversa dos outros e, pelo pouco que

conseguiu vislumbrar, uma roda de cinco marinheiros recém-desembarcados

botava a conversa em dia com uma outra pessoa, impossível de se ver de onde

estava. Poderia muito bem ser um garçom, o cozinheiro, ou mesmo o dono da

taverna.

— ...mas quem me dera. E vocês, o que me contam do mundo exterior? Vivo

enfurnado aqui, só sei o que me contam...

— Então, você deve saber de muita coisa, Tovu. Esse boteco vive cheio de

manhã!

— Ouço muitas histórias, a maioria da capital e tal...

— Então conta as novidades de lá. Há tempos não piso naquele lugar...

— Não, não. Eu pedi primeiro. Tenho muitas novidades que ouvi dizer, mas

primeiro vocês.

— Tá bem, tá bem. O bagulho tá frenético lá em Gradia. Só essa se...

— Em Gradia só, não. Cruisand e Paragon tá uma doideira!

— Vai deixar eu falar ou você quer contar as novidades?

— Desembucha então, princesa. Ficou ouriçada porque te interrompi? Me

desculpa, sua majestoca.

— Vá se lascar!

— Vai você.

— Dá pra contar a história pro nosso amigo Tovu? Ele ainda quer contar as dele.

— Ah, é. Como eu dizia. Gradia, Cruisand e Paragon estão exigindo muito de

nós.

— Mas tão pagando bem!

— Sim, sim. Do dinheiro eu não reclamo, só do trabalho mesmo. Nas últimas

semanas, carregamos e descarregamos os navios uma caralhada de vezes.

— Com todo tipo de coisa que você possa imaginar.

— É. Joias, artefatos mágicos, comida pra caralho, fardos de linho e seda-fina,

co...

396


— E pra que tudo isso?

— Pra um evento doido que eles vão fazer aí...

— Evento? Ah, o Ano da Elegibilidade.

— Essa parada mesmo!

— O que é isso, afinal?

— É uma espécie de Sucessão Honrosa, pelo que entendi. Só que dessa vez, os

Cinco Guardiões ascenderão juntos. Imagino que tudo isso aí deve ser para

comemorarem.

— Faz sentido. Deve ter prêmio, comida...

— Disseram que haverá testes para os novos Guardiões. Parece que serão

eventos abertos ao público e com...

— De grátis?

— Parece que sim...

— Como tudo o que o Conselho faz, deve ser um espetáculo. Acho que é por

isso que ouvi muitas pessoas passando pela cidade hoje cedo, falando sobre

ingressos e passagens de navio para essas três cidades.

— Deve ser mesmo. Em Gradia tem uma pancada de gente, não tem nem

pousada ou albergue pra essa galera. Estão dormindo em barracas e redes pelas

ruas. Monte de gente querendo faturar nesses eventos.

— E as novidades aqui de Miliat, Tovu?

— Ia falar exatamente sobre isso. Não creio que seja novidade para vocês o que

aconteceu na capital. Já faz três meses e...

Três meses? As palavras do tal Tovu atingiram Zakkar como uma espada afiada

no coração. A esperança que lhe restava em encontrar os algozes do reino

desapareceu no mesmo instante. Arregalou os olhos, estupefato e cético. Havia três

meses que a chacina que o separou de sua família aconteceu? Era impossível ter

vagado pela floresta por tanto tempo. Acreditara em seus instintos, estava convicto

de que caminhava no rumo certo. Chegara à velha cidade portuária tarde de mais.

E era tarde de mais para tentar seguir até Pedra Negra. Os assassinos dos Ayarza,

Greenham e Vycard já teriam recebido o pagamento por seus atos sanguinolentos

e desaparecido por Eirin sem serem reconhecidos. A runasmagiam do pacto selado

marcado em seus pescoços desapareceria e eles nunca mais seriam descobertos. A

realidade do tempo perdido na insólita Floresta Demoníaca ainda o abatia e novas

palavras proferidas dentro da taverna fizeram Zakkar ficar atônito.

— ... há poucos dias e agora, Lorde Bernat se autoproclamou rei.

— Nada mais justo, não é. Com Lorde Bartel, a esposa e o filho mortos, não seria

estranho ele assumir como rei. Ele sempre foi o braço direito do irmão.

— Bernat indicou Guilloch como Guardião de Aladar.

Guilloch, o Guardião? Zakkar apertou o próprio punho e fechou os olhos,

meneando a cabeça. Lágrimas escorreram dos olhos sem que pudesse controlar. A

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verdade era que ele não queria mais controlar seus sentimentos. O maior de seus

sonhos, o desejo mais ardente em sua vida desde a adolescência, uma aspiração

perseguida de forma voraz e insistente, fora arrancada e entregue ao mais imbecil e

incompetente guardião de Miliat, alguém que não chegava a seus pés em

conhecimento e poder. Questionava a si próprio se era merecedor de tamanho

castigo. Por que tal desgraça o atingira dessa forma?

— Hummm... E ele é bom o suficiente?

— Deve ser. Não entendo essas escolhas aleatórias. Acho que tem seus crité...

— Ah, esqueci de falar, tem mais: o Rei Bernat anunciou também seu casamento.

Disse que será logo após esses eventos do Ano da Elegibilidade. Os condados

foram convocados em peso para a cerimônia. Vai ser uma baita festa. E vocês não

adivinham com quem!

— Com quem? Com quem?

— Com a filha temporã de Lady Meredia e Lorde Jonel Vycard: Selena.

O coração de Zakkar estremeceu no instante em que ouviu o nome de Selena.

Bernat, seu tio Bernat se autoproclamando rei e anunciando o casamento com

Selena? Preferia acreditar que era tudo invenção ou que estava embrenhado em um

terrível pesadelo sem fim. Mas era tudo real, estava acontecendo e as palavras

vinham de pessoas livres, que não vagaram por três meses, fugindo para poder

sobreviver e que sabiam o que acontecia em Miliat. Por que Selena aceitaria casar

com seu tio? Por que se prestaria a isso, casando com um homem que não amava

e muito mais velho?

Como uma luz que brota de súbito em meio a uma mórbida escuridão, a mente

de Zakkar ligou pontos que até então não vinham se encaixando. Como Selena

sabia da conspiração? Dissera que vira a invasão acontecendo e o alcançou a tempo,

mas seria isso verdade? E se fosse tudo parte de um teatro para enganá-lo? Por que

ela não quis vir com ele enquanto fugia? Por que preferiu ficar do que segui-lo e

escaparem juntos? Como ela lutaria contra uma horda de assassinos? Ela não lutaria

se fizesse parte da conspiração. Não havia por que não fugir junto com ele. A única

explicação era de que Selena traíra os Ayarza. Vendera a cabeça dos herdeiros do

trono, traíra a confiança de pessoas que sempre a trataram como uma filha e então

se casaria com o tio Bernat para poder tomar o poder.

Um grito distante, abafado e inesperado atraiu a atenção de Zakkar.

Girou o pescoço e notou uma movimentação esquisita em um beco escuro.

Deixando para trás as terríveis notícias que acabara de ouvir, deslizou pela travessa

escura e úmida, seguindo um murmúrio suspeito ecoando ao longo do caminho.

As vozes eram estridentes e desesperadas, ora abafadas abruptamente por algo ou

alguém.

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Adentrou a escuridão funesta, correndo em direção aos clamores interrompidos.

As lamparinas ao redor estavam quebradas e as velas intactas, porém apagadas.

Estalou os dedos e pequenas faíscas mágicas viajaram até os archotes. O beco se

iluminava, conforme diminuía a distância, exibindo paredes de madeira gastas dos

fundos de velhas estalagens. No final da viela, avistou o cais. Os grunhidos

desesperados vinham de um grupo de garotas. Correndo o mais rápido possível,

livrando-se dos panos que cobriam seu rosto e cabeça, notou que eram pelo menos

cinco, amarradas e amordaçadas. Homens sórdidos, com aspecto execrável, as

enfurnavam em sacos iguais aos de batata e levavam para dentro de um corsário

prestes a partir.

O navio zarpou e foi se afastando do cais, lentamente. Zakkar disparou,

arrancando a camisa. Os homens puxaram as cordas e levantaram as velas, logo

uma caveira oculta se revelou sobre o mastro principal. Não eram marinheiros ou

mercadores, eram piratas. Ouvira dezenas de histórias a respeito deles, mas nunca

os vira de fato. Eram criminosos caçados por frotas armadas de vários reinos e isto

era o que sabia. No seu imaginário, viviam de roubos de cargas em alto mar,

interceptando galeões carregados de ouro e joias ou mesmo de caçadas a grandes

tesouros, guiados por mapas antigos. Nunca arriscaria dizer que as atrocidades que

cometiam envolviam sequestro de garotas indefesas.

A distância entre o porto e o corsário ficava maior a cada segundo e, mesmo

vacilante, Zakkar lançou-se sobre as águas negras e geladas, nadando de braçadas

em direção ao navio. Alcançou uma corda esquecida pela tripulação e subiu pelos

veios da couraça da embarcação.

A cabine do capitão cheirava a erva de fumo misturado a um odor adocicado,

como o de carne de cordeiro assada com vinho. A iluminação não era das melhores.

Algumas velas grossas espalhadas em castiçais em três pontos distintos faziam com

que a mobília ao redor, como poltronas, uma grande mesa de madeira, estátuas

antigas e uma pesada armadura projetassem sombras fantasmagóricas sobre o

assoalho de madeira lustrada, enfiando o lugar em uma intensa penumbra

melancólica. Cortinas pesadas de veludo vermelho se estendiam sobre as janelas e

impediam que a luz saísse ou entrasse do cômodo, ajudando a abafar quaisquer

ruídos, de modo que quem estivesse do lado de dentro não conseguia ouvir os sons

externos à cabine. O ambiente era quente e sufocante. Quando dois piratas

trouxeram a garota, ela estava amarrada pelas mãos e foi jogada no chão, na sombra

do criado-mudo ao lado de uma luxuosa poltrona de couro.

Com dificuldade para respirar, tentando entender como fora parar ali, ela

vislumbrou a cabine com desespero. A respiração tornou-se descompassada e o

coração acelerou de um jeito angustiante. Virando o pescoço, notou os piratas ainda

aguardando, encarando-a como se fosse um pedaço de carne. A cabeça latejava.

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Uma pancada havia a atingido e ela foi arrastada pelas ruas do porto e lançada, junto

com outras quatro garotas para dentro de um velho corsário. Atordoada, ouvia

choros inconsoláveis, misturado às risadas maléficas e ameaças. Uma voz carregada

de sarcasmo pedia calma e berrava que elas seriam primeiro tratadas pelo capitão e

aí então seriam do restante da tripulação. Gargalhadas e ironias. Ao redor, tudo era

escuridão. De repente, a luz da lua surgiu. O cheiro de mar invadiu suas narinas. O

convés superior apareceu e sobre ele, um homem esgalgado balançava um esfregão

pelo piso, solitário. Arrastada por dois homens que comentavam que a hora da

refeição do capitão chegara, ouviu a porta da cabine se abrir e foi lançada sobre o

piso.

Um homem surgiu de uma porta. Era velho, com um nariz aquilino e torto, o

rosto encovado e um cavanhaque preto. Uma cicatriz bizarra atravessava seu rosto;

começava pouco acima do olho esquerdo e terminava no maxilar. Terminava de

limpar a boca e abriu um largo sorriso para ela, jogando o que parecia ser um

guardanapo de seda sobre a poltrona. Ele falou para os dois piratas tirarem as

cordas e ambos titubearam. O velhote insistiu, e disse que estava disposto a brincar

um pouco esta noite e que não seria tão difícil, já que ela era tão novinha. Então,

compreendeu tudo. A refeição do capitão a que se referiam era ela. Depois que ele

a estuprasse em sua cabine particular, à prova de qualquer ruído, seria jogada para

a tripulação abusar dela como quisessem.

O corsário seguia o trajeto em mar aberto, com os ventos castigando as velas e

injetando velocidade sobre o navio. Um relâmpago cortou os céus, seguido pelo

som estridente de um trovão, jogando uma luz esbranquiçada sobre o rosto de

Zakkar. Agarrado aos veios da popa, ele sentia a ventania assoprar sobre seus

cabelos desgrenhados. Gotículas de água salgada se precipitavam do oceano, toda

vez que a embarcação quicava nas marés que se arremetiam contra a couraça.

Agarrado à madeira, questionava-se porque se lançara ao mar e invadira um navio

pirata para salvar garotas que sequer conhecia. Não estava em posição de vantagem

e tampouco tinha noção se um daqueles homens do navio não era um caçador de

recompensas a fim de entregá-lo aos conspiradores. Lá no fundo, sabia qual era a

resposta para suas indagações. Sabia que isto era o correto a ser feito. Sobre tudo o

que aprendera a respeito de um Guardião, proteger os mais fracos era a obrigação

primordial e não somente da função adquirida, mas um dever moral para com

aqueles que não tinham como se defender. Mesmo sabendo que talvez jamais fosse

nomeado como Protetor de Aladar, a consciência o impelia a fazer o certo. Aquelas

cinco garotas raptadas eram miliatenses, inocentes e indefesas. Se ele podia fazer o

certo, era este o momento. A vingança que tanto ansiava poderia esperar.

Pendurando-se pelas madeiras do corsário, seguiu pela lateral ao mesmo tempo

em que seu cérebro se esforçava para maquinar um plano de resgate inteligente.

400


Seria somente ele contra uma horda de piratas. Quantos deveriam ser? Sete, doze,

vinte? Provavelmente, estariam armados com espadas e facões. Se o vissem, seria

seu fim. Não conseguiria dar conta se fossem tantos. Escalou até o topo e ergueu

a cabeça para espiar. O convés superior estava vazio e um único homem carregava

um esfregão, limpando o assoalho, resmungando sem parar.

Era a deixa que precisava.

Subindo para o convés, Zakkar seguiu passo a passo, olhando para todos os lados,

constatando que não havia mais piratas por ali. Aproximou-se com cautela e num

movimento preciso, travou o pescoço do pirata entre seus braços.

— Vou perguntar somente uma vez: onde estão as garotas que vocês

sequestraram?

— O... quê... você...

Zakkar apertou os braços, esganando o homem. Ouviu o desespero dele ao tentar

sorver o ar, sem conseguir.

— Mais uma chance, seu verme. Onde estão as garotas que vocês raptaram?

— Nas... cadeias... lá embaixo.

— E os outros piratas, onde estão?

Lutando para poder respirar, o pirata tentava se soltar do golpe de Zakkar,

inutilmente.

— Estão... nos dormitórios...

— Certo. É hora de lhes fazer uma visitinha, então.

Soltando os braços do pescoço do homem, Zakkar seguiu em direção à porta que

dava acesso ao convés inferior. Iria se livrar dos piratas, surpreendendo-os em suas

próprias camas. O pirata com o esfregão puxou o ar com força até os pulmões

doerem. Compreendendo o que havia acabado de acontecer, correu desesperado

até o sino no mastro principal. Um vento elemental golpeou seu estômago com

força, antes que pudesse alcançar a cordinha metálica. Vendo o corpo ser levantado

no ar, fora arremessado para fora do corsário, caindo nas águas geladas e escuras

do mar.

O clima abafado da cabine do capitão aumentava o desespero da jovem

atarantada, estirada sobre o piso. O velhote mandara os guardas esperarem do lado

de fora e só entrarem quando ele os chamasse. Embora contrariados, eles saíram e

trancaram as portas. Ele a encarava com seu olhar lascivo e asqueroso, cercando-a

de todos os lados. A garota tentava se esgueirar para bem longe dele, apavorada.

— Vamos, minha filha. Não tenho a noite toda e você sabe que não há para onde

fugir — falou o capitão, passando a língua sobre os lábios — Estamos em alto mar.

A única escapatória aqui é cair nas águas geladas de Crispoles. Você não vai querer

isso. Mesmo que saiba nadar, há monstros marinhos e tubarões que vão acabar com

você em um instante. Eu só quero gozar na sua bocetinha e poderá voltar para a

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cama preparada lá embaixo, para você. Não garanto muito conforto e nem mesmo

que irá dormir. Meus homens estão há muitos dias sem ter uma diversão adequada,

se é que me entendes.

Os olhos se arregalaram e lágrimas escorreram sem querer. Era virgem. Nunca

havia tido relação com homem algum. Mesmo quando esteve de paquera com um

garoto de sua rua e ele insinuou em apalpar seus seios, ela deu-lhe um tapa no rosto

de marcar os dedos e saiu correndo. Não era dessa forma que imaginava perder a

virgindade. Não violentada por um velho abominável e desprezível. Estava

determinada a resistir. Morrer afogada ou devorada pelas criaturas marítimas seria

melhor do que permitir ser violentada. Não deixaria que ele fizesse nada com ela.

O calor entorpecente do lugar a fazia suar exacerbadamente. Contemplava o

perímetro ao redor, lançando olhares sutis, buscando qualquer coisa que pudesse

usar para se defender até que os olhos se depararam com uma faca dourada em

cima da mesa.

— Vamos começar de novo, bonequinha — falava o capitão, deslizando na

direção da garota. — Qual seu nome?

— É... Manara... — Ela se esgueirava pela cabine, caminhando de lado em direção

à mesa, torcendo para que ele não notasse que avançava lentamente até lá.

— Ótimo, Manara. Parece que estamos nos entendendo. Eu sou Faldor, o capitão

desse navio, como deve ter percebido. Sabia que sei tratar muito bem as damas que

se deitam comigo?

— É mesmo? — questionou Manara, vislumbrando a faca cada vez mais perto.

Um olhar compenetrado entregou a estratégia da garota. Faldor parou no meio

do caminho e percebeu o que ela pretendia fazer. O capitão do navio avançou por

cima do sofá e Manara, correndo contra o tempo, correu até a mesa para alcançar

a faca. Os dedos estavam perto de agarrar o cabo de madeira quando as mãos

ásperas do velhote alcançaram os cabelos loiros da garota. A testa voou com tudo

em cima da mesa, num golpe desferido pelo capitão.

— Maldita! Está pensando que vai fazer o quê? Me esfaquear?

Faldor bateu a cabeça dela novamente contra a mesa. Atarantada, viu as cortinas,

o sofá e a cabine rodopiarem. Sentiu o vestido ser rasgado de cima a baixo e os

dedos do homem agarrarem seus seios. A cabeça girava com a dor lancinante; ouviu

um zíper se abrindo. Os olhos turvos vislumbraram a faca muito próxima de onde

fora jogada. Esticando a mão, alcançou a lâmina. Os dedos firmes sobre o cabo

viraram-se num golpe furioso e a adaga acertou o rosto do velho, marcando sua

face de um lado a outro.

Sangue jorrou sobre o colo de Manara, respingando em sua barriga, nos seios de

fora e sobre a mesa de madeira. O capitão deu um berro de dor. Rasgando um

pedaço da própria camisa, pressionou o pano sobre a ferida aberta. Atordoada, a

garota notou que a faca escapou de sua mão e foi parar próximo à armadura. Uma

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gargalhada inesperada ecoou pelo ar. Manara, ainda com a visão turva, contemplou

o capitão do corsário sorrindo e avançando em sua direção.

— Você gosta de brincar?

Um soco atingiu Manara na boca do estômago e em seguida seu rosto. As mesmas

mãos ásperas agarraram-na com brutalidade e a colocaram de bruços sobre a mesa.

Os golpes violentos provocavam ondas de dor lancinante em sua fronte; estava

prestes a desfalecer. Dedos puxaram seus cabelos com força ao mesmo tempo em

que outra mão agarrou seus quadris.

— Saiba que eu também adoro brincar, sua vadia. Vou comer esse seu rabo

gostoso até gozar o que não descarrego há um mês!

Um baque ensurdecedor eclodiu dentro da cabine. O vento gelado da noite

assoprou para dentro dos aposentos do capitão e fez as chamas das velas

tremularem quando Zakkar explodiu as portas de carvalho da entrada. O guardião

vislumbrou um velho magricela com o rosto ensanguentado, agarrando uma garota

seminua pelos cabelos, deitada de bruços em cima de uma mesa, na iminência de

estuprá-la.

Movendo os dedos num lance rápido, a mesma faca que Manara usou voou do

chão do assoalho e acertou o ombro do capitão do navio. Faldor soltou um urro

excruciante. Os olhos arregalados e carregados de medo contemplavam o invasor

e algoz desconhecido, adentrando a cabine. Zakkar mirou o estado deplorável da

garota estirada sobre a mesa, prestes a desmaiar. Ergueu-a e a colocou sobre a

poltrona, jogando uma toalha da mesa por cima de sua nudez.

— Guardas! Guardas! — berrava o capitão, aparvalhado. Aguardava a entrada de

seus escudeiros ou mesmo dos piratas sob seu comando para acudi-lo diante do

ataque surpresa.

— Sugiro que dê uma olhada pela janela — falou Zakkar, avançando até onde o

capitão agonizava, esforçando-se para retirar a faca encravada em seu ombro.

Faldor arrastou a pesada cortina de veludo e encarou o convés superior do

corsário. A escuridão da noite atrapalhava sua visão e os céus começavam a ficar

encobertos por nuvens cinzentas. A chuva não havia chegado, mas dava indícios

de que logo cairia. Uma trovoada ribombou e um relâmpago cortou os céus. Um

clarão esbranquiçado iluminou a escuridão dominante de súbito e revelaram algo

que fez o capitão arregalar seus olhos ainda mais. Cordas apareceram. Amarradas

sobre as cruzetas dos três mastros do navio, elas se precipitavam em direção ao piso

do convés. Tensionadas, sustentavam em suas pontas cada um dos piratas da

tripulação, enforcados.

Virando para encarar Zakkar, o capitão não deixava de exalar o terror, refletido

em seus olhos arregalados, externando um medo exacerbado, que jamais sentira na

vida. Erguendo uma das mãos, o guardião balançou a cabeça para Faldor e lançou

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uma magia. Uma luz reluziu da ponta de seus dedos e atravessou a cabine. A cabeça

do capitão rolou pelo assoalho de madeira no instante seguinte.

404


Capítulo Vinte e Nove

Insônia

Sob a vastidão do céu enegrecido, um elfo não conseguia dormir. As calças

estavam dobradas de qualquer maneira na altura dos joelhos e os pés enfiados sobre

as águas calmas e frias de um lago, podia sentir pequenos seixos rugosos

pressionarem seus dedos e calcanhar. Abaixou-se e arrebatou outra pedra. Era

levemente plana e nem um pouco pesada: perfeita para seu entretenimento

momentâneo. Segurou-a entre o polegar e o indicador, balançou a mão para frente

e para trás duas vezes, tomando o cuidado de manter o braço o mais paralelo

possível com a face das águas. A pedrinha escapou de seus dedos e ricocheteou

sobre o espelho d’água de aspecto leitoso pelos menos umas três vezes até sumir,

afundando no lago.

Nikolai Nodovra colocou as mãos na cintura, um tanto absorto e contrariado. A

noite era muito escura. Não havia estrelas no céu e tampouco a manifestação do

brilho da lua. Mesmo estando em época de lua cheia e sem uma razão plausível para

explicar o sumiço das costumeiras constelações sobre a abóbada celeste, ele

arrazoava sobre os muitos motivos desse mistério inexorável.

As Terras Distantes de Turmis eram recheadas de muitas lendas. Dentre as mais

famosas, estavam as histórias de que uma maldição antiga e poderosa circundava

especificamente aquele trecho do continente. Por esta razão, navios sumiam ao

navegar próximo dali e expedições de curiosos e exploradores de ouro não

retornavam de suas aventuras. Os motivos eram diversos: monstros inimagináveis,

criaturas das trevas que devoravam homens e mulheres, bestas que emergiam do

mar e engoliam embarcações por completo. Para Nodovra, pura baboseira de

contos infundados dos humanos mais ignóbeis. A malha do tempo de Turmis,

naquele pedaço conhecido como Terras Distantes, cujo nome fora adotado por

jamais uma única viva alma ter pisado essa região do continente após o fim da Era

das Trevas, sempre oscilou de um jeito muito esquisito. Desde o período em que

os elfos viviam reclusos nas florestas, antigos livros comentavam sobre agitações

incongruentes nessa região. Contudo, nada muito diferente do que acontecia em

regiões remotas de Eirin, como o extremo-norte congelado de Anlevor ou mesmo

as regiões montanhosas e inóspitas do oeste de Elstoen, cujas vibrações do tempo

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sempre foram grandes incógnitas desde tempos remotos. O fim da guerra que

culminou no término da Grande Era das Trevas trouxe consequências desastrosas

em particular para as ditas Terras Distantes em virtude de decisões nada acertadas,

muito mais políticas do que ponderadas ou consensadas. O exílio de monstros e

criaturas ali, além do pacto de desviar furacões e tempestades por vários ciclos para

exterminar as aberrações criou uma região de agitação descomunal na malha do

tempo.

Nikolai agachou-se e pegou uma nova pedrinha do lago. Diferente das demais,

essa era oval. Embora soubesse que não era das melhores para ricochetear sobre o

espelho d’água, arriscou mesmo assim. Arremessou-a como fez com as outras. Ela

bateu na água e afundou de imediato.

Como a pedra distinta que jogou, a malha do tempo nas Terras Distantes oscilava

de forma diferente há um tempo. Reverberava de um jeito impossível de se prever,

ela pulsava de modo ilógico, fugindo de quaisquer padrões estabelecidos desde os

tempos antigos da sacramentação. E Nikolai recordava muito bem o dia exato em

que tudo isto começara. Menfesis emitira um comunicado urgente, convocando os

Oito Octaedros para uma reunião emergencial em Purysia. Naquela manhã, as

oscilações na enseada de Zavir no trecho mais próximo das Terras Distantes

indicavam a aproximação de ondas gigantes. Os padrões se alteraram duas vezes.

O que poderia levar horas ou mesmo dias, ocorreu em questão de minutos.

Vibrações inconsistentes prediziam que maremotos monstruosos, vindos das

Águas Solídiras se aproximavam da costa. Ondas terríveis, capazes de inundar não

somente o sul do continente, mas Turmis por completo.

A carta de Menfesis ainda pairava em sua mão, quando seus sacramentadores o

informaram das oscilações. Terminava de ajudar Gavir Onobka a direcionar a

chuva para irrigar campos de trigo em Líria, quando leu a transcrição do que seus

ajudantes haviam detectado. Acreditou estar diante de alguma brincadeira e de

muito mau gosto e chegou a duvidar do alerta de seus sacramentadores. Partiu com

a comitiva imediatamente para o limiar de acesso às Terras Distantes, onde a malha

estava mais agitada. Refez a leitura das vibrações uma, duas, três vezes. A predição

era aterradora. Um maremoto inigualável, com ondas de até cinquenta metros de

altura, se aproximava em rápida ascensão. Escreveu um aviso para Onobka,

solicitando sua ajuda, mas considerava minimizar impactos do que seria o maior

tsunami de todos os tempos. Preparou os arcanos e sacramentadores para o pior.

Recordou que aquelas agitações eram todas de terra. Optou por contar com o

benefício da dúvida, antes que o pedido de auxílio ao Octaedro de Austeridade

fosse enviado, mesmo não havendo margem para desacreditar depois de tantas

leituras. Ao analisar a oscilação da malha nos oceanos, as vibrações não

apresentavam um espectro aterrador, indicando um prelúdio do caos. As Águas

Solídiras e de Crispoles se desenhavam como a mais pura calmaria. Ninguém

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conseguia entender. Suspendeu a carta para Gavir, mas manteve os

sacramentadores e arcanos na linha de frente, para o ponto onde as ondas

acertariam o continente primeiro. Na hora prevista do recuo do oceano e do choque

do mar sobre a enseada, nada ocorreu. As marés seguiam seu fluxo normal, como

a malha do tempo nos oceanos indicava. Despedindo sua comitiva, Nikolai foi

embora com uma dúvida que perdurava até os dias atuais. Semanas depois, em

Purysia, Menfesis teceu seu fatídico anúncio. Encerrou a era perpetatem

precipitadamente dos Oito e, desde então, nada mais fez sentido no Octaedro das

Trevas.

Absorto nas lembranças tenebrosas, Nodovra desistiu de jogar pedras sobre as

águas. Além do lago em que estava, contemplou o imenso Paredão. O Paredão era

como chamavam a gigantesca cordilheira que dividia as sombrias Terras Distantes

do resto civilizado do continente. Desde que assumira o Octaedro, era a primeira

vez que punha os pés do outro lado daquelas montanhas tenebrosas. Jamais ousou,

em sua carreira, ultrapassar os portões da face norte, ainda que sua missão como

líder de Trevas, fosse garantir a harmonia do tempo sobre a parte mais obscura do

continente. Nunca foi por medo que preferiu manter-se longe das Terras Distantes

por tantos ciclos. Entendia esse traço das emoções que considerava o mais

característico da cultura dos humanos e jamais o desprezou em qualquer que fosse

a sociedade que conviveu, mas um dos sentimentos que nunca se permitiu

experimentar era o medo. Considerava aquele um lugar abominável e digno de seu

desprezo, não pelas lendas e crenças de ser uma região amaldiçoada, tampouco por

abrigar temíveis criaturas exiladas, mas por ser o local em que alguém que tanto

admirou fora banido para sempre.

Não conseguia compreender o porquê ele fizera tudo aquilo. Por que se

corrompera pelo poder, visto que nunca dissimulou a nobreza e altruísmos de sua

missão, influenciando tantos sacramentadores com sua sabedoria ímpar e uma

liderança firme, prezando pelos princípios da religião dos elfos como nunca. O que

o motivou a cometer tamanho sacrilégio? Pior, por que nunca confessou nada?

Quando Menfesis e Alezeia adentraram o salão comum dos sacramentadores

naquela fatídica noite e contaram a respeito de seu pecado, de como regressou ao

passado para aniquilar desafetos pessoais e contrários ao seu governo, Nodovra

inflamou-se, incrédulo com o que acabara de ouvir. Adentrou o cômodo em que

repousava e foi o primeiro a confrontá-lo. A admiração e o respeito conquistados

ao longo de ciclos esvaíram-se com sua reação. Era verdade. Tudo verdade. No

julgamento daquele a quem tanto estimou, foi o mais incisivo e o primeiro a votar

a favor da punição máxima. Ele sequer ousou se defender. Aceitou a sentença de

bom grado e seguiu para a condenação obedientemente. Embora Nikolai relutasse

em querer admitir e desviasse as ponderações de sua razão para tal, com os pés

enfiados nas águas enregelantes daquele lago, era medo o que habitava seu coração.

407


Medo não pelas bestas e outras aberrações que poderiam encontrar no trajeto, mas

por quem ele seria quando o encontrassem, o quanto teria mudado ao longo dos

ciclos.

— Devaneio comigo mesmo se poderia ousar questionar as razões pelas quais a

magnificência da razão e personificação da justiça, Nikolai Nodovra, encontra-se

distante de seus aposentos provisórios. Caístes de suas acomodações, nobre amigo?

A voz de timbre cristalino e agradável de Sisno Sannfrye ressoou no formato de

um questionamento pertinente. Trajando o costumeiro camisolão de seda branca

que utilizava para dormir, os dedos se cruzavam na altura do peito. Os olhos eram

como os de uma águia e, mesmo no escuro, perscrutavam cada expressão do elfo

contemplativo com os pés enfurnados na água.

— De todas as questões pertinentes ao longo de nossa humilde trajetória na

missão altruísta de abdicar das coisas terrenas em função daquelas que são perenes

relativos ao que tange a consolidação e perpetuação da harmonia do tempo, há uma

que considero, ao extremo, intrigante: por que Menfesis indicou-me para o

Octaedro das Trevas, tendo notório saber da parte dele que meu desejo era o de

Perspicácia? — questionou Nodovra, caminhando para fora do lago — Por tantos

ciclos, dediquei minha vida aos estudos das variadas vertentes pelos quais a malha

do tempo pulsa naquelas que, em minha perspectiva, considero as regiões de

notório saber quanto à ancestralidade de nossas tradições sacramentais. Ao longo

de ciclos, tendo o reconhecimento de toda comunidade élfica, tenho escrito teses e

composto enciclopédias não apenas sobre o tempo e as oscilações da malha ali, mas

também sobre a cultura e a política nos reinos que compõem o bloco de Perspicácia.

Não tenho por desejo desmerecer a capacidade e sabedoria de nossa inestimável

companheira Soobo, contudo, questiono-me: havia algum sentimento obscuro em

Menfesis que desmerecesse minha conduta para esta que considerei por tantos

ciclos como uma posição desejada?

Nodovra encarou Sisno, limitando-se a emitir o costumeiro sorriso confiante que

possuía a capacidade de encorajá-los, independente da ocasião. Nos últimos meses,

aprendera a dar ouvidos ao velho sacramentador como há muito tempo não o fazia.

Era um voto velado de confiança diante do desespero da letargia que se abatia sobre

a religião dos elfos.

— É, deveras, uma intrigante questão, nobre Nodovra. Na contramão de tal

arguição instigante, posso lhe afirmar que nunca houve sentimento atrelado às

decisões de Arturo quanto à sua indicação. É plausível, nesta interessante prosa em

que nos foi arrebatado o sono, ainda que tenhamos uma densa jornada a enfrentar

ao romper da manhã, que existiam duas motivações para que sua posição na Ordem

surgisse ao revés do desejo que externavas. A primeira delas, obviamente, era

política. Menfesis precisava acalmar os ânimos dos Etéreos. O último Octaedro

não fora bem quisto pela nobreza de nossa cultura élfica, e bem sabes a que me

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refiro; algo que foi motivo de calorosos embates com o antigo líder. A segunda

razão, motor da decisão crucial pela indicação, ainda que a teu contragosto, consiste

na estoicidade de teu caráter. És incisivo, imutável, não és dissuadido por vãs

filosofias ou crenças baratas como muitos de nossos amigos tornaram-se no

decorrer dos ciclos. Tuas decisões estão livres de hesitação, firmes como este

Paredão que se desenha para além do lago. Ninguém haveria de ser melhor do que

tu para liderar o Octaedro das Trevas.

Sisno abaixou-se de súbito e arrebatou uma pedra da margem do lago e admiroua

por alguns instantes, antes de lançá-la sobre o espelho d’água, fazendo-a quicar

três vezes até sumir. Abriu um sorriso satisfeito e mirou o olhar apreensivo do

colega elfo.

— Não haveria ninguém melhor do que antigo arcano daquele que ousou trair a

pureza da Sacramentação como garantia de que a justiça sobre sua sentença seria

conservada na região em que ele fora exilado pela eternidade.

O silêncio se seguiu entre os dois elfos, estacados à beira da água.

— Creio que bem sabes, Sisno, o quanto resisti à tua persona ao longo dos

últimos ciclos, desde o fatídico dia em que o maior dos sacrilégios fora cometido

— proferia Nodovra, com sobriedade e seriedade, encarando o olhar carregado de

esperança de Sannfrye. — Jamais fui favorável à aclamação precipitada de Arturo

ao posto máximo de nossa estimada Ordem. Muito do qual se deve ao altruísmo e

abnegação contraditória que sempre demonstraste e também à tua exacerbada

admiração injustificável por Menfesis, desde eras antigas. Nutri um sentimento

digno dos humanos por tantos ciclos, inconformado com tais ações de sua parte

para promover justamente aquele a quem queremos destituir, em razão das ações

livres de sabedoria, a nos conduzir rumo ao abismo.

— Se julgas, nobre Nodovra, ter mantido um sentimento iracundo ou, como

mesmo disseste, humano, creio que de minha parte considero haver a ausência de

um profundo e sincero pedido de perdão. Não desculpas, pois são formais e

superficiais como o espelho d’água que contemplamos. Mas, devo-lhe rogar o

perdão por minhas ações passadas. Julguei mal alguém a quem tanto estimava,

como sendo o elfo que poderia governar a Ordem com equidade e justiça, trazendonos

tempos gloriosos como nunca houve. Não há nada de terrível em ter

sentimentos dignos de humanos, Nikolai, se essas expressões nos trouxerem de

volta à luz do que prega nossa crença e ao recôndito de nosso propósito.

Outra vez o silêncio.

Nodovra abaixou-se para pegar uma nova pedra. Admirou seu formato esdrúxulo

por alguns segundos, mas não atirou. Optou por encarar Sannfrye parado ao seu

lado.

— Acreditas, Sisno, que esta incursão tão contraditória obterá êxito? Não que

esteja ousando arrepender-me de aqui estar com nossa comitiva até alcançá-lo,

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porém, tenho arrazoado comigo mesmo se não teria sido prudente iniciarmos uma

sindicância pelo regime interno da Ordem para substitui-lo em razão de seus

pecados, assim como foi com... você sabe... Afinal, o Conselho está insatisfeito e

partilha de nossa motivação.

— A decisão que tomamos, naquela pocilga em Vandir-Lepit, foi acertada.

Contudo, considero tua sabedoria, Nodovra e tua argumentação é deveras

relevante. Mas que chance teríamos? De que o acusaríamos? Menfesis tornou-se

poderoso de uma forma que não podes sequer imaginar. O Protetorado de Purysia

é devotado a ele como uma guarda pessoal. Esqueceram o juramento de fidelidade

e o compromisso perpétuo com a proteção das terras que hoje abrigam o templo

da sacramentação. Mesmo havendo do quê o acusar, uma sindicância seria revelada

e desmanchada com o ímpeto do poder outorgado por nós de modo descabido a

ele nos últimos ciclos, confiando que usaria de tais domínios para resgatar os valores

perdidos em nossa religião. No que tange ao Conselho, a animosidade é crescente

quanto aos nossos assuntos e, pelo que consta no Tratado de Paragon, eles não

podem (e não querem) interferir entre poderes distintos. Bem, pelo menos não

diretamente. O marasmo de Menfesis após alguns eventos climáticos atingirem

alguns reinos e localidades de Eirin provocou um sentimento iracundo no líder do

Conselho. Sorte para a Ordem serem lugares menos importantes para os

Guardiões, como o extremo-Leste de Eurodian. Pois imagine o que teria

acontecido se Gradia fosse atingida por um maremoto e em seguida violentada por

um poderoso kraken? Por tal razão, Moronov nos procurou. A verdade é dura,

nobre Nodovra, mas somente um poderá impedir que uma Era do Caos atinja

nossos tempos. No entanto, para que tenhas paz nesta jornada, saibas que tomei as

devidas precauções e, tanto os Etéreos, o Concílio de Vaelfar e o Fulcro apoiam a

substituição imperativa de nosso atual líder.

— O Fulcro?

— No tempo certo, saberás.

O silêncio abrupto ocupou a hesitação dos dois elfos. Sannfrye e Nikolai

continuaram lado a lado ao pé do lago, até que o antigo sacramentador de

Hegemonia segurou o braço de Nodovra.

— Pois bem. Esta é sem dúvida uma formidável prosa, ainda que em uma hora

tão inoportuna, quando deveríamos estar repousando nossos corpos. Todavia,

necessito encontrar o chefe da Confraria para discutir a respeito de minhas

acomodações. O terreno em que assentaram minha cabana provisória não está dos

mais agradáveis.

— Certo, Sannfrye. Desejo-lhe sorte em tua empreitada.

Sisno acenou-lhe com a cabeça e, pé ante pé, saiu do lago em direção ao

acampamento. A meio caminho, estacou e virou-se.

— Não foi uma decisão de Menfesis, Nodovra.

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— Como?

— A decisão de indicá-lo como Octaedro de Trevas não foi uma escolha de

Arturo.

— Não consigo compreender.

— Indicá-lo ao Octaedro de Trevas foi uma decisão minha.

Sisno seguiu seu caminho, deixando Nikolai com uma profunda expressão de

dúvida.

411


Capítulo Trinta

O Ano da Elegibilidade

O grande dia enfim chegara.

O evento mais aguardado de todos os tempos, não somente pelos guardiões de

Eirin, mas também pelas nações do mundo, em um momento inédito em toda a

história estava realmente acontecendo e era difícil acreditar que aquilo era real.

Após um ciclo conturbado em que sua vida fora virada de cabeça para baixo, Petr

sentia como se tivesse imergido em um sonho fantástico, depois de escapar com

vida de um terrível pesadelo. A saudade do avô, depois de sua morte inesperada,

ainda perturbava seu coração e, havia dias em que a dor por sua perda transbordava

pelos olhos e não impedia as lágrimas de jorrarem como cascatas. Eram dias difíceis

em que optava por se esconder, mesmo de seu melhor amigo, Chermont, para

poder chorar de tristeza e rememorar os dias em que o tinha tão perto. Relembrar

aqueles dias em que se sentia seguro, protegido e livre de ter de tomar duras

decisões sobre o próprio futuro ou o destino de uma nação inteira. Não obstante a

morte do avô, ainda tinha de aguentar a insanidade da avó, querendo a qualquer

custo forçá-lo a entregar o trono para ela. Essas não eram escolhas para um garoto

de treze ciclos ter de decidir. Mas a vida o ensinou, muito cedo, que as coisas para

ele não seriam tão fáceis. Depois de tomar a decisão correta, mesmo hesitante se

de fato havia feito a escolha certa, vivia para poder vislumbrar aquele momento

épico.

Desceu do navio sob um coro ensurdecedor de muitas vozes engroladas. A noite

dominava e o Mar de Ágata estava sereno quando a prancha do corsário se estatelou

contra as madeiras cintilantes das docas de Gradia. Um extenso corredor fora

montado, ladeado por grossos cordões de cânhamo, separando o estreito vão da

estrada de pedra das multidões alvoroçadas que se acotovelavam ao redor. Centenas

de milhares de pessoas se acotovelavam, sendo humanos, elfos, anões, centauros e

duendes misturados em uma única massa pulsante, brigando entre si, para poder

contemplar quem eram os que desciam das embarcações e rumavam do porto.

Saindo do cais, o caminho de lajotas conduzia até a majestosa construção se

assomando bem no centro da cidade. Imponente, aquele era o edifício que

chamavam de A Casa dos Guardiões, um gigantesco monumento no meio da praça,

412


iluminado por chamas mágicas que o faziam reluzir como ouro maciço. Além das

multidões alvoraçadas, a decoração enchia os olhos até mesmo dos possíveis

desavisados, se é que haveria algum no meio da aglomeração avassaladora. Cinco

bandeiras esplêndidas se estendiam do topo até o pé das colunas de mármore. A

primeira delas, azul e branca, exibia a figura de um majestoso grifo pronto para

atacar. Petr ouvira falar daquele estandarte e de seu reino de terras suntuosas, cujo

rei morrera quase na mesma época em que seu pai desapareceu: Badorian. Embora

jamais tivesse pisado lá, seu avô contava histórias formidáveis sobre o lugar. Ao seu

lado, uma bandeira verde e reluzente exibia um corcel de volumosa crina e grandes

asas prateadas. Era a insígnia do maior reino do continente ao sul de Snartria, a

Virtuosa Candorn. Petr possuía uma dívida de gratidão muito grande com o velho

Lorde Saldivar que, antes de retornar ao próprio reino para assumir a coroa, liderou

as buscas por seu pai nas Montanhas Congeladas. Um homem de grande coração e

que até lembrava o avô, no jeito de se portar. Ao lado de Candorn, a majestosa

Harpia Voraz se apresentava cintilante, sobre um bandeirão preto e prata. O

símbolo das terras serenas de Snartria, exibido assim de forma tão grandiosa fez

seus olhos lacrimejarem. Imaginava como o avô ou seu pai estariam orgulhosos em

vê-lo caminhar até A Casa dos Guardiões para sua nomeação pelo Conselho.

Infelizmente, estaria sozinho em todos os três eventos. A quarta bandeira da

sequência era vermelha e branca e uma fênix indomável surgia. Aquela era a flâmula

de Miliat, o intrépido reino adorado por seu avô. Ele vivia contando histórias das

temporadas de verão que passava caçando ao lado dos amigos guardiões de lá.

Histórias que ele já não lembrava tão bem e que logo, logo seriam meras e vagas

lembranças esquecidas ao longo do tempo. A última das bandeiras era dourada e

prata e um leão em pé se mostrava feroz, empunhando um machado, com uma

coroa sobre a sua cabeça. Era um dos reinos de guardiões pouco conhecido de sua

parte, embora conhecesse um de seus principais representantes, o homem que

liderava o Conselho dos Guardiões. Amistelar não tinha histórias muito

empolgantes, mesmo com o continente abrigando um dos maiores e mais

intrigantes mistérios que já ouviu na vida.

— Coloque o capuz, Lorde Bravior.

Uma voz interrompeu a excitada admiração de Petr com a beleza ao redor. Um

dos acompanhantes enviados pelo Conselho para trazê-lo até Gradia crocitou,

soltando a voz e gesticulando, mas sua frase saiu como um berro desesperado

tentando se sobrepor ao vozerio ao redor.

— O capuz? — questionou Petr e não conseguiu escutar as próprias palavras. As

multidões em frenesi gritavam muito alto e era quase impossível ouvir alguém falar

normalmente, mesmo essa pessoa estando logo ao lado.

— O CAPUZ?

— SIM!

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— POR QUÊ?

— FAZ PARTE DA SURPRESA!

— OK.

Dando de ombros, Petr puxou o capuz preto para tapar o rosto, mas não sem

antes notar a extensão das docas ao redor, onde seu navio atracara. Outros barcos

estavam posicionados e não pode deixar de perceber os mesmos estandartes

desenrolados sobre a Casa dos Guardiões, afixados sobre as laterais das

embarcações. A fênix, o leão, a harpia, o corcel e o grifo repousavam pelos corsários

e galeões, balançando preguiçosamente com o impacto das ondas sobre o cais.

Aparentemente, era o último dos Cinco a chegar.

— POR AQUI!

O acompanhante deu a última ordem antes de seguirem pela estradinha de lajotas

cercada por cordas, contendo as multidões. Seguia com o rosto o mais abaixado

possível, a regra era não ser identificado na multidão, embora achasse muito difícil

alguém identificá-lo ali — até onde sabia, passaria despercebido por qualquer um,

já que as pessoas que o conheciam ficaram em Snartria, do outro lado do mundo.

Havia alguma espécie de mágica sobre as cordas porque, mesmo com a

aglomeração de gente se apertando umas contra as outras, ninguém avançava para

dentro do perímetro do caminho de paralelepípedos que conduzia até A Casa dos

Guardiões. Avançando pela estradinha, não conseguia deixar de tentar entender o

que as pessoas gritavam para ele.

— ... mas é claro que é, Petr Bravior, é ele.

— ... O neto de Maximo, obviamente...

— ... sim, sim. É ele, é a bandeira de Snartria no barco que chegou....

— ... nunca o vi. Dizem que é novinho. Deve ser ele mesmo, baixinho assim...

— ... Dizem que ele é muito novo...

Havia frases desconexas e coisas que Petr ouvia e não conseguia entender, ou

talvez não deveria entender por causa de sua idade, mas o fato de as pessoas

saberem seu nome era algo surpreendente para ele. Jamais saiu de Snartria e, mesmo

assim, tão distante, as pessoas repetiam seu nome e tentavam adivinhar quem

passava escondido sob o capuz.

— ... lógico. Óbvio que é ele, mulher. Eu aposto todos os meus candolins que o

Petr é quem vai ganhar.

— ... Mas você não é de Candorn? Não deveria apostar no seu Guardião?

— ... Eu aposto no mais forte. Preciso ver quanto tá valendo o câmbio de um

candolin por um peso gradiano. Pode anotar aí, vai dar Petr e eu vou sair rico desse

lugar.

— ... Eu aposto na de Badorian. Dizem que a garota é irmã da Lenda. Irmã da

Lenda, você já viu, né? É Lendinha!

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— ... O mais forte. Sem dúvida. O líder vai ser o de Miliat. O cara é parrudão.

Subiu a rua pisando forte. Vai dar Miliat, sem dúvida!

As multidões não apenas torciam por seu guardião favorito, como também

apostavam dinheiro em quem sairia vitorioso dos três eventos. Embora não fosse

uma competição, até onde Petr sabia, pois os eventos eram para definir o novo líder

do Círculo dos Cinco, as pessoas estavam animadas com a ideia de uma disputa de

poder e ouvir seu nome como um dos favoritos o deixou bastante animado em

tentar fazer o melhor. Não tinha a pretensão de ser o líder dos Cinco, isso nunca

passou por sua cabeça. A responsabilidade de ser o Guardião de Anlevor era um

fardo bastante pesado que se inclinou a assumir. Em Snartria, teria total apoio de

Chermont, de Aldair e dos outros conselheiros reais, principalmente contra as

loucuras de sua avó. Para Anlevor, o próprio Salazar Stanhorne em pessoa garantiu

que ele teria total suporte do Conselho dos Guardiões. Mesmo duvidando de algum

apoio vindo da figura soturna e distante de seu avô materno, Petr confiava na

palavra de Stanhorne. Assim, o peso do cargo que assumiria a partir dali, não parecia

mais tão elevado. Ser líder dos Cinco era uma louca responsabilidade pela qual não

estava nem um pouco interessado, mas, se saísse vencedor das três provas, não

haveria como fugir dessa incumbência.

A Casa dos Guardiões era por dentro tão esplendorosa e imponente quanto por

fora. Quando os portões de carvalho se fecharam atrás dele, abafando os berros

tresloucados das multidões eufóricas, Petr ficou embasbacado com a suntuosidade

e o luxo daquele lugar. O saguão de entrada oval brilhava à luz de cinco grandes

archotes de chamas elementais, cada tocha representando a cor de um reino. As

flâmulas dos reinos guardiões também adornavam o lugar, repousando sobre as

pilastras circulares que sustentavam as galerias superiores. Bem no meio do saguão,

o piso de mármore que mais parecia um espelho de tão lustroso e chispante exibia

um enorme mapa-múndi, com todos os continentes de Eirin, seus reinos, mares e

ilhas. Era possível visualizar até mesmo o relevo, os acidentes geográficos, as

cadeias de montanhas, enseadas e vales de cada nação. Petr se perdeu em devaneios

ao contemplar um pedaço do mapa com uma monstruosa cadeia de morros e

montanhas em que se lia “Terras Distantes de Turmis”. Se tivesse a sorte de ter

nascido no continente banhado por Crispoles e Solídiras, visitar as misteriosas

terras distantes seria a primeira coisa que faria, independentemente de ser Guardião

ou não. Arrumaria um jeito de ir até lá e desbravar a geografia do lugar que nem

mesmo o mapa detalhava.

Admirando o requinte da majestosa decoração, Petr imaginava qual seria a

primeira coisa que faria quando retornasse como Guardião de Anlevor, isso se sua

avó não tivesse virado Snartria de cabeça para baixo. Não havia parado para pensar

nessas coisas. Sabia que a função do Guardião ia muito além de caçar monstros.

415


Como protetor do continente, tinha de matar as variadas bestas que surgiam e

importunavam os condados e reinos, ainda que não se ouvisse falar tanto em

criaturas abissais atacando cidades por aí em Snartria, mas também era função

proteger as nações de piratas, ladinos, assassinos, ladrões e qualquer outro lunático

que ameaçasse a paz e a harmonia; atuar como juízes, julgando pequenas causas —

as maiores e mais complexas, obviamente, tinham de ser levadas para os

magistrados, nomeados pelos condados dos reinos. A melhor coisa a se fazer seria

peregrinar pelo continente. Necessitava conhecer melhor seu próprio povo. Vivera

treze ciclos praticamente confinado no Palácio de Ônix. Conhecia alguns condados

graças ao avô e aos parentes distantes que moravam do outro lado do reino, como

seu primo Roben e alguns dos Wallensig — que preferia não ter muito contato

mesmo. Precisava explorar os vinte e cinco condados, conhecer suas terras, as

florestas, montanhas e vales, entender quais perigos e riscos as pessoas passavam,

compreender suas necessidades, se envolver com suas dores, seus anseios, ameaças

e dificuldades que enfrentavam. Era a melhor forma de, não apenas se consolidar

como o Guardião de Anlevor, mas regressar ciclos mais tarde para assumir a coroa

e governar com justiça, depois de ter conhecido os quatro cantos do continente.

A cabeça viajou para longe por alguns instantes, absorto com o vislumbre

coruscante daquele saguão de entrada opulento. Imaginava se deveria ou não insistir

em encontrar o pai em Gelor-Torine. O brilho que vira nas Montanhas Congeladas

e a magia esdrúxula de Conrod instigava Petr a retornar aos campos brancos do

deserto de gelo para descobrir o que havia além do platô em que foram obrigados

a retornar para salvar as próprias vidas. Um ótimo pretexto para regressar às suas

investigações, na esperança de encontrar o pai, mesmo depois de mais de um ciclo

sem quaisquer informações sobre seu paradeiro, seria os wargs invernais. Os lobos

colossais e de poderosas presas afiadas eram um bom motivo para garantir um

retorno às montanhas. Não somente para exterminar as criaturas das trevas, mas

também para explorar os mistérios rondando os arredores dos montes cobertos de

neve do extremo norte de Anlevor.

Avançando pelas escadas, sempre conduzido pelo acompanhante, ouvia os gritos

abafados do povo do lado de fora. A euforia das multidões histéricas não cessava

um minuto sequer. E isso era assustador e ao mesmo tempo excitante. Petr estacou

diante de outra porta de carvalho, menor e mais estreita do que os portões de

entrada, mas coberta de ouro e outras joias engastadas sobre sua superfície. O luxo

e o requinte marcavam cada centímetro do palacete e arrebatariam os ânimos de

qualquer curioso se pudesse contemplar o que estava diante de seus olhos.

— Lorde Bravior, peço que aguarde neste ambiente. Logo, Lorde Stanhorne

chamará os senhores para a anunciação que se dará na sacada principal do edifício.

— Senhores?

416


A porta se escancarou. Além do brilho ofuscante da decoração do salão diante de

seus olhos espantados, com luminárias artesanais feitas de cristal, poltronas e

amplos sofás de couro de dragão espalhados por todo o perímetro, uma lareira

aconchegante e uma espantosa mesa de jantar posta com as mais variadas

guloseimas e refeições de primeira qualidade, Petr contemplou, pela primeira vez,

os outros quatro guardiões e que em breve comporiam o novo Círculo dos Cinco.

Era estranho — e desagradável — notar como todos eram bem mais velhos e

mais altos do que ele. Ou estranho seria ele ser nomeado Guardião com apenas

treze ciclos de idade? Não sabia muito bem, não tinha uma resposta formada para

sua própria questão, mas o desconforto foi instantâneo quando quatro pares de

olhos focaram exatamente no ponto onde estava. As maçãs do rosto certamente

haviam corado com alguma violência, pois sentiu-as queimarem de imediato. Sorriu

meio sem graça, sem saber se deveria acenar ou cumprimenta-los com alguma

formalidade. Estava convicto de que não sabia como deveria agir. Ninguém lhe

passou instruções sobre o que fazer na Casa dos Guardiões. Na presença dos

demais, tinha de fazer alguma saudação conhecida? Deveria desafiá-los? Precisava

ser durão ou cortês? Se ao menos seu avô estivesse vivo, ele o orientaria a se mexer

e não ficar estagnado feito idiota contemplando quatro desconhecidos

provavelmente mais poderosos e experientes do que ele.

O primeiro olhar a desviar a atenção para um bolinho em cima da mesa foi de

um brutamontes. O nariz fino era desproporcional em relação ao tamanho do rosto.

Vestia-se de modo bastante elegante, trajando vestes de seda de um vermelho muito

vivo, ainda que no rosto sustentasse uma expressão de altivez — ou seria nojo?

Pouco importava para Petr, jamais gostou de caras muito altos, eram sempre

valentões e arrogantes, esse não devia ser diferente. Notou que no peito trazia uma

insígnia dourada, de uma fênix em seu renascimento. Aquele devia ser o Guardião

de Aladar.

Seguindo pelo salão, Petr não decidia se atacava uma guloseima da mesa ou se

sentava no sofá e aguardava o “Cara de Coruja” chegar. Queria poder fazer as

pernas pararem de tremer pela euforia e nervosismos com o anúncio iminente. As

multidões do lado de fora não cansavam de sua insana agitação, berrando e fazendo

os ecos ensurdecedores de suas vozes estremecerem as vidraças. Mas a fome

atacava sem pudor, fazendo o estômago roncar. Não quisera comer muita coisa ao

longo da viagem de navio; o nervosismo o atacava e inibia sua vontade comer.

Limitou-se a algumas avelãs, um punhado de amendoins torrados e um chá morno

indecifrável — uma nota de morango ou amora, era difícil definir.

Os cabelos ruivos do segundo guardião despertaram sua curiosidade. Eram

revoltos de uma forma bizarra, como se ele acabasse de acordar e não fizesse caso

de ajeitar o penteado. Ele definitivamente não parecia querer estar ali. Os olhos

azuis — ou eram cinzas? — denotavam tristeza, distantes. Mirava as portas de vidro

417


da sacada com independentemente um olhar perdido. As vestes pratas e a medalha

dourada não ofuscavam a desolação inquietante dominando sua mente e o levava

para algum lugar muito longe, em seu imaginário. Petr sentiu um pouco de pena do

rapaz, que não parecia tão jovem assim quanto o brutamontes de vermelho. Será

que o obrigaram a aceitar essa missão? Será que ficou entre o punhal e a espada,

assim como ele próprio, tendo de decidir se entregava o reino para avó ou assumia

a responsabilidade de Protetor de Anlevor? Sentiu-se tentado a puxar assunto com

ele e perguntar se queria conversar sobre o que o atormentava. Ninguém deveria

ficar sozinho com seus próprios demônios. Agradecia muito por ter Chermont ao

seu lado quando sua vida desmoronou, após o sumiço do pai e a morte do avô —

e as loucuras de sua avó. Comprimiu os olhos tentando decifrar na medalha em seu

peito se aquele animal era de fato um leão ou um grifo. Decidiu que parecia mais

um leão, pela juba volumosa e as patas ameaçadoras segurando um machado. O

Leão Indômito era o símbolo da Austera Amistelar e ele devia ter algum parentesco

com o líder do Conselho dos Guardiões. Só sabia disso porque Salazar Stanhorne

usava um broche parecido em suas vestes negras no enterro de seu avô, Maximo.

Aquele era então o Guardião de Turmis, mesmo que contra vontade.

A fome era maior do que a curiosidade de descobrir o motivo da tristeza do

guardião ruivo de olhar penoso. Meteu a mão na mesa e agarrou um bolinho de

chocolate. Devorou num instante. Estava delicioso, ainda mais pelo recheio de

creme de avelãs. Pegou mais um e mais outro. Vislumbrou umas bandejas de prata

vazia a um canto. Agarrou uma e foi colocando tudo que podia e estava ao alcance

de seus olhos. Bolinhos, quitutes de queijo, carne, tortinhas de frango e camarão,

bolos de carne, pudim de leite, manjar. Era doce e salgado dividindo espaço na

mesma bandeja. E, como não queria saciar a fome em pé, avançou pelo salão,

avaliando em qual sofá ou poltrona deveria sentar.

Notou no sofá mais amplo — e que julgou parecer mais aconchegante — um

terceiro guardião sentado. De cútis da cor do ônix, ele estava irrequieto. Sustentava

entre os dedos da mão direita uma tortinha de camarão e dividia as mordidas na

guloseima com as dentadas de nervosismo nas próprias unhas. O estado dele era

bem similar ao seu, embora ainda conseguisse manter o autocontrole, sem deixar

transparecer a inquietação para os demais. Preferia descontar na comida a ter de

demonstrar a ansiedade que o consumia. Mordeu mais um pedaço da tortinha e se

demorou um bom tempo mastigando. As pernas não paravam de balançar e Petr

sentiu-se desconfortável com a inquietação daquele rapaz — que não parecia ter

mais do que uns dezoito ciclos de idade — vestindo roupas de um tom verde

chamativo e com um cavalo alado estampado no broche. Seria ele o filho mais velho

do Lorde Saldivar, o antigo protetor de Elstoen? Uma vez seu avô comentara sobre

as regras rígidas de primogenitura na Virtuosa Candorn. Deveria ser ele. Mas havia

entendido que seu filho mais velho não era tão novo assim. Decididamente, sentar

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ao lado dele não faria bem ao amontoado de guloseimas sobre a bandeja e seguiu

para outro sofá, no lado oposto.

— Isso tudo é fome ou uma profunda crise de ansiedade, como nosso amigo ali

do outro lado?

Uma voz meiga, porém, firme atrapalhou sua concentração em devorar cada item

da variada lista aglomerada de petiscos e doces. Uma jovem de cabelos vermelhos

tão vivos quanto a roupa do primeiro guardião que encarara estava sentada

exatamente ao lado de onde escolhera repousar e comer. A fome era tanta que

sequer reparou na presença de uma menina ali. Uma menina, não, uma mulher. Não

era assim tão novinha, embora não fosse uma velha. Estranhara o fato de ter notado

apenas mais três guardiões, além de si próprio. Ainda faltava o representante de

Eurodian. A surpresa que o dominou foi tamanha que ficou uns bons segundos

admirando o belo rosto da jovem, pensando jamais imaginar que a Guardiã do

continente mais famoso do mundo seria uma mulher. O longo vestido azul dela era

exuberante e brilhava à luz das luminárias de cristal

— Imagino ser nervosismo mesmo, porque não para de me encarar!

Petr enrubesceu.

— Me... desculpe — falou Petr, desviando os olhos, sentindo as bochechas

arderem. — Eu não vi que você estava sentada aqui. Vou procurar outro lugar e...

— Deixa de bobeira! — falou Ivyna, metendo a mão em um bolinho de chocolate

com avelã e o devorando quase que instantaneamente. — Efes bofinhos esfão uma

delífia!

Petr arregalou os olhos para ela, admirado.

— Imagino que você seja a Guardiã de Eurodian, certo?

— Exatamente. O que me entregou? A medalha com o Grifo Inquietante em

meu peito ou essas roupas cafonas com as cores do meu reino para que todos daqui

a pouco possam nos reconhecer?

— Na verdade — Petr enfiou uma tortinha quase que inteira na boca — as duas

coisas. Eu fui contando os presentes no salão, deduzindo pelas cores e por esses

broches.

— Boa forma de reconhecer cada um. Não me passou pela cabeça fazer isso. É

uma boa sacada para quando a gente não quiser falar com algum guardião irritante.

Tomara que no Baile do Anúncio, todos estejam assim também. Muito bem

identificados com as cores de seus reinos. Assim será fácil desviar dos mais chatos

e ficar só com os mais legais.

Petr riu.

— Agora é minha vez — Ivyna pegou outro petisco da bandeja de Petr, uma

tortinha de frango dessa vez — pelos meus poderes telecinéticos, acredito que você

seja Petr Bravior, das nobres e serenas terras de Snatria, do interessante continente

de Anlevor. Acertei?

419


Petr arregalou os olhos.

— Você tem poderes telecinéticos?

Ivyna desembestou a rir.

— Claro que não!

— Como sabe tanto sobre mim, então?

— Todos os reinos-guardiões sabem sobre o lendário e poderoso menino

prodígio de Anlevor. E pode ser que eu também tenha pesquisado um pouco sobre

cada um dos novos Cinco. Quando você nasceu, sua história percorreu os quatro

cantos de Eirin. Você é filho dos dois maiores guardiões que eu já conheci. Hanna

Zanotchka era minha grande inspiração de guardiã. É uma pena que... bem... você

sabe...

— É... — Petr sentiu-se desconfortável. Seu avô nunca dissera que era famoso a

tal ponto. Enquanto ela conhecia muita coisa sobre ele, sequer descobrira qual era

o nome da jovem de pele pálida e longos cabelos vermelhos como chamas a crepitar

e que irritantemente roubava bolinhos e tortinhas de sua bandeja a todo momento.

— Você parece saber tudo sobre mim, mas ainda não me disse seu nome, nem

quem você é...

— Sou Ivyna Heinhardt, do Trono Branco da Suntuosa Badorian.

Ela estendeu a mão, abrindo um largo sorriso. Tímido, Petr também sorriu,

abraçado por uma confiança quase instantânea, algo que jamais sentira na vida.

Apertou a mão da guardiã com efusividade.

— Heinhardt... — ponderou Petr, encucado — Esse nome não me é estranho...

Ivyna olhou para o alto, como se a frase de Petr subitamente a entendesse.

— Deve ser por causa do meu irmão... Heidlich... ele era o último Guardião e

teve de abdicar quando...

— Você-é-irmã-da-Lenda-de-Eurodian?

A pergunta de Petr saiu engrolada e de uma vez só. Ivyna encarou novamente o

teto, diante da animação repentina do garoto e de seus olhos arregalados. Então,

sorriu.

— Sim, sim, é. Mas não venha me chamar de lendinha porque se não, eu...

— Meu pai sempre contava histórias sobre ele. Como ele era extraordinário, que

o poder dele...

— Parecia não ter fim, blá, blá, blá. É, ele mesmo.

Petr emudeceu. Quem parecia desconfortável naquele instante era ela.

— Desculpe...

— Não, tudo bem, Petr — falou Ivyna, parecendo menos chateada. — Posso te

chamar de Petr, não é? Ou você prefere Lorde ou algum título nobre?

— Acho que Senhor dos Guardiões seria bacana.

Ivyna e Petr riram.

— Pois bem, Senhor dos...

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— Petr é suficiente.

Ivyna riu e roubou outro bolinho de chocolate.

— Sabe, Petr, é que... bem... eu sempre vivi à sombra do meu irmão. E era um

saco. Quando era criança e fazia algo que meu pai não gostava, ele dizia ‘seu irmão

não faria isso, porque o Heidlich, blá, blá, blá’. Era sempre um sermão infindável

sobre as qualidades do perfeitinho do meu irmão mais velho. Toda vez que minha

mãe vinha me repreender, ela falava: ‘você tem que seguir o exemplo do seu irmão,

porque o Heidlich, blá, blá, blá’. E eu cresci ouvindo sobre tudo isso a respeito dele,

mas ele quase não aparecia no palácio. Ele vivia por Eurodian e quando aparecia

em casa, era como se um ser mitológico superpoderoso e intocável tivesse surgido.

Era uma babação de ovo, um bando de puxa-saco, lambendo o chão por onde ele

passava. Eu criei um ódio por aquela figura quase etérea de perfeição, mas não havia

nem porquê, pois ele passava mais tempo longe de Badorian do que com a família.

— Mas você sentia raiva porque... todos te comparavam com ele?

— Exato. Você é novo, mas não é bobo, Petr. Queriam que eu fosse perfeita

como eles pensavam que ele era. Mas eu mal o conhecia. Quando Heidlich vinha,

a gente mal se falava e ele sempre me tratava como uma criancinha necessitando de

proteção. Então, eu cresci tentando ser o oposto do que todos achavam que ele era.

Sempre que me diziam para ser como ele, eu perguntava onde o Heidlich estava.

Ele pouco se importava com a própria família, raramente aparecia. Se estivesse

morto, nós provavelmente só descobriríamos quando encontrassem seu cadáver

em decomposição. Eurodian era seu verdadeiro lar.

— Mas se você está aqui, é porque alguma coisa mudou... não é?

— Sim... O problema era esse: eu não o conhecia. Minha imagem de senhor

perfeitinho, exemplo de moral e integridade, acima dos meros mortais se desfez

completamente quando nosso pai faleceu...

Houve silêncio entre ambos interrompido somente pela algazarra externa ao

salão. Petr reparou uma lágrima rolar dos olhos da jovem ruiva e ela parecia reunir

forças para continuar a falar.

— Meus sentimentos, Ivyna.

— Obrigado. Eu nem sei porque estou falando tudo isso para você, eu acabei de

te conhecer. Talvez fosse o desejo de desabafar. É difícil para mim falar do meu pai

sem chorar. Mas, enfim, quando Heidlich assumiu o Trono Branco, eu vi que ele

não era nada daquilo. Minha mãe não queria que eu estivesse aqui, neste lugar. Meu

irmão insistiu. Heidlich me ensinou muitas coisas e, mesmo quando eu achei que

ele tinha me traído, ele me ajudou. As coisas nem sempre são do jeito que achamos,

Petr. Ainda me irrita viver à sombra dele e estou aqui para escrever minha história,

ter meu próprio destino desenhado com minhas ações, mas eu aprendi a amar meu

irmão e ver que, sim, ele é A Lenda de Eurodian. Não somente pela força ou

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poderes quase ilimitados, que ele realmente tem, ou pelos atos extraordinários feitos

ao longo da sua carreira, mas ele é uma lenda porque me ama.

— Então parece que Eurodian terá uma nova Lenda a partir de hoje...

— Espero fazer por onde, Senhor dos Guardiões.

Ambos riram e Petr segurou o último bolinho de chocolate. Partindo-o no meio,

dividiu com Ivyna.

— Você é um cavalheiro, Senhor dos Guard...

— Pode me chamar só de Petr mesmo, sabe.

Ivyna riu.

— Ok, ok. É que estava gostando desse lance de Senhor dos Guardiões. É uma

pena.

O Guardião de Aladar caminhou em direção a um espelho e atraiu a atenção de

Petr e Ivyna, acompanhando com os olhares o jovem brucutu gastar um bom

tempo arrumando as madeixas ralas e douradas, tentando manter um fiapo

desobediente no lugar, no topo da cabeça.

— Eu espero realmente que, no Baile da Anunciação, as pessoas estejam divididas

em cores bem chamativas. Assim, a gente vai poder se esquivar de pessoas usando

roupas vermelhas ridículas como as dele.

Petr riu, terminando de comer sua metade do bolinho. Subitamente, passou por

sua cabeça que não tinha companhia para o Baile. Não tivera tempo de convidar a

prima como companhia — e duvidava bastante que os pais dela deixariam ele a

levar como acompanhante para o baile. Ninguém de sua família viera e não tinha

muitas esperanças de ter alguém presente na anunciação do novo Círculo dos

Cinco. Estava sozinho, somente acompanhado da comitiva do Conselho que o

levou até ali. Veria Chermont, seu amigo, somente nos três eventos que

aconteceriam nos próximos dias. E não imaginava pegar bem levar Chermont como

acompanhante. Ele era um desastre na dança. Costumava dizer que tinha os dois

pés esquerdos. Conseguia realizar a incrível proeza de tropeçar andando, imagine

dançando. Precisava descolar alguém e uma ideia mirabolante brotou em sua mente.

— Escuta... é... você mencionou o Baile da Anunciação. Você... tem

acompanhante?

Ivyna abriu um sorriso para o garoto. Não era um sorriso de felicidade, mas uma

reação à sua pergunta, como se lembrasse de algo que deveria ter feito e não fez.

— Infelizmente, não. Quem eu esperava me convidar ou quem eu convidaria,

não sei exatamente, não estará em Gradia na noite do Baile. Acho que não fui rápida

o suficiente, talvez eu deveria ter tomado a atitude...

O olhar perdido em ponto algum, ela pareceu desolada por alguns instantes.

Provavelmente rememorava o convite que deveria ter feito. Petr decidiu que era o

momento propício para tomar uma atitude, mesmo parecendo uma loucura total.

— Bem, você... gostaria... de... ser... minha acompanhante?

422


— Senhor Petr, isto é um convite formal? Está me convidando para ser sua

acompanhante no Baile da Anunciação?

Petr sentiu a orelha esquentar. Imaginava se não estaria da cor de um tomate.

— Bem, eu pensei... Mas se você não quis...

— Para mim seria uma imensa honra poder ser sua acompanhante no Baile da

Anunciação.

O garoto abriu um largo sorriso, aliviado.

— Mas espero que você saiba dançar, hein?

Ele arregalou os olhos. Sabia alguns passos de dança, sim, mas não era lá um

exímio pé de valsa.

— Porque eu sou um desastre total.

Ivyna e Petr riram juntos mais uma vez.

As portas do salão se escancararam e os cinco guardiões se colocaram de pé,

prontamente. Acompanhado de dois guardas, o “Cara de Coruja” adentrou o

recinto. Não importava qual fosse o evento, para Petr, Salazar Stanhorne parecia

ter sempre a mesma roupa: o sobretudo negro era idêntico ao que usara no enterro

de seu avô. A maior variação nesse dia era a expressão em seu rosto. Não havia luto

ou tristeza marcando sua cara de coruja velha. Mas tinha sobriedade e o que Petr

acreditou ser uma pitada de emoção, uma euforia extremamente contida com o

evento histórico inédito.

— Senhores, lhes saúdo no desejo de que estejam tendo uma boa noite —

proferiu Salazar, sempre sério e cordato. — Acompanhem-me, por favor.

Um a um, os cinco guardiões seguiram o líder do Conselho por um corredor. Ao

final dele, cortinas foram recolhidas e pesadas portas de vidro se abriram. A brisa

salgada da noite adentrou o ambiente cálido de antes, bem como o vozerio histérico

de milhares de pessoas na praça contígua à Casa dos Guardiões. Salazar avançou

para a sacada externa juntamente com os cinco. Uma explosão de vozes berrando

a plenos pulmões ribombou pelos tímpanos de todos. Fogos de artifício pintaram

os céus, bandeiras e estandartes dos cinco reinos flamulavam em meio à multidão.

— Hoje, fazemos história — proferiu Salazar, fazendo sua voz reboar pelos ares

com um vórtice de vento elemental. — Estamos preparados. Esta casa anuncia um

evento inédito, uma esperança a ecoar pela eternidade. Rumo à glória das próximas

eras, vivemos ciclos de paz, igualdade, justiça e equilíbrio entre as nações. Nunca

antes, em toda a nossa história, houve tamanha harmonia como nos tempos atuais.

Somos hoje brindados com um acontecimento lendário que chancelará por toda

eternidade a unidade de todos os poderes pelo bem maior, pela proteção de nosso

mundo. Estou pronto. O Círculo dos Cinco está pronto. Que o Ano da

Elegibilidade comece!

423


Capítulo Trinta e Um

Histórias Ocultas

A mata era densa e escura. A trilha em que seguia era unicamente visível graças

aos pequenos flocos luminescentes do pólen de alguma flor nativa ali por perto.

Sisno Sannfrye seguia pela tortuosa carreira de chão batido de terra pelos muitos

pés que passaram ali em direção ao lago, sentindo o peso do cansaço sobre o corpo.

Pé ante pé, caminhando preguiçosamente, porém com redobrada atenção, agarrava

os dois lados de seu robe de dormir de seda. Cuidava para não agarrar em um

arbusto qualquer e estragar suas vestes. Dois acampamentos foram montados na

mata, relativamente distantes um do outro, sabia-se lá por qual motivo. As

acomodações não eram das melhores e ele imaginava que, de fato, em uma incursão

no meio da floresta, passando por terrenos acidentados, montanhas e florestas, não

haveria de esperar uma cama confortável, com travesseiros de plumas de ganso,

lençóis de linho fino e cobertores de algodão. Contudo, o lugar em que sua cabana

fora montada não era nada agradável e, desde o momento em que a fogueira fora

apagada, quando os olhos pesavam pelo sono, o chão abaixo de seu saco de dormir

revelava-se um intragável terreno coberto de pedras incômodas que o machucavam.

Era imperativo ter de resolver essa desagradável questão e exigir dele melhores

cuidados.

Caminhando entre a vegetação hostil, guiado pelos pontos luminescentes, não

tinha a menor sombra de dúvida quanto a decisão de substituir Menfesis e tal

consenso, como uma grata surpresa desde o término da reunião às escondidas em

Vandir-Lepit, era unânime entre os demais sacramentadores. Mesmo o mais difícil

deles e sua maior preocupação até então, Nikolai Nodovra, se dobrou ante aos seus

argumentos. As memórias da noite anterior corroboravam para que suas certezas

se solidificassem ainda mais. Haviam acabado de atravessar um poderoso rio de

águas cristalinas, porém revoltas como o mar em uma tempestade. Três dos

alquimestres que os acompanhavam utilizaram de seus poderes para poderem

atravessar sãos e salvos, mesmo sem conseguirem evitar que saíssem daquela

aventura completamente encharcados. Como o lusco-fusco dominava os céus ao

terminarem a travessia, decidiram acampar entre as árvores, antes do breu da noite

impedir de descobrirem se o lugar em que estavam era seguro para descansarem.

424


Acenderam uma fogueira e se livraram da roupa molhada para evitar que fossem

tomados por uma pneumonia. Ao cair da alta madrugada, depois de haverem

jantado, assim que os alquimestres da Confraria se retiraram para dormir, os oito

sacramentadores permaneceram ao redor da fogueira. Mãos esticadas para o calor

das chamas, alguns com canecas de chá de erva-doce e camomila fumegando, mas

com os olhos compenetrados no crepitar da lenha e drapejados com seus pijamas,

conversavam animados, como se a árdua travessia até ali tivesse sido um mero

passeio no jardim.

— Confesso que não era exatamente desta forma que imaginava as famigeradas

Terras Distantes de Turmis — comentou Nelis Naziv, enchendo uma caneca com

chá. — As lendas e histórias que habitam o imaginário dos humanos descreviam

essas redondezas como um local tremendamente hostil. Entrementes, jamais ousei

conjecturar que as bestas e criaturas de tais contos vãos sobreviveram ao longo de

todos esses ciclos, mas vislumbrava este território muito mais ermo, inóspito até

mesmo de quaisquer insetos.

— Há mistérios que rondam este lugar em que nossa vã filosofia não consegue

compreender, nobre Nelis — comentou Poledores, ressabiado, bebericando de seu

chá. — Ao longo de minha carreira, jamais fui agraciado com a sorte de obter uma

literatura a abordar os enigmas que rondam estas regiões emblemáticas.

— Afirmo-te, estimado Früg, que sou afortunado nesse ínterim — proferiu

Rodris Rannidge, mordendo um pedaço de charque que puxou de dentro da bolsa.

— Compreendo que nossas relações divergem a respeito da crença e da forma com

o qual tratamos os assuntos relativos à sacramentação do tempo, mas há instigantes

escritos dos centauros abordando esta latente questão.

— Perdoe-me, Rannidge — falou Soobo, meneando a cabeça, contrariada. —

Estás a dizer-nos que consideras as bibliografias advindas de criaturas tão hostis e

selváticas como os centauros? Devo lembrá-lo de que eles são amantes

contundentes da violência?

— Concordo veementemente — inferiu Nelis, colocando-se de pé. — Ignóbeis

criaturas como os centauros não consideram nada de nobre na vida a não ser suas

próprias bravatas, carregadas por uma selvageria ímpar.

— Senhores, acredito estais esquecendo que devemos muito de nosso

conhecimento a respeito da malha do tempo, das interpretações de vibrações e

oscilações complexas, à sabedoria da magia dos centauros — proferiu Gavir,

tomando um longo gole de chá. — Ou devo rememorá-los de que, até o fim da

Grande Era das Trevas, éramos singelos eremitas, abrigados no coração das

florestas, resguardados dos perigos iminentes pela força e coragem dos centauros?

— Há controvérsias, nobre Onobka — retrucou Yanui, ficando em pé para

encher a caneca mais uma vez. — Não há provas cabais que sejam categóricas para

tal afirmação. A interpretação das antigas oscilações é um conhecimento de eras,

425


cujas origens divergem em variados aspectos. Há literaturas que afirmam não haver

vibrações desvendadas por centauros, cabendo a eles unicamente o dever da

proteção para com aqueles que carregavam a sabedoria do tempo em suas mãos.

Havia uma relação de troca: a proteção de suas lâminas e vetores pelo dom élfico e

sacramental da predição do tempo. O que me diz, nobre Sisno?

Sisno encarou Soobo e Gavir com um olhar que parecia voltar de uma longa

contemplação. Bebericou um pouco mais de sua caneca e devorou um pedaço de

carne de forma comedida.

— Estamos engolfados por uma intensa discussão de eras, do qual opto por me

abster — comentou Sisno. — Rememorava os dias de Adryan Varnor, antes de ser

consumido pelo sacrilégio que o derrubou de sua perene posição.

— Recordo-me dele como se fosse ontem — falou Gavir Onobka,

contemplando o fogo com grande atenção, ainda que a mente estivesse vidrada na

lembrança prestes a contar. — Apesar de tantos ciclos, lembro-me da primeira vez

que ouvi sobre ele. Confesso que não me despertou qualquer curiosidade. À época,

estava colaborando e aprendendo com minha maedor Naesir, em Amistelar.

Ouvíamos as histórias a respeito da praga se avizinhando sobre Sananzaria, mas,

em virtude de quem liderava Perspicácia naqueles ciclos, confiávamos que não

haveria grandes problemas.

— De fato — comentou Poledores. — No entanto, desafortunadamente, houve.

— Deveras — continuou Gavir, assentindo. — A praga devastou centenas de

campos, não somente em Sananzaria, mas em Aralyart, Boralioch e Vaelfar e

provocou uma pestilência de proporções catastróficas nos muitos condados dessas

regiões.

— Recordo-me disto — inferiu Sisno. — Inclusive, fui levado a acreditar que

uma nova vibração da malha estava ocorrendo. Passei intermináveis horas que se

converteram em dias estudando os Antigos Escritos para descobrir se algo não

estava passando desapercebido a nossos olhos.

— Mas quando um arcano desconhecido despontou em Sananzaria, não apenas

desviando a praga para uma tempestade nos confins de Solídiras, e trazendo uma

chuva serôdia que recuperou as terras devastadas daquela região, a atenção de todos

se desviou para ele.

— Sim — comentou Soobo, abrindo um sorriso. — Esta proeza fez a fama dele

em toda Eirin. Dentro da Ordem, todos queriam descobrir quem era o arcano que

conseguira reverter uma tragédia em tão pouco tempo e de forma tão brilhante. Os

Yanui e os Alcobar o buscaram com célere expectativa para discorrer sobre os feitos

notórios que não apenas impediram o pior, mas provocaram a melhor colheita das

últimas quinze eras.

— Ele não somente descobriu como conter a praga, — disse Malik, sorridente

— mas discorreu uma tese brilhante sobre como a mesma oscilação que provocou

426


a pestilência e o desastre sobre àquelas terras, poderia ser substituída por oscilações

de mesma magnitude das Ilhas Fortinatis, se combinadas a uma série de vibrações

irrisórias de Anvor-Elíada. Essa substituição e combinação deram tão certo que se

provaram a melhor solução no caso do advento de pragas em nosso mundo.

— Não obstante, quando ascendeu a sacramentador, o dom de prever o futuro

era um ponto fora da curva.

— A visão que tinha sobre combinações de eventos climáticos em cadeia era

fascinante. Sem dúvida, nunca houve um sacramentador que pudesse enxergar de

uma forma tão majestosa como as Virações Cristalinas em Elstoen poderiam

influenciar incêndios nas florestas de Miliat, por exemplo.

— De fato, meus nobres amigos. A inteligência dele me espantava — acrescentou

Rannidge. — Embora a oportunidade de conhecê-lo se deu apenas quando sua

fama era consolidada na Ordem, sendo nosso líder, assombrava-me como sua visão

era além do alcance. Apesar do infortúnio de ter cometido um sacrilégio sem

precedentes, não me recordo de eventos desastrosos como os que temos visto após

a interrupção de nossas eras.

— Uma dura e cruel verdade, Rodris.

— Sem sombra de dúvidas.

— Não somente pela inteligência, mas a liderança e influência que exercia eram

primordiais para que tivéssemos eras tão formidáveis, sem catástrofes ou eventos

manchando a honra dos sacramentadores — falou Soobo, mexendo nos cabelos.

— Quanto ao Octaedro de Hegemonia, ele sempre manteve um diálogo aberto

com nossa família e uma incomparável relação com o Conselho.

— Foi ele quem iniciou uma aproximação entre a Ordem e o Conselho,

permitindo um incremento de nossas relações com os poderes dos Guardiões na

sociedade da época.

— O que perdura até hoje, felizmente.

— Todavia, os esforços de Arturo têm provocado indeléveis fissuras nesta

estreita relação.

— Faço um adendo ao recordar — falou Gavir — a despeito de sua muita

sabedoria e influência, o segundo maior erro de sua carreira, infelizmente, foi forçar

a nomeação de um Octaedro despreparado, o que foi motivo de intensa discussão

por tanto tempo.

— Sim, é verdade, nobre Onobka.

— De fato.

— Questiono-me, — inquiriu Nelis Naziv, curioso — o que se deu de sua

família?

— Eram conhecidos?

— Até onde me lembro, não — respondeu Soobo — Não pertenciam ao clã dos

Etéreos, pelo menos.

427


— Tampouco possuíam representantes no Concílio.

— Ouvi boatos de que viviam em algum lugar isolado de Achmat, consumidos

pela vergonha do pecado dele.

— Sumiram do mapa! — exclamou Nodovra, o único que ainda permanecia em

silêncio e estava notoriamente desconfortável com aquela conversa à luz

incandescente das chamas. — Desde a condenação de Adryan por seu execrável

sacrilégio, os Varnor desapareceram de Eirin para sempre.

Um silêncio constrangedor se instaurou ao redor da fogueira. Os elfos se

entreolharam, curiosos e assombrados com as palavras de Nikolai.

— Como podes afirmar tal coisa?

— Fui incumbido de devolver os pertences remanescentes de Adryan aos seus

parentes, após sua fatídica execução. Atravessei Eurodian até alcançar Fahur, onde

tinha por conhecimento a residência de seus pais e irmãos. Quando lá cheguei,

ninguém sequer havia ouvido falar sobre os Varnor.

— E o que eles faziam? Eram artesãos?

Nikolai meneou a cabeça, franzindo os lábios, bebendo de seu chá em seguida.

— Banqueiros?

— Escritores?

— Eram historiadores, não?

— Simples camponeses.

— Acredito que estejas equivocado, nobre Nodovra. Os Varnor eram

historiadores, viviam em Sananzaria e...

— Adryan escondeu por toda uma vida suas origens — interrompeu Nikolai,

revelando a verdade. — Ele queria que acreditassem haver nobreza em sua família,

assim como notadamente há em vossas raízes. Ascender como um sacramentador

brilhante, despontando com maestria e sabedoria entre tantos elfos de relevância

em nossa sociedade exigia, em sua concepção, uma origem mais nobre.

— Considero esta uma infeliz decisão — falou Sisno, balançando a cabeça. — A

nobreza não está no advento de insurgir em uma família notadamente reconhecida

na sociedade e tampouco nos bens possuídos ou influência que provocam sobre a

cultura de nossos dias. A nobreza se externa quando dedicamos nossas virtudes em

favor daqueles que mais precisam. A nobreza está na sabedoria, no propósito de

nossos corações, no altruísmo a motivar nossas ações. A nobreza não é e tampouco

pode ser um título, um bem, um cargo. A nobreza é a chama que arde em nossos

corações pela busca de um bem maior.

— Faço das suas as minhas palavras, meu nobre Sannfrye — completou Onobka.

— A nobreza habita nossos corações quando, a despeito de tudo o que está

acontecendo em nossos dias, empenhamos as vidas de cada um aqui em buscar

aquele que garantiu por tantos ciclos a harmonia entre elfos e humanos.

428


— Que, apesar dos pecados cometidos, empenhou a própria vida em nome de

um bem maior. E, quando do castigo por seus atos ilícitos, aceitou a penalidade

sem qualquer objeção.

— Que uma nova era se inicie e se perpetue por muitos ciclos, em que o bem

coletivo, acima do individual, seja uma constante.

Rodris se levantou e ergueu sua caneca de chá.

— A Adryan Varnor.

Os demais elfos se colocaram de pé, imitando o gesto do elfo.

— Que sua vida possa, mais uma vez, conduzir-nos à esperança que arde

incessantemente em nossos corações por dias melhores.

Alcançou o acampamento dos alquimestres que ficava na outra ponta da trilha.

Nem mesmo as brasas haviam restado da fogueira deles. O breu dominante só era

interrompido pelos luminares irrisórios de vagalumes e do pólen cintilante

carregado pelo vento e que o acompanhou até ali. Dormiam um sono profundo,

evidenciado pelos roncos retumbantes, como um coro fantasmagórico que

manteria afastado até mesmo as mais temíveis criaturas da floresta daquelas

redondezas. Entrementes, o lugar era um verdadeiro chiqueiro, sem um pingo de

assepsia ou o mínimo de organização, já que a estadia era provisória. Canecas de

metal e pratos de madeira se empilhavam perto das barracas, varais foram

montados a esmo e as calçolas e meias esvoaçavam com a brisa da madrugada e o

que sobrou do jantar — os ossos lambidos até o último fiapo de carne de um bode

assado — se espalhava pelo entorno. Restava a Sisno descobrir, vasculhando pelo

acampamento imundo, qual era a barraca do capitão da expedição.

Não gostava de pensar em arrependimentos em sua vida, afinal, as decisões que

tomava, ao longo de sua vasta caminhada através dos ciclos, sempre foram

permeadas por ponderações dentro de sua própria razão. Era isto que adorava

chamar de sabedoria. No entanto, se havia algo que podia dizer ser um amargo

arrependimento era de não ter questionado Moronov sobre quem os acompanharia

nessa viagem ou mesmo ter a opção de escolher os protetores de sua jornada. A

notoriedade de que oito elfos não tinham condições de embrenhar-se nas Terras

Distantes para irem ao encontro de um velho conhecido era quase palpável. Não

possuíam mínimas condições de enveredar rumo ao desconhecido. Não sabiam

manejar armas, nem espadas, lanças ou qualquer outra lâmina. Sacramentadores,

diferentes dos centauros, eram avessos à violência. Necessitavam da cooperação de

desbravadores experientes, com o mínimo de conhecimento sobre incursões no

meio da mata. Confiar essa decisão a um guardião talvez tenha sido o maior erro

dos últimos ciclos. Uma semana havia se passado desde que partiram de Zavir.

Eram memórias que se esforçava para apagar da mente, embora relutassem em

insurgir entre suas lembranças recentes.

429


Partiram de Cruisand na calada da noite, quando o último convidado ingressou

em sua carruagem, encerrando o Baile de Inverno e as luzes do palacete do

governador se apagaram. Aproveitaram as ruas vazias e o sono profundo da cidade

e rumaram para o porto, com Moronov à frente da comitiva. Uma corveta luxuosa

entre tantas outras muito mais singulares os aguardava. Zarparam em máxima

velocidade, singrando os mares revoltos de Crispoles, rumo à missão mais difícil da

vida dos oito elfos.

Dez homens, enfurnados em pesados capões de couro de dragão, os aguardavam

nas docas de Frandar, em Turmis. As águas despencavam do céu em uma chuva

torrencial de lavar o convés do navio. Não se vislumbrava qualquer outro barco nas

docas quando o deles atracou. Sisno imaginava que Moronov fizera questão de

cuidar de cada detalhe. Não podiam cometer erros e tampouco levantar suspeitas

sobre o que iam fazer ali. Iluminados pelas luzes incandescentes de lampiões

mágicos, Moronov reuniu os elfos e os homens que os esperavam em uma

choupana no extremo mais distante e escuso do porto. Sisno encarou os rostos

hostis e molambentos dos dez homens ao redor. Denotavam facetas carrancudas e

de descontentamento, abaixo das cicatrizes e marcas de expressão por causa do

peso dos ciclos. Estava habituado a embarcar em missões em nome da Ordem em

que dependiam do auxílio do Protetorado ou mesmo de contratarem humanos para

fazerem a guarda ou os acompanharem por terras desconhecidas. Eram em geral

soldados asseados, de rostos limpos e bem armados. Mas aqueles indivíduos os

esperando, não pareciam nada amigáveis ou animados pelo que estavam prestes a

fazer. Poderia relevar um possível descontentamento em virtude da fama do lugar

para onde rumavam. Decidiu relaxar e confiar que Moronov cuidara de tudo. O

ouro tirado de seu cofre pessoal deveria estar remunerando aqueles guerreiros

muito bem.

— Não contava com todo esse aguaceiro na nossa chegada — comentou

Moronov, sobrepondo a voz além do estrondoso som da chuva, cerrando a porta

de madeira atrás de si. — Essa chuvarada toda não é comum nessa época do ano,

é, Sisno?

— Considero, nobre Moronov — crocitou Sisno, numa tentativa de prover

alguma animação ao ambiente carregado — que, em nosso meio, aquele que pode

nos apresentar as hipóteses a respeito dessas intempéries é o...

— Que seja, que seja. — Moronov interrompeu, afobado, apontando para um

velho sustentando um enorme chapéu preto e desengonçado, acima do rosto

macilento e do cavanhaque grisalho. — Cavalheiros, sem mais delongas, quero

apresentar a vocês o líder dessa expedição. Alto Coldrar é o comandante da

Confraria de Zavir, há o quê? Vinte ciclos?

430


— Vinte e nove ciclos, Lorde Moronov! — pronunciou o homem, fazendo uma

longa reverência, embora sua boca não parecesse sequer se mover. A voz dele era

esganiçada e marcada por uma profunda rouquidão irritante.

— Vinte e nove? — Moronov levou a mão à testa. — Puxa, estou desatualizado

mesmo. Coldrar é comendador em Zavir e desfruta de total confiança do Conselho

no que diz respeito ao zelo e à proteção no entorno do Paredão, desde Zavir até as

terras aqui de Frandar. A Confraria dos Bravos Alquimestres de Zavir mantém a

harmonia desse lado de cá das Terras Distantes desde o fim da Era das Trevas,

estou certo Coldrar?

— Mais do que certo, milorde. Somos fiéis conservos do Conselho.

— Certo, certo — falou Moronov, esfregando as mãos — Pois bem, Coldrar este

é o ilustríssimo Sisno Sannfrye, o contratante. Acredito que os detalhes da missão

já foram esclarecidos. Necessito voltar imediatamente para Gradia. Os eventos do

Ano da Elegibilidade começarão em breve e preciso me certificar de que tudo sairá

conforme o combinado. Sabe como os outros conselheiros são atrapalhados sem a

minha presença por lá, não é?

— Claro, milorde — respondeu Coldrar, assentindo e sorrindo sem graça. —

Partiremos assim que o sol raiar e abriremos os portões do Paredão para que sigam

em sua busca do lado de lá.

Sobrancelhas arquearam imediatamente e os olhares de Soobo, Poledores, Rodris,

Nelis, Nikolai, Gavir e Malik miraram no mesmo instante em Moronov e dele para

Sisno. O silêncio pesou dentro do casebre peculiar e, antes que Moronov pudesse

se retirar e voltar às docas, Rodris atravancou o caminho até a porta.

— Não ficou esclarecido ante minha percepção — Soobo tomou a dianteira, o

rosto sereno e livre de expressões carregadas — a sentença de vosso comendador,

Lorde August Moronov.

Moronov emitiu um sorriso amarelado e arregalou os olhos. Coldrar comprimiu

os olhos assim que tirou o chapéu e exibiu sua vasta cabeleira grisalha presa em um

rabo de cavalo. Os demais alquimestres lançavam olhares desconfiados para os

elfos ao redor.

— Se bem me recordo, nobre Moronov, — falou Malik, caminhando na direção

do guardião — despendi uma exorbitante quantidade de ouro de minhas finanças

pessoais, depositadas ante sua custódia depois de nos reunirmos em Vandir-Lepit,

para o cumprimento de acordo bilateral que contemplava uma incursão pelas Terras

Distantes até lograrmos êxito em nossa missão.

— Como é? — questionou um dos alquimestres, parecendo alarmado. — Se

estou entendendo direito, vocês estão querendo que nós... atravessemos o

Paredão... junto com vocês?

— Milorde, não foi esse o acordo entre nós! — exclamou Coldrar, avançando até

o cerne da discussão.

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Moronov se encolhia perto da porta, mas Rodris Rannidge continuava estacado

junto à maçaneta; o rosto lívido do elfo observava a expressão apalermada do

guardião. Os alquimestres avançavam para perto deles, com uma faceta carrancuda

indicando que as coisas não estavam bem esclarecidas como eles imaginavam.

— Estou convencido de que há um irrisório equívoco quanto ao que foi alvo de

nosso contrato nesta jornada inoportuna — falou Sisno, aplacando os ânimos que

começavam a se alterar, pondo-se entre Moronov, os sacramentadores e os

alquimestres. — Nosso acordo não se limita ao perímetro excludente das Terras

Distantes. Há um eminente anseio por transpormos a cordilheira elevada que divisa

este continente de leste a oeste para atingirmos o êxito de nossa destacada

incumbência. Contudo, para tal, há de se trazer à luz o fato de que não passamos

de oito elfos, desprovidos de qualquer defesa ou notório saber a respeito do que

permeia o cerne para além das cadeias de montanhas. Por nossas vidas, como

humildes servos seus, rogo-vos que assumam o encargo de se estabelecerem como

nossos guias nesta aventura, por mais insólita que possa parecer. Mesmo que para

tal, ofereçamos o dobro ou o triplo do montante creditado aos senhores para

cumprir o acordo até aqui estabelecido.

— Não há dinheiro, ou ouro, ou o que vocês queiram oferecer para nós

atravessarmos esses portões — falou um dos alquimestres, arregalando os olhos,

de medo. — Aquela terra é amaldiçoada. A razão da existência dessa Confraria é

justamente impedir as criaturas funestas do lado de lá ultrapassarem para o lado de

cá e vem vocês me dizer que querem ir lá dentro?

— Seja lá o que vocês querem ou o que perderam lá dentro, esqueçam —

comentou outro alquimestre, atarracado e mais assustado do que o anterior. —

Aquela terra lá tem uma maldição antiga, de muitas eras. Não há bem algum nessa

vida que me faça querer entrar lá!

— Queremos o quíntuplo do que foi pago até agora!

Coldrar exclamou, exibiu um sorriso malicioso. Moronov, que até aquele

momento permanecia calado e sobressaltado, arreganhou os dentes para a sentença

do comendador. Os demais membros da Confraria arregalaram os olhos para seu

líder.

— De acordo, de acordo — disse Moronov, pressuroso, correndo para apertar a

mão de Coldrar.

Com o novo acordo feito, sendo o restante do pagamento uma dívida que o

próprio Moronov arcaria, depois de uma longa conversa entre ele e Sisno, o grupo

partiu quando os primeiros raios solares brotaram entre as nuvens. O chanceler do

Conselho ingressou às pressas no mesmo barco que viera, ainda na alta madrugada,

em meio ao forte temporal no litoral de Frandar. Tanto Sisno quanto os demais

sacramentadores, e até mesmo alguns membros da Confraria, conjecturavam que o

432


catalisador de uma partida tão imediata foi o medo de não ser linchado pela

comitiva enquanto estivesse dormindo.

A viagem seguiu sem maiores problemas até se virem diante dos portões do

Paredão. Os portões que davam acesso ao outro lado das Terras Distantes de

Turmis eram os últimos resquícios do que um dia fora um grandioso túnel que

atravessava a montanha. Com o advento do fim da Era das Trevas, o exílio dos

monstros e bestas que castigaram Eirin obrigou a encerrar as entradas até o lado de

lá com pesadas grades de uma liga mágica reforçada, o aço-amitur. Desde então,

nunca havia se ouvido falar de alguém ousado o suficiente para transpor tais

portões. Coldrar desceu de sua montaria e enfiou a chaves dentro dos cadeados do

único caminho que levava até o outro lado da montanha. As coisas ficaram muito

esquisitas e nem um pouco fáceis a partir daí. O medo permeando o imaginário dos

dez alquimestres a respeito das coisas além do túnel sombrio era muito pior do que

o que realmente encontraram quando chegaram lá. Sisno tinha a esdrúxula sensação

de que Coldrar tomava decisões acintosas quanto a ele e seus demais amigos

sacramentadores. Reservara a eles lugares abissais para descansar, com colchões

mais finos do que os lençóis usados para dormir, o que lhe causara uma terrível dor

nas costas esses dias todos; quando algum dos elfos lhe fazia perguntas diretas sobre

o caminho a percorrer ou a respeito dos mantimentos e guarnições do

acampamento, ele e os demais não se importavam em ignorar, mantendo o silêncio

e prosseguindo pelo meio da mata. Mas quando se prestavam a falar, eram rudes e

grosseiros nas respostas, como se o serviço que estivessem fazendo fosse um favor

de bom grado a eles. Não fosse pelo acordo com Moronov e a destreza dos dez

alquimestres em lidar com os perigos de uma floresta desconhecida, Sisno teria

seguido sem eles até chegar onde queria.

Desvencilhando-se da montoeira de ossos esturricados, Sannfrye tentava

descobrir em meio ao negrume do acampamento, qual deveria ser a barraca de

Coldrar. Imaginava que haveria de ser a maior, mas considerando o tamanho da

bagunça do lugar, deveria ser a mais emporcalhada. Ainda sondando qual delas

seria, vislumbrou um luzeiro bruxuleante em um ponto próximo à margem do

riacho. Dois alquimestres caminhavam aos passos preguiçosos, carregando uma

lamparina sem muito ânimo. Deviam estar fazendo a ronda da noite. Abandonando

sua busca infrutífera pelo líder da expedição, caminhou ao encontro dos dois

homens carregando a lanterna.

— Saudações, nobres cavalheiros! — cumprimentou Sisno, seguindo na direção

dos alquimestres.

Na penumbra do fogo elemental, Sannfrye divisou o rosto marcado e carrancudo

do líder da Confraria. Inspirou o ar fresco da noite e tentou sustentar a calma e o

humor moderado que o conduziram até ali, embora, por dentro, estivesse a ponto

433


de ter uma longa conversa com o comendador a respeito do tratamento para com

ele e seus demais amigos elfos.

— O senhor deveria estar dormindo, não? Partiremos logo que...

— Nobre Coldrar, tentarei ser o mais breve e sucinto possível. Minhas

acomodações não estão à altura de um mínimo conforto adequado para uma noite

de sono recuperadora. Acredito ser de notório conhecimento entre nós, nesta

lúgubre clareira, que não há a menor condição de se ter um descanso no local em

que minha barraca foi assentada. Com isto, solicito a troca imperativa do lugar de

meu alojamento para outro mais apropriado.

Acima das profundas olheiras do rosto encovado de Coldrar, ele revirou os olhos

e passou os dedos sobre o rosto, demorando-se um pouco mais na ponta de seus

bigodes curvados.

— Ragor, vê o que esse digníssimo aí está te pedindo e volte imediatamente para

cá.

Embora o “digníssimo” soasse com um tom carregado de deboche, o alquimestre

atendeu à solicitação de Sisno, acompanhando-o até o lugar de seu alojamento. E

o líder da Confraria contava cada segundo para regressar ao seu lar, com intensa

expectativa. Não pelos perigos e mistérios que rondavam as Terras Distantes, mas

para se ver livres desses malditos elfos sacramentadores.

434


Capítulo Trinta e Dois

O Baile da Anunciação

O Salão de Bailes da Casa dos Guardiões era uma coisa descomunal e fez Ivyna

perceber o quanto aquele lugar era ao mesmo tempo gigantesco e exagerado.

Duvidava se as proporções não haviam sido alteradas por alguma magia, mas não

haveria uma magia forte e duradoura o suficiente para realizar tamanho feito. Era

o que ela pensava, pelo menos. O lugar podia caber, em suas percepções ao adentrar

o recinto, pelos menos umas três mil pessoas de forma confortável, o que era um

baita exagero para qualquer salão de festas dos variados palácios de Eurodian por

onde passou, até mesmo os mais badalados. Mesmo no Salão de Vidro, em

Cruisand, quinhentas pessoas era considerado uma lotação desconfortável. Se as

quinhentas estivessem presentes, não haveria espaço para o buffet ou uma

orquestra razoável. Mas ali, caberia facilmente seis vezes essa quantidade — com

espaço para os músicos e uma boa mesa de jantar.

O requinte do monstruoso salão era um absurdo, fato que comprovava para

Ivyna que o Conselho era o melhor anfitrião de festas do continente, quiçá de Eirin,

mas só poderia afirmar com convicção quando estivesse em bailes e cerimônias dos

cinco continentes, e ainda faltavam três para conhecer, em suas contas. A decoração

do salão estava recheada das cores dos reinos-guardiões, com muito brilho e

pomposidade. Grifo, Leão, Corcel, Harpia e Fênix se espalhavam por todo canto,

em várias flâmulas que se estendiam pelas colunas e paredes, drapejando também

as cortinas e toalhas de mesa do buffet montado.

E por falar em buffet, o Conselho dos Guardiões devia estar querendo que todos

saíssem dali rolando de tanta comida espalhada ao longo das vinte mesas recheadas.

Havia todo tipo de receita que podia contar. Umas bem conhecidas, como bolos

de carne, leitões assados, tortas doces e salgadas, ponchos, vinhos, cidras, cervejas,

sucos e algumas bastante duvidosas, das quais preferia manter distância. Era meio

enjoada para comer alguns tipos de pratos, se aproximar daquelas de gosto e

aparência duvidosas estava fora de cogitação.

Aparecera radiante para o baile, vestida para causar. Laurie e suas outras primas

passaram vários dias escolhendo o vestido ideal para a ocasião. Com o longo

vestido azul encantado por uma magia que fazia parecer correrem pequenas ondas

435


de um mar calmo e as inúmeras joias madrepérolas descansando em seu pescoço,

mãos e punhos, não tinha como passar despercebida. O cabelo vermelho com uma

poderosa trança criava um contraste arrasador com a roupa. A Lenda de Eurodian

seria sucedida à altura e, como disse Petr no dia anterior, o continente teria uma

nova lenda para chamar de sua.

Num arroubo de lucidez após o êxtase com a beleza do salão, percebeu que

precisava encontrar seu acompanhante do grande Baile da Anunciação.

Embora tivesse treze ciclos de idade, falava como um homem de mais de trinta.

As experiências dolorosas recentes vividas talvez o tivessem ensinado a ter uma

maturidade precoce, mais do que deveria para alguém que acabou de entrar na

adolescência. Deu-se por conta estar afeiçoada a ele de uma forma engraçada, como

se o garoto fosse um irmão mais novo. Quando teve idade para começar a discernir

as coisas à sua volta, Heidlich já era um Guardião famoso e o contato com ele

sempre fora algo extremamente raro. Essa amizade inesperada com Petr foi uma

grata e imprevista surpresa.

Caminhou pelo extenso salão, seguindo as infindáveis regras de etiqueta que

aprendera ao longo dos ciclos: cabeça elevada, nariz empinado, ombros retos, perna

ante perna, como se estivesse desfilando. Diferente dos eventos em Badorian,

queria chocar positivamente os presentes. Queria todo mundo falando e

cochichando sobre a nova Guardiã de Eurodian. Procurando entre os convidados

recheando o salão, em bandos ou sozinhos, fosse comendo, conversando ou

admirando a beleza do lugar, vislumbrou figurões conhecidos. Avistou Salazar

Stanhorne com sua feição de poucos amigos. Segurava uma taça de vinho que

balançava com os dedos. Nunca sabia se ele estava desconfortável, embora seus

trejeitos sempre denotassem isso, ou se apenas entediado com a conversa ao seu

redor. Mas uma coisa era certa, e não era a primeira vez que percebia isso, toda vez

que a via em qualquer evento e o olhar de ambos se encontrava, ele sempre reagia

da mesma forma: acenava a cabeça levemente duas vezes e abria um ínfimo e tímido

sorriso, sem jamais mostrar os dentes, arqueando os cantos dos lábios. Por

educação — ou medo, nunca definiu muito bem — abria um sorriso para seu

cumprimento à distância. Ivyna sabia, em seu íntimo, Stanhorne não era essa figura

sombria e detestável que muita gente achava, era somente um cara reservado e na

dele, fazendo de tudo para manter as coisas no Conselho no lugar.

Os Moronov também estavam lá, em seu bando soturno e execrável. Aduladores

e espalhafatosos, viviam acampados ao redor da figura máxima de sua árvore

genealógica: August, o chanceler do Conselho. O velho urubu intragável era o pior

deles. Alguém que Ivyna precisava manter bem longe. Se ele fosse para a esquerda,

ela iria para a direita. Rogava que ele não quisesse fazer nenhum tipo de

apresentação mirabolante, a anunciando como algum destaque de Badorian — até

porque ele adorava fazer esse tipo de coisa. Ainda não havia avistado nenhum

436


Heinhardt, nem Borovit, tampouco suas primas Lohntrak. Suspeitava ter se

arrumado cedo de mais. Ou seus outros familiares estavam muito atrasados

mesmo?

Procurando seu parceiro do baile, notou o Guardião de Elstoen em um elegante

traje verde-musgo. Conversava com um homem corpulento e de cabelos grisalhos.

O rosto dele não era estranho, mas não conseguia recordar de onde o conhecia.

Muito provavelmente, se ele fosse o rei de Candorn, com certeza já teria participado

de algum evento em Badorian, Cruisand ou Paragon. Pelas caretas desesperadas do

mais novo e os trejeitos acalentadores do mais velho, deviam ser pai e filho em uma

prosa sobre como reagir e se comportar naquele ambiente apavorante e inédito. No

fundo, Ivyna se sentia um tanto receosa e, ao ver Moronov, o medo crescente de

ele querer aprontar alguma emanou de um modo aterrador. Mas, confiava que

Heidlich logo estaria no salão e não deixaria esse tipo de coisa acontecer.

Avistou a figura agradável de Lorde Argus Norhein, o rei maravilhoso da

Magnífica Mistral e antiga paixonite de sua infância e adolescência e também das

outras meninas de sua idade de Badorian. Os cabelos grisalhos começavam a tomar

o lugar das antigas madeixas loiras e impecáveis, mas ele ainda era a sensação entre

as garotas do reino. O porte pujante dele sempre impressionava, até mesmo as

mulheres mais velhas de Badorian, mas o sorriso era a tentação, todas se derretiam

por aquele sorriso perfeito, cheio de dentes muito bem alinhados e brancos.

Estranhamente, ele não estava rodeado de elfos sacramentadores. O rei de Mistral

era um fã de carteirinha dos belos elfos que sempre marcavam presença nos

principais eventos reais. Ele tinha uma devoção pela sabedoria e pela magia

incompreensível dos sacramentadores. Vivia aos papos com Alezeia Turim e Sisno

Sannfrye e eram sempre chamados de “trio intrínseco” pois viviam grudados,

independente do evento. Naquele dia, os tradicionais elfos, acostumada a ver em

eventos assim, não se faziam presentes. Nada de Alezeia, Sisno ou o excêntrico

Poledores Früg. Os sacramentadores espalhados pelo salão eram todos muito belos

e majestosos, mas completos estranhos.

Vislumbrou um monte de gente desconhecida e que sequer fazia noção de quem

eram, mas uma coisa era certeza naquele lugar: deviam ser reis, guardiões,

magistrados, convidados ilustres selecionados a dedo, tanto pelo Conselho quanto

pelos novos integrantes do Círculo dos Cinco. Era o evento do ciclo, quiçá das eras.

O Ano da Elegibilidade constava nos estatutos mais antigos das legislações dos

Guardiões, mas jamais aconteceu. Nunca na história cinco Guardiões deixaram

seus postos em tão curto espaço de tempo. Orgulhava-se de poder marcar a história

de Eirin, representando o continente que considerava o mais importante, por

abrigar os Pilares da Magia, a Casa dos Guardiões e tantos outros monumentos

maravilhosos.

437


Avaliando os rostos conhecidos pelo perímetro, enfim enxergou Petr surgindo

numa das entradas principais do salão, no momento em que o lugar começava a

encher ainda mais. Elegante, avançava um tanto intimidado e meio perdido,

trajando um belo sobretudo preto com detalhes prateados e o que parecia ser uma

rosa vermelha em suas mãos.

— Até que enfim. Achei que tinha desistido de mim.

Petr estacou por alguns segundos. Boquiaberto, contemplou a beleza de Ivyna

dos pés à cabeça. Ela, afinal, conseguira o que tanto almejara: impressionar.

— Não... eu... fiquei... procurando isto.

O garoto estendeu a mão e entregou a rosa para Ivyna.

— Uma belíssima flor!

— Meu avô sempre me dizia que, toda vez que se convida uma dama para um

baile, é preciso presenteá-la com uma flor. Ele era muito fã de rosas...

Ivyna prendeu a rosa nos cabelos com uma magia simples.

— Que tal estou?

— Fantástica. Gostei dessas ondinhas. Mas acho que devia ter trazido uma rosa

azul. Eu esqueci que as cores de Badorian são azul e branco....

— Que nada! Você lembrou dos meus cabelos. Combinou perfeitamente.

— Se você gostou, fico mais tranquilo.

Uma música tocou de súbito, enchendo o salão com uma melodia agradável vindo

da orquestra de cordas a um canto. Os convidados se formaram em duplas

vagarosamente e foram ocupando o centro do salão, dançando valsas conhecidas.

— Acho que é o momento de você me mostrar se é tão bom quanto diz na dança.

Petr sorriu e, educadamente, mas ainda sem jeito, conduziu-a até o meio do salão.

Como um verdadeiro cavalheiro, segurou uma de suas mãos e apoiou a outra na

cintura. Por sorte, apesar da pouca idade, ele não era tão mais baixo assim do que

ela, mesmo com a carinha quase infantil denunciasse que ele não tinha atingido a

maioridade.

— Não sou um pé de valsa, mas aprendi a me virar.

— Estou percebendo. Você tem muita atitude. Cheguei a pensar que eu teria de

tomar a iniciativa e te arrastar aqui para o meio do salão.

— Esse ciclo tive que aprender a tomar a iniciativa... além do que, aprendi que o

homem deve conduzir uma valsa lenta.

— Seu avô era um homem bastante sábio.

— Isso eu aprendi com meu pai, no caso. Passamos pouquíssimo tempo juntos,

mas quando estava em Snartria, ele me levava para passear por lugares fantásticos,

sempre no dorso de um grifo. Aprendi muita coisa com ele, inclusive a voar.

— Seu pai foi um homem muito sábio também.

— Ele é.

— É?

438


— As pessoas acham que ele morreu. Mas lá no fundo, eu não acredito nisso.

Algo dentro de mim insiste em crer que ele está vivo, perdido em algum lugar do

Norte, tentando encontrar o caminho de volta para casa.

— Bem, se é o que você acredita, ouça a voz do seu coração. Contudo, se essa

crença desvirtuar seus caminhos, separar você do que ainda importa e está junto de

você, não definhe perseguindo algo que foi embora. É difícil, é doloroso, mas às

vezes é necessário.

— Eu entendo.

Ivyna notou os olhares de Petr, enquanto a conduzia na dança, para os outros

pares. Algumas pessoas ao redor arregalavam os olhos, espantadas com ambos e

cochichavam entre si coisas inaudíveis, por causa do som alto da música.

— Você acha que essas pessoas estão... falando da gente?

— Devem estar, sim. Principalmente do meu cabelo, que contrasta

maravilhosamente bem com esse vestido azul, as joias brancas e essa rosa vermelha

exuberante.

Os dois desembestaram a rir.

— Acho que é do meu espetacular sobretudo preto com essas linhas prateadas.

Repara minha careta e me diga com quem pareço.

Petr contorceu as feições do rosto, ficando muito parecida com as facetas

insípidas de Salazar Stanhorne. Se as pessoas já olhavam para os dois no meio do

salão, arregalaram ainda mais os olhos, ficando em destaque, quando Ivyna soltou

uma gargalhada do fundo da alma, se sobrepondo à melodia dos violinos.

— Salazar, Salazar Stanhorne.

— Você não acha que ele tem uma... Cara de Coruja?

Ivyna soltou mais uma gargalhada e alguns casais se afastaram dos dois.

— Sim, sim. Parece uma coruja velha e sem sal.

— Ele não sabe disso e espero que nunca saiba. Mas eu sempre o chamei de Cara

de Coruja. Digo, para mim mesmo, sabe? E outra, não importa o que ele faça ou

onde vai, a roupa dele é sempre a mesma: o sobretudo preto.

— É verdade. Agora que você falou, faz todo sentido: ele nunca muda esse traje.

Deve ter um armário recheados de sobretudos negros iguais, um para cada dia da

semana.

Ambos desataram a rir outra vez.

— Até que você está dando para o gasto, Petr. Não pisou no meu pé, não apertou

minha mão, não fez peso na cintura.

— Falei para você que era um pé de valsa.

— Você disse que sabia se virar...

— Estou me autodenominando Pé de Valsa agora. Aprovado pela Nova Lenda.

— Nova Lenda?

— É... não?

439


— Detestei esse apelido... Acho que Mítica de Eurodian fica melhor, o que acha?

— Acho que Lenda é melhor. É mais exagerado, mentiroso e dá a maior pompa!

— Bem, preciso pensar mais um pouco... Talvez a Espetacular de Eurodian.

— Não gostei. Parece coisa de teatro.

— A Fenomenal?

— Parece coisa de outro planeta.

— A Estupenda?

— Me lembra estúpido...

— Mas sabe que não é, né?

— Já sei! Sublime!

— O que é sublime?

— Não, Ivyna. A Sublime de Eurodian.

— Soa meio arrogante, até prepotente... mas eu gostei. Agora é convencer as

pessoas a me chamarem assim a partir de agora.

A música terminou e uma salva de palmas dos casais ao redor encheu o salão.

Ivyna e Petr se afastaram. Como manda o protocolo, se cumprimentaram e outra

canção começou. Ambos voltaram a dançar e papear.

— Mas... me diz... Você sempre quis ser Guardião?

— Não... ou sim? Bem, não sei ao certo. Mas era isso, ou deixar a louca da minha

avó assumir o trono.

— Como assim?

— Uma longa história... Mas, resumindo, depois que meu avô morreu e meu pai

sumiu, minha avó queria porque queria assumir o trono. Os conselheiros de

Snartria não deixaram. Tinham medo dela virar o reino de cabeça pra baixo. Eu

fiquei dividido. Enquanto eles insistiam para eu assumir a coroa, o Conselho lutava

para que eu fosse Guardião. Foi uma decisão muito complicada.

— De fato...

— E você? Sempre quis ser Guardiã?

— Esse sempre foi meu sonho, desde garotinha. Desde que conheci a Academia

dos Guardiões (e jamais me deixaram estudar lá) eu quis ser a Protetora de

Eurodian. Sempre li tudo a respeito, tudo sobre magias, técnicas de golpes mágicos,

magia elemental, transformações, a história de grandes Guardiões, etc. Mas, desde

que fui nomeada, eu me sinto confusa.

— Confusa?

— Sim, confusa por causa de uma pessoa que mal conheço e que sequer está

aqui.

— Roben?

— Hã?

Sem se dar conta, Ivyna notou os olhares saltados de Petr para um canto do salão.

Um homem de ombros largos e cabelos ruivos bem curtos caminhava na direção

440


do garoto. Deixando a valsa para trás, Petr correu para abraçar o homem, largando

Ivyna sozinha, contemplando a cena sem compreender nada. Ela não podia

esquecer que o garoto só tinha treze ciclos de idade — e, entrementes, havia

esquecido desse pequeno detalhe — e pela efusividade com que conversava com o

sujeito, parecia ser algum tipo de amigo ou parente que Petr não via fazia algum

tempo.

Parada ali, ouvindo a valsa melancólica irradiando pelo salão, Ivyna ficou um

tanto pensativa com o que acabara de proferir. A mente estava confusa desde a

última luta em Badorian. Não por causa do embate em si ou pela tragédia que se

sucedera com o primo, na arena, mas por causa de uma pessoa em especial, que

vira pela primeira vez no alto da tribuna real. Ropher, o moreno alto e elegante da

Austera Amistelar, embaralhava sua mente. Desde que soubera sobre o casamento

arranjado por sua mãe, deixou com que um ódio crescente e mortal dominasse seu

ser, detestando de forma execrável a ideia de ter de casar com alguém que jamais

vira, tudo para agradar os ideais tresloucados de sua mãe. Lutara com todas as

forças para jamais conhecê-lo, insistindo e brigando com a mãe para poder ser o

que realmente almejava. Mas quando o viu em Badorian, surgindo de surpresa, o

velho sentimento de detestá-lo com todas as forças desapareceu. Relutava em

querer aceitar e não queria se convencer, mas era impossível ignorar um sentimento

confuso surgindo em seu âmago. Era paixão. Estava apaixonada por aquele rapaz

desconhecido, que não foi prepotente ou mesmo galanteador, mas cordato, simples

e nem um pouco avesso à sua luta violenta no meio da arena. Pelo contrário, vibrava

a cada novo golpe.

— Será que me concederia a honra desta dança?

Ivyna não percebera que a música havia acabado e outra iniciava, quando uma

voz grave ecoou atrás dela. O coração gelou por um instante e, quando se virou

para ver quem a convidava para a valsa, deparou-se com seu irmão, Heidlich, num

estonteante terno azul-marinho, abaixo de sua barba e cabelos dourados.

— É claro, meu rei.

— Sabe... ainda não me acostumei com esse título. E é ainda mais estranho ser

chamado de ‘meu rei’ pela minha própria irmã.

— Acostume-se. Você vai ter de me chamar de ‘minha Guardiã’ a partir de agora.

Heidlich sorriu.

— Isso será um prazer, minha Guardiã. A propósito, percebi que estava

dançando com...

— Petr Bravior!

— Nossa, como esse garoto cresceu. Acho que estou ficando velho. Estou

perdendo meus poderes de jovem.

— Heidlich Heinhardt perdendo poderes? Isso é uma coisa que não existe.

— A idade chega para todo mundo, Dona Ivyna. Você vai chegar lá também.

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— Até chegar na sua idade? Ih, ainda faltam algumas eras!

Heidlich dançava muito bem, mas eram notórias as diferenças entre ele e Petr. O

garoto era mais delicado, talvez por ser muito novo e não estar tão habituado a

danças a dois assim. Poderia estar intimidado também. Não sabia se ele havia

dançado com alguma mulher em uma festa. O irmão mais velho era um pouco mais

rude, com passos de dança mais cadenciados e decorados. Não dividia a valsa com

ela. Ele conduzia sem se deixar influenciar. Ivyna se pegou imaginando por quantos

infinitos bailes e festas, quantas valsas e outras danças ele já não teria passado na

vida. Aquilo era mais do que corriqueiro para ele.

— Será que serei uma boa Guardiã, Heidlich?

— Será que eu serei um bom rei, Ivyna?

Riram um para o outro.

— Você é uma lenda viva, meu irmão. Se protegeu o continente por vinte ciclos

com maestria, domar as rédeas da Suntuosa Badorian será feito com facilidade.

— Eu não tenho dúvidas de que você será maior do que eu em Eurodian. Eu

nunca fui de dar conselhos, muito mal segui os que nosso pai e mãe me deram,

mas, se aceita um, aqui vai: ser Protetor não é uma tarefa fácil. Você vai querer

desistir, isso é certo. Haverá dias em que estará rodeada de pessoas te bajulando, te

chamando de ‘A Lenda’ e haverá dias em que estará só, sem amigos, sem abrigo, às

vezes com fome ou frio, mas saiba que, mesmo nesses momentos difíceis, você

deve insistir. Ser Guardiã é fazer algo maior do que você mesma. Proteger aqueles

que mais precisam é deixar o maior de todos os legados, é transcender a si mesma

por um bem maior. Acima de tudo, seja Ivyna Heinhardt sempre. Não se corrompa,

não se deixe esmorecer, cultive e se agarre aos seus valores, dê o seu melhor e você

será lendária até o final da sua vida.

Ivyna sentiu uma lágrima escorrer, mas aparou a tempo, antes de borrar a

maquiagem.

— Obrigada, meu irmão. Eu não tive tempo de te agradecer pelo que fez por

mim lá no Torneio. Eu estava com raiva e achei que você ia...

— Não me agradeça por isso. Eu só corrigi um erro. Você provou seu valor.

Provou ser a melhor na arena e agora está aqui. Foi uma vitória mais do que

merecida e...

— Com licença?

O coração de Ivyna parou por um infinitésimo de segundo, quando arregalou os

olhos e sentiu o ar fugir dos pulmões. A fala de Heidlich foi subitamente

interrompida por uma voz serena e simpática, igualmente enérgica e que pertencia

a um jovem de terno grafite. Era Ropher, postado entre os dois irmãos, sorrindo

abertamente enquanto a música ainda irradiava pelo recinto.

— Pois não?

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Heidlich empostou a voz, fazendo-a parecer mais grossa e ameaçadora do que

realmente era. Ropher não se intimidou, continuou firme entre a dupla, sorrindo

de um jeito confiante.

— Gostaria de saber se esta dama poderia me conceder a oportunidade de dançar

a próxima valsa.

Heidlich e Ivyna se entreolharam.

— Somente a próxima?

— E tantas quantas mais ela puder me conceder.

Ivyna riu baixinho.

— Não sei se a jovem dama poderá. Deixe-me consultá-la.

Heidlich virou-se para Ivyna, como se ela não tivesse ouvido a pergunta.

— Senhorita, este jovem petulante me arguiu, questionando se a ilustríssima dama

gostaria de conceder-lhe uma demonstração de valsa a dois. Não me deu garantias,

mas a confiança do mesmo parece-me apropriada. Quanto à petulância, afirmo ser

digna de uma morte lenta.

Ivyna riu sem parar.

— Para de bobeira. Podemos dançar, sim, Senhor Ropher.

Heidlich depositou a mão da irmã nas mãos de Ropher, mas não sem antes

apertar a mão do rapaz com uma força exagerada.

— Cuide bem da minha irmã, ouviu? Não me chamam por aí de ‘Lenda’ à toa.

Ah, e ela sabe seu nome, orgulhe-se disso.

Ivyna estava estupefata. Tentava evitar encarar Ropher nos olhos, mas era

impossível. Ele emitiu um sorriso sem graça para Heidlich, que seguiu pelo salão a

papear com outros presentes. Voltando-se para ela, o jovem guardião de Amistelar

segurou seus dedos com delicadeza, mas de um jeito firme que a deixou

descompassada. Não achava mais estar se apaixonando por ele. Estava

perdidamente apaixonada por esse desconhecido amistelarense que chegara de

mansinho e, sem se esforçar muito, conquistou seu coração. Sendo conduzida por

ele, curtia cada segundo, mesmo em silêncio, apenas para poder contemplar sua

beleza e aproveitar os momentos mágicos e inesperados ao seu lado.

— Você lutou muito no Torneio. Eu não sabia que o negócio era tão sério assim.

— Obrigada. As lutas da Academia sempre foram muito profissionais.

— Mas porque você só lutou no final? Eu não entendi muito bem, achei essa

regra um tanto confusa...

— Bem, está na legislação da competição. Eu não participei das outras lutas

porque minha mãe nunca deixou eu estudar na Academia. Sempre foi meu sonho

me tornar Guardiã, mas ela queria que eu...

Ivyna sentiu o rosto corar. Lembrou de repente que a mãe ainda tinha um

contrato de casamento assinado e o pretendente era o rapaz que a conduzia na

dança pelo salão.

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— Mas eu acho que, se você tivesse lutado cada etapa da competição, teria

escorraçado todos eles. Aquele último era o mais soberbo. A arrogância dele estava

me dando nos nervos. Derrotava um oponente e saía se vangloriando pelo campo.

Se você não desafiasse ele, eu ia lá arrebentar a cara dele.

Ivyna riu.

— Você acha, é?

— Claro. Você tem técnica, um poder monstruoso, uma sagacidade sem igual.

Acho que se você lutasse contra meu amigo ali, o Louk, ganhava dele fácil, fácil. —

Apontou para Louk, próximo à mesa de doces. — Ele é todo lerdão, devagar. Falou

para mim que não queria ser Guardião, que tinha se apaixonado, não sei o quê. Do

nada, mudou de ideia e agora está aí.

Ivyna virou os olhos e contemplou o rapaz de expressão triste do dia anterior.

— E o que você acha dessa função?

— Guardião? Sinceramente, eu nunca tive esse sonho, não. É muita

responsabilidade, muito peso para uma pessoa só. Você já viu o tamanho de

Turmis?

— Você já viu o tamanho de Eurodian?

— Quer comparar qual continente é maior, senhorita? O seu pode até ser grande,

mas o meu é muitíssimo melhor. Aposto que o seu não tem uma área desconhecida,

cheia de criaturas das trevas devoradoras de gente. Morro de medo só de pensar.

— Você não conhece as histórias e lendas do meu continente. É cada uma de

arrepiar. Seria uma aventura poder descobrir se é tudo verdade ou não.

— Eu viveria uma aventura ao seu lado, com o maior prazer!

Ivyna emudeceu. O coração acelerou no mesmo instante.

— Digo... — Ropher apressou-se em falar, percebendo o constrangimento entre

os dois. — Já que você é a Protetora de Eurodian, vai ter que garantir minha

segurança durante toda viagem. Sabe como é: garantir a segurança do mais fraco e

tudo mais...

— Você gosta de aventuras? Até parece. Falou que fica cheio de medinho de um

lugar lá onde você mora.

— Não fique se achando, não. Você teria medo se ouvisse as histórias de lá

também. E se eu gosto de aventuras? Vou te contar de quando eu pixei as Torres

da Magia!

— Foi você?

E Ivyna e Ropher seguiram dançando, contando histórias e rindo sem parar,

enquanto o Baile da Anunciação transcorria tranquilamente.

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Capítulo Trinta e Três

O Rei Elfo

Descalçando as botas, Coldrar encarou a unha encravada no topo de seu dedão

do pé esquerdo. Aliado aos terríveis calos nos dedos mínimos, era a segunda vez

em dois dias que arrumava alguma ferida nos pés. A unha do dedão do pé direito

também estava encravada e, graças a sua pressa por chegar logo onde quer que

estivessem indo, não teve tempo de cuidar do ferimento, então pustulento e

cheirando mal. Observando por cima dos ombros para averiguar se não havia

ninguém por perto, praguejou baixinho e enfiou os dois únicos dentes que não

eram postiços em sua boca sobre a unha encravada e cuspiu-a para as águas do

riacho. Antes arrancada à força dali do que ter os dois pés doloridos por lesões não

tratadas.

Largou as duas botas a um canto e enfiou os pés nas águas geladas do riacho. O

conforto das águas correntes fez ele esquecer por alguns instantes que havia sete

dias estavam enfiados naquela floresta amaldiçoada, do outro lado do Paredão.

Maldita hora que foi confiar na esparrela de Moronov. Detestava ter de tratar

assuntos com ele. Preferia dialogar com Lorde Leoris ou mesmo com Lorde Flynn,

que não tinha erro: o combinado era o combinado, sem surpresas no caminho e

com muita grana no fim da missão. Fizera acordos com inúmeros guardiões sem

grandes problemas, até mesmo com os desprezíveis dos Stanhorne, mas toda vez

que tinha de tratar com Lorde Moronov representando o Conselho, sempre saíam

prejudicados de alguma forma. Depois do discurso do elfo que parecia ser o líder

dos demais, Moronov chamou os alquimestres em um canto, sem a presença de

seus contratantes.

— Respeito seus cabelos grisalhos, comendador Coldrar, mas eu não estou

confortável de ir até... bem, vocês sabem... até lá, não.

— Ora, Stevuer — comentou Coldrar, segurando o ombro do amigo alquimestre.

— Seremos muito bem pagos. Nós já recebemos uma boa quantia. Quem te pagaria

oitocentos mil pesos de ouro élfico para se aproximar do Paredão? Nós vamos

receber cinco vezes isso para entrarmos lá.

— No retorno da missão, obviamente — inferiu Moronov.

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— Como é? — contestou Coldrar, fuzilando o guardião com os olhos. — O

combinado era receber antecipado. Ouro agora, missão depois.

— Ora, Coldrar, vocês já receberam uma quantia razoável. Eu não tenho um

navio carregado de ouro élfico estacionado lá no cais para dar a vocês. Isso não

estava no acordo.

— Tampouco estava no acordo atravessarmos o Paredão. Você foi muito

enfático, Lorde Moronov, que o combinado era levá-los até os portões e eles

seguiriam dali em diante.

— Coldrar, releve e mantenha a discrição. Eu falei que vocês vão receber o

restante, mas quando voltarem da missão. Cinco vezes o que vocês receberam são

quatro milhões de pesos de ouro. São pelo menos dois galeões carregados. Eu

preciso de tempo. Já conversei com os oito ali fora e eles disseram que vão pagar

assim que encontrarem o que eles procuram.

— E quem garante que voltaremos com vida de lá?

— Ora, Rogar, o que você espera encontrar lá? Há quanto tempo não se ouve

falar de ogros atravessando a montanha ou de gnolls invadindo as aldeias do

entorno?

— Bem, é... Realmente, a última vez que ouvi algo do tipo, foi numa história do

meu bisavô...

— É óbvio que não há perigos mais do lado de lá, mas as pessoas ainda têm

muito medo. A fama em si causa mais medo do que o próprio lugar. Se não

aceitarem a oferta, vocês nunca mais terão a chance de ganhar tanto ouro na vida.

E, gente, é muito ouro de mão beijada. É ouro para vocês se aposentarem dessa

vida de confraria. Basta acompanhá-los nessa viagem. Vai ser mais fácil do que

roubar passarinho em feira de rua.

— Ok, Lorde Moronov, você me convenceu. Se esses elfos aí vão pagar no

retorno, nós os levaremos até lá.

Sorte que sairiam muito bem remunerados dessa missão, porque não havia uma

alma viva sequer disposta a aceitar menos do que cobraram para se aproximarem

do Paredão. Nem todo ouro de Eirin seria capaz de tornar alguém rico o suficiente

a ponto de adentrar os portões cerrando a única passagem para o outro lado.

Ninguém era louco suficiente para atravessar a monstruosa escarpa da cordilheira

de montanhas dividindo o continente de Turmis de um lado a outro. Era suicídio

ousar fazer tamanha idiotice. Desejar descobrir o que havia do outro lado era a

única curiosidade que os turmisianos sensatos não possuíam. Num vislumbre de

sua juventude, lembrou que a menor menção às Terras Distantes de Turmis era

capaz de lhe provocar intensos calafrios. As muitas histórias ouvidas sobre as

criaturas que lá habitavam, desde trolls assassinos aos execráveis elfos sombrios, e

as coisas obscuras do outro lado tinham o poder de mantê-lo o mais afastado

possível daquele lugar. Naquele momento, depois de uma semana dentro da mata,

447


observando um céu sem estrelas, encontrava-se questionando sua sanidade mental

em aceitar tal tarefa.

Nada daquele lado fazia sentido. As coisas não aconteciam como manda a ordem

natural do mundo. Esperava se deparar com criaturas infernais ou no mínimo feras

selvagens típicas das florestas, mas o que encontrou colocava em xeque a lógica de

qualquer um, até mesmo dos filosóficos elfos que os contrataram. Recordou-se da

travessia, mais precisamente do momento em que alcançaram a outra extremidade

do túnel nunca aberto. Trotavam aos passos preguiçosos sobre uma estrada de

lajotas muito antigas, sem qualquer esforço ou pressa em encarar os mistérios do

outro lado. Os demais alquimestres estavam receosos, agarrados às suas montarias

como se prestes a encontrar um bando de ogros sanguinários, armados até os

dentes, na iminência de arrancar e comer suas cabeças. Mas o que encontraram do

outro lado era ainda mais esdrúxulo do que poderiam imaginar.

As patas dos cavalos afundaram de chofre sobre um tapete branco e gélido de

neve acumulada. Uma ventania enregelante golpeou as faces de todos ao redor,

carregando os chapéus para longe. As temperaturas negativas quase congelaram o

comboio no mesmo instante. Os dentes batiam involuntariamente com o frio

extremo, enquanto elfos e alquimestres pulavam de suas montarias e enfiavam as

mãos dentro das bolsas à procura de casacos, mantas, lençóis e qualquer coisa para

afugentar a friagem mortificante, numa corrida contra o tempo por suas vidas. Um

dos alquimestres acendeu uma tocha com fogo elemental, mas a intensidade da

ventania a assoprar do topo da montanha não permitia as chamas durarem pouco

mais do que segundos. Um verdadeiro pandemônio se instaurou. Enrolado com

mantas, peles de urso, casacos e até os colchões que levou para o acampamento,

Coldrar ordenou que instigassem os cavalos a correr, mesmo sem definir um rumo

certo. Seguindo a esmo por um caminho que rogava aos céus ser o certo, liderando

a fila cavalgando pela neve, questionava como poderia estar nevando daquele lado,

com temperaturas abaixo de zero, o suficiente para matá-los de frio em questão de

minutos, se do outro lado da mesma montanha o sol imperava, em uma manhã

quente e abafada? Cavalgaram por um caminho tortuoso coberto por um tapete

branco, desviando de pedras lisas e igualmente congeladas, com a visão turva por

causa da cerração cinzenta, trazendo flocos esbranquiçados em suas direções.

Inesperado da mesma forma como se viram em meio ao gelo, Coldrar ouviu as

patas dos cavalos estalarem sobre terreno sólido. Abrindo os olhos, antes

comprimidos pela força dos ventos, alquimestres e sacramentadores se viram

enfurnados entre frondosas árvores de grandes troncos e raízes altas de uma

floresta tropical. Nada parecido com a mata do entorno das montanhas do lado de

lá, mas quente e úmida como as densas florestas de Elstoen. Descendo dos cavalos,

livraram-se do montante de roupas e cobertas pesando em seus ombros e que

naquele instante os sufocava com o calor. Coldrar caminhou até o limiar do mato

448


verdejante da floresta que alcançaram e encarou o sopé da montanha congelada e

os ventos impetuosos ainda a assoprar lá de cima. Era a primeira vez que o

arrependimento por estar ali sacudiu sua consciência.

Além da inquietação por seguir em um território agourento, que clientes de merda

foi arranjar. Antes tivesse cobrado dez vezes mais o valor inicial, se soubesse o quão

chatos e frescos eles eram. Oito elfos estranhos, vestindo-se de maneira esdrúxula

e falando como se vivessem em outra realidade. Ouvira falar sobre eles inúmeras

vezes, embora raramente os visse de perto. Era um homem das florestas,

alquimestre da água habituado a enfrentar serpentes, leões e panteras nas matas

fechadas de Zavir e Frandar e raramente se deparava com sacramentadores em sua

rotina selvagem. Obviamente, conhecia seus feitos e sabia do dom peculiar de

prever acontecimentos do futuro como catástrofes da natureza, embora nunca

entrou na sua cabeça que raios de magia era essa. Afinal, se tinham esse poder, por

que não avisaram o que enfrentariam do lado de lá? Além de seus devaneios e

questões, Coldrar sabia que estavam em busca de alguma coisa perdida daquele lado

da montanha. O que eles tanto buscavam, pouco interessava. Não fosse pelo ouro

élfico, que costumava ter muito mais valor do que o ouro convencional por seu

grau elevado de pureza, certamente teria mandado aquele bando de elfos para o

raio que os partisse ao meio.

Nada para esses elfos frescos estava bom. A comida era sem gosto, como

comentou um deles certa noite a respeito do sopão: “estava deveras sem variações

de sabor e nuances de condimentos”. O que eles queriam? Um banquete à luz de

velas com cordeiro assado e vinho? Aquilo era a selva, uma floresta hostil e

desconhecida, na iminência de se depararem a qualquer instante com alguma besta

maldita. O acampamento não era apropriado, os colchões eram muito duros — e

perdeu a conta de quantas vezes teve de trocar os cobertores e colchonetes do tal

de “Cismo” ou “Siso”, sabia lá qual era o nome dele. As selas eram muito duras, a

água era muito fria, as mantas não aqueciam, o fogo não era quente o suficiente, a

barraca não estava montada de forma adequada, os alquimestres falavam muitos

palavrões, etc e etc e etc. Tudo, absolutamente tudo estava ruim e era motivo para

reclamações.

O ápice dos absurdos na relação delicada entre alquimestres e elfos aconteceu na

travessia do Rio das Pedras. Antes uma majestosa cachoeira que se precipitava de

uma das faces do Paredão e fazia suas águas cristalinas e torrenciais serpearem de

Frandar, passando pela região sudeste de Amistelar até alcançar o oceano em Líria

nos contos antigos e nas memórias mais longínquas de seus ancestrais, o que se via

atualmente era um grandioso vale íngreme, tortuoso e inóspito de pedras colossais

e nem um pingo sequer de água. A região frutífera e paradisíaca deu lugar a uma

longa estrada de rochas empilhadas. Muitos atribuíam o cenário distópico à

maldição recaída sobre Turmis após o exílio dos monstros e a crença popular dizia

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que nada vindo do outro lado do Paredão, desde então, poderia ser bom ou trazer

algum benefício. A grama verdejante e as árvores suntuosas que ladeavam as

margens do rio desapareceram para sempre e o que se via era um grande ermo

cinzento, melancólico, sem vida. Era o único caminho, porém, até a pequena

estrada que conduzia aos portões do Paredão.

Coldrar desmontou de seu passofugaz-Benit e alisou a crina do animal. Os demais

imitaram o gesto do comendador, aguardando por suas próximas ordens. A essa

altura, já tinha ouvido todo tipo de reclamação dos sacramentadores, encarando as

pedras com um misto de nojo e espanto, o que se repetia a cada novo lugar

desconhecido por onde passavam. Somente um dos elfos, loiro e com cara de

poucos amigos, permanecia impassível e taciturno por todo o trajeto. O único

denotando insatisfação e raiva em vez de surpresa. Os alquimestres aproveitaram a

parada para distribuir maçãs a todos e alimentar os cavalos com um pouco de feno.

O líder da Confraria encarou por um momento a trilha de rochas pitorescas,

tentando raciocinar qual seria a melhor estratégia para chegarem ao topo. O calor

do dia queimava seu cocuruto. Até pensou em enfiar o chapéu novamente na

cabeça, mas o couro quente fritava seus miolos sempre que o colocava e o deixava

com uma dor de cabeça insuportável. Avaliando o caminho, era impossível

prosseguirem dali em diante montados nos cavalos.

— E então, chefe, qual vai ser? — Tarluso, um dos três alquimestres brutamontes

da equipe parou ao lado de Coldrar, admirando o tamanho das rochas empilhadas

morro acima. — São umas pedrinhas e tanto, hein?

— Não tem como seguirmos nos cavalos — ponderou Coldrar, esfregando os

olhos. Uma gotinha de suor invadiu seu olho esquerdo e ardeu de forma

causticante. — Merda, merda!

— O que foi, chefe?

— Nada, Tarluso, nada. Chama o Dimdom e o Crispel. Fiquem na retaguarda da

comitiva e subam esses cavalos com vórtices de vento. Eu vou na frente com os

demais. Vai dar trabalho, mas como vocês três tem mais carcaça pra aguentar,

acredito que se subirem um animal de cada vez, vão conseguir chegar lá no topo!

— Ok, chefe. Pode deixar com a gente.

Virando para a multidão que o aguardava, Coldrar encarou os rostos enfezados

dos elfos e ansiosos dos alquimestres. Não havia um sequer que não estivesse

atarantado, suando em bicas e com as mãos acima dos olhos, protegendo-se dos

raios ultravioletas queimando suas cútises.

— É o seguinte: não dá pra seguirmos nos cavalos — anunciou o líder da

Confraria, observando com redobrada atenção a expressão dos sacramentadores

mudar de repente. — Teremos de escalar essas rochas a partir daqui. Preparem suas

bolsas e o que mais conseguirem carregar e sigam-me.

450


Acostumados a seguir ordens, os membros da Confraria atenderam ao pedido de

imediato. Juntaram o máximo de bagagens que conseguiram, apertaram cintas e

fivelas nas mochilas sobre as costas e estavam prestes a iniciar a jornada acima,

enquanto Tarluso, Dimdom e Crispel reuniam os cavalos e atiravam as bolsas e

outras bugigangas sobre o chão. Os primeiros alquimestres se encarrapitavam sobre

o cume das rochas, lançando as malas e colchões para cima quando Coldrar

percebeu que alguém resolveu não seguir suas ordens. Deslizando para a sombra

dos resquícios de um salgueiro ressecado, a única elfo da comitiva, de olhos

puxados e aspecto soberbo, descalçou as sandálias douradas dos pés e sentou-se

sobre a terra como se nada estivesse acontecendo. Com o sol escaldando seu

cérebro e a paciência atingindo o limite, o comendador caminhou aos passos largos

e pisadas fortes até o salgueiro. Ao redor, os olhares de todos se desviavam das

enormes pedras no caminho para a cena prestes a acontecer embaixo da sombra da

árvore.

— Você pode me explicar o que é que você está fazendo? — vociferou Coldrar,

cuspindo ódio para a elfo descansando na terra sem vida. — Eu dei uma ordem

expressa aqui. Nós temos que subir essas pedras!

A sacramentadora de olhos puxados e longos cabelos castanho-claros e lisos

limitou-se a sorrir para ele, acenando brevemente com a cabeça, o que o deixou

ainda mais possesso de raiva.

— Nobre comendador, — interveio o elfo que aparentemente era o líder dos

demais, parando na frente de Coldrar no exato momento em que ele estava prestes

a cuspir uma meia dúzia de palavrões — tenho plena certeza de que há uma

explicação plausível para nossa colega Soobo Yanui estar assentada sobre a terra,

visto que ouvimos suas diretrizes para nossos próximos passos.

— Certamente, meu adorável amigo Sisno — falou Soobo, com sua voz singela,

quase etérea. — É evidente que não despendemos de nosso tesouro particular uma

considerável fortuna para que eu me submeta às indelicadezas deste inculto que,

desde o prelúdio de nossa jornada, não fez o menor esforço sequer para cativarnos

com o mínimo de cordialidade esperada. Outrossim, afirmo que, sob nenhuma

hipótese, esforçar-me-ei, desgastando meus dedos, mãos e pés, na tentativa de

galgar posições nessa desafortunada e arriscada expedição.

— Olha, eu não entendi metade do que você falou nessas suas palavras aí. —

Coldrar explodiu: — Mas você vai subir essas merdas dessas rochas aqui, sim, ou

então eu...

— Então você o quê? — interveio o elfo loiro e de poucas palavras, ficando entre

ele e Soobo.

Os demais alquimestres cercaram seu líder quase de imediato. Alguns fizeram

pequenas chamas e rodamoinhos elementais surgirem em suas mãos. Comprimindo

451


os olhos e apostos para qualquer disputa, encararam os elfos rodeando Soobo

Yanui, unindo-se à amiga sacramentadora.

— Damas e cavalheiros, por favor — crocitou Sisno, mais uma vez abrandando

o conflito iminente formado em torno do salgueiro. — Não há porquê deixarmos

que a luz causticante deste dia de sol acirre a tensão que nos rodeia. Possuímos um

objetivo comum e lograremos êxito em alcançá-lo. Não deixemos açular nossos

ânimos por discordâncias irrisórias. Nobre Coldrar, como especialista na trajetória

que havemos de seguir, cumpriremos cada ordem emitida pelo senhor sem

questionamentos. Quanto a esta pequena divergência, não tenhas por presunção

crer que há de ser uma insurreição de nossa parte. Reafirmo que, de minha parte e

de meus estimados colegas, obedeceremos às suas ordens sem pestanejar.

Coldrar encarou os elfos por alguns instantes, pensando se deveria dizer alguma

coisa. Por fim, girando nos calcanhares, ordenou que retomassem a subida de

imediato. Sisno reuniu os oito uma última vez e nenhum dos sacramentadores

reclamou ou emitiu qualquer palavra durante a árdua subida pelo Rio das Pedras.

Um estampido diferente afugentou as amargas lembranças do comendador e o

fez apurar os ouvidos. Esvaindo-se dos desvaneios que se esforçava para esquecer,

recolheu os pés de dentro das águas frias e enfiou-as nas botas, colocando-se de pé

em um movimento rápido. Vozes angustiadas berraram de desespero na direção do

acampamento, quando outro estrondo ensurdecedor estremeceu a terra ao redor.

Alerta, os cinco sentidos mais do que aguçados e o coração pulsando em cada parte

do corpo, Coldrar pôs-se a correr da margem do rio para alcançar a clareira onde

as barracas estavam montadas.

Embrenhando-se desabalado por entre as árvores e o matagal, um urro

aterrorizante ecoou em seus tímpanos e o fez estacar na hora. Uma criatura das

trevas surgira, sem sombra de dúvida. O brado atroador era carregado e longo. De

todos os timbres de berros de criaturas infernais que estudara em seu próprio

bestiário e considerando o local onde estava e a fama por trás dele, aquele se

assemelhava muito ao de um ogro-dos-pântanos. Sacou a espada que sempre

carregava a tiracolo e a velha foice de cortar mato, galhos podres e cipós presa na

panturrilha. Desvencilhando-se dos arbustos e raízes protuberantes, diminuiu a

distância entre ele e as barracas e se lançou no meio do acampamento.

Um ogro de três metros de altura, pele verde-acinzentada e corpo coberto de

pústulas brandia um poderoso porrete feito do tronco retorcido de uma árvore

velha qualquer contra quem tentasse se aproximar. A bocarra de dentes afiados e

amarelos estava manchada de sangue, escorrendo para os lábios protuberantes. Um

corpo dilacerado pendia da mão esquerda.

— Rogar? — balbuciou Coldrar, de olhos arregalados, estupefato.

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Em meio à escuridão dominante, os outros alquimestres se espalhavam pelo

arraial, tentando combater a terrível criatura. Stevuer e Adamer lançavam bolas de

fogo no ogro, mas as chamas elementais não pareciam sequer fazer cócegas.

Dimdom e Tarluso arremessavam vórtices de ventanias que atingiam o monstro

como se fossem uma brisa suave num fim de tarde. Recuperando-se do baque de

vislumbrar o corpo ensanguentado e despedaçado de seu amigo alquimestre,

Coldrar percebeu, na penumbra das labaredas mágicas, a presença dos elfos ao

redor. Acuados e temendo pela própria vida, escondiam-se atrás das árvores ou

debaixo de alguma barraca mais distante. Praguejou baixinho pelo fato de seus

clientes terem tanto poder, dominando uma magia que afetava o tempo e não

conseguirem fazer nada para ajudar.

O monstro berrou outra vez e as árvores ao redor balançaram. O vislumbre nos

rostos dos alquimestres ao redor era de um terror cavalar intensificado,

principalmente pelos dentes afiados da aberração e pela figura moribunda de seu

velho amigo da Confraria, agitado como um pedaço de papel de um lado para o

outro. Coldrar bradou aos ventos úmidos e quentes da clareira, tão alto quanto seus

pulmões aguentaram e avançou pelo meio do acampamento com as duas lâminas

em riste. Mais rápido do que se esperava para um ogro daquele porte, o porrete em

suas mãos girou por entre as barracas. Stevuer se lançou ao chão, assim como

Adamer, mas os demais não foram rápidos o bastante. O pedaço de tronco

retorcido atingiu Coldrar e os outros alquimestres, esmagando seus crânios como

quem destrói uma abóbora madura. Miolos e sangue jorraram pela terra, cobrindo

os resquícios das barracas ao redor. Foram atingidos em cheio por um segundo e

rápido ataque brutal do ogro.

Sisno, Soobo e Malik Mavrio estavam paralisados diante da cena. Estáticos, não

conseguiam se mover, nem correr para se esconder ou fugir para o mais distante

possível. Era a primeira vez que estavam diante de uma aberração tão ameaçadora.

Com os membros da Confraria mortos de forma hedionda diante de seus olhos,

estavam à mercê da própria sorte, sem os protetores contratados para os livrarem

daquele tipo de perigo.

O ogro largou o corpo mutilado de Rogar. Arrastando o porrete pela clareira, a

criatura agarrou o líder da Confraria pelas pernas e abocanhou o alquimestre na

altura de seu tronco, partindo-o ao meio. O barulho execrável das costelas sendo

partidas em migalhas pelos dentes afiados e mastigadas junto às tripas do

alquimestre, ecoava pela floresta.

— SISNO! SOOBO! SAIAM JÁ DAÍ! — berrava Gavir do alto de uma árvore.

Contemplava a cena igualmente atarantado.

O grito do sacramentador alertou o monstro, terminando de engolir o que antes

eram as pernas de Coldrar e partir para sua terceira refeição da madrugada. Nelis

arregalava os olhos, contemplando a cena detrás de um salgueiro no limiar do que

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antes fora o acampamento, incapaz de emitir som algum. Poledores Früg e Rodris

Rannidge alcançaram o topo de outra árvore e berravam sem cessar para Sannfrye,

Soobo e Malik Mavrio escaparem depressa do raio de ação da criatura. Nikolai

Nodovra, ofegante, não conseguia olhar para a cena, escondido atrás de uma pedra.

O ogro virou-se. Arreganhando os dentes com uma felicidade assassina, ergueu o

porrete em uma investida ameaçadora, pronto para esmagar os três elfos em uma

tacada só. Gavir, Poledores e Rodris não paravam de gritar para os amigos saírem

da inércia provocada pelo temor que os impedia de escapar do iminente golpe

brutal. Nikolai balançou a cabeça, tampando os ouvidos e fechando os olhos para

não ter de testemunhar a morte de seus colegas sacramentadores.

Uma brisa gélida assoprou de chofre e as tochas ao redor se apagaram

instantaneamente. Imersos em completa escuridão, os gritos dos elfos no topo das

árvores cessaram, mas os urros atroadores da criatura ribombavam pela floresta.

Um brilho inusitado cintilou em meio ao negrume. Uma lâmina prateada surgiu nas

trevas dominantes da mata densa. Avançando em meio às sombras avassaladoras,

um guerreiro misterioso brandia sua espada. Dilacerando o temível ogro, a criatura

berrava de dor, balançando o poderoso porrete contra o algoz que o cortava e fazia

jorrar seu sangue verde sobre os cadáveres dos alquimestres, no que restara do

acampamento devastado. Era impossível vislumbrar o rosto do herói enfrentando

a criatura infernal, mas os brados poderosos do monstro ecoavam pelos ares.

O silêncio da madrugada imperou abruptamente. Os gritos intensos

desapareceram. Um baque se ouviu e o chão estremeceu. A monstruosa besta

estava caída, inerte e banhada pelo próprio sangue. O brilho da lâmina desapareceu,

quando a espada fora novamente embainhada. Emergindo das trevas, o dono da

espada revelou-se. Estupefato, Nikolai ergueu-se de seu abrigo e notou os olhares

arregalados de seus amigos elfos para a figura oculta a se manifestar naquele

instante.

Acendendo uma tocha que iluminou com um brilho incandescente as expressões

surpresas de todos, um elfo de longos cabelos prateados se apresentou. Coberto

por uma capa dourada, trazia um arco cruzando suas costas e um alforge carregado

de flechas. A espada que dilacerara o ogro repousava na cintura e uma coroa

cravejada de rubis reluzia no topo de sua cabeça. Ninguém arriscou dizer nada,

tampouco questionavam quem ele era. O reconheceram assim que o viram: era

Adryan Varnor, o Rei Elfo.

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Capítulo Trinta e Quatro

Duelo de Cavalheiros

O sol ainda não havia surgido no horizonte e a escuridão dominava a imensidão

dos céus nos limiares de Cruisand com um tom lúgubre e melancólico. Os luzeiros

mágicos do porto da cidade iam ficando cada vez mais visíveis e cintilavam ao

longe, revelando trabalhadores braçais correndo de um lado a outro pelas docas,

em mais um dia de labuta se iniciando. Do horizonte das águas calmas e negras

daquele pedaço de Crispoles, era possível entrevir as plataformas robustas e

fortificadas do extenso píer. As variadas embarcações, de inúmeros tamanhos e

formas, balançavam num ritmo sonolento, como se embalando os tripulantes a

dormir no interior dos navios.

No topo do mastro mais alto, agarrado às muitas cordas de cânhamo, Zakkar

comprimia os olhos para ter um vislumbre de uma doca livre qualquer,

preferencialmente o mais distante possível das plataformas centrais e do controle

de entrada e saída da alfândega. Seria difícil explicar o que um navio sem registro,

com cinco moças e um rapaz, fazia numa das mais famosas cidades do mundo, sem

uma mercadoria plausível para entregar. Sorte ter decidido livrar-se da tripulação

moribunda e de seu capitão sem cabeça ainda em alto-mar. Senão, teria mais uma

série de explicações a dar ao controle portuário. Não sabia onde estava com a

cabeça quando decidiu ouvir uma das garotas e seguir até Cruisand. Deveria ter

virado o navio, deixado as garotas em Namit e partido sozinho até Gradia. Mas

uma delas afirmava ser muito perigoso retornar para Miliat. Poderia haver outros

traficantes de meninas na região. Embora Zakkar tivesse tentado convencê-las a

retornarem para suas famílias, todas foram unânimes em seguir para a casa da tia

de uma das meninas em Cruisand e ficar por lá até pelo menos a poeira abaixar.

Uma das garotas afirmou que o ambiente na cidade portuária estava instável, desde

a invasão à capital. As histórias narradas por elas só confirmaram o que ele ouvira

dos soldados inimigos no coração da floresta. Navios estranhos e homens

repugnantes desembarcavam com frequência, geralmente no meio da madrugada.

Piratas e ladinos espreitavam pelas ruas de Namit, com atitudes suspeitas e olhares

misteriosos. Ouviram falar do desaparecimento de outras garotas na cidade,

geralmente adolescentes, mas jamais imaginariam que poderia acontecer com elas.

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Durante a viagem, Zakkar imaginava se não haveria um prêmio por sua cabeça,

alguém o caçando ou algo do tipo. Era o filho desaparecido do Rei Bartel, o

herdeiro da Intrépida Miliat. Se o Conselho dos Guardiões armou uma emboscada

para destronar e assassinar seu pai, com certeza o estariam caçando uma hora

dessas. Torcia para que ainda estivessem procurando-o pela Floresta Demoníaca,

vasculhando cada centímetro pela mata profunda. Mas, mesmo assim, manter-se

longe das atenções e evitar confusão era imperativo. Não queria atrair atenção para

si numa cidade tão visada quanto Cruisand. Precisava ficar o mais distante possível

de qualquer autoridade portuária ou de alguém que o reconhecesse como sendo de

uma linhagem real.

Não sabia muito bem o que pensar sobre Selena e, particularmente, sua mente

estava em um turbilhão de dúvidas e questionamentos sempre que pensava na

garota. Se ia se casar com o crápula de seu tio Bernat, ela provavelmente estava

metida até o pescoço com os assassinos dos Ayarza. Mas, se era uma das

conspiradoras, por que o ajudou a fugir? Esforçava-se para afastar da mente a ideia

de uma Selena dissimulada, tão mentirosa e ardilosa a ponto de enganar sua família

para se aliar a algo tão hediondo. Preferia esquecer o que ficou para trás. Queria

manter na memória a figura intocada da amiga guardiã, mas as revelações em Namit

arranhavam a imagem que ainda guardava dela.

Desvencilhando-se das cordas e dos pensamentos soturnos, desceu até a popa do

navio. O silêncio perturbador do fim da madrugada abraçava o navio e só era

interrompido pelo barulho das ondas rechaçando contra o casco da embarcação,

conforme avançava pelas águas. Quatro meninas se entregavam a um sono

profundo, mas uma permanecia acordada. Apoiada sobre o timão, o olhar pesaroso

se perdia em ponto algum das marés, mas Manara se recusava a dormir durante as

madrugadas. Os pesadelos constantes não a deixavam repousar em paz. Preferia

manter-se de olhos bem abertos à noite, contemplando o oceano e só dormir

quando perdesse as forças, entregando-se ao cansaço e exaustão. O lado direito de

sua testa ainda estava inchado e alguns cortes, mesmo que cicatrizados, eram

visíveis em seus braços. Sempre que a via, os questionamentos a respeito de Selena

desapareciam da mente de Zakkar. As memórias perturbadoras do que fora

obrigado a ver na cabine o dominavam com uma cólera sem fim. Inspirava

profundamente, sem deixar de impedir correr em suas veias um ódio crescente pelo

velho decapitado e pelo que ele estivera prestes a fazer.

— Não é melhor você dormir? — indagou Zakkar, vendo as pálpebras da garota

ficando pesadas.

Manara se recompôs imediatamente e agarrou o timão com firmeza como se

nunca o tivesse soltado.

456


— Não é melhor você dormir? — Manara encarou-o nos olhos, esforçando-se

para manter a sobriedade de alguém de prontidão. O sono, contudo, era notório,

mesmo insistindo em se mostrar lúcida.

Zakkar sorriu para ela. Havia algo em Manara que o lembrava muito Selena. Por

mais que os cabelos estivessem malcuidados e sujos e no rosto oval com sardas

discretas espalhadas pelas bochechas, as marcas da agressão fossem evidentes, era

nos detalhes que enxergava sua antiga paixonite. A forma como Manara sorria pelo

canto da boca; o jeito petulante, empinando o nariz pequeno para encará-lo toda

vez que conversavam; a força sobre-humana que tentava transparecer, mesmo com

a dor e agonia latente pelo que sofreu: eram tantas coisas que ele sentia uma dor no

peito só de observá-la. A saudade de casa, a saudade dos beijos de Selena, de ter o

corpo dela colado no dele, tudo isso o fazia querer derramar-se em lágrimas. Não

podia deixar-se esmorecer. Era necessário esquecer o passado. A única coisa

importante dessa vez era seu desejo de vingança pelos traidores do Trono dos

Ayarza. Pagariam com a vida pelo que fizeram ao seu pai, à sua mãe e ao reino.

— Cruisand está à vista — pronunciou Manara, voltando a olhar para frente —

À estibordo, há uma vaga nas docas. Um píer bem ao centro do cais principal.

Seguimos para lá?

— Não acho ser uma boa aportarmos ali. Não podemos chamar atenção das

autoridades.

Zakkar procurava algum lugar a um extremo para aportar sem serem percebidos.

— Se você acha que não devemos atrair os olhos da alfândega, não podemos

atracar em píer algum. O ideal é seguirmos para uma praia à bombordo,

abandonarmos o navio à beira-mar e seguirmos em um barquinho. Somos seis

tripulantes, o navio preso nos flancos da popa suporta todos nós, não será tão

difícil. Devemos aproveitar o movimento ainda fraco no porto. Logo, o sol

desponta e será impossível esconder um barco desse tamanho.

Zakkar perdeu o olhar no horizonte por um segundo. A mente cansada não

queria raciocinar. Mesmo denotando contrariedade, balançou a cabeça,

consentindo. Manara rodou o timão do navio todo para a esquerda e a embarcação

guinou bruscamente rumo à praia distante. Os primeiros raios de sol brotavam em

algum lugar onde céu e mar se tocavam, pintando a abóbada celeste com raios

amarelados e intensos.

— Onde aprendeu a navegar tão bem assim? — inquiriu Zakkar, notando a

habilidade da garota na manobra do navio.

— Meu padrasto era timoneiro. Embora ele não gostasse muito da ideia, me

ensinou bastante coisa sobre como conduzir um barco desse tamanho. Ele dizia

que a vida no mar não era algo para mulheres, por causa dos perigos desconhecidos

nos oceanos. Mas sempre afirmou que a maior de todas as ameaças não eram os

monstros habitando os mares, mas sim os homens que habitam os navios.

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— Seu padrasto é um homem sábio.

— Foi um homem sábio.

— Ele... morreu?

— Quem sabe? Um dia ele seguiu por Crispoles, num cargueiro de algodão até

os limites entre Frandar e as Terras Distantes e nunca mais voltou.

— Eu sinto muito.

— Não precisa sentir, não. Nos últimos ciclos, ele se tornou um idiota. Virou um

beberrão e passou a bater em mim e na minha mãe. Sinceramente, foi bom que não

tenha voltado. Mas... você não falou quase nada sobre você. Quem é? Como veio

parar nesse navio? Eu te devo a minha vida e sequer sei o seu nome...

Zakkar mirou o horizonte outra vez e notou a praia deserta crescendo à medida

que diminuíam a distância. Arrazoava se deveria contar a verdade ou não. Para sua

sorte — ou talvez pela penumbra e escuridão do navio — nenhuma das garotas o

reconheceu como o príncipe de Miliat. A barba volumosa e os cabelos mais

desgrenhados e revoltos do que jamais tivera, podem ter contribuído para disfarçálo

também. Não acreditava que Manara fosse uma traidora de Miliat, mas jurou a si

mesmo não confiar em mais ninguém. Não estava pronto para essa conversa, não

queria falar a verdade e correr o risco de expor a si mesmo e a ela.

— Vou acordar as outras garotas e preparar o barquinho — falou Zakkar, sóbrio

— Estamos bem perto da faixa de areia.

Largando os lemes do pequeno barquinho, Zakkar pulou para fora. A água estava

terrivelmente gelada e as ondas arrebentando com violência sobre as areias da praia.

As cinco garotas aguardavam sentadas, plenamente agasalhadas com cobertores e

mantas, com os cabelos esvoaçando pela força dos ventos agitando as ondas. O

olhar de cada uma delas ainda denotava medo, mas não havia mais o terror de

quando as libertou no navio pirata. Encarceradas e amarradas dentro das cadeias

da embarcação, essa era outra lembrança que o jovem guardião também queria

esquecer. Miravam naquele momento extensão de areia da praia de Cruisand,

ansiando em pôr os pés em terra firme de uma vez.

Puxando o bote, Zakkar sentia as conchas e pedras da orla pressionando a sola

de seus pés, seguindo passo a passo até a areia. A sensação de liberdade era

reconfortante e nem mesmo a água gelada e a leve bruma no perímetro estragavam

esse sentimento. O sol ainda não havia aparecido em sua totalidade e o dilúculo não

passava de um borrão ainda cinzento com poucas nuances pálidas do dia.

Comprimindo os olhos, não conseguia distinguir muito bem nada na praia. A

silhuetas dos coqueiros era a única coisa que sabia afirmar sem titubear. O restante

eram sombras difusas do romper da manhã. Não havia diálogos ou burburinhos.

O silêncio das palavras, interrompido unicamente pelo barulho dos ventos

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marinhos e das ondas quebrando, trazia uma sensação reconfortante de calmaria e

perene paz. Ninguém precisava dizer nada, a natureza falava por eles.

As sombras indistintas foram tomando forma e se apresentando tão nítidas

quanto a luz do dia, conforme o sol assumia seu lugar no dilúculo. A cerração da

madrugada se dissipava, revelando espectros e figuras ocultas. O silêncio foi

subitamente quebrado e o barulho da ventania e das águas na rebentação se juntou

ao coro dos suspiros de desespero das cinco garotas dentro do barquinho.

Sobressaltadas, emitiam um grunhido abafado, demonstrando outra vez o terror de

quando os piratas as sequestraram em Namit. Zakkar não titubeou um segundo

sequer. Seguiu firme até o pequeno bote atracar em terra firme. Não precisava mais

comprimir os olhos para distinguir o que vislumbrava sobre a areia cristalina da

praia.

— Muito bom dia, senhoritas! Obviamente, muito bom dia para o senhor,

cavalheiro que as trouxe com tamanha educação até esta maravilhosa praia. Eu

saúdo a todos e dou as boas-vindas para as famosas terras de Cruisand. Um destino

turístico fascinante. Um chamariz internacional para os amantes de grandes

aventuras. Claro, não poderia deixar de mencionar ser uma das principais cidades

mágicas de Eirin, o abrigo de um dos Pilares da Magia.

Um grupo de dez rapazes cercava o bote. O sorriso nos lábios de dentes

amarelados ou podres não escondia a expressão nada amigável na face de cada um.

Usavam roupas esdrúxulas, remendadas, algumas com aspecto surrado e um ou

outro exibiam braceletes e cordões de ouro. Um deles até tinha um ou dois dentes

de ouro. Pelo menos três sustentavam espadas amarradas na cintura e dois

sacudiam um pequeno porrete de madeira com pregos na ponta. Eram notórios

ladrões e trombadinhas de subúrbio, do tipo que surrupiam e roubam com mãos

leves, sem ninguém perceber. Zakkar fechou a cara e comprimiu os olhos. Sabia

que eles não estavam ali como um comitê de boas-vindas, para recepcioná-los em

sua chegada à cidade e serem seus guias turísticos. O medo era sua desvantagem.

Dez contra um. Cansado como estava, não sabia se daria conta de proteger as

garotas contra um grupo inteiro de trombadinhas, armados e sem escrúpulos.

— O que querem? — perguntou Zakkar, presunçoso, adiantando-se sem vacilar.

Um moleque carregando uma centena de quinquilharias presas às roupas,

braceletes, brincos e um dente de ouro adiantou-se. Seguiu desfilando pela areia,

abrindo os braços e sorrindo de um jeito cínico que desagradou Zakkar. Parou a

poucos centímetros do guardião e alisou o pequeno tufo de cabelo abaixo do

queixo.

— Joias, ouro, pepitas, lingotes, diamantes, pedras preciosas, colares, braceletes,

pingentes, brincos, broches, rendas, fardos de seda, algodão, tudo que valha algum

dinheiro!

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— Não temos nada disso — respondeu Zakkar, sucinto e impassível. — Agora,

deixe-nos em paz para podermos ir.

O garoto espalhafatoso do dente dourado soltou uma gargalhada bastante

audível. Os demais em volta emitiram risadas igualmente altas e forçadas. Zakkar

não gostou nada da reação. Cerrou os punhos e mirou cada rosto dos trombadinhas

em seus risos debochados. As garotas no bote se apertaram ainda mais,

aconchegando-se umas nas outras, temendo por suas vidas.

— Vocês ouviram? Ele quer que a gente deixe eles em paz.

A risadaria exagerada ficou ainda mais alta e encheu os ares cálidos do início da

manhã.

— Escuta aqui, meu nobre. Você realmente achou que poderia aportar em

Cruisand clandestinamente, deixar o navio à beira-mar e vir remando nesse bote

com cinco garotas sem sequer pagar uma taxa aos donos da cidade? Achou que não

avistamos sua embarcação se aproximando das docas e, de súbito, mudar o curso

para a praia? Aí não, patrão. — Ao som das gargalhas persistentes de seus amigos,

o garoto do dente dourado chegou muito próximo do rosto de Zakkar, dessa vez

com uma expressão de hostilidade estampada na face. — Ou você paga nossa

exigência ou ficaremos com as garotas como pagamento!

Não houve nem tempo para o menino espalhafatoso tomar fôlego após sua

sentença hostil. Zakkar agarrou as duas orelhas dele em um golpe instintivo e

arrancou os brincos com a fúria abissal que o dominou naquele instante. Sangue

manchou a areia branca e pedaços de orelhas dilacerados agarrados às argolas

douradas despencaram no chão. Acabrunhado e uivando de dor, o garoto

despencou aos pés do guardião. Os outros nove ladrões ao redor desembainharam

espadas, sacaram suas facas e ergueram os porretes, avançando na direção de

Zakkar.

— FUJAM! CORRAM PARA LONGE!

O grito desesperado ecoou do fundo da alma de Zakkar. Aguardando o iminente

golpe de lâminas, paus e pregos, o coração estava a mil e apertado, preocupado com

as meninas sobre o bote. As cinco garotas se agitaram. Lançaram os cobertores no

mar e não precisaram ouvir a súplica de seu protetor outra vez: pularam sobre a

areia e seguiram a ordem expressa para escaparem, correndo à beira-mar para longe

do palco da iminente batalha.

Uma adaga passou voando próximo à orelha esquerda do jovem guardião.

Movendo a cabeça com destreza, conseguiu evitar de ter o olho perfurado por uma

fração de segundos. Um porrete zuniu pelos ares no segundo seguinte e ele só ouviu

o zunido da madeira pesada acertando o ar. Esquivando-se a tempo, Zakkar

rodopiou sobre o próprio eixo e acertou o joelho do moleque segurando o pedaço

de madeira com pregos na ponta. Um barulho de ossos quebrados retumbou e

uivos de dor do ladrão eclodiram. Uma série de socos acertou o peito de Zakkar e

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ele se viu perdendo o equilíbrio, caindo sobre a areia em seguida. Outro porrete

surgiu em seu campo de visão — esse com o que pareciam ser pedaços de facas

quebradas no lugar dos pregos. Na iminência de estourar seus miolos, Zakkar rolou

sobre o chão e conseguiu colocar-se de pé outra vez. Acertou um gancho de direita

muito bem colocado no maxilar de um deles e um cruzado de esquerda no nariz de

outro.

O embate sobre a areia parecia uma dança sincronizada e instintiva. Quem

passasse pela praia e avistasse a luta de um jovem maltrapilho e barbudo contra dez

garotos de roupas esquisitas, acreditaria estar diante de um espetáculo decorado de

artes marciais. Zakkar reagia aos golpes, desviando-se das investidas e acertando

chutes ou socos nos erros dos oponentes. Um dos trombadinhas agitou sua espada,

desferindo golpes a esmo em sua direção. Desviou do primeiro, do segundo, mas

o terceiro acertou seu ombro. Um filete de sangue jorrou e Zakkar estremeceu com

a dor. Tentando desviar de outro ladrão correndo em sua direção com uma adaga,

percebeu que somente quatro lutavam com ele. Notou, de esguelha, pelo menos

dois dos ladrões avançando na direção das garotas em fuga.

Ainda relutante em demonstrar a própria magia, não havia o que fazer. Não podia

deixar que elas fossem capturadas por um bando tão execrável quanto o dos piratas

que as sequestraram em Namit. Justo quando tinha acreditado ter alcançado a

liberdade. Sabia que poderia estar colocando a própria vida em risco, mas esse era

o dever de um Guardião. Mesmo não sendo o escolhido de Aladar e longe de talvez

um dia ser, esta era a obrigação descrita nas Leis Primazes. O mais forte tinha de

proteger o mais fraco.

Uma luz azul coruscou. Como se o tempo transcorresse lentamente, Zakkar

vislumbrou os rostos encolerizados dos bandidos ao seu redor. Os porretes,

espadas e facas em riste, vinham com toda fúria para cima dele. As ondas se

ergueram de repente. Mais alto do que antes da rebentação, subiam e subiam e

formaram um paredão monstruoso de água salgada. Os olhares maléficos se

converteram de chofre em uma visão aterradora. A luz azul ficou mais forte,

ofuscante. Brilhava das mãos de Zakkar. As ondas abandonaram sua forma e

convergiram para uma poderosa espiral. Indomável e com a força de marés em

veementes tempestades, elas acertaram em cheio cada um dos ladrões prestes a

golpeá-lo.

Os quatro ao seu redor caíram sobre o chão, agonizante de dor, com a pancada

intensa do vórtice de água elemental que se formara. Zakkar vislumbrou a rota de

fuga que as meninas tomaram e, no encalço delas, os cinco ladrões remanescentes.

Na iminência de um deles alcançar a retardatária, o guardião agitou as mãos e a

espiral de ondas voou em alta velocidade até eles, derrubando-os sobre a areia.

— Muito bem. Vamos com calma.

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Girou nos calcanhares quando uma voz grave e sóbria ecoou. Zakkar estacou

próximo à orla, sentindo o coração acelerar mais do que o normal. O rodamoinho

mágico aninhou-se ao seu redor como uma serpente e as águas assumiram,

bruscamente, uma tonalidade escarlate. Além dos ladrões abatidos sobre a areia, um

rapaz segurava uma das meninas. Para surpresa de Zakkar, era justamente Manara,

mantida refém ante a ponta de uma pequena adaga. Cabelos negros e volumosos

como a juba de um leão e sem nenhum adorno espalhafatoso ao redor dos pulsos,

no pescoço e nas orelhas, ele caminhou sem pressa até postar-se frente a frente

com Zakkar. Diferente dos outros, esse usava roupas mais refinadas e poderia

muito bem se passar por um cidadão da nobreza da cidade. Os trajes eram de linho

e seda pura. A pele morena era semelhante à dos pescadores de Miliat, queimada

pela exposição ao sol de alto-mar. Havia uma cicatriz tortuosa, começando em seu

nariz aquilino e morrendo pouco abaixo da maçã esquerda do rosto. Os olhos eram

grandes, negros e enigmáticos. Uma capa vinho com detalhes dourados repousava

em seus ombros, presa no pescoço por um broche de prata com uma chama

curvilínea entalhada.

— Solte ela! — ordenou Zakkar. As ondas escarlates ao seu redor se

avolumavam, tão revoltas como o mar em fúria.

— Vai depender, meu caro — falou o rapaz da capa vermelha. A voz dele era

serena, cristalina e, estranhamente, transmitia paz, mesmo em um momento de

guerra.

— Depender do quê?

— Do seu poder de negociação. Acreditei ser um exímio lutador, mas você tem

uns poderes bacanas. Parece saber controlar os elementos. Pela intensidade e

rapidez com que abateu meu bando, eu não diria que é um alquimestre. Um

alquimestre com esse poder não estaria traficando garotas na calada da noite e

trazendo-as para cá.

Os outros dez ladrões iam se recuperando. Levantavam do chão, tomavam os

porretes, espadas e adagas novamente nas mãos, evidenciando os hematomas e as

marcas da surra que levaram. As outras quatro garotas haviam conseguido fugir.

Sumiram no horizonte, depois do último golpe do guardião. Um a um, cada

bandido tomou sua posição em um círculo que rodeou os três: o homem da capa

vermelha, Manara e Zakkar.

— Escuta, — proferiu Zakkar, visualizando a expressão de terror no rosto de

Manara — eu te suplico: solte ela, deixe as outras garotas em paz e faça o que quiser

comigo.

— Sabe, rapaz, esse é o mal das pessoas honradas. Elas querem proteger a todos,

mesmo aqueles que não conhecem. Mas você sabe quem não tem honra? Piratas!

Piratas são sujos, inescrupulosos, sem moral ou ética, gananciosos e hediondos.

Nós não temos piedade com essa estirpe em Cruisand. Mas se você tem honra e a

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demonstra numa situação como esta, em que faço refém uma garota qualquer,

então fica a incógnita: quem é você?

— O que é que você quer? — inquiriu Zakkar, mirando a ponta da lâmina

pressionando o pescoço de Manara e as lágrimas escorrendo dos olhos da garota.

— Uma luta — respondeu o rapaz, esboçando um sorriso. — Mas uma luta justa,

sem magias. Uma luta de espadas, como em um antigo e bom duelo de cavalheiros.

Se você vencer, eu a soltarei e vocês dois podem ir embora, sem olhar para trás.

Nós fingiremos que nada disso aconteceu e este será apenas mais um dia comum

de sol nesta praia esquecida de Cruisand.

— E se você vencer? — questionou Zakkar, comprimindo os olhos.

— Se eu ganhar o duelo, tanto você quanto esta jovem terão de ficar com nosso

bando na cidade por pelo menos uma semana, que considero ser tempo suficiente

para arrumarem o dinheiro para pagar a taxa de vivência em nossa belíssima

Cruisand.

— E se eu não aceitar?

— A garota sangra até morrer aqui na sua frente. E, mesmo que você mate um

por um deste bando após isso, toda sua honra não valerá de nada porque ela foi

morta diante dos seus olhos, quando suas opções para mantê-la viva eram apenas

as duas que acabei de lhe dizer.

Zakkar ponderou, a fúria implacável tornando a dominá-lo. Encarou o homem

da capa vermelha e sua expressão impassível, prendendo os braços de Manara com

uma das mãos e com a outra pressionando a faca em seu pescoço. Avaliou as

opções disponíveis. Poderia tentar desferir um golpe com a serpente elemental, mas

a ponta da lâmina apertava a garganta da garota. Seria um risco muito alto a correr

e se não conseguisse atacá-los e ela morresse, jamais se perdoaria por ter sangue

inocente em suas mãos. Não queria carregar o peso de uma vida ceifada por uma

tentativa frustrada, manchando sua consciência. Como seu oponente afirmara, não

haveria honra se ela morresse por uma escolha errada.

— Tudo bem — respondeu Zakkar, resignado. — Eu aceito o desafio.

O ladrão da capa vermelha entregou Manara para um dos ladrões, que continuou

apertando a lâmina contra o pescoço da garota. Em seguida, desembainhou duas

espadas. Balançou uma delas no ar, como se experimentasse o equilíbrio e o peso

da arma. Arremessou a outra na direção de Zakkar, que agarrou o cabo da espada

sem vacilar. Desabotoando a capa, o líder do bando caminhou alguns passos para

trás e se posicionou em frente ao jovem guardião, pronto para o duelo.

A lâmina de Zakkar se ergueu e refletiu a luz do sol. Correndo pela areia com a

arma em riste e com o ódio inexorável o consumindo, desferiu golpes em seguida

na direção de seu adversário. O líder dos ladrões desviou de todas as investidas em

sequência com uma destreza maestral. A agilidade espantosa do rapaz acirrou ainda

mais a fúria dominante no corpo cansado do guardião. Deslizando pela areia, o

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ladrão de longos cabelos encapelados tocou o ombro machucado de seu oponente

com a ponta da espada. Zakkar soltou um urro com a dor lancinante que

estremeceu seu corpo por inteiro. Os dez moleques ao redor vibraram com a

vantagem de seu líder.

— Você me intriga, sabia? É poderoso como um guardião, tem a destreza de um

verdadeiro guerreiro, comporta-se com honra e fala como alguém de alguma

nobreza. Mas há um ódio incontido, tentando se libertar em seu interior. Diga-me,

quem é você?

— Não te interessa quem sou ou deixo de ser. Depois que derrotá-lo, você nunca

mais verá sequer a luz do dia.

Os dois se encararam, caminhando passo a passo na direção de seus flancos, com

os dez bandidos e Manara ao redor. Traçavam um círculo sobre a areia da praia,

espadas levantadas, punhos fechados e comprimindo os olhares um para o outro.

Estudavam os movimentos com paciência, avaliando as possibilidades, a forma e

melhor hora para atacar. Lâminas em riste, ladrão e guardião esperavam,

aguardando o momento certo.

— Não há possibilidade de haver tanto ódio guardado por um alguém como eu,

a quem você mal conhece. Confie em mim e fale, o que é que você busca?

O líder do bando avançou até Zakkar. As espadas se chocaram com estrépito e

as lâminas cantaram de um jeito agudo, estridente. Uma, duas, três, quatro, cinco

vezes. Depois mais três e mais seis vezes. Agitando sua arma, o guardião conseguiu

acompanhar as investidas do adversário, atacando e defendendo, sem que ambos

conseguissem acertar um ao outro em algum ponto vital.

— Eu busco vingança — crocitou Zakkar; as palavras soaram como um desabafo

carregado de aflição e cólera. Os olhos se encheram de lágrimas, a angústia da perda

acertando-o com ímpeto. A cabeça latejou, mas ele continuou firme com a espada

na mão. — Quero vingança contra os traidores da minha família. Eu busco

vingança contra o Conselho dos Guardiões.

O líder dos ladrões estacou, arregalou os olhos e sorriu.

— É ousado pensar deste modo, meu caro. Vingança contra o Conselho dos

Guardiões?

— O Conselho tirou tudo de mim, tudo que eu mais amava. Obliterou minhas

esperanças, esmagou minhas alegrias e destruiu minha vida para sempre.

Novas investidas cortaram os ares. Descarregando a raiva que o dominava,

Zakkar partiu para cima com violência, desferindo mais golpes de espada a esmo.

As lâminas tilintaram e estremeceram com a intensidade das batidas de ferro contra

ferro. Ladrão e guardião mais uma vez se encaravam, pressionando suas armas uma

na outra em uma disputa de força e espaço, voltando a andar em círculos sob os

olhares de dez trombadinhas e uma garota assustada.

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— Vejo que partilhamos do mesmo sentimento e da mesma sina — pronunciou

o líder dos bandidos, esvaindo a tensão de sua voz grave e calma. — Nutrimos e

comungamos de um ódio mortal pelo Conselho dos Guardiões. E como você

pretende obter êxito em sua vingança?

— Invadindo as cerimônias do Ano da Elegibilidade e matando um por um.

O líder dos ladrões forçou sua espada e recuou. Como uma serpente à espreita,

caminhou lentamente pelo centro do círculo desenhado na areia pelos pés de

ambos. Zakkar ergueu sua lâmina e berrou. O ombro latejou com a dor do corte,

mas estava pronto. Era o momento de desferir o derradeiro golpe, a investida

mortal que acabaria de vez com a luta, fazendo a cabeça do rapaz à sua frente rolar

pela areia em direção ao mar.

A lâmina do guardião cortou os ares carregados de sal e fincou-se sobre a areia.

Zakkar sentiu as pernas vacilarem, quando os pés do líder do bando acertaram seus

joelhos. Ficara tão concentrado na arma do oponente que não se deu conta do

golpe surpresa. Perdendo o equilíbrio, caiu de cara no chão. Ouviu o som de uma

espada zunindo e, quando achou que perderia a vida diante do mar cristalino de

ondas revoltas, à luz do sol nascente de Cruisand, vislumbrou a lâmina prateada

fincar-se próximo ao seu campo de visão.

— Existe uma maneira de ser indestrutível, mas de forma inteligente.

A voz serena do rapaz da capa vermelha ressoou. Zakkar virou-se para cima,

limpando os grãos de areia impregnando suas roupas e cabelos. Entre os raios

ofuscantes de sol, o jovem guardião vislumbrou uma mão estendida em sua direção.

Os outros dez ladrões se achegaram para o cerne do duelo e Manara estava livre,

fora de perigo e longe da mira de uma adaga.

— Existe uma forma de destruir o Conselho dos Guardiões — falou o líder dos

ladrões, embainhando as duas espadas do confronto, apertando firme a mão de

Zakkar. — Uma forma silenciosa. Uma forma estratégica. Atacar o Conselho em

um dos eventos mais vigiados e guardados de todos os tempos é tolice, é

simplesmente decretar sua sentença de morte. Para ter sua vingança contra os

homens que destruíram sua família e seus sonhos, você necessita implodi-los.

Precisa destruir o Conselho de dentro para fora. Não com magias ou ataques

poderosos, mas usando do mesmo artifício utilizado por eles há centenas de

gerações. É necessário desacreditar cada um daqueles velhos guardiões. Mas, antes,

precisa ganhar a confiança deles. Desafiá-los não é a melhor estratégia. Aceite

minha oferta. Fique comigo e com meu bando em Cruisand e eu o ensinarei. Eu o

ajudarei a conquistar sua vingança.

Zakkar não se movia. Balançou a cabeça, encarando o rapaz no fundo de seus

olhos saltados e serenos. Havia no olhar carregado dele alguma coisa que inspirava

confiança e o fazia querer descobrir, querer aprender a como atingir seu principal

objetivo desde a fuga apressada do palácio em chamas, na fatídica noite em que

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perdera tudo. O desejo irrefreável de obliterar o Conselho dos Guardiões era

comungado com aquele sujeito misterioso e que não aparentava ser tão mais velho

do que ele próprio. Mesmo sem saber se podia acreditar nas palavras dele, algo em

seu íntimo o impelia a segui-lo para absorver todo conhecimento possível.

— Aceito sua oferta.

O rapaz sorriu mais uma vez, transmitindo uma confiança que fez Zakkar sentirse

repentinamente seguro.

— E como devo chamá-lo?

— Zakkar — respondeu o jovem guardião, confiante. — E como eu devo chamar

você?

— De príncipe — proferiu o sujeito, limpando a areia da capa escarlate e

colocando-a sobre os ombros outra vez. — Príncipe dos Ladrões.

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Capítulo Trinta e Cinco

Lógica

A atmosfera ao redor da arena era pulsante. Cada espectador, com os olhos

vidrados no centro do grande palco montado para o primeiro evento do Ano da

Elegibilidade, vibrava e pulava sobre as arquibancadas, flamulando bandeiras com

os brasões dos cinco reinos-guardiões, berrando os nomes de seus guerreiros

favoritos, estourando fogos de artifício e sacudindo incontáveis bilhetes de apostas

de quem seria o grande vencedor do primeiro desafio.

Enfurnada no interior de uma cabine que parecia ter sido preparada às pressas,

Ivyna não conseguia controlar o desejo insaciável de roer cada uma das unhas da

mão. A cada pedaço arrancado, arrependia-se amargamente de ter gastado o tempo

e dedicação das primas em pintar unha por unha com as cores do reino. Imaginava

o quanto elas iriam reclamar depois, quando a vissem com as pontas dos dedos

desfiguradas, cheias de falhas — e com filetes de sangue em algumas delas,

provocado pela ansiedade irrefreável dominando a cabeça da jovem guardiã,

desfigurando os tons de tinta azul e branco fluorescente. Aliás, era outra coisa

bastante incômoda desde a chegada na cidade: por que tudo tinha de ser das cores

do reino? Era bem óbvio que os cinco guardiões presentes nos eventos do Ano da

Elegibilidade tinham suas origens nesses reinos, mas havia tamanha necessidade de

espalhar as cores desses reinos em tudo que viam pela frente? Não podia dar um

passo sequer em Gradia desde que chegou à Casa dos Guardiões, sem vislumbrar

alguma coisa nas cores dos reinos. O quarto em que ficou hospedada brilhava em

azul e branco, com uma infinidade de brasões da Suntuosa Badorian em tudo que

se podia imaginar. Já não aguentava mais ver o Grifo Inquietante estampado em

cada centímetro de seus aposentos. Como se não bastasse, a roupa obrigada a usar

para o primeiro desafio tinha de “refletir as nuances do reino que a enviou”.

Enfiaram-na dentro de um conjunto de calças de algodão azuis, botas altas de couro

de dragão reforçado da Mondrária e amarradas com fivelas, uma camisa de linho

branco que ia até os cotovelos e um colete de seda chispante azul por cima da

camisa — e obviamente, a insígnia do animal-símbolo de seu reino presa no peito.

Eram vestes muito confortáveis e de bastante elasticidade. Ficou por alguns

momentos avaliando que não eram roupas apropriadas para nenhum tipo de

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batalha ou luta corporal. Se o desafio fosse algo envolvendo embates armados ou

mesmo mágicos, as roupas não resistiriam.

Caminhando de um lado para o outro, arrancando mais pedaços de unha e vendo

outro filete de sangue emanar de chofre, Ivyna levou o dedo mindinho à boca e

pressionou os dentes sobre ele. O gesto fazia a dor parar, mas percebeu como era

idiota e sofrível ficar roendo unhas. Não ajudava em nada a mantê-la mais calma.

A qualquer momento, as trombetas soariam e teria de sair da cabine abafada para

encarar seus oponentes, bem como o desafio iminente — pelo menos foi isso que

a orientaram depois de ser obrigada a usar aquela roupa brega e se enfiar sobre a

minúscula cabine. No esforço sofrível que fazia para encontrar alguma paz e

tranquilidade, Ivyna mirou o desconfortável banquinho de madeira posicionado a

um canto e caminhou até lá sem a menor pressa, para sentar e tentar relaxar. Mais

cedo, fora sentada ali que recolheram o necter de sua aura mágica. Uma jovem, toda

de branco e de cabelos escorridos e azulados entrou com alguns frascos de vidro e

explicou o procedimento a ser feito. Era uma formalidade exigida pelo Conselho,

toda vez que um novo Guardião ascendia ao cargo. Embora Ivyna achasse isso uma

tremenda idiotice, afinal, a miscigenação de guardiões, mestres e alquimestres era

uma coisa corriqueira, ela sabia que parte das famílias de Guardiões e até do

Conselho consideravam uma abominação esse tipo de relação. Diziam que

manchava a magia dos guardiões e enfraquecia seu poder. Os próprios Moronov

eram totalmente contrários ao que chamavam de “mistura de raças” e até

influenciavam os Heinhardt e os Borovit a manterem essa tradição imbecil em

nome dessa suposta pureza. Sempre gostou mais dos Lohntrak por esse motivo:

eles nunca ligaram para essas coisas, prova disso eram suas tias e primos que

casaram com mestres, alquimestres, não-mágicos. Ivyna nunca fez objeção a isso e,

se tivesse se apaixonado por alguém que não fosse guardião, lutaria por esse amor

até o fim, embora soubesse que sua mãe não tinha o mesmo pensamento.

— Espero que não tenha comido a própria mão!

Ivyna tomou um susto, quando a figura imponente de Heidlich adentrou a cabine.

Embora achasse brega o negócio da combinação de cores, o irmão mais velho

ficava bastante chamativo trajando os tons de Badorian. Menos cerimonial e

pomposo, ele vinha um tanto despojado em seu gibão azul aberto e calças e botas

de couro. O peitoral e abdômen definidos estavam de fora no visual mais informal

que vira desde sua ascensão ao trono.

— Peitinho de fora, roupa descolada. Você é mesmo o rei da Suntuosa Badorian?

— O próprio, minha Guardiã.

Heidlich girou sobre o próprio eixo e curvou-se, por fim, em uma longa

reverência. Ivyna bateu palmas de forma efusiva e também reverenciou o irmão.

— Pelo visto, você não está nada tranquila... — Heidlich mirou as mãos da irmã

outra vez. — Tem até sangue ao redor das suas unhas.

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— Nem um pouco. — Ivyna sentou-se novamente no banco desconfortável e

esfregou as palmas das mãos. — Essa expectativa vai me fazer começar a roer os

dedos. Estou com medo. Não sei como serão essas provas. E se eu não for bem?

E se eu for a última colocada? E se eu não conseguir concluir o desafio?

Heidlich franziu os lábios e parou ao lado da irmã, cruzando os braços.

— Muitos ‘e se’ em uma mesma frase. Nem começou o evento e você já está

sofrendo por antecipação. Faça o que sabe, demonstre a força e inteligência

apresentada nos nossos treinamentos. Se aceita um conselho, finja que não tem

ninguém nas arquibancadas e dê o seu melhor.

— Não dá para fingir, Heidlich. Há uma multidão gritando e pulando lá fora.

Está sentindo o chão? Ele está tremendo com esse povo batendo os pés. Ouvi dizer

que fizeram até apostas.

— Ah, sim. — Heidlich assentiu. — Eu mesmo apostei no Petr Bravior. Mil e

quinhentas libras badorianas no moleque. Ele tem um potencial incrível. Um poder

quase infinito. Acho que ele vai te dar uma surra inesquecível hoje.

— Seu idiota! — Ivyna deu um soco de punho fechado no braço do irmão. —

Devia ter apostado em mim. Sou sua irmã!

— Prove que é boa e eu posso pensar se você vale meu dinheiro no próximo

evento...

Ivyna deu mais dois socos no irmão e os dois riram juntos.

— Enfim, acho que preciso sair. Logo, logo a trombeta vai soar e você terá de

encarar o desafio. Mas, antes, já fizeram a coleta do necter mágico?

Ivyna franziu o cenho.

— Já. Tem alguns minutos. Por quê? Algum problema?

— Não — respondeu Heidlich, sorrindo pelo canto da boca. — O problema é

ainda fazerem esse teste de pureza mágica.

— Nem fala. Também acho.

— O Conselho diz que nunca se contrapôs em admitir o que eles chamam de

mestiços, mas insistem com essa bobeira. Mas só o fato de chamá-los de mestiços

é uma contradição. Até hoje, jamais se comprovou que a mistura de raças pode

provocar algum tipo de fraqueza no poderio de alguém.

Heidlich ergueu a irmã do banco, deu um beijo em sua testa e segurou as mãos

dela firmemente.

— Eu acredito em você, Ivyna. — Ele a encarou no fundo dos olhos, com uma

expressão de seriedade ocupando seu rosto. — Apostei quatro mil libras badorianas

na sua vitória. Você já viu quanto está o câmbio para o peso gradiano? Pois é.

Então, faça valer a pena... e o meu dinheiro render, claro.

A trombeta ressoou, estremecendo o interior da cabine. Com os brados

retumbantes das multidões de espectadores na arena e os pés batendo forte contra

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o chão, Ivyna se aprumou e caminhou para fora. A hora mais esperada finalmente

chegara. Com os dedos marcados pela fúria de seus dentes, a jovem ruiva se

empertigou. Conferiu se não havia nada de esquisito em sua própria roupa, ajeitou

alguns fios teimosos nos cabelos bem presos num coque tão apertado quanto se

podia e irrompeu pelas cortinas azuis para a luz do dia.

Era fim de tarde e o céu estava tomado por nuvens cinzentas lançando uma

penumbra melancólica sobre a gigantesca arena. O estádio pulsava com as

multidões em polvorosa, aos berros, vestindo as cores dos reinos de seus guardiões

favoritos, lançando fogos de artifício em direção aos céus, fitas de variadas cores e

flamulando bandeiras com grifos, leões, fênix, harpias e corcéis para todos os lados.

Contemplando o ambiente ao redor, Ivyna estava extasiada com vislumbre a sua

frente. As vibrações da imensa torcida eram latentes, reverberando em seu corpo

estacado em um dos extremos. Esqueceu por um breve momento o nervosismo

contumaz que a perturbava dentro da cabine.

Luzes mágicas se acenderam numa sequência pirotécnica eletrizante, iluminando

a arena por completo em um espetáculo de cores à parte, quando um conjunto de

trompetes e outros instrumentos de sopro ressoaram uma bela canção. Os

torcedores abarrotando as arquibancadas foram à loucura, se colocando de pé e

balançando ao som da música animada. Iluminado por um brilho mágico chispante,

Ivyna entreviu o palco do primeiro teste do Ano da Elegibilidade ao seu redor.

Cinco pequenas plataformas douradas se espalhavam, descrevendo um círculo

perfeito sobre o chão de terra batida da arena. Não havia mais nada no cerne do

primeiro evento além das plataformas brilhantes. Ao pé das cabines de cores

marcantes iguais à que estava anteriormente, Ivyna contemplou os demais

guardiões, tão admirados quanto ela com a visão estonteante em volta e trajando

roupas caricatas, semelhantes às suas. Avistou Petr no lado oposto ao seu da arena

circular. O garoto balançava a palma da mão, acenando para ela, com entusiasmo.

Devia estar há algum tempo assim, pela forma como agitava o braço. Ivyna sorriu

para ele e o garoto em um gibão preto fez um segundo sinal, apontando para a

plataforma em que ele já se posicionava. Ivyna mirou o palanque próximo e correu

para se posicionar acima dele.

— Senhoras e senhores!

Uma voz trovejante ribombou na arena, fazendo as multidões emudecerem de

imediato. O som fora tão alto que chegou a estremecer os tímpanos de Ivyna, talvez

retumbando assim propositalmente. Com o dedo nos ouvidos, a garota identificou

de onde a voz potente ressoava. Bem ao norte da imensa arena, uma tribuna de

honra fora montada. Contendo os cinco bandeirões dos reinos-guardiões, ela

conseguiu vislumbrar os principais integrantes do Conselho, todos em pé,

enfileirados, com as mãos para trás e os sorrisos arreganhados em seus rostos

cobertos de rugas e barbas grisalhas. Ao centro, na frente dos demais, estava August

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Moronov. Às vezes, Ivyna esquecia que ele era o porta-voz do Conselho. Ladeado

por Salazar Stanhorne e Hamm Zanotchka, ele era todo sorrisos e gesticulava com

uma energia abissal. Estava elegante, com vestes azuis e grossas peles brancas de

urso ao redor do pescoço, como as de um rei.

— Aos presentes neste evento tão significativo de nossa história recente. Aos

humanos e mágicos, homens e mulheres, elfos, centauros, faunos, anões, duendes.

A todos espalhados ao longo das arquibancadas e que se assentam sobre essa

tribuna. Eu os saúdo nesse dia especial.

Salvas de palmas eclodiram por todo canto. Ivyna bateu palmas tímidas. O

nervosismo regressava outra vez, tentando dominá-la. As pernas queriam vacilar e

tremiam de forma involuntária. No topo da tribuna, Moronov se demorava batendo

as palmas das mãos com efusividade, como se a aclamação pelo início do evento

fosse para ele.

— Chegou o grande momento. O primeiro, dos três eventos do Ano da

Elegibilidade, começa agora. Os cinco guardiões estão posicionados, na expectativa

do teste que lhes será anunciado.

Ivyna contemplou de soslaio os outros oponentes. O guardião de Elstoen roía as

unhas também e, entrementes, não parecia se importar com o que poderia pensar

sobre seu estado de nervos. Os olhos estavam tão arregalados que pareciam querer

saltar das vistas. A ansiedade perturbadora do rapaz era ainda maior do que a sua

e, de repente, Ivyna sentiu um alívio de não ser a única apossada pelo nervosismo.

O guardião de Turmis externava um tédio notório. Batia um dos pés e cruzava e

descruzava os braços. Talvez Petr tinha razão quando disse, no início daquela

manhã, que o rapaz ruivo de Amistelar não parecia de fato querer estar ali. Teria

Salazar o obrigado? Seria livre e espontânea pressão de sua família? O brutamontes

de Aladar socava a palma da mão direita. Comprimia os olhos e sorria de um jeito

nada amigável, alternando os olhares de Petr para o guardião de Elstoen. Parecia

muito confiante. Será que ele queria socar um dos outros quatro ao seu redor? Era

bem provável. Petr permanecia de olhos vidrados na tribuna, sem piscar, agitando

as mãos e pernas, na expectativa de Moronov explicar de uma vez por todas qual

era o raio da tarefa que deveriam realizar.

— Hoje, a Lógica de cada um dos cinco será colocada à prova. Ao ressoar da

trombeta, nossos amados competidores terão de deixar o topo de suas plataformas

e correr para alcançar este magnífico troféu resplandecente.

Uma luz brilhou no centro da arena, tomando todos de surpresa. Uma sexta

plataforma brotou do chão de terra. Brilhando diante dos olhares curiosos dos

espectadores, uma belíssima salva dourada com rubis, diamantes e outras pedras

preciosas engastadas materializou-se magicamente, flutuando e girando a meio

metro de altura. Ivyna se demorou nas figuras entalhadas sobre o troféu. Diferente

do normal, desde sua chegada à Gradia, não eram os animais que representavam os

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reinos. Os símbolos esculpidos se assemelhavam a uma chama ardente, uma gota

de água, curvas sinuosas parecendo representar os ventos e um galho — ou seriam

raízes de uma árvore?

Contemplando o suntuoso prêmio no centro da arena, Ivyna não compreendia.

Sem entender os símbolos dos elementos e seu significado, questionava-se que raios

de prova de lógica era essa. Correr por uma arena até alcançar uma espécie de

mandala brilhante lá no meio? Não era uma prova de inteligência, mas sim de

aptidão física. Quem corresse mais rápido, chegaria primeiro. Se fosse pela idade e

vigor entre os cinco ali, Petr seria o grande campeão dessa prova sem sombra de

dúvidas. Era uma prova de lógica sem lógica alguma.

— Contudo, estejam atentos — prosseguiu Moronov, passada a admiração

momentânea pelo troféu, fazendo a voz rimbombar outra vez, magicamente. —

Nem tudo é o que parece. Não se iludam. Sobre esta salva dourada, muito além de

suas joias preciosas, estão representados cada um dos principais elementos da

natureza. Em condições normais, um guardião tem o poder para manipular os

elementos, mas também conjurá-los do nada e trazê-los à existência. Os elementos

são primordiais para a vida. Primordiais para a harmonia e o equilíbrio. Primordiais

para a serenidade do tempo e a ordem de todas as coisas ao nosso redor. Tudo se

compõe e se sustenta com base nesses elementos básicos: o fogo que arde e brilha,

mas também consome todas as coisas; a água, presente em nossa vida e em nosso

mundo; o ar, que nos garante vida e assopra pelos quatro cantos; a terra, firmando

nossos pés e dando-nos condições de sobreviver. Todavia, ao mesmo tempo que

os elementos se completam, eles também se opõem. A força de um elemento, pode

ser a fraqueza de outro. A força e a destreza são sim de vital importância na

trajetória de um Guardião, porém, o fator mais notório e relevante, que tem o poder

de acabar com guerras, instituir a paz e angariar os louros e as vitórias nesta vida é

a inteligência, a lógica de nossas mentalidades.

Ivyna gravou cada palavra de Moronov. Um discurso tão misterioso,

inesperadamente falando sobre os elementos não podia ser à toa. Colocando-se em

posição e esquecendo a ansiedade, fazendo suas pernas tremularem, ela aguardou

o toque das trombetas.

— Guardiões, estejam prontos! Em nome deste estimado e eterno Conselho, eu

lhes desejo sorte e que o mais perspicaz saia daqui hoje com a vitória.

A trombeta tocou num longo silvo assim que Moronov tomou assento ao lado

de Stanhorne e Zanotchka. As arquibancadas estremeceram outra vez em um

frenesi avassalador. Sobre o coro de vozes histéricas, Ivyna saltou de sua

plataforma, mirando unicamente o brilho dourado do disco engastado de joias bem

no centro da arena. Imitando o gesto da guardiã, os demais ao redor avançaram o

mais rápido que seus corpos tomados pela adrenalina conseguiam.

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Raízes protuberantes como o tronco de um velho pinheiro, emanaram do chão

num assomo inesperado, fazendo Ivyna derrapar em sua corrida desesperada.

Como serpentes gigantes emergindo de águas profundas, as raízes ásperas

brotavam sem cessar, obstruindo o caminho da guardiã em direção ao seu alvo.

Retomando os passos fugazes, a jovem ruiva correu desabalada pelos flancos, no

objetivo de contornar os gigantescos cardos que se convertiam em galhos

inflamados por centenas de folhas verdejantes, como as de ciprestes em plena

primavera.

Arfando sem parar, Ivyna corria o mais rápido que seu corpo aguentava, tentando

desvencilhar-se dos galhos, folhas e raízes em polvorosa brotando magicamente do

chão. Quanto mais forçava as pernas a galgar posições pelo caminho, mais ainda

era impedida pelas plantas mágicas emanando ao redor. Avançando por onde

conseguia, notou pedras cinzentas surgindo e se aglutinando, misturando-se aos

galhos e raízes. Correndo em zigue-zague, perdera o troféu de vista e, tanto à direita

quanto à esquerda, mais pedras e vegetação selvagem brotavam, formando um

verdadeiro paredão sem fim.

Estacou onde estava, de repente. Obviamente, se era um teste de lógica, as coisas

não seriam tão simples assim. Fora um ledo engano acreditar que bastava correr até

a mandala e arrebatá-la primeiro. Notou um certo padrão nos galhos e rochas

tortuosas que não paravam de subir em direção aos céus. Eles seguiam, surgindo e

serpeando pela arena, dobrando à esquerda e à direita, sempre avançando em um

estardalhaço retumbante. Nada daquilo era à toa. As raízes mágicas, folhas de

ciprestes e pedras ásperas não estavam ali unicamente para atrapalhar de alcançarem

a salva de ouro. Pelo padrão com que seguiam, em frente e fazendo curvas em

ângulos retos, sem parar de subir e subir, estava percorrendo a trilha de um labirinto

mágico. A maior pergunta martelando em sua cabeça naquele instante era, que tipo

de teste de lógica haveria de enfrentar dentro de tais corredores tortuosos. O

labirinto por si só não deveria ser o único teste. Embora encontrar um caminho até

o prêmio em um labirinto, fazendo e refazendo caminhos poderia ser uma coisa

desafiadora e demorada, Moronov não citaria os elementos da natureza sem um

propósito.

Ivyna voltou a correr outra vez, seguindo as curvas e caminhos ladeados pelos

paredões de rochas e galhos de ciprestes, avançando sempre alerta, na expectativa

de que qualquer coisa esdrúxula iria aparecer, desafiando seu intelecto. Com o

tamanho das paredes do labirinto, a luz irradiava de uma forma bruxuleante lá

dentro e era difícil observar exatamente por onde seguia, mas os gritos e a agitação

dos espectadores ainda ecoavam de um jeito alucinante além das paredes de mata

selvagem.

Os olhos encararam quatro figuras distintas e reluzentes e a jovem ruiva foi

obrigada a parar mais uma vez. Ofegante, imaginando o quão perto do troféu os

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outros guardiões deveriam estar, ela vislumbrou cada símbolo e os reconheceu de

imediato. Atrás de cada um deles, havia um caminho a seguir. Brilhando num tom

escarlate, a figura de uma chama a crepitar; em um azul cintilante, identificou a gota

de água, a mesma do troféu; o símbolo dos ventos coruscava em nuances

esbranquiçadas; o galho de árvore era marrom chispante.

— Tenho de fazer uma escolha...

Ivyna colocou as mãos nos quadris, tentando raciocinar. O que Moronov havia

dito mesmo? Os elementos da natureza se completam, mas também se opõem. A

força de um pode ser a fraqueza de outro. O que isso queria dizer? Se seguisse pelo

corredor do fogo, teria de encarar o fogo ou usar o fogo contra o que havia além?

Torcendo para ter de usar o fogo contra algum monstro naquele sentido, avançou

pelo corredor da ponta, com o símbolo da chama a brilhar.

O caminho era escuro. O cérebro a mil e o corpo pulsando, os sentidos ficaram

aguçados de imediato no negrume dominante. O barulho ensurdecedor da torcida

desapareceu. Ivyna avançou, diminuindo o passo, aguçando a vista e esperando o

perigo iminente se apresentar. O suor escorria em cascatas por suas costas. Tentou

conjurar uma chama elemental para iluminar o perímetro, mas, estranhamente, não

conseguiu. Sentia a aura mágica fluir pelos dedos, contudo nem uma única faísca

emanava. Das têmporas, as gotas invadiam seus olhos e empapavam a camisa e

colete. Ficava mais irritadiça a cada instante e angustiada. O calor fritava seus

miolos. Não era impressão, estava mais quente do que o habitual ali. Esfregou as

palmas das mãos sobre o rosto e limpou o suor.

Um clarão escarlate surgiu de chofre e Ivyna girou nos calcanhares para encarar

a fonte da luz. Uma imensa e viva labareda de fogo consumia os galhos e folhas de

ciprestes dos muros do labirinto, como uma intensa parede de fogo, bem atrás dela.

Sem pensar duas vezes, fez a primeira coisa que veio à cabeça: correr o mais rápido

que podia. Seguiu desabalada pelo caminho, tendo a luz das chamas como farol ao

longo da trilha.

Não havia um perigo para enfrentar usando o fogo, como desejava. O fogo era o

próprio perigo a encarar. Dobrou à direita e depois à esquerda, com as chamas

mágicas quase a alcançando. Como poderia vencer aquele fogaréu infernal? Forçouse

novamente a usar a magia para conjurar um jato de água, mas, outra vez, seu

poder falhou. O que estava acontecendo? Será que havia algo de errado consigo

mesma? Moronov mencionara algo sobre isso: um guardião tem poder de

manipular e conjurar os elementos, em condições normais. Não estava em uma

condição normal, não conseguia conjurar chamas para iluminar a escuridão e nem

água para deter o fogo. Correndo e sentindo as pernas apresentarem seus primeiros

sintomas de cansaço, forçava a pensar que isso era parte do teste. Mas, se não havia

como usar a magia para fazer água elemental e impedir o fogo de torná-la um

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pedaço de carvão, como impediria as chamas avassaladoras consumindo os

corredores do labirinto logo atrás dela?

As gotas de suor não davam trégua, descendo como cachoeiras. Percorrendo o

trajeto, virando à esquerda e à direita sem rumo certo, sentindo-se cada vez mais

lenta enquanto as chamas não diminuíam sua intensidade e velocidade, Ivyna

passou as duas mãos sobre rosto e contemplou as palmas molhadas com sua

transpiração exacerbada. Uma ideia tresloucada brotou em sua mente, como uma

luz no fim do túnel. Conjurar água podia não ser permitido, afinal, num teste de

lógica, diante de um fogaréu daquela magnitude, qualquer um poderia pensar em

jatos elementais de água para extinguir as chamas. Mas e se usasse o próprio suor a

para apagar o incêndio? Lembrou que aprendera uma magia para usar qualquer

elemento ao seu alcance e fazê-lo aumentar de volume. Seria possível fazer com o

suor? Puxando pela memória a forma como conjurar, agitou os dedos e mãos do

jeito certo — pelo menos era a forma como recordava.

O suor impregnado sobre as mãos em formato de concha tomou forma no

momento em que terminou os movimentos e padrões da mágica. Aninhou-se no

formato de uma esfera e dobrou de volume. Ivyna sorriu, sem parar de correr — e

suar. Quanto mais se lançava pelas curvas tortuosas do labirinto, mais as gotas se

avolumavam e por um instante agradeceu por suar tanto. A poucos metros de ter

as chamas elementais esturricando suas roupas, a jovem ruiva virou-se e arremessou

jato de suor mágico, torcendo para sua ideia maluca funcionar.

Um choque instantâneo entre fogo e água fez as paredes de pedra e galhos

estremecerem. O ruído fragoroso do vapor invadiu os ouvidos de Ivyna e logo, os

olhos da garota vislumbravam o fogo se extinguir, recuando em seu trajeto,

diminuindo de tamanho até finalmente desaparecer.

A jovem ruiva apoiou as mãos sobre os joelhos e pôde finalmente respirar em

paz, sem precisar fugir para manter-se viva. As informações do que acabara de

acontecer iam se encaixando aos poucos em sua mente. Os elementos eram o

perigo e também a forma de escapar. Encarou o fogo usando água, mas sem

conjurar, usando apenas o que tinha nas mãos. Um peso diferente brotou de

repente no bolso direito de sua calça. Sobressaltada, ela enfiou a mão para ver o

que estava ali e puxou um pequeno artefato em forma de fogo. Por que aquilo

estava ali? Haveria de ser um pequeno troféu por ter vencido o primeiro elemento?

Prendeu-o entre os dedos, sorvendo o ar com vontade. Podia, afinal, respirar mais

aliviada. Enfurnou o objeto outra vez dentro do bolso.

— E agora? Para onde devo ir?

Não havia se dado conta, pois continuava descansando da correria urgente pela

vida, mas os olhos começaram a reparar o entorno: não havia caminho a seguir.

Estava num beco sem saída. Tratando-se de um labirinto, certamente não deveria

ser por ali que precisava seguir. Recompondo-se e refazendo o caminho por onde

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o fogo consumira os galhos — somente as pedras permaneciam firmes e fortes

sobre as amuradas do percurso, Ivyna notou que algumas rochas estranhas e

perfeitamente redondas caíram sobre o chão, revelando alguns buracos nas paredes.

Curiosa, aproximou-se de uma delas para espionar. Eram grandes o suficiente para

poder passar por ali. Quem sabe não facilitariam seu caminho até o troféu? Estava

determinada a sair vencedora de pelo menos um dos três eventos do Ano da

Elegibilidade. Gostaria muito que fosse este, uma vez que adorava testes de lógica

e de raciocínio.

Aproximou-se do buraco na parede, ainda receosa de conter algum tipo de

armadilha. Eles não estariam ali por acaso. Abaixou-se para poder espiar melhor e

no momento em que ia enfiar a cabeça para bisbilhotar, um jorro de água como de

uma poderosa cascata molhou seu rosto e invadiu suas narinas, fazendo-a engasgar.

Respirou fundo, recuperando o fôlego interrompido pela água a brotar, notou que

dos demais buracos redondos nas paredes do entorno, fontes de águas surgiam,

cuspindo litros e mais litros sem parar.

Correu para a extremidade por onde havia entrado e ouviu o estrépito dos galhos

e pedras se entrelaçando outra vez. O caminho estava fechado. Acima de sua

cabeça, raízes e outras rochas se amontoavam em um emaranhado só, fechando a

única saída daquele retângulo inundado por torrentes de águas. Estava presa num

caixote mágico, com cascatas fluindo das paredes, inundando o lugar.

O desespero mais uma vez ia tomando seu corpo. Ivyna contemplava as seis

saídas de água inundando o pequeno espaço em rápida velocidade. Enfiou a mão

no bolso outra vez e encarou a ínfima insígnia em formato de labareda. Haveria

forma de evaporar toda aquela água com fogo elemental? Bem, se conseguiria

multiplicar a quantidade de suor até se tornarem jatos que apagaram as chamas,

porque não tentar fazer o mesmo com o amuleto de fogo?

Mal começara a iniciar os movimentos para conjurar as chamas do objeto

recebido, sentiu o chão estremecer de repente. Agitando-se de uma forma

descomunal, Ivyna contemplava os pés encharcados através da lâmina de água

transparente, batendo na altura de seus joelhos. O chão de lajotas da arena

balançava. Sem querer acreditar no que estava diante dos seus olhos, confiando ser

algum tipo de ilusão através do espelho d’água, observou as lajotas desabarem uma

a uma, a começar da extremidade de onde viera.

Outra vez, lançou-se numa corrida alucinada para o extremo onde o chão

permanecia firme. Mirava cada canto do retângulo cercado por galhos e pedras,

sendo inundado pelas torrentes em seis pontos distintos. Escalar as paredes era

inútil, não havia saída pelo alto. Usar o fogo poderia ser uma saída, mas tinha

dúvidas se, mesmo com a magia de multiplicação, toda aquela água abundante seria

evaporada. E se fosse evaporada, para onde escaparia. Havia algo que estava

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deixando passar. Qual era a lógica a seguir? Como sairia com vida de todo esse

aguaceiro?

Duas coisas aconteceram de supetão. O último resquício de terra firme embaixo

de Ivyna desmoronou e ela se viu engolfada pela profundidade da água abaixo de

seus pés. Parecia um poço sem fim. Com os olhos arregalados abaixo da lâmina

d’água, a visão turva não conseguia enxergar muito bem o final daquele abismo

inundado. Nadando para a superfície, quando a água estava a poucos metros de

atingir o teto de galhos e pedras, a jovem guardiã teve uma ideia no mesmo instante

em que os pés não estavam mais firmes sobre o chão. A frase de Moronov, de que

os elementos se completavam e se opunham, ribombava em sua mente. Só havia

um jeito de escapar dali e evaporar o fogo não seria a solução. Somente escaparia

com vida se tivesse ar para respirar.

No ínfimo espaço ainda não inundado entre sua cabeça e o teto, Ivyna encheu os

pulmões e assoprou com toda a força que conseguiu. Movimentando as mãos,

mantendo-se acima da linha da água, repetiu a magia de multiplicação e o oxigênio

circulando no espaço limítrofe converteu-se em uma bolha de ar tão grande que a

envolveu por completo.

Ivyna mergulhou. Não sabia quanto tempo a magia de multiplicação aguentaria,

fornecendo oxigênio para respirar embaixo d’água. Precisava encontrar uma saída

urgente. Nadou para baixo o mais rápido possível, tentando entrevir nas oscilações

provocadas pela água, se havia um caminho para escapar. Agitando braços e pernas,

respirando normalmente através de sua mágica, ela vislumbrou uma luz,

acompanhada de um vórtice agitando as águas em um extremo. Torcendo para

aquilo não ser um mero acaso e sim, uma saída, balançou as pernas e nadou de

braçadas até o lugar.

O turbilhão de ar fazendo as águas se agitarem como num rodamoinho poderoso

apoderou-se do corpo de Ivyna, conduzindo-a por um caminho tortuoso pelas

águas. Deixando-se conduzir, a jovem guardiã grudou os braços sobre o corpo,

percorrendo um trajeto em alta velocidade, temendo que o suprimento de ar mágico

se esgotasse antes de conseguir alcançar o destino, escapando daquela profundidade

inundada. O corpo inclinou-se repentinamente e o vórtice submerso descreveu uma

curva ascendente, iniciando um caminho quase vertical. Prendendo a respiração

para poder economizar o pouco de ar restante, Ivyna fechou os olhos, sentindo o

coração pulular no fundo do peito.

Uma luz muito forte brilhou e o rodamoinho cuspiu Ivyna para terra firme.

Acabrunhada sobre um novo chão de lajotas, vislumbrou o perímetro ao redor,

contemplando outra rede de túneis cercada por paredes de galhos e raízes retorcidas

com rochas calafetando cada centímetro do piso ao teto. Algo pesou no bolso

encharcado, dessa vez o esquerdo. Ofegante, a guardiã retirou de lá uma gota

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azulada, semelhante à insígnia em formato de fogo. Vencera mais um dos

elementos, mas ainda temia pelo que poderia enfrentar no próximo desafio.

O caminho no labirinto era uma incógnita, os desafios a seguir é que exigiam

raciocínio rápido. Embora não tivesse a menor noção de onde estava, Ivyna seguiu

o próprio instinto e escolheu o segundo corredor da esquerda para a direita.

Lançou-se sobre ele, correndo pelas vielas tortuosas ladeadas por galhos e rochas.

Seguiu por caminhos sinuosos, sempre espreitando, olhando por cima dos ombros,

na iminência de encarar o próximo elemento. Se seu entendimento estivesse certo,

o próximo teste seria...

Parando no meio do caminho, notou que as roupas estavam estranhamente secas.

Não havia um pingo d’água sobre elas. Apalpando os cabelos para prendê-los em

um rabo de cavalo, percebeu que eles estavam armados, de um jeito esquisito, como

se uma corrente de vento os tivesse agitado. Só então se deu conta da presença de

um fluxo de ar intenso, mais do que o normal, correndo por ali.

E a correnteza de ar ficou ainda mais forte. E mais forte. Uma ventania veemente

e catastrófica invadiu os ares do corredor, girando como um ciclone abissal. Assim

como o vórtice, a correnteza de ventos tonitruantes seguia um trajeto específico,

arrebatando galhos, pedregulhos menores e folhas de ciprestes em um movimento

giratório em direção ao teto. Segurando-se como podia, Ivyna levantou a cabeça.

As lascas de madeira e pedrinhas arranhavam seu rosto e braços com a força dos

ventos. Lá no alto, lâminas giravam em alta velocidade, decepando e triturando

tudo o que era arrastado para cima.

Arregalando os olhos, a guardiã cravou os dedos sobre um galho protuberante

enquanto sentia o corpo se desprender do chão. Como escaparia da força do ciclone

de ar e de ser triturada pelas lâminas lá no alto? Como faria para manter os pés

firmes sobre o chão?

O ruído de “crec” estalou a um canto e Ivyna viu-se arrastada pela força dos

ventos em ciclone. O galho em que se segurava rompeu-se, mas seus dedos

continuavam firmes sobre as lascas de madeira áspera. O corpo era agitado

involuntariamente, rodopiando no fluxo contínuo de ar em alta velocidade, batendo

sobre as paredes de ambos os lados. Vislumbrou as lâminas a poucos centímetros

de fatiar seus pés e pernas na coluna de vento, então usou sua magia sobre o pedaço

de galho firme em seus dedos.

Raízes brotaram do pedaço de madeira como cordas tensionadas, lançadas em

direção ao chão. As raízes criaram mais raízes e que geraram outras raízes e foram

fincando com estrépito sobre as lajotas do corredor do labirinto. Ivyna estava firme,

mesmo com a ventania fazendo-a colidir com os quadris contra os muros. Quebrou

um pedacinho do galho e dele fez brotar mais ramificações que se arraigaram às

pedras das paredes e também ao chão. Estava envolvida numa ampla teia mágica

de madeira, deixando-a firme.

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Agarrando-se às raízes esticadas, Ivyna desceu, galgando posições até o chão. O

barulho ensurdecedor das lâminas girantes no teto tornava-se um cicio quase

imperceptível à medida que se lançava em direção ao chão. Firmando-se entre

galhos e raízes tensionadas, a guardiã conseguiu escapar do corredor de vento

mortal e dobrar à direita.

Os braços latejavam de dor quando ela percebeu, finalmente, estar livre do perigo.

Deitou sobre o chão, contemplando fogos de artifício nos céus, além do

emaranhado de galhos lá no topo. Será que um dos outros quatro guardiões

conseguira encontrar o troféu? Se sim, por que ainda estava ali? O teste só

terminaria se todos chegassem ao destino. Exausta, marcada por vários cortes

provocados por pedras, galhos e arbustos, com os cabelos desgrenhados e sentindo

um forte cheiro de queimado em algum lugar da roupa, Ivyna só queria que tudo

aquilo acabasse logo. A determinação de antes ia esfriando e não tinha tanta certeza

se queria ganhar esse evento. De repente, os dois próximos seriam mais tranquilos.

A jovem ruiva sentou-se e abraçou os joelhos. As articulações estralaram e a

coluna doeu. Um dos bolsos estava mais pesado do que antes. Ela enfiou a mão e

puxou outro objeto reluzente. Branco, possuía linhas sinuosas como as de correntes

de vento. Indicava que conseguira vencer mais um elemento da natureza. Contava

mentalmente quais deles ainda precisava enfrentar e se chegaria na salva dourada

antes de precisar passar por tudo isso. Ou seria obrigada a encarar um por um até

que conseguisse chegar ao troféu?

O corpo foi ficando molenga. Ia aos poucos entregando-se ao cansaço, embora

soubesse que ainda tinha mais vielas a percorrer até chegar ao centro da arena.

Precisava encontrar uma boa estratégia para poder identificar para que lado estava

o troféu. O desafio da água a fizera perder completamente a noção do caminho.

Mas era difícil conseguir se levantar, com as pernas ficando mais relaxadas e o chão

se tornando tão fofo e macio.

Fofo e macio?

Ivyna sobressaltou-se e pulou de imediato. Não era ela que estava ficando

molenga, era o chão se dissolvendo. Como areia movediça, as lajotas pareciam

derreter e se aglomerar umas nas outras, fazendo a jovem escorregar lentamente

para baixo, sendo engolida em passo de tartaruga pelo chão.

— Terra! Era óbvio — berrou Ivyna, vendo os pés ficarem soterrados pelas

lajotas movediças. — Eu usei galhos e raízes para me segurar ao chão e escapar do

vento. Agora o chão vai me devorar.

Ivyna fez uma força descomunal para erguer as pernas, mas era humanamente

impossível. Não conseguia mover os pés e vislumbrava o chão avançar em direção

aos joelhos. Precisava ser rápida. Como venceria a terra? Qual elemento seria capaz

de fazê-la soltar dali? Olhou tudo ao redor e percebeu um galho protuberante

saindo da parede. Esticou a mão para pegá-lo, mas no instante em que os dedos

479


tocaram a madeira, ele se dissolveu como areia de praia. Encarando o entorno,

reparou não haver mais nada que pudesse ajudá-la a escapar.

A mão alcançou o bolso. Uma ideia maluca, mas que poderia funcionar, brotou

em sua mente. Com a mão direita, encarou a figura azulada parecendo uma gota de

água e com a mão esquerda, agarrou o objeto imitando o vento a soprar.

— Espero que vocês não sejam apenas figuras inanimadas de mérito por cada

elemento vencido. A hora de me ajudar é essa.

A aura mágica irradiou de cada uma das mãos e as insígnias estremeceram. O

chão movediço havia alcançado os quadris da jovem Heinhardt e ela não parava de

escorregar. Uma ventania se formou e encontrou um poderoso jato de água

elemental a jorrar da insígnia. Aumentando sua magia ao máximo, tanto quanto

seus esforços e vigor conseguiam, Ivyna viu a junção de água e vento ao extremo

formarem irrisórios flocos de neve. Sem interromper seu poder, berrando com a

intensidade da magia, uma avalanche esbranquiçada surgiu. Como estalactites de

uma montanha congelada, ela direcionou seu poder para as lajotas movediças,

transformando o chão e as paredes ao redor em gelo.

Assoprando baforadas enregelantes, Ivyna fechou os olhos. Abriu-os em seguida,

vislumbrando a brancura avassaladora do perímetro. Absolutamente tudo estava

congelado e ela permanecia estática, não escorregava mais. Galhos, pedras, lajotas,

tudo era o mais puro gelo.

— Ok. Beleza — proferiu Ivyna; os lábios tremulavam sem querer e o cérebro

estava cansado de pensar e agir com tamanha rapidez para poder sobreviver. —

Agora, como eu saio daqui?

No bolso da calça, ouviu um tilintar baixinho. Seguindo a lógica, outra insígnia.

Mas um dos lados já não pesava tanto. Imaginou que, por ter usado o do vento e

da água para fazer gelo, perdera ambos. Pelas contas, ainda possuía o de fogo e,

provavelmente, o da terra. Mas uma coisa não estava resolvida: como sairia dali?

Lembrou da chama reluzente e haveria algo melhor que o fogo para derreter gelo?

Mas, por alguns instantes, pensou que faltava um elemento a encarar, justamente o

utilizado para escapar da terra. E estava fácil de mais para seu gosto. O gelo não

surgira do nada, ela mesma utilizara para escapar do desafio da terra movediça.

Que outra forma havia para escapar do gelo?

Presa pela cintura, forçou os dois braços contra os blocos congelados, tentando

desprender-se da camada enregelante prendendo-a. Percebeu que onde sua mão

encostara, uma pequena rachadura havia se formado.

Ivyna abriu um largo sorriso.

A jovem guardiã cerrou os punhos. Com o máximo de força restante, bateu

contra o gelo. A rachadura dobrou de tamanho no mesmo instante. Ivyna golpeou

novamente e mais uma vez. Começou a socar o gelo freneticamente, com as

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energias que ainda possuía. Outras rachaduras surgiram. Estalos estrepitosos

ressoaram e a imensa camada congelada cedeu.

Ivyna se viu despencando de um precipício de gelo. Caiu sentada sobre uma

grossa camada congelada e escorregadia e o corpo deslizou por uma espécie de

escorregador de neve. Dando piruetas e rolando pela superfície enregelante, a

guardiã não distinguia muito bem por onde seguia, a única coisa que sabia era estar

seguindo por um declive vertiginoso, rolando e escorregando ladeira abaixo.

O chão ficou plano outra vez. A garota rolou algumas vezes até colidir contra

uma parede. A cabeça girava sem parar e cravou as duas mãos sobre o chão para

ver se a sensação perturbadora passava. Sobre os dedos ainda marcados por galhos

e pedras, apalpou uma camada fofa e macia de gelo. A superfície embaixo dela era

igualmente mole e friorenta.

Ainda gelo?

Abriu os olhos e contemplou o lugar em que finalmente havia parado. Ficou

alguns segundos tentando compreender se aquele lugar era real ou mais uma

armadilha do evento. Vislumbrava uma grandiosa caverna congelada. O chão estava

forrado por um tapete de neve branquinha. No centro da caverna, o troféu cintilava.

Reluzindo em ouro polido, a salva dourada se apresentava com sua destacada

imponência, entretanto, dentro de uma redoma de gelo.

— Você está bem?

Ivyna balançou a cabeça. Ainda atordoada, tentou entrever quem era a pessoa a

lhe fazer a pergunta. A pele morena com variados ferimentos — certamente

oriundos do labirinto, usando vestes verdes, com um corcel alado tremeluzindo no

peito e os cabelos negros bastante bagunçados, ele olhava com curiosa atenção para

ela.

— Ivyna, não é?

— E você é Rudi. Dos Wullith. Acertei?

— Sim.

— Você chegou primeiro ou junto comigo? — questionou Ivyna; a visão

voltando a focar o ambiente ao redor.

— Primeiro — falou Rudi, acanhado. — Vi você rolar por ali e bater contra essa

parede. Sinceramente, pela pancada, achei que ia... quebrar a cabeça.

— Ah, sim. — Ivyna contemplou uma espécie de tobogã congelado, apontado

pelo guardião. — Quebrei bastante a cabeça no labirinto, não ia ser uma parede de

gelo que ia abrir meu crânio. Mas, enfim, você ganhou, certo? Chegou primeiro ao

troféu...

— Infelizmente, não. Ele está preso dentro do gelo. E eu gastei minha insígnia

de fogo, me descongelando no corredor antes daqui. Estou tentando descobrir

como descongelar essa parede. Mas só me sobrou a terra, nem o gelo tenho mais.

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Conjurei estacas congeladas, mas não funcionaram. Essa redoma protegendo a

salva é muito resistente...

Ivyna colocou-se de pé.

— Você disse que usou o fogo para se descongelar... Por que precisou usar o

gelo?

— Para escapar da terra movediça. Sabe, o chão começou a...

— Ceder sobre seus pés... — sibilou Ivyna.

— Isso — falou Rudi. — Qual sequência você seguiu?

— Fogo, água, ar, terra e gelo — falou Ivyna, esfregando o cocuruto ainda

latejando.

— Eu também — disse Rudi, coçando a cabeça. — Mas você usou sua insígnia

de fogo para se descongelar, não é? O que não entendo é a salva estar congelada.

Isso não faz sentido.

— Não, Rudi — falou Ivyna, apontando para outro escorregador, idêntico ao

que ela descera, no lado oposto da caverna. — O gelo foi conjurado por nós

mesmos e não um desafio gerado pelo labirinto.

Rudi ficou absorto.

— É claro — crocitou o guardião, batendo na própria testa. — Por que não me

dei conta disso? Mas se você quebrou o gelo e seguiu os mesmos passos que eu,

você ainda tem...

— Sim — disse Ivyna, sorridente.

Agarrando a insígnia em formato de chama, Ivyna conjurou uma labareda que

irradiou pelos quatro cantos da caverna. Soltando sua magia contra a redoma, viu

o gelo protegendo a salva dourada se converter em água, derretendo no mesmo

instante.

— Venha! — Ivyna deu a mão para Rudi, que seguiu a guardiã.

Tocando os dedos sobre o troféu, Ivyna ouviu uma explosão de fogos de artifício

eclodir de forma ensurdecedora. A voz empolgada de Moronov invadiu a arena e

os gritos das multidões nas arquibancadas ao redor ressoaram, declarando a

Guardiã de Eurodian como a vencedora do primeiro evento do Ano da

Elegibilidade.

Sob o coro alucinante dos espectadores aclamando Ivyna como a grande campeã

do teste de Lógica, Heidlich caminhava a passos largos e pressurosos. Obstinado,

rumava para a tenda dos testes de pureza mágica. Não podia deixar ninguém

descobrir o que estava indo fazer. Numa busca rápida e silenciosa, aproveitando o

frenesi de todos no exterior pelo término da primeira competição, vasculhou entre

os frascos e identificou o necter com o nome de sua irmã.

Com o polegar e o indicador, puxou do interior das vestes outro frasco de vidro,

idêntico ao que repousava sobre o armário com o nome de Ivyna. Trocou as

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etiquetas e arquivou cada necter para ficar exatamente da mesma forma como os

encontrou. Ainda era inacreditável para ele ter de correr tamanho risco, fazendo

uma loucura como essa, sem precedentes, mas amava sua irmã mais do que tudo e

acreditava em seu poder e potencial. Contudo, era perturbador ter descoberto que

Ivyna era meio-guardiã, fruto de uma traição de sua mãe.

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Capítulo Trinta e Seis

Liberdade Cerceada

O brilho esplendoroso da lua cheia irradiava suas nuances leitosas contrastando

com a imensidão negra do céu, pontilhado de estrelas. Diferente da noite anterior,

não havia nuvens carregadas se amontoando, prestes a precipitar torrentes de

aguaceiro sobre a terra. A noite, assim como o dia, estava quente e úmida, abafada

o suficiente para fazer Alezeia sentir-se sufocada e igualmente ansiosa onde estava,

na expectativa por respostas que pareciam nunca vir. Nunca, em toda a sua vida, o

tempo passara tão devagar quanto naqueles dias.

Com a cabeça encostada contra a parede de pedra fria e abraçada aos joelhos, a

sacramentadora contemplava os tons melancólicos e esbranquiçados da luz do luar

por entre as grades do topo do calabouço execrável em que fora jogada. Ainda era

difícil de acreditar que tudo aquilo era real. Encarcerada, na masmorra mais distante

e esquecida do Oráculo do Tempo, acusada de alta traição. Nas noites em que

conseguiu pegar no sono, movida pela exaustão a afligir seu corpo, depois de passar

dias inteiros refletindo, deitada no chão de pedra fria e coberta de musgo, pesadelos

tenebrosos enchiam sua cabeça. Quando acordava, os olhos vislumbravam as

paredes reforçadas de pedra fria e a triste realidade abatendo sobre ela de que, sim,

estava vivenciando esses momentos angustiantes. Nada era fruto de sua

imaginação. Não eram delírios de sua cabeça. Atordoada, Alezeia tentava puxar pela

memória como foi que tudo isto aconteceu.

O questionamento de Sisno Sannfrye enquanto a conduzia ao longo da valsa no

Baile do governador de Cruisand ainda ribombava no fundo de sua mente, quando

Alezeia pôs os pés em Purysia. Era uma interrogação incisiva, uma pergunta que a

colocava em rota de colisão com o Primeiro-líder da Ordem dos Sacramentadores.

Por tudo que mais amava, pelo juramento à sacramentação ao qual decidiu, um dia,

dedicar a própria vida, e também pelo respeito e carinho devotado ao amigo de

longa data, Arturo Menfesis, ela não tinha respostas para aquela indagação. Mesmo

discordando veementemente das inúmeras ações infundadas do Supremo-

Chanceler de Purysia, ela jamais ousaria cometer tamanha atrocidade em relação à

sua posição na Ordem. Conhecia as legislações e para boa parte delas contribuíra

ao longo dos ciclos, fosse escrevendo ou revisando-as, e tinha pleno conhecimento

484


de que atentar para depor Arturo, sem haver acusação fundamentada, era cometer

uma traição sem precedentes. Era uma heresia execrável, como deturpar o caminho

sagrado de um sacramentador. Na noite do baile, ela sabia que deixara Sisno

frustrado, sem respostas. Não tomaria lados e, mesmo insistindo em tentar

convencer o antigo líder de Hegemonia, sabia como ele era obstinado e não

desistiria do plano traçado, com o apoio em peso dos ex-Octaedros, em uma

jornada insólita, permeada por incertezas, na tentativa de trazer à tona um elfo que

maculou a honra da Ordem, nos dias mais obscuros vividos por eles, depois da

grande Era das Trevas.

Sobre Adryan, Alezeia sentia calafrios só de pensar. Poucas coisas faziam-na

sentir um temor real e uma dessas era a menção ao nome do antigo líder dos

Sacramentadores. Embora concordasse quanto a Varnor ter sido um dos mais

brilhantes sacramentadores a ocupar a mais alta cadeira na ilha, angariando para si

a confiança dos maiores clãs de elfos e também o respeito dos guardiões, o

sacrilégio por ele cometido quase dividiu a Ordem e trouxe o desatino de sufocar

as responsabilidades dos sacramentadores dentro das Leis Primazes. Ainda assim,

Alezeia tinha consciência em seu íntimo, perdurava a certeza de que Menfesis se

tornara poderoso de mais, assim como Sisno afirmava, tendo os exércitos do

Protetorado de Purysia ao seu lado, fruto de uma relação antiga e fortalecida com

o rei de Corínio, dispostos a matar ou morrer por ele, além de influentes famílias

de Vaelfar, ainda sustentando apoio à sua liderança. O único que de fato poderia

enfrentá-lo, arrogando para si todo suporte necessário, com a notória influência de

Sannfrye junto às pessoas certas, mesmo depois de cometido tamanho pecado

contra a pureza do tempo, seria Adryan Varnor.

Irrompeu as portas do Oráculo de Purysia, atormentada pelos pensamentos das

possíveis consequências à Ordem, e deparou-se com um cenário esdrúxulo diante

de seus olhos. Ao pé das escadarias principais do castelo, Menfesis a encarava.

Empertigado, o queixo enrijecido e o nariz empinado, se apresentava dentro de um

longo sobretudo marfim. Segurava as mãos atrás das costas e, embora a expressão

em seu rosto denotasse um tom soturno, os olhos comprimidos demonstravam um

ar de desaprovação. Malas e bolsas de couro se empilhavam no chão de forma

organizada. Mas, ao redor do elfo, uma comitiva expressiva de soldados do

Protetorado empunhava espadas e lanças, mirando Alezeia assim como seu líder,

sem manifestar um pingo de sentimento ou respeito. No entorno, arcanos e

sacramentadores observavam a entrada do palácio com um terror descomedido em

suas faces.

— Bom dia, Ada — proferiu Menfesis e sua voz ecoou pelo saguão,

interrompendo o silêncio mortificante do lugar. Assim como a expressão insípida

de seu rosto, não havia qualquer emoção em sua fala.

485


— O que está acontecendo, Menfesis? — perguntou Alezeia, atarantada, mirando

os soldados e a bagagem ao redor. Notou os sacramentadores e arcanos da ilha se

contraindo, enfiando-se pelos corredores e escondendo-se atrás das portas do

entorno.

— Se, em sua indagação, há curiosa expectativa quanto ao que está diante de seus

olhos, informo que estou incursionando de Purysia rumo a uma viagem importante

neste exato momento.

— Para onde vais, Arturo?

— Não é de interesse público o que hei de fazer — disse Menfesis, impassível.

— Somente é de interesse informar-lhe o que acabei de proferir. Estou partindo,

não ouso por presunção externar a data de meu regresso.

— Menfesis, pela prerrogativa de minha autoridade dentro desta Ordem, afirmo

que intimo sua mercê a me informar o que está acontecendo! — vociferou Alezeia,

o esgotamento mental refletido em sua voz alterada. — Não escondo em minha

inteireza de espírito o quanto sua soberba alcança o vitupério e arranha meu âmago.

Esvaziei-me das vestes de arcana há eras, Arturo. Exijo, pelas virtudes eternas da

sacramentação, como Segunda-líder da Ordem e Superiora Chanceler, que me digas

o que pretendes fazer!

Arturo não moveu um músculo da face. Encarava Alezeia com a mesma altivez

de antes.

— Não tendes por privilégio poder algum a mais dentro desta Ordem, Ada

Alezeia Turim. Os poderes que um dia lhe pertenceram e tuas responsabilidades no

cerne de nossa religião foram revogados no instante em que foste conivente com

uma alta traição em relação à minha abnegada posição neste Oráculo. Apunhalado

por meu antigo maedor, Sisno Sannfrye, na intenção de outorgar outra vez o poder

àquele que um dia trouxe trevas e caos para nossa fé, teus pés não se empenharam

em apressar-se a me informar o que estava na iminência de se suceder. Agora,

retornas à ilha como se nada estivesse acontecendo, ousando questionar minha

autoridade quanto ao que tange às minhas decisões?

Alezeia arregalou os olhos. As palavras de Menfesis a atingiram como adagas

afiadas encravando em seu peito. Como ele poderia saber o que havia acontecido

em Cruisand? Ainda mais de uma conversa tão íntima com Sisno, durante uma

dança. A sacramentadora sentiu os olhares dos elfos ficando cada vez maiores e

mais arregalados em sua direção e as expressões hostis dos protetores, encarandoa

como se fosse uma criminosa.

— O silêncio que perdura neste recinto somente corrobora para o que me foi

apresentado — continuou Menfesis, diante da reação de Alezeia. — Eu a acuso,

Alezeia, de alta traição contra a Ordem. Pelos poderes a mim investidos, declaro

tua sentença na presença desta tão grande nuvem de testemunhas: seus poderes de

Segunda-líder e Superiora Chanceler estão revogados e venho anuir com a sentença

486


de seu encarceramento, até meu retorno a este templo, quando hei de decidir o

destino de sua vida.

— Arturo, você não pode...

Como uma cobra deslizando por detrás de Menfesis, Klaus Trishnann surgiu. A

expressão em seu rosto era diabólica, como se regozijasse com o que estava

acontecendo no hall de entrada. Trajando vestes douradas como as que o Primeirolíder

usava no dia a dia, o jovem sacramentador postou-se ao lado de Arturo, sem

deixar de encarar Alezeia um minuto sequer, com as sobrancelhas arqueadas e um

sorriso de deleite demoníaco nos lábios.

— Ao conhecimento de todos, torno por decreto verbalizado neste local que o

nobre e altruísta Klaus Trishnann, única figura a não hesitar em alertar-me sobre o

ocorrido tão logo tomou ciência, está nomeado como o mais novo Segundo-líder

da Ordem dos Sacramentadores e Superior-Chanceler do Oráculo do Tempo. Nos

dias de minha ausência, ele também estará incumbido das minhas atribuições

interinamente, até meu regresso para poder consagrá-lo em definitivo ao novo

cargo que ocupa, oficialmente.

Menfesis virou-se sem hesitar e caminhou, em passos lentos, rumo à saída.

— Arturo! — chamou Alezeia, aflita. Menfesis sequer moveu o pescoço. Seguiu

caminhando, com uma comitiva em seu encalço, carregando malas e bolsas.

— Não ouses incomodá-lo, Alezeia — vociferou Klaus, arreganhando os dentes

— És uma traidora da sacramentação. Um embaraço sem precedentes para esta

eterna instituição.

Alezeia avançou em direção a Trishnann, que logo se escondeu atrás dos guardas.

— Encerrem no cárcere esta desvairada — crocitou o novo líder da Ordem, com

a voz esganiçada. — Prendam-na sob a acusação de traição e insubordinação.

Conduzida pelos soldados, Alezeia seguiu rumo às masmorras, sob uma mescla

de olhares temerosos e inquisidores dos arcanos e sacramentadores residentes na

ilha e a expressão satisfeita no rosto arrogante de Klaus Trishnann. Ao longo do

caminho, manietada pelos guardas do Protetorado, conjecturava sobre como o

enxerido sacramentador havia descoberto a respeito da conversa com Sisno, se

somente ela e o elfo sabiam das informações. Não acreditava numa traição de

Sannfrye. Pela índole do antigo sacramentador, ele jamais faria tal coisa, mesmo

dominado pelo temor da informação chegar aos ouvidos de Arturo.

Passou dias enfurnada na cela mais úmida e desprezível do calabouço mais

pútrido do castelo, pensando sobre o assunto, encucada se Trishnann teria poderes

escusos para descobrir tais coisas. Até uma manhã de sol escaldante, em que achou

que morreria de desidratação e sufocada pelo calor, um rosto perene e turquesa

surgir por entre as grades da cela na direção das Águas de Argúrius. Como num

passe de mágica simples, suas inúmeras cogitações fizeram sentido de repente.

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— Que fazes por aqui? — questionou Alezeia, observando a face serena de uma

ninfa das águas. As filhas das águas costumavam passear pela orla de Purysia.

Muitas delas deslizavam pelas torres altas em dias chuvosos e de altas marés.

— Passeando pelos mares, entre ondas e corais, percebi que há vida onde não se

via mais. Presa nesta masmorra, posso sentir sua dor. Haveria algo a fazer, para que

venham em seu favor?

— Há sim, minha querida ninfa. Peço que encontres o nobre rei Argus Norhein

e entoe para ele sobre minha liberdade cerceada e que estou encerrada nas grades

do calabouço da décima torre ao nordeste da ilha. Clame que venha em meu

socorro na calada da noite, na virada do turno do protetorado.

Sem dizer mais nada, a ninfa assentiu. Sorrindo de modo afável, retornou às águas

revoltas dos mares. Alezeia a viu partir pelas marés, tornando-se uma com as águas

salgadas de Argúrius, rumo ao destinatário da mensagem.

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Capítulo Trinta e Sete

Mestre e Aprendiz

— Ei, Cob, fala sério, por que chamam ele de Príncipe?

O olhar compenetrado de Zakkar não se desviava, nem por um segundo, da figura

enigmática do príncipe dos ladrões, parado na única abertura para o mundo do lado

de fora daquela torre abandonada. Deitado em uma das muitas redes de um

emaranhado confuso de lençóis e rendas usados como camas para dormir pela

gangue do príncipe, o jovem guardião se balançava preguiçosamente, quase

encostando em Cob, um dos integrantes do bando de trombadinhas, conhecido

por ser o mais falador. Havia mais de uma semana, decidira se unir ao grupo de

ladrões, quando fora interpelado pelo misterioso rapaz a desafiá-lo para um duelo

de cavalheiros na praia, mas que sequer revelou seu verdadeiro nome. Questionava

a si próprio se fizera a escolha certa. Confiar em um sujeito enigmático, denotando

ser poucos ciclos mais velho que a maioria e fazendo uma promessa de ensiná-lo a

destruir o Conselho, “de dentro para fora” seria realmente uma decisão acertada?

Mas havia algo nele, no cara de cabelos selvagens, capa escarlate e aparência

misteriosa de alguém conhecedor de segredos escabrosos que o fazia querer ficar

ali. Algo o impelia a estar em meio àquele bando improvável de ladrões de rua para

descobrir o que precisava fazer para ter sua vingança pessoal.

Eram altas horas da noite. Adentravam o coração da alta madrugada,

possivelmente. Ali dentro, era difícil saber dizer qual era a hora do dia ou da noite.

Mas o centro de Cruisand não parava. A cidade mágica parecia não querer se render

ao sono. Não era possível ver muita coisa, da torre abandonada em que

repousavam. Aquele era o dormitório dos ladrões. Havia uma escala estabelecida

para quem faria a guarda. Contudo, os luzeiros intensos da cidade coruscavam pelas

frestas dos tapumes sobre as janelas e pelos buracos nos rebocos das paredes. O

turno esta noite era do próprio príncipe, ou qualquer que fosse seu nome.

Empertigado sobre um buraco estratégico na parte mais alta do edifício

malcuidado, ele observava cada ponto das ruas e vielas no exterior.

Embora fosse tarde e os roncos ensurdecedores ribombassem pelo interior da

torre, Zakkar não estava com o menor sono. Diferente do dia anterior, em que

tivera de ajudar a descarregar fardos de algodão de um navio e levar para a entrada

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do palacete do governador e de dois dias antes quando, a mando do príncipe, fora

obrigado a recuperar uma carga roubada nos limiares da região central de Cruisand

— e encarar outra gangue de pivetes infernizando os territórios por lá sem muita

dificuldade, nesta noite, a mente fervilhava com um cordel infindável de

questionamentos e mirabolantes planos sobre mil e uma maneiras diferentes de

destruir a vida dos conselheiros em Gradia e, especialmente, dos principais algozes

de sua família.

— Cob, estou falando com você!

Zakkar tomou um impulso na rede e cutucou o esgalgado Cob com o dedão do

pé. A unha gigantesca, como a garra afiada de um gavião espetou a perna do garoto

do bando, despertando-o num susto. Arregalou os olhos e esquadrinhou o negrume

da torre ao redor. Vislumbrou os outros amigos dormindo no emaranhado de redes

e o rosto encucado do guardião bem próximo do seu.

— Acorda, animal. Estou te fazendo uma pergunta. Por que chamam ele de

príncipe?

Cob esfregou os olhos e fez um muxoxo. Esquadrinhando o interior da torre,

percebeu que Zakkar apontava com a cabeça para a janela do topo da torre.

— Sério mesmo, Zakkar? Você me acordou para isso?

— Sei que você é um dos mais antigos nessa gangue. E, pelo que me contaram,

o mais fofoqueiro. Deve conhecê-lo há mais tempo que todos os outros.

— Essa sua informação de mais fofoqueiro está equivocada. Mas, sim, talvez eu

conheça há mais tempo que o resto. Mas por que quer saber?

Zakkar deu de ombros.

— Não consigo dormir. Essa curiosidade está me matando.

— Você não consegue dormir e resolver me acordar? — respondeu Cob,

revirando os olhos. — Você sabe como foi dureza cobrar o dinheiro hoje lá no

cais? Aquele velho maldito do Rebber sempre dá um jeito de me enrolar e...

— Cob, Cob. — Zakkar cutucou o garoto com o pé outra vez. — Foca na minha

pergunta.

Cob encarou a escuridão do teto assolado da torre e encarou o guardião.

— Ninguém sabe ao certo. A história mais antiga, e que me parece a mais verídica

até o momento, é que ele era o filho do filho de um importante rei de Eurodian.

Um dia, o Conselho dos Guardiões simplesmente decidiu que sua família precisava

ser destruída. Seu pai conseguiu fugir da emboscada, obviamente, mas ficou louco.

Passou a viver como um mendigo, refugiado nas ruas de Cruisand, mas ele como

era criança, pequeno e magricela, aprendeu a se virar nas vielas e becos dessa cidade.

A partir daí, passou a ajudar outras crianças iguais a ele até, bem... até virarmos essa

irmandade de ladrões, tentando descansar um pouco depois de um dia atribulado.

Entendeu, saracura?

490


Zakkar balançava a cabeça. Observou novamente a figura do príncipe e sua

sombra em pé, estacada no topo da torre, de vigilância constante.

— Mas olha só — prosseguiu Cob, com o dedo em riste. — Nem ouse perguntar

nada para ele sobre seu passado. Tudo sobre ele é envolvido em muito mistério. A

gente tá aqui no bem-bom por causa dele. Se a gente hoje tem um teto sobre as

nossas cabeças, mesmo que caindo aos pedaços e descola um dinheiro maneiro

nessas ruas, é por causa dele. Ah, nem pense em contar a ele que eu te falei essa

história. Agora, vê se me deixa dormir. Amanhã tem mais cobrança pra fazer. —

Cob virou-se sobre a rede e cobriu o rosto com um lençol velho.

O jovem guardião cruzou os dedos atrás da cabeça e desfrutou do silêncio do

interior da torre interrompido pelo matraqueamento de roncos nas outras redes e

pelas várias vozes escandalosas retumbantes no lado de fora. Perdeu-se em

devaneios por alguns momentos, divagando a respeito do que ouvira. Se era

verdade, suas histórias comungavam de um jeito inesperado. Se ele fora realmente

um príncipe e perdera a família por obra do Conselho, havia nele o mesmo desejo

que habitava seu íntimo. A vontade irrefreável de obliterar essa organização

demoníaca alimentava ainda mais o ódio crescente emanando em seu peito. O

Conselho era uma força implacável, soturna, estabelecida para garantir uma

harmonia entre os poderes que na verdade era uma utopia delirante. Eram um

reduto sombrio de homens malignos, detentores de um poder imerecido. Um

poder que utilizavam para o mal, decidindo sobre vidas inocentes, estabelecendo

juízos sobre quem merecia morrer e quem merecia viver. Essa ufania tinha de

terminar. O Conselho dos Guardiões tinha de ser impedido imediatamente.

Zakkar se colocou de pé sobre a rede. O sono não viria de qualquer forma, muito

menos naquele momento, sabendo de tantas coisas sobre o príncipe, mesmo que

nada daquilo fosse verdade. Pulou para as escadarias tortuosas de pedra gasta.

Estava decidido a bater um papo com o príncipe dos ladrões naquela noite.

Os degraus de cimento batido, além de desgastados pela ação do tempo, do que

antes supostamente fora um hotel dentro da torre velha e caindo aos pedaços,

estavam recheados de diversas armadilhas. Aprendera isso da pior forma logo no

primeiro dia, quando pisou em falso e quase quebrou a perna em um dos muitos

buracos ao longo da escadaria. Depois disto, passou a prestar mais atenção onde

pisava. Seguiu avançando de dois em dois degraus, arregalando os olhos na

escuridão para se certificar de que não iria enfiar o pé onde não devia. Seu alvo

estava no ponto mais alto, numa abertura retangular onde a luz do mundo exterior

era mais intensa.

Observou os inúmeros lençóis se cruzando por toda a extensão da torre, do chão

ao teto. Os integrantes do bando do príncipe de variadas partes de Cruisand

voltavam todas as noites, depois de labutarem de variadas formas pela cidade, e

encontravam abrigo ali. Não tinha sequer tanta certeza se conhecia todos os

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“hóspedes” de seu esdrúxulo hotel formado por uma teia de redes abissais. Mas ele

não parecia um mau sujeito. Acolhia qualquer um em busca de refúgio. Era uma

pena que, desde o convite na praia, Zakkar não parava de fazer serviços braçais.

Carregar e descarregar coisas pesadas no porto, cobrar pagamentos e dívidas,

vender comida nas minas da periferia, fazer pequenos favores para algumas famílias

abastadas da cidade, entregar encomendas no palácio do governador e tantas outras

tarefas pesadas e sem sentido. Nada ainda dos ensinamentos que o líder da gangue

prometera quando se enfrentaram à beira-mar. A paciência vinha se esgotando, mas

algo indefinido o mantinha seguindo na equipe improvável. Não sabia exatamente

o quê, mas tinha esperança de que logo, logo descobriria.

Vislumbrou, com a ajuda de uma nesga de luz irradiando de um buraco na parede,

a única garota ainda ao seu lado nesta jornada inconsequente. Manara, a menina

que salvara no navio pirata, dormia tranquilamente ao lado de outra garota, uma

das duas meninas que integravam o bando de ladrões. O príncipe havia dito que ela

poderia ir embora se quisesse, seguir as outras cinco fugitivas na praia. Mas ela

escolheu ficar. Preferiu permanecer junto ao grupo a ter de retornar para sua casa.

No fundo, Zakkar acreditava que essa permanência da garota estava associada a ele.

Quando recebeu a notícia da liberdade, lançou olhares profundos para o guardião,

como se ponderasse a respeito. Emitiu um breve sorriso tímido e exclamou sua

sentença: continuaria ao lado deles pelo tempo que achasse necessário; até a poeira

abaixar em Miliat, segundo ela. Esperava que Manara não pensasse ter uma dívida

com ele e que precisaria pagar. Fez o que fez porque sabia ser o correto. Proteger

o mais fraco era uma das Leis Primazes mais ferrenhas a martelar em sua cabeça.

Se o Conselho não conseguia — ou não queria — fazer isto, ele estaria pronto

sempre que necessário.

— Perdeu o sono?

Zakkar se aproximava da abertura no topo quando ouviu a voz do Príncipe

irradiar da pequena plataforma engastada na torre que dava para o lado de fora. Ele

sequer virou a cabeça para dentro. O olhar de gatuno passeava em diversas direções

distintas, esquadrinhando cada canto do majestoso centro de Cruisand, avaliando

tudo o que poderia considerar uma ameaça dentro de seu campo de visão.

— Cabeça cheia. Não consigo dormir.

— Humm.

Zakkar irrompeu a abertura do topo e contemplou a mesma vista apreciada pelo

Príncipe. A torre abandonada, apesar de velha e desleixada, ficava numa posição

bastante estratégica. Era possível observar, dali, os principais pontos da região

central da cidade. O grande mercado, o porto e a praia ficavam à esquerda e era

possível ver navios chegando à quilômetros de distância — por isso não foi tão

difícil descobrir como eles sabiam de sua chegada sorrateira. Mais à direita, tinha

um vislumbre do grande Pilar da Magia, uma das torres gêmeas incandescentes que

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irradiavam da terra, apontando para os céus. Próximo a ela, a bela praça da torre e

os vilarejos de mansões e palacetes dos mais ricos e abastados moradores da cidade,

dentre eles, o suntuoso casarão do governador de Cruisand. Ao centro, percebeu

uma grande construção sendo erguida, com enormes estandartes expostos em

postes monstruosos de madeira enfileirados. Reconheceu a bandeira de Miliat e a

Fênix Indomável estampada sobre ela. O coração deu cambalhotas no peito quando

avistou a flâmula de seu reino.

— Cabeça cheia, então? — indagou o Príncipe, desviando os olhos pela primeira

vez desde que Zakkar se apresentara.

— É... eu...

Zakkar não conseguia tirar os olhos da enorme construção com as bandeiras. Era

uma espécie de arena quase terminada e, mesmo sendo altas horas da noite, dezenas

de homens armando vigas e colunas, ajustando estruturas e lançando lonas,

andavam de um lado a outro, finalizando os últimos detalhes do grandioso estádio,

cercado de seguranças e muito mistério.

— Deve estar se perguntando o que é aquilo tudo ali — falou o Príncipe,

apoiando-se sobre as grades enferrujadas do parapeito da sacada. — Embora

tentem manter segredo, é uma arena para...

— O Ano da Elegibilidade — completou Zakkar; na voz, um tom iracundo

disfarçado de displicência.

O Príncipe encarou o jovem guardião por um instante, com os olhos

comprimidos como se estudasse Zakkar, apoiado sobre o braço cruzado em cima

da grade. Ele tinha esse costume e era uma das poucas coisas que detestava no líder

do bando. Isto e o fato de estar obrigando-o a fazer intermináveis serviços braçais

sem motivo algum. Era como se tivesse a capacidade de analisá-lo de alto a baixo e

desvendar os pensamentos escondidos na mente de cada um. Quase sempre, estava

certo sobre o que raciocinava.

— Você é cheio de surpresas, Zakkar. Tão enigmático quanto você pensa que eu

sou.

— Eu tive uma vida antes de vir para cá. Não estou aqui porque quero. Aquele

— Zakkar apontou para a bandeira vermelha e branca a um canto — é o estandarte

de minha nação. Um reino desfigurado pelos interesses obscuros do Conselho dos

Guardiões.

O Príncipe balançou a cabeça. Absorvia as palavras ditas pelo guardião, com se

ponderasse sobre suas próximas. Não ousou falar nada. Virou-se para frente, por

fim, apoiando os dois braços no corrimão, voltando os olhos para as ruas.

— Você me prometeu — inferiu Zakkar, imitando o gesto do líder dos ladrões,

parando a seu lado e contemplando um grupo de bêbados vomitando próximo à

entrada de uma taverna lá embaixo. — Prometeu me ensinar. Mas tudo que tenho

feito nesta última semana é trabalhar de graça para você, fazendo todo tipo de

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serviço que qualquer pivete deste seu bando poderia executar, enquanto espero

pacientemente algum ensinamento de como derrotar esses malditos velhos

conselheiros que destruíram minha família.

— Pacientemente? — O Príncipe não moveu os olhos, permanecia estático em

sua posição de vigia. — O que tenho feito com você nestes últimos dias é habituar

o seu rosto a esta cidade, nos trabalhos que ninguém dá a mínima. Você não vê um

duque reparando se conhece as feições de um jovem maltrapilho e barbudo,

simplesmente carregando sacos de cereal para a abastada dispensa que ele possui

no luxuoso palacete onde ele mora. Não há um dono de adegas sequer notando seu

rostinho jovial quando você está puxando mulas, com odres carregados de vinho,

rumo ao centro comercial. Para essas pessoas fascinadas com a riqueza e o requinte,

você é só mais um na multidão. No meio desse povo deslumbrado com as façanhas

do Conselho dos Guardiões, com as histórias dos maiores reinos da terra ou com

os poderes místicos dos sacramentadores, nós, os renegados dessa sociedade

hipócrita, somos meros lacaios que não prestam para mais nada, a não ser realizar

tarefas corriqueiras e dispensáveis do dia a dia por alguma prata qualquer.

Zakkar emudeceu. As palavras o atingiram como um soco na boca do estômago.

— A paciência é uma virtude, Zakkar — continuou o Príncipe, encarando o

guardião no fundo dos olhos com uma dor e um desespero contido do fundo de

sua alma. — Eu estou nessa empreitada há um bom tempo. O Conselho dos

Guardiões também tirou tudo de mim e desses garotos roncando como maritacas

aí no interior da torre. Se você está mesmo disposto a aprender, eu estou pronto a

ensinar. Basta saber se você vai conseguir me acompanhar. — E arrancando um

pedaço de ferro da grade da sacada, ele pulou para uma grossa corda amarrada à

torre e deslizou até o telhado de outra edificação, metros abaixo.

Zakkar vislumbrou o líder dos ladrões aterrissar suavemente sobre as telhas de

barro do prédio e fazer um sinal para ele arrancar uma segunda barra da grade. Sem

pestanejar, puxou com força o pedaço de ferro e reparou que ele não estava preso,

mas encaixado ali de propósito. Imitando o gesto do Príncipe, ele se lançou sobre

a corda e escorregou por ela até o telhado contíguo.

Correndo pela laje, por entre telhas gastas e assoladas pelo sol, o Príncipe dos

Ladrões avançou para um parapeito e dali pulou para outro telhado, de um terceiro

edifício, grande e largo, onde funcionava um mercado durante a manhã. Zakkar

seguiu em seu encalço, ainda que temesse pisar em falso numa das telhas e

despencar dali. A queda era dureza. Eram alguns metros de distância entre o teto e

o chão e poderiam provocar umas boas fraturas expostas, quiçá a morte.

— Conheço cada uma das vielas e becos dessa cidade. Decorei cada telha em que

piso, cada laje por onde corro — falou o Príncipe, parando para encarar Zakkar

próximo a um buraco no meio das telhas. — Cada esconderijo, cada homem e

mulher de influência, cada passagem secreta, cada viela e cada beco. As prostitutas

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eu chamo pelo nome. Algumas até pelo sobrenome. Os bardos e cancioneiros

ouvem minhas histórias para se inspirarem. Cada vendedor deste mercado sabe

quem sou e pagam muito bem pelos meus serviços. E você sabe por que, Zakkar?

O jovem guardião deu de ombros, prestando atenção em cada palavra do

Príncipe.

— Influência — falou o rapaz de capa vermelha e cabelos rebeldes, abrindo os

braços. — Agora, veja aquele homem ali.

Zakkar observou pelo buraco no telhado e notou um senhor de meia idade, calvo

e barrigudo, guardando inúmeros papéis amarelados em uma bolsa de couro,

escondido atrás de uma pilha de caixas. Parecia irrequieto, olhando para todos os

lados, como se não quisesse ninguém reparando no que estava fazendo.

— Aquele é o velho Piti, o mercador de couro e peles de animais. Um dos mais

antigos vendedores do curtume dessa cidade. Poderia afirmar sem titubear que ele

é um dos pioneiros nesse tipo de produto por essas bandas. Toda noite, ele adentra

secretamente o mercado por uma passagem que começa lá nos olivais e segue pelas

galerias de águas subterrâneas até aqui, unicamente para conferir se suas

promissórias de vendas continuam intactas, antes de trocá-la pelo ouro que lhe é

devido ao final de cada mês. E você sabe por que ele faz isto?

— Não tenho a menor ideia.

— Piti possui um rival tão antigo quanto ele nos negócios: Calero, outro curtidor

no mercado mais ao norte. Um dia, dizem, foram sócios, mas a ambição, o desejo

de poder melou uma parceria que estava rendendo bons frutos para ambos.

Viraram ferrenhos concorrentes. Mas Piti contratou meus serviços para espionar

Calero. Meu bando passou a realizar pequenas atividades braçais para o rival do

velho Piti e, enquanto seus rostos passavam despercebidos, eles descobriam

segredos, como a lista de clientes de Calero, os preços por tipo de couro e pele de

animal, fórmulas secretas para produção de couros variados e etc. Um dia, quando

Piti conseguiu uma boa vantagem sobre seu concorrente, tentou me passar a perna.

Mal sabia ele que eu também conhecia seus segredos. Num dia, troquei as

promissórias de quase um ciclo por ouro e ele quase entrou em parafuso. Agora,

Piti confere todos os dias seus pagamentos e realiza o câmbio mensalmente. Até

hoje, ele nunca descobriu quem roubou suas economias e eu continuo prestando

serviços para ele e para o seu concorrente, lucrando de ambos os lados.

O Príncipe pôs-se de pé de um pulo e correu pelo meio dos telhados do mercado.

Escalou a torre de um palacete e subiu no topo das ameias de uma luxuosa mansão

e depois se lançou para o interior de uma das torres de vigia. Zakkar seguia no seu

encalço, mas não tão rápido quanto gostaria. Ainda estava se habituando a essa

coisa de passear por telhados e muros das casas e edifícios.

— O que eu quero ensinar com tudo isto, Zakkar, é que você precisa conhecer

seus oponentes. Você precisa saber com quem está lidando. Conhecer todos os

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seus segredos, seus pontos fortes e fracos, saber o nome de cada um deles. Mas,

acima de tudo, ganhar a confiança daqueles a quem pretende obliterar. — O líder

dos bandidos convidou Zakkar a sentar-se ao seu lado, na varanda vazia da torre

de vigia da mansão.

O guardião sentou-se em uma poltrona acolchoada e macia, achando estranho

uma torre de vigia não ter uma viva alma.

— Ah, sabe por que não tem ninguém aqui, de guarda? — questionou o Príncipe,

sentado ao seu lado, com os braços cruzados atrás da cabeça e reparando a

curiosidade estampada no rosto de Zakkar. — Porque eu conheço o dono desse

palacete: um conde muito rico de Vervaz. Ele me paga para vigiar aqui também.

Uma vez um gambá entrou num dos quartos de sua filha e foi um verdadeiro

pandemônio. Mas ladrões, sequestradores ou enxeridos? Jamais!

Zakkar arregalou os olhos, impressionado.

— Veja. — O Príncipe apontou para o belíssimo palacete do governador,

iluminado com archotes em nuances azuladas. — Há cinco ciclos tenho um acordo

firmado com Lorde Bovir, o governador de Cruisand. Um acordo secreto de

cooperação e proteção da cidade. Meu grupo de garotos não apenas trabalha com

atividades que ninguém vê, eles também são responsáveis por uma silenciosa rede

de informações estratégicas que chegam até o governador, para que possa tomar as

medidas cabíveis quando necessário. Ah, e você sabe por que uma cidade como

Cruisand não tem um rei e sim um governador?

— Não... — respondeu Zakkar, curioso.

— Porque o Conselho, apesar de achar que precisa de uma cidade só para eles,

tem forte influência na decisão dos líderes dessa cidade. Não apenas de Cruisand,

mas também de Paragon. Como cidades mágicas proeminentes, eles não poderiam

deixar de meter o bedelho aqui. Se uma família real governasse esta cidade, que tipo

de ações eles poderiam tomar? Ficariam impotentes ante as decisões dos nobres do

trono de Paragon e Cruisand. Por isto, ambas cidades têm governadores. Políticos

indicados a dedo. Toda vez que o poderoso Conselho decide que precisam de um

novo representante, ou o atual não está seguindo a cartilha e obedecendo a eles

como humildes cordeirinhos de um rebanho domesticado, eles simplesmente

trocam. É por isto que temos um acordo de cooperação com Bovir. Ele quer saber

de tudo, ouvir tudo, ver tudo através dos olhos dos meus liderados. Bovir não quer

ser descartado pelo Conselho e teme ser substituído por motivos desconhecidos.

Por essa razão, ganhamos algum dinheiro com esse acordo de cavalheiros junto ao

governador.

Zakkar assentia, estupefato com cada palavra que seu cérebro ia processando.

— É por isto, Zakkar, que, antes de qualquer coisa, você precisa ser influente.

Você pode ser um rosto conhecido em Miliat. Até para os guardiões que tramaram

a destruição de sua família, você pode ser reconhecido. Mas eu te afirmo, com o

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tempo, será apenas mais um. Um rosto qualquer no meio de uma multidão

qualquer. Irreconhecível até para os homens que ceifaram as vidas de seus parentes.

Um dia, eles sequer saberão quem é você.

O jovem guardião vidrava o olhar no Príncipe, mantendo os ouvidos apurados

para tantos ensinamentos de uma única vez.

— O Conselho dos Guardiões é um câncer neste mundo. Uma organização

obscura que não está nem aí para a harmonia dos poderes ou a proteção dos mais

fracos. A eles, só interessa o poder e a hegemonia da instituição da qual são donos.

Eles só se importam com o luxo, a riqueza, a consolidação do próprio nome como

uma entidade com poder infinito e influência para mandar e desmandar sobre as

nações de Eirin, decidindo sobre seus futuros, sobre quem ascende ao poder. O

que o Conselho quer é os reinos deste mundo a seus pés, obedecendo cada regra

ditada por eles sem titubear. Quanto aos desgarrados de suas leis, eles invadem, se

apoderam e obliteram com mãos de ferro. Se você quer destruí-los, é preciso

primeiro conquistá-los. E para conquistá-los, é preciso tempo e paciência. Você

terá primeiro que dominar a arte da trapaça, a arte do engodo, comportando-se

como um exímio ladrão e um distinto trapaceiro, versado em refinados

procedimentos intrincados de como fazê-los acreditar nas suas esparrelas, ao ponto

de confiarem suas vidas a você.

“Cruisand nunca esteve tão cheia. Comerciantes, cambistas, apostadores,

vendedores de todos os tipos e gostos abarrotam essas ruas com suas bugigangas.

Uma festa sem precedentes se aproxima. O Conselho acredita que estão vivendo o

auge de seu tempo, o ápice de uma falsa paz e de uma harmonia forjada por eles.

Mas te digo, meu amigo, tudo isto é apenas o prelúdio do caos”.

O Príncipe virou-se e encarou o guardião nos olhos, com uma expressão

impassível e soturna escancarada em seu rosto.

— Eu te afirmo, Zakkar, e esta é uma promessa pessoal, uma dívida de gratidão

por ter encontrado alguém com quem partilhar de meu ódio mais profundo e

pessoal para com essa instituição tenebrosa: eu o ajudarei com sua vingança. Juntos,

faremos o Conselho dos Guardiões implodir, destruído de dentro para fora, sem

descobrir o que os atingiu. O mundo conhecerá quem de fato eles são. Neste dia, a

verdade será apresentada a Eirin e nós poderemos emergir das sombras, como uma

chama de revolução, trazendo à luz toda a podridão que um dia o Conselho tentou

ocultar.

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Capítulo Trinta e Oito

Fuga de Purysia

Os ventos fortes assopravam do oceano, fazendo o encapelado mar lançar

vigorosos borbotões de água gelada, arremetendo-se contra os doze hipocampos

azuis e verdes, rechaçando em suas carcaças cobertas de escamas rígidas como aço,

tão resistentes quanto a couraça de um corsário. Seguiam implacáveis, singrando as

Águas de Argúrius em alta velocidade. Independentemente do tamanho das ondas,

atravessavam cada uma delas com o vigor de um mustangue e a rapidez de uma

hidra, impulsionados pela força arrebatadora dos ventos, como lanças afiadas

cortando os ares em um campo de batalha.

Argus Norhein apertava as rédeas de sua montaria aquática, com o olhar

apreensivo e obstinado. Os cabelos loiros, meio grisalhos, esvoaçavam pelo efeito

da ventania alentada. Os dedos doíam, tanto quanto as fortes dores em sua cabeça.

Conseguia vislumbrar seu destino afinal. Absorto, mas engolfado pelo silêncio

intercalado com o estrondoso som das ondas revoltas, respirou fundo e soltou o ar

dos pulmões, numa tentativa de espantar sua estafa. Passara boa parte da viagem

pensando que a incursão rumo à Purysia estava demorando de mais. Culpava-se em

seu interior, sem jamais externar isto de forma alguma, pelo atraso em partir

imediatamente de Cruisand quando recebeu a notícia.

Era o Baile da Anunciação. Os principais líderes do mundo estavam reunidos em

uma festa para comemorar o maior evento de todos os tempos em Eirin. Condes,

Duques, Marqueses, Reis, Príncipes e Lordes de todos os cantos dos cinco

continentes se arrumaram com suas melhores roupas e confraternizavam em

celebração ao Ano da Elegibilidade, na Casa dos Guardiões. Jamais vira tamanho

requinte e luxo e, ao mesmo tempo, tantas ausências de rostos conhecidos.

Cumprimentou cada um dos nobres ao longo do extenso salão decorado assim que

adentrou o local. Apertou a mão de Lorde Heidlich dos Heinhardt, o antigo

Guardião e então rei do reino vizinho ao seu. Embora ele lembrasse bastante o

velho rei Cench, no rosto largo e queixo duro, tinha bastantes traços de sua mãe, a

rainha Falla. Mas havia nele um ar de quem não estava muito à vontade naquele

tipo de evento. O primogênito de Badorian não era uma figura tão comum em

498


eventos reais. Era inegável que ele fora um grande Guardião em Eurodian, sua

bravura e intrepidez eram lendárias e jamais seriam esquecidas, principalmente na

luta contra os Oderobs, que atormentaram o sul de Mistral, vindos de

Sombroceano. E, particularmente, duvidava que o continente teria alguém tão

brilhante, poderoso e proeminente quanto Heidlich. Mas sempre foi de

conhecimento tácito o quanto ele era avesso a condecorações e festas reais. Preferia

tomar uma caneca de rum numa espelunca qualquer a ter de se enfiar em vestes de

nobreza e fazer política com outras figuras reais. Devia estar sendo bem difícil para

ele ter de se habituar, de uma hora para outra, com essa nova função.

Cumprimentou Salazar Stanhorne e deu um aperto de mão em Hamm Louis

Zanotchka. Embora Moronov não estivesse junto para quebrar o gelo das feições

militares dos dois guardiões, não deixou de fazer uma saudação aos líderes máximos

do Conselho. Simpatia não era o forte de ambos, mas até que, naquela noite,

estavam bastante cordiais e falantes. Rememoravam histórias antigas de grandes

feitos dos últimos Guardiões de Turmis e Elstoen com uma animação incomum.

Estacara a um canto para bebericar de uma taça de vinho e, como sempre fazia,

esquadrinhou o ambiente à procura dos velhos amigos de sempre. Havia elfos

sacramentadores espalhados pelo salão, cercados de arcanos, sempre elegantes,

brilhantes e sorridentes, mas notou que todos eram completos estranhos, à exceção

de dois. Dhara Lovrens, a nova sacramentadora de Hegemonia, a quem conhecera

em uma visita dela a seu reino, conversava com o governador de Paragon e os

trigêmeos de Vaelfar e Isail Mankic, o sacramentador que substituiu Poledores, no

pilar de Serenidade, o octaedro que abarcava Mistral. Mesmo com a música

enchendo os ares e as expressões descontraídas estampando os rostos dos

convidados ao redor, as ausências de Sisno e Alezeia eram gritantes. Passara boa

parte do ciclo desfiando longas conversas com sua amiga elfo, aproveitando essas

oportunidades para pedir seus sábios conselhos, mas de um tempo para cá, ela

abrira o coração e revelara coisas incômodas acontecendo na Ordem. Mas, ainda

assim, sempre a via com um sorriso no rosto, por trás dos trejeitos aflitos, nos

eventos em que tinha a oportunidade de participar. Na Festa de Bovir, sequer teve

tempo de conversar com Sisno. Este, sim, estava pressuroso e irrequieto. Embora

cordato e expansivo como de praxe, com uma oratória invejável, não ficou mais do

que poucos minutos na companhia dele e do governador de Cruisand. Convidou

Alezeia para uma dança e, depois disto, desapareceu. Não vira qualquer um dos

dois, desde então.

Na terceira taça de vinho, em um papo bem descontraído entre ele, sua esposa e

Lorde Flamir, o rei de Boralioch, alguém interrompeu sua conversa.

— Lorde Argus Nohrein? — O homem usava as mesmas roupas dos empregados

da festa e demonstrava aparente preocupação em seu rosto.

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— Sim — respondeu, fazendo-se ouvir acima da música irradiando pelo salão,

envolvendo a todos em valsas animadas.

— Temos uma mensagem para o senhor. Poderia me acompanhar?

Pediu licença à esposa e a Lorde Flamir e se retirou. Seguiu o homem para fora

do local do evento e parou próximo a uma fonte dos jardins externos. Não havia

uma alma viva sequer. Estavam acompanhados pelo brilho tímido da lua, por trás

de grandes nuvens nos céus. Aguardando o remetente da mensagem, notou uma

agitação diferente sobre as águas da fonte. Aninhando-se magicamente, de chofre,

formaram uma figura elemental e corpórea, de nuances azuis como o oceano. Uma

ninfa das águas, de semblante acabrunhado, saudou a ambos.

— Das vagas de Argúrius, me movo assim. Entre vapores e gotas, me transformo

enfim. Segui por mares, rios, ribeiros e fontes. Jorrando entre jarros e cascateando

entre montes. Em Purysia suplica com tímido clamor, uma elfo aflita em mazelas

de dor.

— De Purysia? — indagou Argus, alarmado. — De quem está falando?

Então, ele ouviu.

A ninfa moveu os lábios mais uma vez e sua voz se transformou. Converteu-se

no timbre firme, porém combalido de Alezeia. Era um chamado de socorro, com

instruções sucintas sobre sua posição, suplicando por sua ajuda. Diferente do

imaginado, a situação na ilha devia estar muito pior do que sua amiga

sacramentadora transmitia. Prender Alezeia num calabouço era o ápice dos

absurdos cometidos pelo líder da Ordem. Deveria ter percebido como as

circunstâncias a transtornavam, mas não foi capaz disso. Estava ocupado demais

em pedir conselhos sobre o reino, sobre julgamentos e outras coisas irrisórias que

não percebeu o quanto ela precisava de sua ajuda. O momento exigia medidas

extremas. Medidas urgentes.

— Comunique ao general Oganda que estarei de volta dentro de dois dias —

falou Argus falou à ninfa, decidido. — Diga-o para me aguardar na península de

Bara ao entardecer com dez dos melhores soldados de Mistral. Avise a ele que o rei

está voltando e o encontrará por lá.

A ninfa assentiu e, desfazendo-se em um rodamoinho, disparou pelas águas da

fonte.

Correndo contra o tempo, na decisão que deveria ter tomando havia meses, Argus

se desfez das vestes formais e badulaques do festival. Enfurnou-se sob um casaco,

cota de malha e calças de couro. Comunicou à esposa que precisava resolver

assuntos urgentes. Sem questionar, ela assentiu e desejou-lhe boa sorte. Partiu

imediatamente de Gradia no dorso de um hipogrifo.

Atravessou os céus de Eurodian sem ousar realizar uma pausa. Sobrevoou o Pilar

da Magia de Paragon e o de Cruisand, admirando a beleza do brilho de ambos,

voou pelos céus límpidos do extremo-Sul de Badorian e aterrissou com o lusco-

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fusco de tons alaranjados sobre as Águas de Argúrius banhando as terras da

Magnífica Mistral. A careca morena do general Oganda cintilava à luz do sol e sua

expressão carrancuda de olhos injetados permanecia imutável. Ponderava por

quanto tempo seu mais antigo e destemido soldado estava imóvel e em posição de

sentinela. Bogad, Elmes, Ludobic, Dedosdemoça, Fahin, Pé Pequeno, Jimes,

Alcanedes, Sals e Godin, os melhores guerreiros do reino estavam a postos logo

atrás dele, enfileirados e em guarda, em pé sobre as docas da península do condado

de Bara, aguardando seu rei e as próximas instruções.

— Nosso destino é Purysia — comunicou Argus, pulando do dorso do hipogrifo

para as madeiras lavadas do cais — A parte mais ao norte da ilha. O mais

importante: ninguém pode saber que estivemos lá.

— Vamos embarcar em Estrela da Manhã e partir imediatamente!

— Não, general — proferiu o rei, caminhando até a ponta do píer. — Seremos

fantasmas singrando os mares. Não usaremos o melhor corsário do reino.

Cruzaremos esse oceano sobre o lombo de nossos hipocampos.

A um assobio do rei, uma figura equina despontou das águas. Colossal e

esplêndida, arrebatava o coração de qualquer um, independente de quantas vezes a

tivesse visto. No lugar das patas dianteiras de um alazão, poderosas nadadeiras

agitavam as vagas. Escamas intransponíveis em vez de pelos. Uma longa cauda

como a de um tubarão ocupava a parte traseira do animal. Veio serpeando por entre

ondas, relinchando como um cavalo e nadando igual a um peixe até encostar

próximo a Argus.

Ninguém questionou nenhuma ordem do rei. Outros onze hipocampos surgiram

e cada soldado assumiu sua montaria. Agarrados às rédeas, seguiram

obedientemente as palavras do soberano de Mistral. Taciturnos, carregando

escudos, espadas e arcos e flechas a tira colo, Argus e os soldados zarparam da orla

da península quando a lua tomava seu lugar sobre a abóbada celeste e as sombras

da noite dominavam as terras do reino.

Era alta madrugada. A lua cheia se unia a uma constelação de estrelas pontilhando

uma imensidão negra sobre suas cabeças. Argus puxou as rédeas de seu hipocampo,

forçando a parada brusca do animal. Os soldados acompanharam o movimento de

seu rei, puxando o cabresto de suas montarias, descrevendo um arco sobre as águas

negras do coração de Argúrius. Ajuntaram-se em um semicírculo no meio do mar.

Dedosdemoça e Jimes acenderam tochas com fogo mágico, revelando as faces

impassíveis e concentradas de doze homens em uma incursão insólita. Num

extremo, o rei e o general observavam os rostos de cada guerreiro.

— Homens, vocês foram convocados a essa missão porque são os mais valentes

soldados a servirem nossa Magnífica Mistral — falou Norhein, empunhando o

capacete real. — Peço aos senhores que não questionem o porquê do que iremos

501


fazer nessa ilha. Ordeno que, como leais servos de nossa nação, estejam ao meu

lado até o fim. Nesta noite, resgataremos uma alma inocente de uma prisão injusta.

Se eu pedir para avançarem, sigam minhas ordens. Se ordenar que recuem,

obedeçam. Se pedir para matar, não hesitem em fazer.

Os homens no semicírculo bateram o punho contra o peito, em sinal de

obediência.

Os doze hipocampos estagnaram a poucos metros do extremo mais distante da

ilha. O brilho da lua cheia iluminava a colossal estrutura da fortaleza que era o

palácio dos sacramentadores. Suntuosos archotes sobre as ameias do grande

Oráculo do Tempo lançavam um brilho incandescente ao longo da muralha

fortificada de pedra. Algumas tochas se locomoviam de um lado a outro,

empunhadas pelos soldados do Protetorado de Purysia, realizando a ronda noturna.

Argus sabia que os protetores da ilha eram exímios assassinos, versáteis na arte da

guerra e que, se soubessem de sua presença clandestina ali, não hesitariam em matar

ou morrer pela religião dos elfos. Eram treinados para isso. Educados e adestrados

para combater qualquer ameaça aos sacramentadores. Neste dia, ele colocaria à

prova a destreza e habilidades desses soldados.

— Apaguem as tochas! — ordenou Argus, tomando cuidado para não serem

identificados pelo Protetorado. — Sigam-me.

Mergulhados na escuridão sorumbática da madrugada, Argus e seus soldados

pularam sobre as águas e seguiram o restante do caminho a nado, desbravando as

ondas revoltas de Argúrius, quebrando na orla da ilha. Braçada por braçada, os doze

homens galgavam posições, avançando pelo oceano de vagas impetuosas, como

sombras numa noite serena.

Alcançaram a terra firme quase ao mesmo tempo. Próximo às pedras da areia da

praia, era possível ouvir o som das botas dos soldados passeando pelos corredores

nas ameias do castelo. O rei Argus colocou o capacete e desembainhou a espada.

Empunhou a lâmina com a mão direita e fez um sinal para seus soldados o

seguirem. Se não estava enganado, a décima torre da ala nordeste do palácio era

logo adiante.

Seguiram pela areia e atravessaram um paredão de rochas infestadas de algas e

molhadas pela rebentação. Erguendo o punho, Argus fez um sinal para os soldados

pararem. Enfileirando-se sobre as pedras banhadas pelas águas do mar, cada um

dos homens vislumbrou o que havia além. Caminhando pela areia, dois protetores

conversavam, descontraídos. O general Oganda fez um aceno para o rei e em

seguida para os soldados inimigos. Argus assentiu, confirmando ter compreendido

o que precisava ser feito.

Dois guerreiros de Mistral pularam das rochas para a areia, fazendo o mínimo de

ruído possível. Esgueiraram-se sorrateiramente à beira-mar, com o ruído alto das

ondas a quebrar disfarçando seus passos. Puxaram lâminas presas às coxas e sem

502


titubear, cortaram as gargantas dos dois protetores da ilha. Caindo e agonizando

sobre a areia, sangue jorrava como cascata de seus pescoços. Caíram sobre a orla,

sem vida, sendo arrastados pelas águas do mar.

Argus e seus homens avançaram. Correram pela areia, com a força dos ventos

cobrindo seus rastros. Lançavam olhares apreensivos para o topo das amuradas da

fortaleza, atentos à novas tochas surgindo pelo caminho. Estacaram em frente ao

que ele acreditava ser a décima torre, conforme as orientações de sua amiga

sacramentadora. Mostrando o punho em um novo sinal silencioso, os guerreiros ao

seu redor se posicionaram em um círculo, cobrindo cada um dos flancos do rei,

vigiando o perímetro, enquanto ele caminhou até uma pequena grande no chão.

— Alezeia?

A voz de Argus reverberou pela masmorra.

Silêncio.

— Alezeia, você está aí?

A voz grave e cansada reverberou em um eco lúgubre, intercalado ao som

fantasmagórico dos ventos assobiando pelo pináculo das torres do castelo.

— Argus? É você?

O timbre do outro lado era fraco, quase inaudível. Se uma tempestade os

assolasse, não seria possível ouvi-la. Exalava uma surpresa incontida na voz abatida,

mesclada a um tom de alívio. A escuridão dominante do calabouço não permitia

que Argus vislumbrasse o rosto da sacramentadora. O buraco profundo era apenas

trevas intensas. Mas só de ouvir sua voz reverberando pelas paredes frias, deixouo

mais aliviado. O senso de direção que o guiou até ali estava calibrado.

— Sim, Alezeia. Seu pedido de socorro chegou até mim e vim atendê-lo de

imediato. Como faremos para tirá-la daí?

— Meu nobre amigo, não há forma menos constrangedora para lhe dizer isto. Só

há uma forma de tirar-me daqui, uma vez que as saídas deste cárcere foram seladas

por encantamento baseado em antigas runas élficas...

O silêncio instaurou-se. Os olhares atentos dos onze homens ao redor eram quase

palpáveis. A expectativa de seus guerreiros com a conclusão da frase dita no que

parecia um sussurro quase inaudível, refletia sua própria ansiedade em tirar a amiga

do fundo da masmorra. Argus mantinha os olhos bem abertos para dentro do

buraco, como se tal gesto pudesse ajudá-lo a compreender melhor as próximas

palavras da sacramentadora

— E qual seria esta forma? — indagou o rei de Mistral, impaciente.

— Explodindo esta torre com magia.

Argus fechou os olhos. Respirou fundo. Inspirou e expirou repetidas vezes. O

coração acelerou de um jeito involuntário. Molhou os lábios ressecados e o gosto

acre de sal da água do mar invadiu seu paladar. A pretensão de escapar dali

furtivamente, sem serem descobertos, ia por água a baixo.

503


— Farei o que for preciso, Alezeia. Juro pela minha vida e pela lealdade que tenho

em nome da nossa velha amizade: hoje você sairá dessa prisão. Agora, proteja-se!

Argus fez sinal aos seus soldados. Gesticulando, explicou o que precisava ser

feito. Um dos soldados lançou-se ao mar, na incumbência de posicionar os

hipocampos, aguardando obedientemente o retorno de seus donos. Os demais

posicionaram-se para observar suas instruções. Mesmo diante da escuridão

avassaladora, o rei observou as expressões sobressaltadas transformarem os rostos

dos guerreiros ao seu redor. Mas, sem vacilar, todos assentiram, em concordância

com sua decisão.

Argus afastou as pernas e os pés afundaram na areia. Girou os braços e

movimentou as mãos em círculos, invocando a magia dos ventos, o elemento que

dominava como alquimestre. Conforme os dedos rodopiavam em um gesto

constante, a brisa ao redor se convertia em tufões implacáveis. As lufadas de vento

logo se fundiram em um ciclone indomável pelo entorno, fazendo as ondas se

levantarem, agitando as roupas molhadas dos soldados ao redor. Alguns deles

perdiam o equilíbrio e tinham de se esforçar para ficar de pé. Outros cravaram as

espadas sobre a areia e se agarraram a elas.

O rei de Mistral moveu outra vez as mãos e os ventos agitaram seus cabelos loiros

com tons grisalhos e vestes encharcadas uma última vez. Fundiram-se em uma

esfera de poder contida entre seus dedos. Como quem arremessa um balaço de

canhão na direção de um navio, ele lançou a magia contra as paredes da torre.

O estrondo eclodiu pelos ares. O impacto da magia fora intenso em proporções

catastróficas, lançando Argus e os soldados contra a areia no mesmo instante. As

estruturas da fortaleza estremeceram de um jeito aterrador. Pedras, tijolos e grades

voaram para todos os lados e uma nuvem de poeira se formou no ar.

Luzeiros incandescentes brotaram nas ameias das muralhas da fortaleza. Vozes

aterradoras irradiaram pelos ares da madrugada. Homens do Protetorado surgiam

de vários pontos, empunhando tochas e espadas. Flecheiros brotaram de repente,

tensionando seus arcos, preparando para lançar flechas para o que viam na orla lá

embaixo. Elfos deram as caras entre os escombros e partes não explodidas da ala

nordeste do palácio, assombrados com o ataque repentino que haviam acabado de

sofrer.

Argus se pôs se pé, ainda atordoado com o choque, cambaleando pela areia com

um zumbido incomodando o ouvido. Irrompendo da cratera formada, Alezeia

emergiu da escuridão das masmorras. Abatida, estava mais magra e acabrunhada do

que ele se lembrava, com profundas olheiras embaixo dos grandes olhos castanhos

e as roupas manchadas e esgarçadas. Sob o som de flechas cortando os ares, o

soberano de Mistral correu para amparar a amiga elfo e a tomou em seus braços,

socorrendo-a.

— NOBRE REI, VENHA!

504


Os doze hipocampos aguardavam à beira-mar. Pé Pequeno, Bogad, Elmes e

Godin erguiam os escudos, protegendo-se como podiam das flechas certeiras dos

protetores no topo dos muros. Alguns dos soldados do Protetorado se lançavam

em cordas, descendo de rapel, pelo que sobrara das ameias ao redor da torre

explodida. Jimes, Dedosdemoça, Fahin, Sals e Alcanedes empunhavam suas

espadas em embates violentos com os protetores que desceram até a orla. Oganda

e Ludobic seguiam no encalço do rei e da sacramentadora, correndo para as

montarias aquáticas, entre a chuva de flechas desviadas pelos dois soldados de

Argus. Posicionando Alezeia em seu estado debilitado sobre o animal marinho, o

rei de Mistral assumiu as rédeas e zarpou pelo mar em alta velocidade.

Lançando um último olhar para a ilha, Alezeia vislumbrou os guerreiros de Argus

correrem a salvo para os demais hipocampos e escaparem por entre as ondas. O

rosto estarrecido de Klaus Trishnann surgiu de um buraco da muralha,

contemplando os escombros do que antes fora a torre fortificada de um calabouço.

Arrebatado pela obsessão irrefreável por poder, no fundo de seus olhos carregados

e incrédulos, o jovem sacramentador exalava um ódio irracional, sem parecer

acreditar no que acabara de acontecer ao Oráculo do Tempo.

505


Capítulo Trinta e Nove

Poder

A grama verdejante e bem aparada do lado de fora do vestiário tremulava com a

leve brisa correndo pelo interior da arena. Petr se demorou um pouco mais do que

deveria, admirando o tapete esmeralda à sua frente. Era incrível como o gramado,

revestindo o palco do evento, cintilava em um tom verde deslumbrante. Talvez o

verde mais verde que já vira em sua vida. Não sabia ao certo se essas nuances

espetaculares eram obras de alguma magia para encantar as multidões se

acotovelando ao redor do estádio, impressionar os ilustres convidados aguardando

com ardente expectativa sua participação na prova ou se era um tipo de grama

específica, de alguma região de Eirin. A única coisa notória era que seu estado

absorto, com o olhar perdido e impressionado com um gramado exuberante,

apenas escondia o nervosismo e a ansiedade o consumindo por dentro.

Caminhando de um lado a outro, Petr aguardava ser anunciado. Logo, logo, teria

o nome ecoando pelos quatro cantos da arena em Paragon e ele entraria para

encarar o segundo dos três desafios do Ano da Elegibilidade. A inquietação era tão

grande que ele sequer conseguiu assistir à luta de Ivyna, recém-saída do campo.

Rudi dissera que a jovem ruiva enfrentara um basilisco de água gigantesco, quase

da altura do estádio e levara apenas quinze minutos para derrotar o monstro.

Quinze minutos.

As lembranças da última prova voltavam com frequência à sua cabeça. Os galhos,

raízes e pedras se fundindo e serpeando, formando os muros de um extenso

labirinto. Os desafios dos elementos. O desespero para não ficar para trás e ser o

último colocado. A verdade é que fora um completo desastre no primeiro evento

em Gradia. A começar pela charada de Moronov. A preocupação com o desafio a

enfrentar era tanta que sequer conseguiu entender o discurso do velho guardião.

Decorar então? Esquece. Quando o labirinto começou a se formar e a cercá-lo de

todos os lados, a única coisa de que se lembrou foi de correr o mais rápido possível,

sempre mirando o prêmio no centro da arena. Conseguiu abrir boa vantagem sobre

os demais, disparando em direção ao troféu, mas os muros o cercaram em algum

ponto e o fizeram perder a noção de onde estava. Acabou preso pela cintura, por

506


fim, atochado no meio da terra, depois de conseguir escapar de um corredor de

vento.

Caiu em si que lógica não era muito o seu forte. Afinal, como ia descobrir que

havia uma sequência certa a seguir e que, se não o fizesse, não havia como

continuar? Não era uma prova do mais rápido, pois, se fosse assim, qual era a

lógica? Chegou a acreditar ter perdido os poderes quando tentou conjurar uma

chama mágica e nada além de fagulhas crepitaram sobre as pontas dos dedos. Mas

era tudo parte do teste do primeiro evento. Ivyna explicou para ele em detalhes que

prestar atenção no discurso de Moronov foi essencial para conseguir vencer o

desafio. A jovem guardiã, juntamente com Rudi, passou a viagem de carruagem

toda, de Gradia até Paragon, explicando haver uma única sequência correta. A

sequência do discurso inicial era a dica fundamental para poder completar o evento

com sucesso, embora, no final, houvesse uma pegadinha. A guardiã explicou que

um sexto sentido a fez decidir quebrar o gelo e não gastar a insígnia de fogo. Petr

só conseguia refletir em como fora estúpido em não pensar em combinar água e

vento para escapar da terra. Aos altos papos, com Ivyna explicando cada perigo

enfrentado e qual foi sua decisão — sempre baseada nas dicas do Chanceler dos

Guardiões, Petr ponderava o quanto Rudi também era inteligente e perspicaz.

Depois de ficar em segundo lugar e ter seguido o mesmo caminho de Ivyna, o

Guardião de Elstoen ficou muito próximo da jovem ruiva. Os três decidiram seguir

na mesma diligência até o local do segundo evento em vez de cada um na sua — o

Conselho disponibilizara carruagens individuais para os cinco. Desde a premiação,

os dois só andavam juntos. Ficavam de altos papos sobre o primeiro evento,

conversavam a respeito de golpes e combinações de magias e durante todo o trajeto

até Paragon, Ivyna explicava os detalhes de sua saga pelo labirinto — com uma

riqueza de detalhes absurda, com Rudi completando suas frases. Petr ouvia as

palavras da guardiã, rememorando cada etapa de seu próprio percurso e

ponderando se não era burro demais para aquele tipo de prova. Os dois à sua frente,

falando com tamanha naturalidade, faziam o primeiro teste parecer tão trivial, como

se fosse óbvio escolher o fogo diante dos quatro corredores. O desespero se abatia

sobre Petr. E se não conseguisse vencer nenhuma prova? E se saísse dos eventos

em último lugar? Havia tanta gente apostando nele, tinha muito medo de

decepcionar os que acreditavam nele.

As multidões se apertavam ao redor de um enorme quadro, quando as carruagens

finalmente chegaram a Paragon. Era uma manhã de sol a pino e, mesmo com o

calor escaldante, os apostadores estavam em êxtase. Sacos de dinheiro eram jogados

sobre inúmeras mesas montadas abaixo do quadro. Apostavam de tudo que era

possível: moedas, cédulas, braceletes, cordões de ouro, espadas e outros artefatos

mágicos, alguns tentavam emplacar animais lendários — Petr jurava ter visto um

filhote de cérbero numa jaula, embora as cabeças da direita e da esquerda

507


parecessem muito suspeitas. Aguçando melhor a visão, conseguiu identificar o que

estava pregado sobre o quadro abissal pendurado numa parede da arena. Os nomes

de cada guardião e seu respectivo continente cintilavam sobre a lousa. Despontando

na primeira posição, com as apostas concentradas em seu nome, Ivyna havia se

tornado a favorita. A jovem Heinhardt virou uma celebridade depois de ter

conquistado a salva dourada em Gradia. Rudi era o segundo, por motivos óbvios.

Os dois haviam pensado quase a mesma coisa, mas o guardião candorniano falhou

no último obstáculo. Varrendo a lista até o final, Petr reparou que era o terceiro

colocado, com pouquíssimas apostas em seu nome. Guilloch, o bizarro indicado de

Miliat, ainda estava na lanterna da competição e, antes dele, o tal de Louk com sua

cara amarrada e esquisita.

A ansiedade e o medo de ficar mal nessa segunda prova davam uma sensação de

vazio no estômago. Não havia se dado conta, mas a inquietação o consumia por

dentro e impeliu o garoto a andar em círculos. As mãos tremulavam

involuntariamente e não era por medo pelo desconhecido a encarar do lado de fora,

assim que fosse anunciado, mas sim de fazer vergonha diante de uma multidão de

espectadores, com o agravante de ter parte de sua família e amigos em peso e o

observando, sentados em lugares de honra sobre as tribunas e camarotes. Uma

comitiva partira de Anlevor sem ele saber ou sequer imaginar que estariam nos

eventos, o prestigiando. A ideia fora de Roben, que queria fazer uma surpresa para

ele em Gradia, arrastando consigo boa parte dos Zanotchka e Bravior — os

Wallensig não se deram o trabalho de sair do continente, além de Lorde Aldair,

representando os demais condes de Snartria. O primo avisou que Chermont não

pôde ir, ainda estava resolvendo as questões com a avó Asturias, azucrinando e

dando seus chiliques pelo reino. Petr não queria decepcionar nenhum deles.

Uma voz bradou do lado de fora e o nome do garoto reboou pelos ares do

estádio. Era tudo ou nada naquele instante. Marchando pelo corredor de acesso ao

gramado suntuoso, as pernas pareciam se arrastar, pesando toneladas como balaços

de chumbo. Não era uma boa hora para o medo começar a falar mais alto e tomar

conta da situação. Respirou fundo e lembrou das palavras do avô para situações

assim: finja que não tem ninguém lá. Mas era muito difícil com multidões

tresloucadas, pulando sobre os bancos, berrando e assoprando cornetas

escandalosas. Ainda assim, sorveu o ar cálido da noite e soltou-o bem lentamente.

Sabia o que tinha de fazer e acreditava ser forte o suficiente para obliterar qualquer

perigo adiante.

Caminhando devagar, respirando compassadamente, Petr pisava a grama fofinha

da arena. Observava tudo ao redor. Sendo um teste de força, imaginava que tipo de

oponente teria de enfrentar. Dragões? Minotauros? Gigantes? O que o Conselho

dos Guardiões estava preparando? Os espectadores não paravam um instante ao

seu redor. Levantou os olhos e não pôde deixar de notar a nada modesta tribuna

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de honra. Os bandeirões dos cinco reinos estendidos tremulavam com a intensidade

do vento, embora ele suspeitasse que fosse alguma magia para fazê-los se agitarem

com tanta perfeição. Havia um troféu, gigante e dourado, reluzindo lá em cima. Ao

redor do prêmio, Petr avistou os principais conselheiros dos Guardiões, incluindo

um de feições duras, cabelos curtos e vermelhos como fogo. Impassível em suas

expressões, Hamm Louis Zanotchka mirava-o com sobriedade e indiferença. O

sangue subiu de chofre. Teve vontade de voar até o camarote de luxo adiante e

confrontá-lo. Questionar se ele não lembrava que sua filha deixara um herdeiro em

Snartria, cuja única esperança era ter um pouco de sua atenção. O avô que sempre

o desprezou, nesse momento também o encarava como quem observa a um

desafeto ou um completo estranho, cujas feições não agradaram. Respirou fundo

outra vez, reprimindo os sentimentos avassaladores aflorando. O momento em que

o confrontaria um dia iria chegar e, nesse dia, falaria tudo o que estava em seu

coração.

Esquadrinhou cada canto do palco da batalha, da entrada da arena. Percebeu a

presença de alguns alquimestres, numa parte mais baixa, no limiar do espaço

gramado em que estava. Agitavam as mãos em supervelocidade, como se

estivessem atrasados com suas responsabilidades. Petr mantinha a respiração

controlada. As pernas voltaram ao peso normal e estavam levemente menos

retesadas do que antes. Os dedos se agitavam com intensidade, na iminência do

surgimento de seu oponente.

As multidões silenciaram gradativamente. Vislumbravam alguma coisa que ele

ainda não tinha percebido no lado mais próximo da tribuna de honra. Caminhou

alguns metros à frente, quase chegando ao centro da arena, quando então seus olhos

identificaram um brilho diferente, algo que fez os espectadores emudecerem.

Uma névoa enregelante emanava da extremidade oposta do gramado. Uma

criatura de gelo se formava do outro lado, pronta para atacar. Petr ergueu os punhos

em riste e arqueou as pernas. Não iria se afobar de forma alguma. O teste não era

de rapidez, nem de lógica, mas de poder e poder ele tinha de sobra. Se o que quer

que estava se formando por lá esperava dele um primeiro golpe, teria uma grande

decepção. Decidira aguardar o primeiro intento do oponente.

Apurando melhor a visão, esperando com paciência — mesmo com a respiração

começando a ficar mais ruidosa, Petr notou as feições do monstro tomando forma.

Em pé como um soldado de algum exército, a criatura revelava um focinho

protuberante. A boca exibia um sorriso maléfico, de dentes afiados. Uma lança de

gelo estava firme entre os dedos, sobre as mãos de garras enormes. Comprimindo

os olhos, o garoto reconheceu a fera como um gnoll elemental.

A lembrança dos wargs invernais foi imediata, quando o gnoll saltou de sua posição

e avançou pela arena na direção de Petr. O jovem guardião sorriu na mesma medida

cínica e ameaçadora de seu rival. Estagnado sobre a grama, ele aguardava. Via a

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distância entre ambos diminuir a cada instante. As multidões ao redor se erguiam,

mas ninguém ousava emitir um único som. O silêncio imperava sobre o estádio, na

iminência do que estava prestes a acontecer.

Duas esferas de fogo surgiram e envolveram as mãos de Petr. A lança congelada

como uma verdadeira estalactite se posicionava para atravessar o coração do garoto.

Aguardando o primeiro ataque de seu oponente, ele permanecia imóvel. O gnoll

diminuiu a distância entre os dois e no momento em que a ponta da lâmina ia tocar

o tórax de Petr, ele se abaixou e soltou um gancho cruzado de direita. A labareda

escarlate revestindo o punho do garoto brilhou, cortando os ares, partindo a

criatura de gelo em mil pedaços.

As arquibancadas entraram em êxtase com o vislumbre da besta congelada partida

em minúsculos cubos de gelo pelo soco poderoso de Petr. O guardião de Anlevor

levantou-se num pulo, observando os restos pitorescos de seu oponente.

Regozijava-se por tê-lo derrotado tão depressa. Erguia os braços para o público,

comemorando a vitória. Mas, tão rápido quanto berraram pelo feito do garoto, as

multidões se calaram de revertendo repente.

Atento ao silêncio súbito, Petr ficou alerta. O punho ainda levantado e em

chamas, observava o que se desenrolava no entorno. Uma segunda criatura surgiu,

outro gnoll, tão ameaçador quanto o primeiro. Empunhava uma lança assim como

seu antecessor. Uma voz esganiçada gritou, alertando-o. Um terceiro monstro

surgiu. Depois um quarto, um quinto, um sexto. Uma legião de gnolls de gelo

brotava da grama verde. Empunhavam lanças, espadas, arcos e flechas. Sobre as

faces esbranquiçadas e de focinhos proeminentes, exibiam um esgar assassino,

como se desejassem vingança pelo primeiro gnoll derrotado. O garoto mirava de

uma criatura para outra, atônito, esperando qual atacaria primeiro e como faria para

enfrentar tantos monstros ao mesmo tempo. O exército de gnolls era assombroso,

colossal. Uma falange com centenas, milhares, enchendo cada centímetro da arena,

concentrados no alvo posicionado no cerne da batalha. Petr tinha convicção de que

não seria assim tão fácil. Mas não imaginava ter de enfrentar algo dessa magnitude.

Os pés congelados marcharam pela arena. Saindo da inércia de suas posições,

logo faziam o chão tremer, avançando para o centro como uma legião, pronta para

trucidar sua presa. Petr não sabia para qual direção olhar. Vinham de todos os lados,

centenas e centenas de monstros com todo tipo de arma nas mãos, na iminência de

destruí-lo. Não tinha outra alternativa. Estava impelido a fazer o que martelava em

sua mente.

Os espectadores, do alto das arquibancadas, prendiam a respiração e avistaram as

legiões de gnolls congelados avançarem sem dó para cima do garoto de treze anos.

Como uma multidão de soldados, eles se atracaram, caindo um por cima do outro,

desferindo golpes de espadas, lanças, adagas, facões, atirando flechas e batendo

escudos. A única coisa que se via era um monte enregelante de criaturas com cabeça

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de hiena tentando alcançar o alvo em algum lugar, soterrado sobre um monte

abissal de feras mágicas.

Uma luz cintilou, quando todos acharam não haver mais esperança. Atraindo os

olhares arregalados da multidão, um brilho incandescente eclodiu e um

estardalhaço, como de uma bomba explodindo, estremeceu as estruturas das

arquibancadas. Os gnolls de gelo voaram pelos ares, desfazendo-se em grandes

blocos congelados sobre a grama. Esfregando os olhos, os espectadores tentavam

entender o que diabos estava acontecendo.

Uma figura envolta em chamas voava ao redor da arena, obliterando os monstros

de gelo restantes. Desvencilhando-se da legião de gnolls que caíra sobre ele, Petr se

transformara. As chamas elementais serpearam de seus punhos e o cobriam por

completo, dos pés à cabeça, protegendo-o das investidas de seus algozes. Explodira

os oponentes congelados em milhares de pedacinhos que iam derretendo sobre o

chão naquele instante.

O público foi à loucura. Fogos de artifício iluminaram os céus de Paragon. Da

tribuna de honra e dos camarotes, os nobres e reis imitavam as arquibancadas e

aplaudiam de pé. Absolutamente todos estavam encantados com o tamanho do

poder e a rapidez com que Petr destruíra uma legião de gnolls ao seu redor.

Petr parou, arfando ruidosamente. Observava o que sobrara das criaturas

congeladas converterem-se em poças d’água, absorvidas rapidamente pelo gramado

em volta. Arquejando, o garoto finalmente parecia ter impressionado todos ao

redor. Impressionara tanto que, subitamente, o vozerio tresloucado desaparecera.

Deviam estar estupefatos com o tamanho do seu poder.

O silêncio perdurou por mais tempo do que devia. Suspeitando da ausência

misteriosa da agitação dominando as arquibancadas, Petr levantou o rosto para

entender o que estava acontecendo afinal. As multidões arregalavam os olhos.

Encolhidos sobre os assentos, contemplavam algo numa extremidade da arena com

um esgar esquisito estampado em suas faces. Petr não conseguia traduzir as caretas

estranhas do público. Mas, pelos olhos tão abertos e bocas escancaradas, só podia

ser temor por algo surgindo no campo da batalha. Girando lentamente sobre o

próprio eixo, Petr mirou o exato ponto em que todos pregaram os olhos.

Uma hidra mágica se assomava na extremidade oposta. Maior do que a torre mais

alta da arena, crepitava em chamas escarlates, com o corpo esguio coberto por

escamas ardentes. As três cabeças se erguiam ameaçadoras, mostrando dentes

afiados e exibindo línguas bifurcadas. Comprimia os olhos como fendas na direção

de Petr.

Ocorreu uma ideia louca assim que bateu os olhos no temível monstro de fogo

na iminência de desferir um golpe mortal contra ele. Era ousado e até arriscado,

pois conjurar as chamas para abater os gnolls consumiu muito de sua energia.

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Contudo, algo lhe dizia que ainda tinha forças suficientes para realizar mais esse

intento, por mais perigoso que fosse.

Voou pela arena até conseguir encarar a poderosa hidra nos olhos. Uma das

cabeças do monstro se agitou e desferiu o primeiro golpe de súbito. Petr deslizou

pelos ares e se esquivou da sequência de golpes com destreza. Outra cabeça se

adiantou, sem dar tempo para seu oponente respirar, desferindo um novo golpe.

Contorcendo o cenho, as multidões esfregavam os olhos, arregalando-os mais

ainda, observando os céus no centro da arena, imaginando se não estavam vendo

coisas. Um segundo Petr surgiu nos ares. Idêntico ao primeiro, ele também voava

ao redor do longo pescoço da hidra. A criatura avançou outra vez, tão confusa

quanto a multidão de espectadores. Um terceiro Petr surgiu. Então, diante dos

olhares embasbacados fixos no centro da batalha, sete Petrs sobrevoavam o entorno

do estádio.

As cabeças da hidra se embaralhavam, atacando as sete réplicas sobrevoando a

arena. A ideia de Petr estava funcionando. Conseguiu criar seis versões elementais

suas, cercando a poderosa criatura por todos os lados. Um novo golpe a esmo do

monstro e o oitavo Petr apareceu. Os oito garotos se alinharam sobre a arena mais

rápido do que os três pares de olhos de seu rival conseguiam ver. Das mãos

esticadas de cada um deles, ao mesmo tempo, jatos de água emanaram como

cascatas a jorrar de vertiginosas montanhas e acertaram a hidra de fogo.

Uma coluna de vapor subiu em direção aos céus. As multidões se levantaram

outra vez, pulando e dando cambalhotas sobre os bancos. A criatura de fogo

definhava devagar, desfazendo-se junto à fumaça branca, unindo-se às nuvens. O

primeiro Petr desapareceu, bem como uma das cabeças da hidra. O segundo e o

terceiro Petr se desfizeram nos ares, assim que mais duas cabeças foram

extinguidas. O quarto, quinto, sexto e sétimo Petr sumiram, até restar somente o

original. A monstruosa hidra de fogo desaparecera. O garoto foi descendo

lentamente até o gramado, ovacionado pelas multidões, aplaudindo-o de pé em um

êxtase ensandecido. O Guardião de Anlevor pousou com delicadeza sobre o chão

e ergueu os braços. Vencera o último oponente em questão de segundos e sem

muito esforço.

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Capítulo Quarenta

Acordo Selado

Era inacreditável ter de admitir que tal situação era mesmo realidade. Até

pouquíssimos dias antes, ninguém acreditava de fato obterem êxito na missão mais

desprovida de inteligência que um grupo inexperiente de exploradores poderia

encarar. E, tratando-se de um lugar obscuro e mergulhado em uma infinidade de

segredos, poderia-se inferir ser uma tremenda imbecilidade aceitar enveredar em

uma incursão tão absurda. Contudo, não apenas encontraram o que tanto

procuravam, mesmo pagando um preço exacerbado como as vidas de pessoas

inocentes, que nada tinham a ver com a finalidade obstinada de seus propósitos,

como também descobriram revelações surreais que, nem mesmo o mais criativo

dos bardos ou cancioneiros e contadores de histórias poderia inventar.

Poledores Früg contemplava, embasbacado, a suntuosidade do Salão do Trono

do palácio de Adryan Varnor, ou melhor, Rei Adryan Varnor, o líder de um império

bizarro, governando no alto de um imponente e pitoresco castelo no coração das

Terras Distantes de Turmis. Ninguém jamais teria acreditado, nem ele próprio se

alguém o contasse, mas os olhos refletiam o brilho de imensos cristais formando

as principais colunas e vigas do palácio e contemplavam o esgar altivo e

despretensioso de um elfo esgalgado, com uma peculiar coroa cravejada de rubis

repousando sobre as longas madeixas prateadas, enquanto se deliciava com algumas

uvas, colocadas em sua boca com ternura, por uma criada bizarra e de aspecto

execrável. Com um jeito irreverente jamais visto, uma perna apoiada no chão e a

outra no braço do trono de ouro maciço, Varnor exibia um sorriso brilhante, cheio

de dentes e bastante confiante para uma comitiva de elfos assustados e se

acotovelando bem à sua frente.

Não dava para ignorar o vislumbre e a presença das hordas das criaturas que tanto

combateram e provocaram uma era de trevas, guerras e mortes ocupando cada

centímetro do palácio. Não só estavam vivas, como também eram serviçais e

protetores no monstruoso castelo do Rei-elfo. Trolls e gigantes eram guardas de

primeiro escalão. Brutamontes e de aspecto hostil, postavam-se na entrada, perto

das principais colunas, agarrados à enormes lanças de pedra lascada e espadas

abissais. Um único golpe deles era capaz de obliterar qualquer humano, elfo ou

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monstro metido a invadir a fortaleza. Gnolls resignados carregavam bandejas,

abarrotadas de uvas, maçãs, amendoins, avelãs, abacaxis, laranjas e frutas de todos

os tipos e cores. Carregavam grossas coleiras de ferro atadas aos pescoços. No

caminho da floresta até ali, Adryan explicara que eles eram os tipos mais difíceis de

lidar desde o começo de seu exílio. Rebelavam-se com frequência e não admitiam

servir de bom grado a um elfo. Tinham de ficar aprisionados assim para não criarem

confusão. Ao redor do trono, várias drows se exibiam, de olhares lascivos e ao

mesmo tempo assassinos, como se pudessem oferecer sexo à vontade e também

tirar sua vida após proporcionar o tanto de prazer desejado. Früg se encolhia de

medo quando seu olhar cruzava com uma delas: não imaginava ainda existirem elfos

sombrios vivos em Eirin. Não ouvia relatos sobre eles há eras. Mas ali estavam eles

— ou elas, no caso. Eram esbeltas, de rostos e corpos encantadores, donas de uma

beleza particular, embora o tom de pele arroxeado fosse uma coisa esquisita de se

ver. Vestiam roupas provocantes e atiçavam Adryan de várias maneiras, sem se

importar com a presença dos visitantes assustados ao pé do trono. Muito

confortável em seu antro de luxúria e bizarrice, Varnor jogava algumas frutas para

elas, vez ou outra, falando coisas em um dialeto irreconhecível de seu runasmagiam.

— Certo — falou Adryan, deliciando-se com um cacho de uvas depositado por

um gnoll serviçal sobre o braço do trono. — Inconformados com a excomunhão

imposta a vocês pelo execrável Arturo, decidiram unir forças, atravessar metade de

Eirin e vir até as distantes terras da maravilhosa Turmis para encontrar um exilado,

dado como morto. É isto?

Ninguém ousava proferir uma palavra sequer. O terror e o medo eram latentes

nos rostos dos oito sacramentadores com tudo o que viram e passaram até

chegarem ali. As mortes sanguinolentas dos alquimestres da Confraria de Zavir

ainda perturbavam suas mentes. As bestialidades abomináveis dominando o

perímetro eram a segunda coisa mais chocante. Embasbacados, os exsacramentadores

dos Octaedros se limitavam a manter o compasso da respiração,

tomando cuidado para não errarem o passo e acabarem virando comida de troll,

gigante, drow ou gnoll. Sisno, estranhamente, não parecia impressionado como os

demais. Ainda era o mesmo elfo político e simpático, como se estivessem rodeados

pelos reis, rainhas, condes e duques de Eurodian, numa festa qualquer em Cruisand

ou Paragon.

— Fazes, através de tal sentença, tudo parecer deveras egoísta, nobre Adryan

Va...

— Sem formalismos, Sisno — crocitou Adryan, puxando uma das drows deitada

no chão para seu colo. A elfo sombria começou a beijar a orelha e o pescoço do rei

no mesmo instante, sem se importar com os demais. — Te conheço há tantas eras.

Sei bem que sabes falar como qualquer humano deste mundo devasso.

Sannfrye sorriu.

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— Uma oratória impecável sempre me instigou, Adryan. Sabes muito bem disto

e o porquê. Os homens deste mundo, principalmente aqueles a ocuparem as mais

altas posições, são facilmente impressionados por um discurso eloquente, movido

pelo intelecto, recheado por uma razão transparecendo sabedoria.

— Os humanos são completos idiotas, Sisno — falou o rei elfo, beijando com

ferocidade os lábios da drow em seu colo. Ela mordiscava sua orelha e lançava

olhares de desejo para Sannfrye. — São desprovidos de razão, movidos pela

arrogância, prepotência, presunção, altivez e luxúrias de suas vidas medíocres.

Ainda bem que seus ciclos não duram nem uma era. Infelizmente, a religião dos

elfos, a pureza da sacramentação, foi corrompida há muito tempo, quando aqueles

que deveriam por ela zelar decidiram unir forças com um certo conselho para

dominar uma harmonia utópica, em prol de um dito ‘bem maior’.

Adryan lascou outro beijo lascivo, correndo dos lábios até os seios de sua

concubina e colocou-se de pé. Deixou a elfo sombria sobre seu trono, desceu os

degraus do púlpito e caminhou até postar-se frente a frente com Sisno Sannfrye.

Os demais sacramentadores se encolheram ainda mais atrás de Sisno e recuaram,

contemplando o aspecto ameaçador dos trolls no entorno. O rei elfo mirou outra

vez o bando de sacramentadores com curiosa atenção, movendo os lábios sem

pronunciar uma palavra, como se os estivesse contando, um a um.

— Onde está Alezeia? — questionou Adryan, preciso — Não quis vir com vocês?

— Sinto informar que Ada não pode nos acompanhar até aqui — respondeu

Sannfrye, gentil. Parecia o único a não ter medo naquele reduto de devassidão. —

Receio que os ideais propostos por nós não a tenham convencido ser os melhores

para a resolução de nossa problemática.

Varnor assentiu, exibindo um sorriso pelo canto da boca.

— Sabe, eu passei muitos ciclos me perguntando como poderia sobreviver em

um lugar tão hostil como esse. — Adryan colocou uma das mãos no ombro de

Sannfrye. — Foram tempos tenebrosos, meu velho amigo Sisno. Depois que você

e sua corja me condenaram, fui impelido a ter de aprender a sobreviver. Aprendi a

arte da guerra e tornei-me seu amante mais fiel. Digo e repito: os sacramentadores

deveriam desvencilhar-se desta aversão às batalhas e abraçar os embates com mais

afinco.

— Mas assim seríamos tão selvagens quanto os centauros.

O rei elfo crispou os lábios para a frase inesperada de Soobo, contemplando a

elfo de cima a baixo, com um olhar libertino.

— Doce Soobo Yanui, dos lendários Etéreos, as seis famílias mais influentes a

prover sacramentadores para Purysia. Continuas tão atraente quanto na época em

que te conheci. Um corpo impecável que adoraria poder experimentar.

As maçãs esbranquiçadas do rosto da sacramentadora coraram violentamente. Os

ombros se contraíram de chofre. Era visível o desconforto em sua face, bem como

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dos outros elfos, com a frase inesperada do rei elfo. Ela encolheu e se acotovelou

novamente junto aos demais sacramentadores, arrependida de ter dito o que disse.

— Há uma sabedoria ímpar na filosofia dos centauros.

Gavir Onobka contraiu o cenho e estremeceu. O gesto não passou despercebido

pelos olhares atentos e curiosos de Adryan.

— Minhas palavras te incomodam, meu velho amigo Gavir? Embora presumo

acreditarem que falo de execráveis heresias, os centauros encontraram um

equilíbrio ainda ausente em nossa raça. São devotos do tempo e ardentemente

apaixonados pela guerra. Se nós, elfos sacramentadores, seguíssemos seus

exemplos, não teríamos de nos dobrar obedientemente ante a força implacável dos

guardiões.

— Não nos dobramos aos guardiões, nobre Adryan — falou Sisno, sem perder

do rosto o sorriso simpático. — Dividimos a carga de uma grande responsabilidade

na vastidão deste mundo. Somos aqueles que levarão a luz da harmonia do tempo

a todas as nações.

Varnor sorriu pelo canto da boca.

— Se levarão a luz, o que fazem neste lugar de trevas?

Sannfrye emudeceu.

— Vieram me fazer ver a luz?

— Viemos pedir a sua ajuda!

Nikolai tomou a dianteira de Sisno, escapando do amontoado amedrontado de

elfos atrás do antigo sacramentador de Hegemonia. Com uma expressão

desafiadora estampada em sua face, a voz de Nodovra era cristalina, sem titubear

um instante sequer. Permanecia firme, como se estivesse disposto a encarar Adryan

diante daqueles espectadores hostis.

— Nodovra, Nodovra.

Adryan rodeou o sacramentador, esquadrinhando-o dos pés à cabeça. Diferente

do que fez com ardentemente Soobo, Varnor comprimia os olhos num esgar de

raiva e indiferença. Denotava um certo desprezo e uma mágoa reprimida em seu

íntimo, quando aproximou-se do rosto do antigo sacramentador.

— Convém a ti que te supliques também? — interrogou Nikolai, presunçoso —

Achas que incursionamos por estas terras amaldiçoadas até o antro de sacrilégios

repugnantes que aqui jaz de bom grado, porque somos misericordiosos e lhe

abençoaremos com o perdão por um pecado crasso cometido por ti há eras? Sei

que não há motivos convincentes o suficiente a ponto de torná-lo favorável a nossa

causa e que te façam desvencilhar-se das regalias angariadas por ti, baseado em sua

própria sabedoria e esforço. Contudo, esquecendo-me do nosso orgulho, rogamoste

que nos auxilie, Adryan.

Varnor transformou o semblante de repente. A surpresa inoportuna ocupava o

aspecto antes invasivo do rei elfo. Ele moveu os braços e, estendendo as palmas

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das mãos, aplaudiu efusivamente. Os aplausos ecoaram pelo pé direito alto da

fortaleza e assustaram tanto os sacramentadores quanto as demais criaturas.

— Deixe-me adivinhar: Arturo Menfesis tornou-se tão forte e implacável que

trouxe a desgraça à Ordem. Vislumbrando o destino traçado por nossa religião

rumo ao colapso iminente, vocês se dispuseram a seguir as lendas que correm o

mundo a meu respeito e me encontrar para, neste instante, suplicar minha ajuda.

Estou correto?

Nodovra, como os outros sacramentadores, arregalaram os olhos.

— A Ordem dos Sacramentadores ainda resiste aos intentos de Menfesis em

afundá-la sobre um infortúnio incomensurável — pronunciou Sisno, aproximandose

de Nikolai e Adryan. O sorriso e a simpatia desapareceram do rosto do líder da

comitiva. — Contudo, não podemos sequer conjecturar a dimensão do estrago que

há de ser provocado, caso Arturo persista na liderança de nossa amada religião.

Adryan comprimiu os olhos na direção de Sisno, como se ponderasse sobre as

palavras ditas pelo elfo.

— Estou disposto a retornar e atender a este pedido de socorro, visto que se

dispuseram a encarar toda sorte de perigos, unicamente para me encontrar. No

entanto, haverá algumas condições para meu regresso à Purysia.

Nikolai e Sisno se entreolharam, com uma tensão repentina no rosto.

— Condições? — inquiriu Nodovra.

— Sim — respondeu Varnor. — A primeira: Maihin e Sicária, minhas doces —

Ele lançou um olhar impudico para as duas elfos sombrias ladeando o trono, que

sorriram para ele de imediato — ajudantes, virão comigo nesta viagem.

Sisno estremeceu. Nikolai engoliu a seco. Os outros sacramentadores arregalaram

os olhos, estupefatos para a sentença de Adryan. Os elfos sombrios eram um mau

agouro para a cultura élfica tradicional, eram amaldiçoados de nascença. Ainda pior

do que isto, foram inimigos mortais da paz em Eirin, durante a Era das Trevas.

— Ok, nobre Varnor. — Sisno se adiantou e assentiu. — Condição aceita.

— A segunda — continuou o rei elfo — quero o perdão por todos os crimes do

qual fui acusado e condenado a este exílio. Exijo a purificação pelos sacrilégios,

atribuídos por vocês a mim.

— Uma cerimônia de purificação será realizada, meu amigo Varnor —

concordou Sannfrye, sem hesitar. — Estarei encarregado de tal evento e,

pessoalmente, tratarei de conceder-lhe o sempiterno perdão sacramental. Será uma

honra para minha pessoa poder conduzir esta dádiva.

— Por fim, — falou Adryan e seu semblante alterou-se novamente, ficando

muito mais sombrio e funesto. — Quero minha vingança particular contra

Menfesis. Desde os mais inocentes arcanos até os experientes sacramentadores e

líderes dos Octaedros, quero todos presentes no dia em que eu julgar Arturo diante

da multidão de testemunhas de nossa religião.

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Nodovra segurou a respiração, aterrorizado com as exigências de Varnor.

Sannfrye exalava plenitude, como se falassem de uma manhã de sol ou qualquer

assunto corriqueiro. O antigo líder de Hegemonia balançou a cabeça, com a

serenidade ímpar estampada no rosto.

— Terás seu julgamento, Adryan — falou Sisno. — Representando este corpo

sacramental, afirmo-te que a justiça atingirá Menfesis com a balança de poder que

terás para tal. Mas, ratifico, somente poderás lograr este êxito se garantir sua ida

para depor o atual líder da Ordem de sua posição.

Adryan sorriu, satisfeito. Arrebatou a espada de prata usada para dilacerar o ogro

na floresta e guardou-a em seu alforje. Tomou uma capa dourada repousando em

um dos braços do trono e ajustou o arco, cruzando-o sobre as costas. Apertou a

mão de Sisno com vigor e o encarou no fundo dos olhos.

— Tens a minha palavra: farei Arturo Menfesis despencar do topo do trono de

Purysia.

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Capítulo Quarenta e Um

Ataque Noturno

Esgueirou-se pelos corredores, sorrateiramente. Tentava manter a displicência

em seu rosto tenso e nada convincente, como se estivesse apenas fazendo sua ronda

noturna de um dia qualquer. Ninguém poderia descobrir o que estava indo

realmente fazer. Era sigilo absoluto e ganhara uma prata violenta para realizar o

serviço solicitado por sua contratante, o qual ela não tinha coragem de fazer. Ele a

entendia. Uma pessoa da alta sociedade, tendo título de nobreza, jamais sujaria as

mãos com uma tarefa tão violenta e vergonhosa. Ceifar a vida de alguém, a sangue

frio, sem ninguém ver, não era um serviço para qualquer um. Sorte a sua ter alguma

experiência com assassinato. Tudo bem, nunca arriscou matar um ser humano,

somente animais menores e um ou outro mais parrudo. Certa feita, encarou um

urso-silvestre. Era enorme, monstruoso. Dois dele em altura e três em largura,

praticamente. Sacou a espada com destreza e perfurou o bicho tantas vezes quanto

pôde, impulsionado pelo medo dominante. Afobado, estava desesperado para não

virar comida de urso. O animal agonizava, mas resistia. Vociferava, arreganhava os

dentes e agitava as patas poderosas contra ele. Mas fora mais perspicaz e inteligente

do que o urso e conseguiu exterminá-lo. Os parentes e amigos não acreditaram

quando contou a história, sorte a sua ter trazido a cabeça e a pele do urso para

provar.

As luzes do castelo começavam a diminuir. Lembrava dos anos em que o palácio

vivia abarrotado de gente. Eram os Bravior, os Wallensig, os Zanotchka. Todos

juntos, crianças, adolescentes, jovens. Uma algazarra preenchendo os corredores,

torres e salões de um vozerio silenciado somente altas horas da madrugada. Nas

festas, viam o dia virar tarde e depois noite e outra vez manhã, sem pregarem os

olhos. Havia dias em que só queria um momento de paz, depois de assumir seu

turno como soldado com uma baita ressaca do dia anterior. Com o passar dos

ciclos, o silêncio mortificante passou a tomar conta do castelo muito cedo. De uns

meses para cá, depois da morte de Lorde Elliotr e do rei Maximo, a quietude era a

única coisa a reinar. Obviamente, havia suas exceções. A rainha Astúrias ficara

levemente mais escandalosa. Antes, sequer abria a boca pelos corredores ou falava

com os empregados do palácio. Os embates com o neto, Petr, se tornaram

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corriqueiros pelo castelo. E não havia hora para acontecer. De dia, de tarde, de

noite e até de madrugada, as vozes alteradas berravam uma com a outra, por temas

muitas vezes insignificantes e idiotas. Como mero guarda da realeza, fingia

demência, agindo como se nada estivesse acontecendo. Eles, nobres, que se

entendessem. Depois que Lorde Petr nomeou Chermont, o antigo mordomo,

como o novo Príncipe Regente e partiu para Eurodian, Lady Astúrias vivia trotando

pelos corredores, sempre com a cara amarrada e resmungando. Na última semana,

a rainha não deixava de lançar olhares para ele, sempre que o via estático na entrada

da ala norte, exatamente o caminho para seus aposentos. Ouvira certa vez uma

história sobre Lady Janisi e um soldado que fora seu amante, cujo romance

começou assim, com troca de olhares e gestos disfarçados. Claro, a maior parte do

conto era boato. Esse dito cujo em especial adorava contar vantagem, mas ninguém

jamais percebera esses tais olhares libertinos por parte da duquesa, como ele tanto

afirmava. Mas começou a suspeitar das intenções da antiga rainha e que talvez ela

estivesse a fim de seus serviços masculinos, afinal, seu ex-marido morrera havia um

tempo, podia estar sentindo falta. Apesar de ser coroa, ela ainda dava para o gasto.

Estava bem inteirona, com peitos durinhos e uma boca bem carnuda. Ia adorar

poder se gabar para os outros amigos, nas conversas de bar, que dera umas boas

estocadas na rainha de Snartria. Ia ser um triunfo inigualável.

Uma noite, após o jantar, depois de uma longa discussão com o Príncipe

Chermont, Lady Astúrias o abordou no corredor. Olhou para ambos os lados até

se certificar de que não havia mais ninguém além de ambos. Tentou de todas as

formas, mas era impossível desviar os olhos dos seios bacanas da rainha.

— Escuta aqui, soldadinho. Eu tenho uma missão para você!

Assentindo prontamente, apurou os ouvidos.

— É claro, minha rainha. Em que posso ser-lhe útil?

— Você já matou alguém?

Sobressaltou-se no mesmo instante com uma pergunta tão direta e quase deixou

a espada empunhada cair. Arregalou os olhos e titubeou para responder.

— Anda, traste. Te fiz uma pergunta. Já matou ou não?

— Na-não... mas se-sei o que pre-precisa...

— Estou te pedindo isto porque você é o soldado mais antigo da guarda da parte

norte. Reparo em você há muito tempo. É sempre o mesmo rosto de prontidão no

turno da noite. Então, presta bastante atenção no meu pedido. Pedido, não. É uma

ordem, uma intimação. Quero que acabe com a vida de Chermont.

Quicou onde estava no mesmo instante. A espada caiu no chão, reverberando

pelas paredes do corredor silencioso e atrapalhou-se com o capacete.

— Ma-mas, rainha, e-ele é...

— Não me interessa o que ele é, ou o que o inútil do meu neto o transformou.

Chermont é um plebeu desprezível e não merece ter o poder que detém e tampouco

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assentar-se sobre o trono de Snartria. Quem deveria estar sobre aquele lugar era eu!

Ouviu? Quanto você quer para assassiná-lo?

Outra vez, hesitou. Era um pedido maluco de uma senhora tresloucada. Uma

coroa gostosa, mas perturbada. Mas ela era a rainha ainda, pertencia à família real

e, entrementes, jamais foi com a cara de Chermont. Sempre o achou muito lerdo,

como se fosse bobão propositalmente para poder chegar onde chegou. Se Lady

Astúrias confiava tanto assim nele para fazer um pedido como este, quem sabe o

que não poderia conseguir através dela? Não esperava poder comer a rainha,

embora essa fosse a recompensa que transitava em seu imaginário. Mas, se

conquistasse sua confiança e ela se sentasse no trono para governar o reino, ele

poderia ter outros benefícios, como uma pequena fortuna vinda direto dos cofres

reais.

— Cem mil moedas de ouro.

— Feito — respondeu Lady Astúrias de imediato e puxou uma pequena adaga

do vestido. — Vê essa lâmina? Está enfeitiçada com magia venenosa. Se atingir

qualquer minúsculo vaso sanguíneo daquele embuste, ele morre em frações de

segundos. Não vai dar tempo nem mesmo dele clamar por socorro. Você espera

ele cair num sono profundo e crava essa faca nele. Depois, dá um jeito de sumir

com o corpo. Sem deixar rastros. Me entendeu?

— Sim, minha rainha.

— Certo. Ah, e se ousar falar para alguém que fiz este pedido a você, juro pela

minha vida, eu arranco tuas bolas e faço você virar um eunuco em Priotier.

— Não, minha rainha. Cumprirei com o combinado.

O silêncio da madrugada reinava pelo castelo em mais um turno sorumbático.

Até mesmo os outros guardas cochilavam em seus postos sem medo de represálias.

Sabiam que ninguém iria até lá conferir se estavam de prontidão ou não. Deslizando

com a faca agarrada à sua mão, tomando o máximo de cuidado para não encostar

na lâmina envenenada, aproximou-se da porta do dormitório do Príncipe

Chermont. Não havia ninguém por perto. Conseguira elaborar uma boa esparrela

para assegurar que não haveria um soldado sequer no corredor leste àquela noite

— nada como alguns barris de rum com um poderoso sonífero para dar conta do

recado.

A porta estava entreaberta. A única luz dentro do aposento era de uma vela

consumida até a metade, queimando num extremo, em cima de um guarda-roupas

com uma porta escancarada e várias roupas emboladas dentro dele. A respiração

compassada de Chermont era pesada. Devia estar possuído por um cansaço

descomunal. O ruído de sua inspiração e expiração era bem audível, embora não

roncasse. Sobre a cama, vislumbrava a silhueta do príncipe regente debaixo das

grossas cobertas de algodão amontoadas. A situação era propícia. Não havia como

errar. Não havia testemunhas e o quarto era abafado o suficiente para impedir um

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mínimo ruído sequer escapar para os corredores. Um único golpe certeiro, em

qualquer região de seu corpo, seria suficiente para provocar uma morte rápida,

cirúrgica, sem que ninguém percebesse. O jovem tampouco saberia quem o matou.

Se o veneno agia rápido como narrado pela rainha, uma única perfuração seria

suficiente.

Aproximou-se do pé da cama e ergueu a lâmina. Respirou fundo e contou até

três. Iria desferir o golpe e aguardar. Depois, enrolaria o corpo do príncipe nos

próprios cobertores e o levaria nos ombros, como um fardo de algodão, até um

buraco escavado na masmorra mais profunda do castelo. Seria rápido e fácil.

Ninguém notaria.

Contrariando suas próprias expectativas, uma mão surgiu de chofre. Outra lâmina

reluziu com o brilho bruxuleante da vela. Atarantado, o soldado sentiu uma dor

lancinante atingi-lo na altura do estômago. A lâmina brilhou outra vez. Sangue

jorrou dos braços e do peito. A faca envenenada caiu no chão e rolou para debaixo

da cama.

— Você por acaso acha que sou idiota?

Tentando sorver o ar, o guarda ouviu o timbre enérgico e soturno de Chermont

ecoar pela penumbra do quarto. O rosto do jovem príncipe se iluminou, quando

outras velas espalhadas pelo perímetro se acenderam a um estalar de seus dedos.

— Você realmente achou que conseguiria invadir meu quarto e tirar minha vida

assim, tão facilmente? — Chermont moveu a adaga firme em seus dedos e perfurou

a artéria do guarda. — Acreditou que eu não saberia de sua tramoia com aquela

megera? Ouça pela última vez, porque sua vida está se esgotando: eu mando neste

palácio. Essas paredes agora têm ouvidos. Os traidores de minha linhagem serão

severamente punidos. Todos os que se unirem aos Bravior, serão considerados

inimigos da minha realeza.

Pisando o chão com passadas firmes, estatelando os chinelos sobre o piso

lustroso dos corredores da ala norte, o pijama de seda de Chermont esvoaçava,

conforme ele ia avançando, determinado, até um dormitório específico, o maior e

mais imponente daquelas bandas. Uma expressão enfezada ocupava seu rosto,

marcado por filetes de sangue que respigaram do soldado moribundo jazendo então

em seu quarto. A faca usada para matá-lo permanecia segura, com a lâmina

devidamente limpa, agarrada aos seus dedos como se tivesse criado raízes em sua

mão direita.

Cumprimentou alguns guardas do corredor com simpatia exacerbada e um longo

sorriso na face. Eles retribuíram, sorrindo de forma afável, sem conseguir esconder

um indelével bocejo. O estupor em seus rostos era visível e as olheiras profundas

denotavam o cansaço de quem ainda não estava habituado ao turno da noite. Mal

haviam notado os detalhes por trás da expressão simpática do príncipe regente; o

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estado pressuroso era notório, quando passou por eles como quem está atrasado

para um evento muito importante, mas sem deixar de demonstrar alguma

cordialidade.

Escancarou a porta do quarto e vislumbrou o rosto alarmado de Astúrias,

despertada com o safanão inesperado de Chermont. Os cabelos grisalhos estavam

armados e, no rosto, uma máscara de um creme esverdeado impregnava as

bochechas, nariz e testa. A alça do robe escarlate pendia para o lado, revelando o

ombro marcado por variadas sardas avermelhadas de tamanhos e formatos

distintos.

— Mas o que é isso? Como você ousa...

A faca de Chermont cravou-se no instante seguinte sobre as costas da mão de

Astúrias. Os olhos se esbugalharam e vidraram na ferida, começando a escorrer

sangue. Escancarou os lábios na iminência de emitir um longo uivo de dor, mas foi

rapidamente interrompida e abafada pela mão do príncipe regente, tapando sua

boca.

— Escuta bem, sua megera maldita — sibilava Chermont, próximo do ouvido da

rainha. — A partir de agora, as coisas vão ser um pouco diferentes aqui nesse

palácio. Eu não sou o imbecil do seu ex-marido, muito menos o ingênuo do seu

neto. Ou você dança conforme a minha música, ou sofrerá graves consequências

por sua insubordinação. Me ouviu bem, sua velha?

Astúrias não conseguia pronunciar uma única palavra. Balançou a cabeça

repetidas vezes, confirmando ter compreendido muito bem o que o antigo

mordomo dissera. Lágrimas de dor escorriam de seus olhos e a ferida da lâmina

encravada em sua mão latejava, fazendo-a sentir espasmos atroadores percorrerem

o seu corpo. Chermont puxou a faca de uma vez e, virando-se, saiu do dormitório

sem olhar para trás, batendo a porta com força.

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Capítulo Quarenta e Dois

Amor Bestial

Olhando as próprias mãos, Louk estava transtornado. Transtornado talvez não

fosse o termo correto, embora fosse o único adjetivo a perambular sua mente

cansada desde o instante em que pôs os pés para fora da arena. Decepcionado seria

a palavra adequada para a forma como se sentia. Era difícil acreditar que perdera

mais um desafio. Não estava nem entre os três primeiros. Embora não fosse o

último — felizmente, o derradeiro colocado era uma verdadeira mula, um completo

imbecil. Admirava-se de o dito cujo conseguir andar, respirar e falar ao mesmo

tempo, para ele era um feito excepcional. Não conseguia entender porque Aladar

enviara um cara tão presunçoso e idiota para ser o novo protetor do continente.

No primeiro teste, teve de ser socorrido por guardas do Conselho: teria morrido

afogado quando a água inundou o trecho do labirinto em que estava. No desafio

de Poder, o tal Guilloch foi atingido na cabeça pelo porrete de um ogro e desmaiou.

Isso em dez segundos de prova. Mas, ele próprio, era apenas o quarto colocado,

atrás de uma dondoca ruiva, um fedelho de treze ciclos de idade e um rapaz que

mais parecia um nerdão de escola.

Penara para derrotar um monstro elemental de pedra e quase fora esmagado umas

três vezes pela criatura. Cansou mais rápido do que qualquer um dos outros quatro.

Também pudera, teve de correr mais do que todos pela arena para escapar da morte.

Depois de muito custo e mais de uma hora fugindo e se esquivando, para sua sorte,

conseguiu conjurar uma serpente de terra que se enroscou em seu oponente e o

despedaçou. O mais inacreditável desse desafio ainda era o fato de um garoto de

trezes ciclos tem derrotado uma legião de gnolls e uma hidra abissal em questão de

segundos. Quando relembrava, ficava abismado. E se podia ficar pior, para

humilhar sua condição física e seu nível de poder, o moleque ainda se multiplicou

em vários para obliterar o monstro. Mas Bald já havia comentado sobre ele. Petr, o

menino-prodígio do clã dos Bravior. Dizia-se que sua força mágica se igualava a do

lendário Hazer Gundorf. Estava mais do que provado, diante de uma multidão e

de todo o Conselho: o garoto tinha um poder assombroso. Começava a questionar

se deveria ter se oferecido como Guardião de Turmis, quando teve de voltar com

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o rabinho entre as pernas para casa e suplicar o perdão de seus pais, tios e tias, bem

como do conselho real, que fazia jus à alcunha de austera do reino de Amistelar.

Que lembranças terríveis tinha daquele dia. Uma data para lançar no

esquecimento. Depois de ter o coração amassado, atropelado, rasgado,

despedaçado, triturado, moído e pisoteado por Dhara, perdera completamente o

rumo de sua vida. Até respirar parecia não fazer muito sentido mais. Brigara com

os pais e com os nomes mais importantes do reino por causa de um amor

considerado por eles uma coisa execrável. Abdicara da herança, da fortuna e da vida

de luxos e confortos no palácio para viver um amor inimaginável, mas que o

arrebatou com uma intensidade implacável como o mar de Aerogner em fúria. Mas

aquela elfo que ainda perturbava seus sonhos, tornara-se frígida de uma hora para

outra. Obliterando seus sentimentos, limitou-se a dizer que havia um abismo entre

eles e terminou de enterrar seu coração ao afirmar não o amar. Sequer correspondeu

os beijos, quando a tomou nos braços, pressionando os lábios nos dela com a força

da paixão o impelindo a prosseguir. Sem amor, sem paixão, nem um pingo de

sentimento. A bela elfo que conhecera em uma loucura em Paragon, a quem beijara

num baile em Cruisand, tornara-se um ser obscuro, desprovida de emoções.

Retornara para Amistelar três dias depois, tentando compreender o ocorrido, onde

foi que errara. O olhar inquisidor de seu pai, aguardando-o no porto, foi a primeira

coisa a vislumbrar. Foram dias intermináveis tendo de ouvir os sermões

causticantes do pai e da mãe, explicando cada detalhe de cada palavra a ser dita aos

demais Savya, Ottonis, Gundorf e Stanhorne em seu discurso de perdão. Tim-tim

por tim-tim. Até mesmo o tom de voz a usar para os familiares e conselheiros reais.

Não poderia parecer arrogante, de forma alguma. Mas ao mesmo tempo, tinha de

denotar imponência, como um verdadeiro nobre e herdeiro da coroa. Assim como

uma ovelha rumando para o abatedouro, ele seguiu até o anfiteatro, onde todos já

estavam reunidos. Os narizes em pé e um menosprezo estampado em suas faces,

eles se espalhavam pelo recinto, com papéis e lápis nas mãos, prontos para anotar

tudo o que estava disposto a dizer e com uma infinidade de questionamentos

enfurnados em suas cabeças. Quase cinco horas de preleção e perguntas e respostas

depois, Louk cumpriu com seu dever, seguindo à risca o protocolo de seus pais.

Nem presunçoso, nem fraco. Atacado diversas vezes, decidiu não dar vazão às

palavras cuspidas, carregadas de ódio. Não permitiu que o sangue fervesse e

perdesse a cabeça. Como mandava o roteiro, todos concordaram ao final que ele

ainda era a melhor opção para Guardião de Turmis. Todos, menos ele próprio.

Contudo, faria o que precisava ser feito. Seguiria os protocolos. Nada mais

importava.

Os dedos machucados doíam e a cabeça latejava. A balbúrdia do lado de fora

ribombava nas vidraças de seu aposento, no palacete do governador, em uma ala

especialmente reformada para abrigar o novo Círculo dos Cinco, durante os dias

525


do evento em Paragon. Uma singela confraternização, promovida pelo próprio

Salazar, fora marcada para o fim da noite. Iriam beber e jantar no Salão Principal,

juntamente com os reis, rainhas e outros nobres que vieram à cidade acompanhar

o segundo evento. Sinceramente, desejava mesmo era deitar naquela cama

confortável, de travesseiros macios e dormir. Fingir que nada daquilo estava

acontecendo. Que sua vida maluca e essa sina maldita eram um intragável pesadelo

e logo, logo acordaria para uma realidade em que estaria plenamente feliz e

satisfeito, ao lado de Dhara.

Toc, toc.

Duas batidas suaves na porta fizeram Louk despertar de seu estado sorumbático.

Percebeu ainda estar enrolado numa toalha. Vestiu uma calça qualquer largada pelo

caminho e caminhou sem muita pressa até a entrada do dormitório. Imaginava ser

algum empregado do Conselho, transmitindo uma mensagem provável de Lorde

Moronov para não se atrasar. Ainda era cedo para juntar-se aos demais guardiões

no andar de baixo. O céu estava claro, com o fim da tarde transitando para a noite

numa velocidade de lesma. Stanhorne fora categórico sobre o horário: quando a

noite reinasse e a lua estivesse plena sobre os céus de Paragon.

— Pois não?

— Olá, Louk.

O guardião ficou alguns segundos estático, segurando a maçaneta da porta,

embasbacado com o que via diante de seus olhos. Era impossível acreditar que,

parada a sua frente, Dhara Lovrens o encarava, com seus belos, brilhantes e grandes

olhos castanhos em um rosto angelical denotando acentuada preocupação, mas o

arrebatava para um mundo onde tudo aquilo só poderia ser um sonho. Os longos

cabelos ondulados pareciam ter brilho próprio. Não conseguia deixar de notar os

lábios esculpidos tremulando, ainda que tentasse exalar uma sobriedade sem muito

sucesso. As lembranças do dia em que a bela elfo diante dele destruiu seus

sentimentos, atropelaram o fascínio arrebatador, puxando-o outra vez para a

realidade aterradora.

— Veio rir da minha cara ou o quê? — questionou Louk, ríspido, largando a

maçaneta. Era difícil manter-se por muito tempo encarando Dhara nos olhos. Mais

difícil ainda era controlar o coração acelerado.

— Sabes que jamais ousaria me utilizar de algum escárnio contigo.

— Então o que quer aqui? — Louk cruzou os braços, conseguindo erguer a

cabeça para mirar a sacramentadora.

— É imperativo que conversemos, eu...

— Conversar o quê, Dhara? — Louk sentiu uma ponta de raiva incidir sobre o

tom de voz. — Você deixou tudo muito claro aquele dia. Parece que minha

felicidade floresceu em Paragon, evoluiu em Cruisand e foi assassinada em Gradia.

Não há nada a dizer.

526


— Poderias ao menos convidar-me para adentrar este recinto e conversarmos

civilizadamente?

Louk esticou o braço e a sacramentadora entrou no aposento. Elegante em seus

trajes de seda fina de tons azul-turquesa, a elfo postou-se próximo à janela,

respirando compassadamente.

— Não tenho a presunção de ter seu perdão ou mesmo que venhas a dar-me

razão diante do que hei de expor. Nós, elfos, somos educados ao desenvolvimento

da racionalidade, fazer ouvir a voz da razão acima da emoção. Contudo, não há

como se desvencilhar por todo sempre dos sentimentos que possam aflorar ao

longo de nossas jornadas. Mas fomos educados a compreender como o caminho

dos sentimentos, das emoções pode conduzir a trágicos encerramentos.

Aprendemos ao longo das eras com o exemplo dos humanos, que deram ouvidos

às emoções e traçaram uma rota de incertezas e de levianos pecados, lançando

nosso mundo, por diversas vezes, à ausência completa de harmonia, às guerras,

fomes, embates e toda sorte de desgraças.

— Onde você quer chegar, Dhara?

Louk observava a elfo e sua postura imponente dentro do quarto. Contudo, algo

em sua expressão denotava desconforto, uma resignação esdrúxula, impossível de

se esconder em seus trejeitos, por mais livres de emoções que eles pudessem

parecer. Encará-la, para ele, provocava uma dor lancinante, difícil de se conter.

— Há um profundo abismo entre nós, Louk. Nasci com um propósito que

suplanta a sina desta singela vida e está além do que sua mente pode compreender.

O destino do meu caminho até a consumação de meu destino está entrelaçado com

as vias tortuosas e incertas do tempo. Contudo, sei que nossas vidas não deixarão

de se encontrar ao longo do percurso dos ciclos. Como protetores em Eirin,

cabendo a mim a sacramentação do tempo em Hegemonia e a ti, o dever altruísta

de defender a harmonia sobre Turmis, haveremos de nos esbarrar nos eventos e

formalidades da alta sociedade. Rogo-te que haja entre nós, ao menos respeito e...

— Respeito? — questionou Louk, exasperando-se. — Você vem até meu

dormitório, depois de ter acabado com minha vida, pedir respeito?

Dhara sustentava um olhar aflitivo, mas não abaixava a cabeça.

— Eu não acabei com sua vida, Louk. Não consegues compreender minhas

palavras? Há um abismo entre nós. Um sentimento bestial que jamais poderia ter

sido despertado.

— Eu abdiquei de tudo por você, Dhara. Eu te amei de verdade, como nunca

ninguém jamais vai te amar.

— Não compreendes: eu nunca quis ser amada. Por toda minha vida, minha mais

ardente expectativa era poder me tornar serva da sacramentação do tempo e dedicar

os meus ciclos à minha religião com meu intelecto, por um bem maior. Mas você

surgiu e sorrateiramente provocou uma oscilação inesperada na malha do tempo

527


de minha vida, fazendo brotar um sentimento que embaralhou a minha mente. Um

sentimento que eu nunca experimentei.

Louk estacou onde estava. Arfava ruidosamente. Podia sentir a pulsação acelerada

de seu coração. Lágrimas rolavam dos olhos de Dhara, mas ela não baixou a guarda

um instante sequer. O olhar petulante e o queixo duro permaneciam estáticos, mas

o choro era inevitável.

— Eu quero, mas sei que não devo. Nós, elfos, vivemos quinhentos ciclos e

vocês, próximo de uma era, no melhor dos casos. O que farei quando você se for?

Quando o tempo torná-lo um ancião e você suspirar pela última vez, como vou

viver sem tê-lo por perto, mesmo que para amá-lo à distância? Não posso

potencializar a voz a urgir dentro do meu coração e permitir que ela oblitere o

discurso decorado e repetitivo de tantos ciclos martelando em minha mente.

Louk ignorou os inúmeros questionamentos aflorando em sua cabeça, deixou de

lado o orgulho, a raiva e o medo. Impelido pela voz da emoção, o guardião

atravessou o quarto e agarrou o rosto de Dhara com veemência. Os dedos

entrelaçaram-se aos cabelos encaracolados. Os lábios de ambos se tocaram de um

jeito desesperado. Pressionavam-se um no outro com o ardor de um casal

apaixonado que não se via há meses, há ciclos, há décadas. Beijavam-se com

saudade. A saudade de um sentimento aflorado em Louk, mas ainda reprimido no

âmago da sacramentadora.

A mão direita de Louk afagou os cabelos da elfo e a esquerda posicionou-se

delicadamente sobre seus quadris. Os beijos tornaram-se intensos. Dhara beijava-o

com pressa e desespero. Correndo as mãos por suas costas desnudas, beijava-o

como se sua vida fosse acabar em breve e este fosse seu último desejo. Mordiscava

seus lábios e colocava a língua, como se aqueles fossem seus derradeiros momentos

de vida e ansiasse por esse beijo.

Livre de decisões arquitetadas movidas pela razão, Dhara desabotoou, num

arroubo selvagem, os botões do longo vestido azul, pressurosa. Louk despiu-a com

violência, deixando os seios desenhados e o abdômen da elfo de fora. Moveu os

lábios direto para o pescoço e dali correu a língua para os ombros e em seguida

para os peitos. Sugava os seios dela com ferocidade. Lambia os bicos dos peitos e

não parava de descer, correndo outra vez a língua quente pela barriga.

Dhara revirava os olhos, com um espasmo de prazer percorrendo seu corpo.

Agarrava os cabelos bagunçados e ruivos de Louk, sentindo a língua ardente do

guardião percorrer seu ventre com um toque molhado e sensual. Jamais havia

sentido aquilo. Nem mesmo quando desembarcara em Purysia para ser uma arcana,

sentira tamanho prazer e felicidade dominar-lhe como naquele momento. A

sensação arrebatando seu espírito e tomando conta de suas faculdades mentais era

indescritível. Uma coisa que, em tantos ciclos e pouco mais de uma era, jamais

desejou ou mesmo teve interesse em saber. Algo considerado execrável,

528


abominável aos olhos de seus mentores, arrebatava sua consciência naquele

instante, lançando-a em um êxtase irracional.

Louk agarrou Dhara pelo colo e jogou-a sobre a cama. Terminando de despi-la,

o guardião enfiou a língua no meio das pernas da elfo e sugou com força, repetidas

vezes. A sacramentadora urrou de prazer. Cravou os dedos sobre o colchão,

sentindo as ondas de uma satisfação descomunal e indescritível percorrendo cada

centímetro de seu corpo. Segurou firme os cabelos de Louk, quase arrancando-os

do lugar e o instigava a prosseguir. Não queria parar. Queria continuar a se deliciar

com tamanho deleite. Cada vez queria mais e mais. Perdera o controle de sua

racionalidade. Ignorava por completo a voz da razão que a levou até ali. Almejava

por muito mais desse sentimento esdrúxulo, mas que a completava de uma forma

inigualável.

O Guardião de Turmis avançou sobre a cama e abriu as pernas da elfo. Ela não

parava de suspirar, arrebatada pelo prazer. Correu os dedos por sua vulva,

demorando-se um pouco mais, sem deixar de observar as expressões dela em

êxtase. Empunhou o próprio pênis e penetrou-a em seguida. A sacramentadora

arregalou os olhos, gemendo ainda mais alto. Os lábios de Louk e Dhara se

encontraram outra vez, em beijos ardentes e indomáveis. Ela arranhava suas costas

e agarrava seus braços com ímpeto, puxando-o para si. Ele conduzia o movimento,

sugando os seios da elfo outra vez.

Dhara arriscou beijar o pescoço do guardião, provocando nele o prazer que ela

tanto sentia. Movendo-se com destreza, Louk virou-a de bruços e correu a língua

por seu pescoço. Os espasmos de satisfação outra vez percorreram seu corpo

quando o guardião moveu os lábios por suas costas, subindo e descendo e subindo

outra vez, mordiscando de leve sua orelha. A pele arrepiava e os cabelos da nuca se

ouriçavam. Puxando-a pelos quadris, ele penetrou-a novamente. Dhara gemeu

outra vez. Repetindo o movimento, não parou até ambos chegarem ao ápice.

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Capítulo Quarenta e Três

Ressurgido das Cinzas

Lançando olhares assustados por detrás dos ombros e esquadrinhando cada lugar

escuso e grotesco por onde passava, Selena seguia trotando, aos passos largos,

desconfiada de qualquer figura suspeita ao redor. Deslizava por vielas obscuras,

escondendo o rosto atrás de uma echarpe azulada para ninguém a identificar. As

ruas de Cruisand estavam abarrotadas. Pessoas de todos os tipos e trejeitos

perambulavam de um lado a outro. Umas, elegantes e de feições simpáticas, outras

de aspecto hostil e mal-encaradas. A iminência do último evento do Ano da

Elegibilidade fazia cada estrada, rua, viela e beco da grandiosa cidade fervilhar de

gente vagando nos arredores da arena construída pelo Conselho, para poder

garantir seus lugares na competição e fazer valer a sorte, fosse vendendo bugigangas

mágicas ou apostando no melhor dos cinco concorrentes.

Esbarrando em intermináveis filas de transeuntes e comerciantes pelos becos

estreitos e tortuosos da parte mais afastada do centro, a jovem guardiã avançava,

suspeitando de tudo e todos no seu caminho. Uma sensação esquisita teimava em

tentar dominá-la, como se alguém a estivesse seguindo, vigiando cada um dos seus

passos. Tanto em Miliat quanto ali, por onde quer que fosse, era como se um par

de olhos acompanhasse seus movimentos.

O ceticismo era crescente. Não conseguia ainda acreditar que havia conseguido

escapar dos olhares desconfiados de Bernat e perambular por ali, bem longe da

companhia de qualquer um do reino. Nem mesmo os guardas colocados pelo

usurpador do trono e que viviam em seu encalço no palácio a seguiram por ali. Não

colocara muita fé que o pretexto de escolher o enxoval para o casamento nas

tecelagens mais longínquas da cidade iria dar tão certo. O novo herdeiro — e traidor

— do trono não fizera qualquer objeção a sair sozinha, em uma cidade abarrotada

de gente, em busca de belos tecidos para confeccionar o seu vestido de noiva. O

plano não tinha como dar errado, a não ser que alguém a visse, aí poderia custar a

sua vida. Já havia comprado uns tecidos em Paragon e os escondeu no malão,

quando conseguiu entregar a mensagem para a única pessoa que poderia vir em seu

socorro.

530


Obstinada, sabia que era necessário ter marcado em um lugar distante da comitiva

de Miliat e da vista de qualquer guardião. O encontro aconteceria logo, logo numa

velha torre abandonada, próxima às salineiras, no ponto mais afastado possível do

palacete onde Bernat estava hospedado. As instruções tinham sido bastante

objetivas: vá sozinho, não seja seguido, não comunique a ninguém onde você está

indo. A frase que ouvira antes de embarcarem para o primeiro evento em Gradia

ainda martelava em sua cabeça.

A capital de Miliat ainda estava pilhada, com cinzas e rastros de destruição

dominando as ruas da cidade, em razão do intenso ataque surpresa, que culminou

na morte do Rei Bartel, de sua esposa — cujo corpo ainda não havia sido

encontrado, e na fuga de Zakkar. Selena não recebera mais notícias do amigo desde

que o vira escapar pela janela de seu dormitório. Sabia que Bernat era o traidor. O

único irmão de Bartel fora covarde o suficiente para buscar aliados, destronar e

permitir o assassinato do próprio irmão mais velho, que teria entregue sua vida por

ele se fosse preciso. A certeza mais implacável de todas era a de que o novo herdeiro

do trono faria de tudo para continuar com a coroa e não descansaria até encontrar

o corpo do legítimo herdeiro, seu sobrinho. Não caíra na história de que o quarto

dele fora explodido pelos soldados inimigos, estava convicta disso. Bernat era

inteligente e ardiloso. Ele sabia que ela sabia da verdade.

Selena fazia o jogo dele. Anunciando de supetão um casamento arranjado, sem

sequer consultá-la, cortejá-la ou mesmo indagar sua família, ele queria arrancar

informações sobre o verdadeiro paradeiro de Zakkar. Bernat era astuto o suficiente

para conjecturar que a garota sabia sobre o sobrinho, mas não diria uma palavra

sequer. Ele agiria diferente. A torturaria de variadas formas, a começar com este

casamento sem cabimento, para poder ter todos os seus passos vigiados de perto.

Mas ela não o procuraria para questionar nada. Estava convencida de que, em algum

momento, o seu silêncio incomodaria.

Semanas depois de ter anunciado a todo povo o noivado com ela, Bernat

adentrou seu dormitório certa noite. As luzes incandescentes das velas piscavam

com a leve brisa assoprando do lado de fora, pela janela entreaberta. Ela terminava

de pentear os cabelos com a escova, como sempre fazia antes de dormir e tomou

um susto, quando ele abriu a porta devagar e rodou a chave duas vezes.

Atravessando o quarto com seu costumeiro roupão listrado, a mão direita apoiava

a esquerda atrás das costas. A expressão costumeira de sobriedade capciosa ocupava

seu rosto. Selena, contudo, não movia um músculo do rosto. Permaneceu alisando

os cabelos como se nada tivesse acontecido.

— Você está tranquila. Calma demais — sussurrou Bernat, postando-se ao lado

dela, mirando o reflexo da jovem sobre o espelho.

— Haveria motivos para eu não estar?

531


Bernat contemplou o belo rosto da garota. O semblante externava uma expressão

misteriosa.

— Anunciei nosso casamento há alguns dias e a nomeação de Guilloch como o

Guardião de Aladar. Você não se pronunciou sobre nada. Não me procurou sequer

para questionar porque eu comuniquei aos miliatenses de todas as partes que me

casarei contigo, tão logo os eventos de Eurodian se encerrem.

Selena largou a escova sobre a penteadeira e colocou-se de pé. O brilho das velas

iluminava as rugas, a papeira abaixo do pescoço e a pele flácida marcando o esgar

impassível de Bernat. Com uma presunção proposital escancarada em seu rosto, a

jovem guardiã mirou o fundo dos olhos marcados por intensas olheiras do traidor

dos Ayarza.

— Eu sei quem você é, Bernat. Sei o que você fez. A marca em seu pescoço

denunciou sua farsa no dia em que o castelo foi invadido. Sei que você tentou

esconder, mas não escapou de meus olhos desconfiados naquele dia.

Bernat colocou a mão no pescoço, exatamente onde Selena vira a marca dos

invasores. Era o sinal de um pacto de traição, arquitetado para derrubar o legítimo

dono do trono. Ele, por sua vez, limitou-se a exibir um sorriso tímido, como se a

garota tivesse acabado de tecer um elogio que o deixou encabulado.

— Sabia que você tinha mais conhecimento do que aparentava.

— Nunca me casarei contigo. Jamais me amarraria a um homem asqueroso e

repugnante como você. Fui criada nesse palácio e educada por minha mãe e irmãs

a te chamar de tio, pela consideração que os Vycard tinham por sua figura. Mas

você traiu o seu próprio irmão. — Selena levantou o dedo e apontou no meio do

nariz bulboso de Bernat, com todo ódio que a consumia sendo exalado de uma

única vez, sem conseguir se controlar. — Você vendeu a cabeça de tio Bartel, tia

Elma e do Zakkar para poder usurpar o trono! Eles te amavam, eles eram sua

família. Teriam dado suas vidas por você. Que tipo de sádico, sem coração é você?

Bernat agarrou a mão da garota e a apertou.

— Sou o tipo de sádico que faria qualquer coisa pelo poder, menina. — As

palavras de Bernat soavam como um mero sussurro, pronunciadas como o veneno

ardiloso de uma serpente traiçoeira. — O tipo de sádico que envolveria o seu nome

e o de sua família em Namit nesta conspiração, caso você ouse fazer a desfeita de

não contrair matrimônio comigo. Quem não acreditará nas palavras do único irmão

do falecido rei? Os Vycard tiveram inveja dos Ayarza pelo poder que jamais

puderam ter. Inconformados com uma pequena cidade portuária, eles se uniram

aos neergurianos, pois ansiavam pelo trono e traíram os herdeiros da coroa,

facilitando a entrada dos invasores pela porta da frente do palácio real. Dissimulada,

você fingiu ajudar-me para poder me matar e assumir a coroa. Quem não acreditaria

em meu discurso?

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Selena arregalava os olhos. Não tinha nada a dizer. Cética, vislumbrava o olhar

sereno de Bernat e os lábios pronunciarem cada palavra com tamanha tranquilidade

e firmeza como de alguém a relatar um fato histórico real. O irmão de Bartel era

mais astucioso do que ela imaginava. Abaixou a mão da garota e com os dedos,

acariciou a barriga da guardiã. Movida por uma repulsa irrefreável, ela se afastou no

mesmo instante.

— Você é forte, tem coxas grossas e quadris na medida certa. Estou te dando

uma oportunidade única, Selena — sibilou Bernat, encarando a garota com um

olhar lascivo. — A oportunidade de ser a mãe dos meus filhos e viver para me dar

prazer. A única mulher que amei morreu há muitos ciclos e ela não me deu

herdeiros. Você é jovem e tem um ventre saudável. Me dará herdeiros para que eu

possa propagar minha dinastia, meu sangue, puro-guardião, sobre o Trono de Jaspe.

Uma ânsia de vômito tomou Selena de chofre ao ouvir a sentença de Bernat. Os

olhos escancarados, estarrecida, a boca imóvel e a respiração ofegante. Era

inacreditável o que escutava. Vivia um pesadelo sem fim inimaginável. Encontravase

presa em uma corda bamba, entre a cruz e a espada, sem poder clamar por

socorro. Assim como entrou, Bernat girou nos calcanhares e atravessou o quarto

outra vez. Rodou a chave duas vezes e destrancou a porta.

— Ah, — falou Bernat falou, antes de sair — eu não acredito que Elma tenha

morrido e creio que você saiba do paradeiro de minha ex-cunhada. Pode não querer

me revelar o que sabe agora, doce Selena, mas um dia você irá, nem que seja à força.

Saiba também que se ousar tentar contar algo do que foi dito neste recinto a alguém,

eu saberei. Vigio seus passos desde o anúncio do nosso casamento. Contudo, sintase

honrada. Fique feliz por eu ter te escolhido para ser a mãe de meus filhos. E não

tenha medo. Garanto que ainda sei como tratar bem uma dama.

Selena arrebatou um papel de dentro da penteadeira assim que ele saiu e se

inclinou a escrever uma carta. Não poderia contar a ninguém de sua família. A mãe

era muito idosa e as irmãs não moravam mais em Miliat. Não era tão próxima dos

tios e primos de Namit para clamar por socorro sem ser descoberta. Só havia uma

única pessoa que poderia ajudá-la de alguma forma. E esta pessoa estaria em Gradia

para o primeiro evento.

Chegara finalmente ao lugar marcado. A torre abandonada cheirava a cachorro

molhado, mofo e alguma coisa velha difícil de identificar. Estava coberta por

tapumes, embora houvesse vários buracos no reboco, por onde a luz do sol

irradiava para dentro do velho edifício e iluminava os escombros do que antes

parecia ter sido uma tecelagem. Lembrava daquele lugar na única vez em que

estivera em Cruisand, para ajudar a comprar todo o enxoval de sua irmã. Mesmo

contra vontade, seguiu acompanhando as irmãs e sua mãe e ficara admirada com o

formato pitoresco daquela torre específica, quando saiu para passear pela cidade no

533


último dia. Como sempre gostava de explorar lugares incomuns. Descobriu o

prédio por acaso, depois de ter fugido das outras irmãs para se aventurar pelas

salineiras.

— Selena?

— Tio Golmir?

Um pouco mais arrumado do que o habitual, mas sem deixar de lado seus longos

cabelos e barbas em tranças apertadas, carregadas de miçangas e badulaques

semelhante ao estilo dos guerreiros anões, Golmir Ayarza surgiu por uma

passagem. Atarantado e observando com olhos arregalados cada centímetro do

lugar incomum ao redor, o tio-avô de Bernat inspirou profundamente, apoiandose

em uma parede. Exalava um cansaço sobre-humano e suava sem parar,

empapando o colete e a camisa verde de algodão. Enfiou a mão em um bolso

interno e puxou um pedaço de papel.

— Confesso que passei alguns dias tentando decifrar esta mensagem, Selena. Foi

você quem elaborou esse enigma?

— Eu não podia arriscar que descobrissem nossa posição. Alguém te seguiu até

aqui?

— Acredito que não. — Golmir guardou a carta novamente e sorriu. — Bem,

mesmo com idade avançada, ainda sou bom em dissimulação. Se havia alguém me

seguindo, devem estar pensando que entrei aqui para tirar água do joelho. Mas, por

favor, desembucha. Por que tanto mistério? Por que estamos conversando aqui e

não no palácio de Bovir? Ele me convidou para...

— Tio Golmir, há uma conspiração em Miliat.

Golmir arregalou os olhos e balançou a cabeça. O sorriso desapareceu do rosto.

— O quê? Como assim, do que você está falando?

Selena arfava ruidosamente. Sentia-se sufocada naquele lugar. Precisava ser

rápida. Estava há muitos dias precisando compartilhar com alguém tudo o que

estava passando e as preocupações em sua cabeça. A única pessoa que poderia

ajudá-la estava diante dela.

— Nosso reino não foi atacado, muito menos pelo Rei Belbert. Foi Bernat.

Bernat traiu o próprio irmão e conspirou com alguém para que Bartel e sua família

fosse exterminada e ele pudesse assumir o trono.

Golmir levou algum tempo para digerir as palavras ditas por Selena. A revelação

da jovem guardiã acertou-o como um soco na boca do estômago. Ele parecia

estarrecido. Apoiou-se outra vez na parede e o olhar se perdeu alguns instantes em

lugar algum, como se refletisse sobre a denúncia que acabara de ouvir.

— Eu... estava convicto que Belbert não faria isso. Belbert não seria tão

dissimulado e ingênuo para cometer uma insanidade dessa. Há muitos ciclos,

gerações eu diria, selamos uma paz verdadeira entre os dois reinos. Suas palavras

só confirmam minhas convicções. Bernat me procurou assim que a poeira abaixou

534


na capital. Conversamos sobre a situação. Ele chorou amargamente por Bartel, por

Elma e Zakkar, ao ponto de me convencer. Quando ele me disse que era meu velho

amigo o conspirador, meu mundo foi ao chão. Eu não queria acreditar. Não

retornei mais à Neergúria desde então, acreditando na esparrela de meu sobrinho

enganador.

Golmir levou as duas mãos ao rosto, como se tentasse despertar de um terrível

pesadelo ou como se quisesse se derramar em prantos por tamanha desgraça e não

pudesse.

— Eu nunca confiei em Bernat. Aquele jeitinho calmo, sereno e tranquilo dele

sempre foi muito suspeito. Bertúlios e eu tivemos uma longa relação de

cumplicidade, uma parceria só interrompida com a morte de meu irmão. Acreditava

que Bartel e Bernat tivessem a mesma parceria. Nunca iria imaginar que ele seria

capaz de uma coisa abominável dessas.

— Nenhum de nós, tio Golmir. Mas...

— Vamos fazer o seguinte, Selena — falou Golmir, inspecionando o perímetro

novamente. — Irei investigar. Vou tentar descobrir quem mais está por trás dessa

conspiração. Bernat não agiu sozinho. Uma invasão como a narrada por ele teria

de ser arquitetada por pessoas com muita influência. Alguém com interesses

escusos contribuiu para o crápula do meu sobrinho obter êxito nesse genocídio que

ele provocou em nosso amado reino, culminando em sua ascensão ao trono.

— Tio, — Selena sentiu um nó na garganta e uma intensa vontade de chorar —

ele está me obrigando a casar com ele. Bernat quer... herdeiros. Disse que vai

envolver minha família nesta trama se eu não seguir suas ordens.

Golmir contraiu o cenho e levou a mão à boca, movido de compaixão pela garota.

O velho guardião balançava a cabeça, estupefato, como se não acreditasse no

tamanho da crueldade de seu sobrinho. Ele colocou a mão no ombro de Selena e

moveu os lábios sem emitir som algum, como se não soubesse o que deveria dizer

para confortá-la ou ajudá-la a escapar dessa situação.

— Minha filha, neste momento, você terá de ser corajosa. Nós precisamos

desmascarar Bernat. Faça o jogo dele. Finja estar contrariada, mas continue

simulando a resignação de ter de casar-se contra a vontade para que possamos

descobrir tudo o que for possível sobre ele. Investigarei e pedirei apoio a amigos

mais próximos no Conselho, para descobrir quem o ajudou. Não deixe de escrever

para mim e me atualizar. Seus enigmas são complexos, garanto que Bernat não é

inteligente a ponto de desvendar esses códigos facilmente.

Selena balançou a cabeça.

— Tudo bem, tio Golmir. Seguiremos assim.

Golmir deu um beijo na testa da guardiã e partiu pela mesma passagem por onde

entrou.

535


Selena varreu o perímetro outra vez. Não queria ser surpreendida por alguém em

seu encalço, algum enviado secreto de Bernart para vigiá-la. Falara de coisas que

poderiam dar fim a toda sua linhagem e a dos Vycard. Jamais se perdoaria se fosse

descoberta. Embora o medo teimasse em querer assumir o controle, ela manteve a

calma e se esquivou por uma passagem diferente.

Uma mão agarrou o braço de Selena bruscamente. Arrastada para um canto, a

jovem sentiu dedos fortes taparem sua boca com violência. Sentiu o corpo ser

conduzido por algumas vielas e ruas mais abaixo. Atarantada, não conseguia

identificar quem a forçava seguir por aquele caminho. O coração disparava.

Debatia-se e relutava, mas não era tão forte quanto o algoz que a arrebatava pelo

caminho. A soma dos seus medos se tornava uma realidade cruel à medida que se

via percorrendo becos sinuosos e obscuros. Alguém a descobrira. Um espião de

Bernart a vira adentrar a torre abandonada. Os Vycard de Namit, seus tios, tias,

primos, as irmãs, sua mãe: todos seriam mortos por causa da idiotice que acaba de

cometer. Mas estava convicta de que ninguém a seguira até ali. Bernart havia dito e

ela não acreditou. Ele a vigiaria por onde quer que andasse. Não estava segura em

lugar nenhum.

Subitamente, estacou.

O beco era mal iluminado. Alguns lençóis encardidos esvoaçavam em um ponto

lá no alto. Dezenas de janelas quebradas subiam vertiginosamente, nos dois

edifícios ladeando a viela abandonada. Não havia uma alma viva sequer. Caixas e

mais caixas de madeira se empilhavam e se espalhavam ao redor, a maior parte

podre e coberta de musgo. Um cheiro azedo como de peixe estragado invadiu suas

narinas. As mãos fortes que a conduziram até ali soltaram seu ombro e boca e

fizeram-na ficar frente a frente com ele.

Um olhar concentrado, destilando uma cólera mal contida, fixava-se em seu

semblante castigado. O homem estranho a encarava profundamente, como se

pudesse ler o íntimo de sua alma, como se a conhecesse bem. A barba espessa e

malcuidada escondia um rosto queimado de sol e marcado por muitos cortes que

ainda pareciam cicatrizar. Havia algo de familiar naqueles olhos exalando raiva e

cansaço, mas ela não sabia o quê. Os cabelos volumosos esvoaçavam com a brisa

correndo pelo beco em que estavam, agitando também uma capa azulada que cobria

as roupas maltrapilhas utilizadas por ele.

— Zakkar?

O coração de Selena deu cambalhotas no fundo do peito quando finalmente se

deu conta de quem era o rapaz diante dela. Avançou para ele e o envolveu em um

abraço apertado. Fazia muitos meses desde que o vira pela última vez, descendo a

janela de seu quarto, no dia do ataque ao palácio. Lágrimas escorreram dos olhos e

chorou de soluçar, como uma criança distante da mãe, enquanto mantinha os

braços ao redor dele, apertando-o como se sua vida dependesse daquele abraço.

536


— Onde você estava? Por onde andou? Como veio parar aqui?

Eram inúmeras perguntas pipocando em sua mente, mas ela notou que o olhar

frívolo dele permanecia. Não retribuiu o gesto dela, sequer moveu um músculo.

Estático como estava, assim permaneceu. O mesmo Zakkar de antes se apresentava

a sua frente, por trás daquelas roupas esfarrapadas e dos cabelos e barba

desleixados, mas algo nele mudara. A expressão em seu rosto era de indiferença.

Não havia nele a mesma alegria e comoção por vê-la, depois de tanto tempo

separados. Os punhos cerrados e olhar obstinado, fitava a garota como quem

observa uma estranha.

— Eu passei muitos dias me perguntando: como você poderia saber que havia

uma conspiração no castelo? Como que, por obra do destino, teve uma ideia

mirabolante de forjar minha morte para que eu, supostamente, escapasse e caísse

diretamente nos infortúnios da Floresta Demoníaca? — A voz de Zakkar destilava

um ódio crescente enquanto ele avançava na direção de Selena. — Por vários dias

me questionava por que você não veio comigo, por que não fugiu para que

pudéssemos sobreviver. Dias depois de conseguir escapar das desventuras e

ameaças escondidas no coração da floresta, eu descubro que você ficou noiva do

único Ayarza no castelo a sobreviver ao ataque surpresa. Seria realmente muita

coincidência, não é mesmo?

Selena se afastava, pé ante pé. Os olhos estavam marejados. Agarrava-se à echarpe

com uma violência descomunal. O coração palpitava. Um aperto na garganta

impelia a guardiã a querer desabar em lágrimas, a debulhar-se em soluços audíveis

naquele beco abandonado.

— Não, Zakkar...

— Por que você não deixa de cinismo e admite? — Zakkar agarrou as mãos da

garota, vociferando em sua direção. — Você queria o poder, Selena. Queria que eu

fugisse para a morte certa, queria me ver escapar do castelo para ser emboscado no

único lugar que mais temi em toda minha vida.

Selena se derramou em lágrimas e soluços intermináveis. As palavras do guardião

não tinham qualquer fundamento. Jamais faria isso com ele pelo amor e carinho

que nutria por Zakkar. Não conseguia explicar porque chorava tanto, não conseguia

contestá-lo e dizer-lhe que estava errado, que estava sendo injusto com ela. Uma

angústia se abatia sobre ela por tudo o que o filho de Bartel achava a seu respeito.

— Zakkar, não...

— Você traiu a minha família, traiu meu pai, minha mãe. Você me traiu, Selena!

— Não, não. — Selena não conseguia se controlar — Depois de tudo o que eu

fiz por você, você não pode pensar isso de mim...

— EU TE AMEI, SELENA E VOCÊ VAI CASAR COM MEU TIO! —

berrava, ensandecido. — VOCÊ ME TRAIU!

537


Desviando-se das mãos dela, Zakkar foi surpreendido por uma investida

inesperada da guardiã. Movida por um desespero irracional, a garota se lançou sobre

o colo dele e o beijou intensamente. O jovem relutou contra o ardente desejo de se

entregar à doçura dos lábios da garota. Ele tentava fugir, mas quanto mais se

esforçava, mais ela o trazia para perto, mais ela o fazia querer possui-la ali mesmo.

Esvaziando-se da cólera dominando sua razão, Zakkar finalmente se rendeu à

antiga paixão desenfreada por Selena. Enlevados pelo êxtase, misturando amor e

ódio, os dois fizeram amor às escondidas, longe dos olhares de qualquer viva alma,

naquele beco abandonado de Cruisand.

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Capítulo Quarenta e Quatro

Fúria Implacável

Uma névoa densa se agarrava às vidraças do salão. A noite ia aos poucos se

convertendo em madrugada e o frio do lado de fora pressionava os suntuosos

janelões daquele lugar incomum e isolado do restante do palácio. Diferente do dia

acalorado, cuja manhã teve picos de temperaturas bastante elevadas, o cair da noite

trouxe uma frente fria implacável e inesperada. Uma leve brisa assoprava pelas ruas

ao entardecer, convertendo-se em verdadeiras ventanias de sacudir janelas e portas

em um estralar de dedos, trazendo carregadas nuvens cinza-chumbo e, com elas, a

cerração quase palpável do lado de fora.

O ruído dos ventos assobiando pelos corredores e salões dos andares acima

invadia os ouvidos de Rudi. Calafrios esquisitos subiam por sua espinha a cada novo

barulho diferente. O jovem guardião de Elstoen se esforçava em manter a

concentração durante o treino. Não queria perturbar ninguém com seu treinamento

e preferiu buscar um ambiente afastado de tudo e todos. Encontrou um local do

outro lado do castelo. Era um grande salão que parecia um dia ter sido um solário.

Enormes vidraças ornamentadas cobriam o teto alto e as paredes eram de pedra

fria, com grandes janelões. Alguém um dia se arrependeu do solário e quis

transformar o lugar em uma espécie de estufa — e por fim, desistiu, pois nem

plantas havia por ali, só um bocado de vasos empilhados a um canto.

As lembranças da última prova do Ano da Elegibilidade não permitiam que ele

focasse no treino solitário, enfurnado no aposento mais distante do palacete do

governador de Cruisand. Depois de ter visto seu nome figurar entre os favoritos a

ganhador dos eventos, após terminar em segundo lugar na primeira prova, viveu

um inferno astral quando o segundo evento em Paragon chegou ao fim. Ogros e

Gigantes de terra. Malditos monstros elementais. Quase o trucidaram na arena. Não

era um ou dois, eram hordas, legiões de monstros se assomando sem parar. E que

vexame teve de passar, diante de uma multidão de espectadores. As energias se

esgotavam conforme mais e mais criaturas das trevas avançavam em sua direção.

Pôs-se a correr pelo gramado, em dado momento, para não ser atingido pelas clavas

enormes dos gigantes. Ainda bem que conseguiu reunir o pouco de força que lhe

restava para vencer os oponentes. Ficara em terceiro lugar no ranking geral. Mas o

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espanto absoluto ainda o abraçava quando recordava de Petr Bravior, o Guardião

de Anlevor, e sua incrível força. O garoto de treze anos não só desbaratou um

exército de gnolls de gelo em poucos segundos, com uma habilidade e destreza

assombrosa, como também aniquilou uma Hidra monstruosa, fazendo uma magia

que nem ele mesmo sabia ser possível. Ivyna fora a segunda colocada, mas ainda

assim, com muito tempo de diferença entre ela e Petr e suando bastante para

derrotar uma matilha infernal de cérberos de fogo.

Rudi comprimiu os olhos na direção do alvo. Um soldado de madeira o encarava

com olhares desenhados à tinta no lado oposto do salão inóspito. Agitando os

dedos em movimentos circulares, ele fez uma esfera elemental surgir. Continuou

sua técnica até a esfera se avolumar e triplicar seu tamanho. Movendo os braços

rapidamente, a bola mágica desprendeu-se de suas mãos e voou em direção ao alvo.

O boneco de madeira foi atingido em cheio na cabeça, explodindo com o impacto

do poder.

— Preciso ser mais rápido — sibilou Rudi, remontando o soldado de madeira

com seu poder.

Um plic-plic e ploc-ploc reverberou pelo interior do salão. Rudi não deu muita bola.

Com a densa cerração dominando os céus do lado de fora e os ventos impetuosos

sacudindo as vidraças, era de se esperar que logo, logo uma chuva torrencial

desabasse. O dia fora muito quente e o vapor das ruas iria naturalmente retornar a

elas em forma de gotas pesadas. Ao menos os ruídos fantasmagóricos nos andares

superiores seriam abafados pela chuva forte. Arqueando as pernas e agitando outra

vez os braços, sob o barulho ensurdecedor no teto, ele se preparou para um golpe

que tinha de ser mais forte e mais rápido.

O estardalhaço de uma janela estilhaçada fez Rudi imediatamente se sobressaltar.

A chuva pelo jeito estava mais forte do que imaginara. Seria granizo caindo do céu?

O calor do dia fora realmente exorbitante e pelo visto a chuva se convertia em

geada. Outra janela quebrou e na sequência mais uma e logo outra. Correndo para

poder se abrigar de pedaços de vidro ou pedras de gelo, ele levantou a cabeça para

contemplar quais vidraças tinham se partido.

Arregalando os olhos, Rudi percebeu que não estava chovendo. Não era gelo ou

água caindo do teto de vidro em sua direção. Centenas de envelopes pardos

desabavam do alto e se espalhavam pelo piso. Papéis amarelados e mágicos

eclodiam dos janelões ao redor, explodindo as vidraças, como uma cascata

poderosa a jorrar. Milhares de envelopes misteriosos inundavam o lugar,

empilhando-se e cobrindo cada centímetro do salão.

Caminhando desconfiado, o guardião esticou a mão e arrebatou uma das cartas

do chão. Abriu a aba cumprida e puxou de dentro um pedaço de papel

esbranquiçado com uma instrução categórica escrita em uma tinta espessa e

escarlate. Lançando envelope para longe, agarrou outra carta e repetiu o gesto,

540


puxando o papel de dentro para averiguar. A mesma mensagem se exibia com a

mesma tinta e da mesma cor. Tornou a abrir outra carta e depois mais uma.

As palavras se repetiam em todas elas. Escritas de forma pressurosa e desleixada,

como se pintadas a dedo naqueles pedaços de papel, elas emitiam uma ordem

expressa:

Saia do Salão imediatamente.

Siga até o corredor ao lado.

Aguarde.

Ofegando descompassadamente, o jovem Wullith amassou a carta com a mão,

desconfiado e temeroso. Sob torrentes de envelopes incessantes invadindo o salão,

ele seguiu passo a passo, caminhando em direção ao vão lateral, a única passagem

até ali.

O corredor estava vazio e as chamas das lamparinas ao longo de sua extensão o

tornavam mais lúgubre e funesto do que ele era. Os olhos comprimidos naquela

direção e o coração acelerado, dando cambalhotas no fundo do peito, Rudi não

parava de amassar o envelope entre os dedos, aguardando uma surpresa inoportuna

a qualquer momento.

Em meio às sombras posteriores ao último archote do corredor, um olhar frívolo

surgiu. Rudi vira inúmeras vezes aquele par de olhos, mas nunca com tanta cólera

e fúria impressa neles. A fraca luz emanando no final do corredor revelava uma

silhueta misteriosa e empertigada, de alguém que ele conhecia muito bem. A visão

o fez estremecer no mesmo instante. Não poderia ser realidade. Não podia estar

vendo o que estava vendo. Vegor, o irmão mais velho e fugitivo de Candorn, a

quem não via há meses, se apresentava envolto pela escuridão avassaladora do lado

oposto ao que estava.

Apertou o papel entre os dedos até a carta se esfarelar completamente. Rudi

mantinha os olhos pregados na figura oculta do próprio irmão, estacado do lado

do vão, envolto pelas trevas da alta madrugada. Caminhou lentamente, ouvindo os

pés reverberarem os sapatos pelo piso de chão áspero. Vegor permanecia imóvel,

mas os olhos diabólicos, destilando um veneno mortal continuavam vidrados nele.

— Vegor?

A voz de Rudi ecoou pelo interior do corredor. No silêncio da madrugada,

interrompido pelo barulho ensurdecedor das cartas a proliferar no salão contíguo,

o timbre do jovem soou lúgubre, mas temerário. Avançando vagarosamente em

direção ao irmão que ainda o encarava, os passos do guardião foram interrompidos

de súbito e ele se sobressaltou outra vez.

Um corpo pendeu do teto e caiu de borco bem na frente de Rudi. Enrolado em

um pano de saco, apresentava grandes marcas escarlates pelo tórax que ele

541


reconheceu de imediato como sendo sangue da vítima. Correndo para acudir o

homem, ele virou-o de barriga para cima e tomou um susto. Conhecia aquele

indivíduo, amarrado por grossas tiras de um tecido áspero e marcado por sangue.

Atarracado, de rosto macilento e pálido, sem o brilho característico de seus olhos

azuis, cuja vida fora arrancada sem misericórdia, aquele era o rei de Anvor-Elíada,

Lorde Hagar-Evon.

Rudi ergueu a cabeça, atarantado. Entre as sombras do corredor, a figura de seu

irmão havia desaparecido na calada da noite. Contemplando o corpo moribundo

de Lorde Hagar-Evon, ele percebeu um novo envelope, preso na altura do peito

do homem morto. Puxou-o depressa e abriu-o. A ficha então caiu e ele foi tomado

por um terror sem precedentes. As cartas invadindo o salão onde treinava e o

bilhete preso no peito do rei de Anvor-Elíada não estavam escritas com tinta

vermelha. Era sangue da vítima. Foram escritas de forma pressurosa para atingir

com impacto exacerbado o principal alvo de Vegor. Movido pela inveja, o irmão

mais velho ultrapassara todos os limites da loucura, tomado por um desejo

irracional de vingança particular por não ter sido escolhido como Guardião de

Elstoen.

Assombrado com aquela visão, Rudi pregou os olhos na mensagem soturna da

carta. Com letras marcadas por sangue ainda fresco, o pedaço de papel era

categórico, com uma assinatura confirmando seus maiores temores quanto ao

responsável por tal crime hediondo:

A paz e a harmonia em Elstoen estão ameaçadas.

A partir de agora, você saberá o que é ter medo.

Provará do veneno destilado por mim.

Minha fúria não se aplacará.

Vegor.

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Capítulo Quarenta e Cinco

Liderança

Cruinsand pulsava.

Nunca antes, na história recente de Eirin, um evento moveu tantas pessoas, tantas

nações e tantas raças distintas como o Ano da Elegibilidade. Centenas de milhares

de pessoas tomavam as ruas da cidade-mágica e se acotovelavam por todo canto,

para conseguirem, de qualquer forma, acompanhar aquele que seria o último teste

dos novos Guardiões. Cambistas com os ingressos remanescentes nas mãos eram

atacados por uma aglomeração de homens, anões, duendes e elfos numa tentativa

de garantir algum lugar disponível na grandiosa arena montada nos arredores do

centro da cidade, bem ao lado do palácio do governador. Apostadores faturavam

uma boa quantidade de ouro e sofriam com o câmbio de turistas que tentavam

trocar suas moedas para fazer uma fé no oponente favorito. Bonecos costurados à

mão de leões, fênix, cavalos alados, harpias e grifos desfilavam pelas barracas

montadas e as cores das nações-guardiãs pintavam as vestes dos torcedores

amontoados sobre as arquibancadas. Feitiços e magias enfeitavam os céus, exibindo

ao lado dos fogos de artifício o rosto e silhueta dos concorrentes do último evento.

Alquimestres convertiam labaredas de fogo nos animais dos reinos e os faziam

correr e saltar pelos ares, por toda extensão da arena. O frenesi tomara conta de

todos, no derradeiro desafio que finalmente definiria o grande campeão do Ano da

Elegibilidade e o líder do Círculo dos Cinco.

Moronov era todo sorrisos sobre o pináculo da tribuna mais requintada e

destacada da arena. Nunca vira tanta gente assim, em harmonia, extasiada com um

evento do Conselho dos Guardiões. Os cinco continentes se mobilizaram para

acompanhar os três desafios. Os portos das principais cidades-mágicas e até de

reinos próximos de Eurodian não comportavam mais tantos navios e embarcações

espremidas uma do lado da outra e pagavam altas quantias para garantir a vaga no

píer em que estavam. Todos faturavam de alguma forma. Aguardando para

anunciar o início do último desafio, o Chanceler dos Guardiões sentia as maçãs do

rosto doerem, de tanto exibir os dentes. Notou os humores diferentes de

Zanotchka e Stanhorne. Jamais vira Salazar sorrindo como o fazia desde a primeira

prova, em Gradia. Haviam, afinal, conquistado a harmonia das nações, a paz entre

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todos os reinos que tanto almejavam. Mas algo ainda perturbava sua paz interior,

embora Moronov fizesse questão de fingir que tudo estava muito bem, obrigado.

A comitiva de sacramentadores que partira de Zavir, escoltada pela Confraria de

alquimestres, não havia retornado. Deveriam ter regressado, pelas suas contas,

antes do segundo evento e, conforme combinado, se encontrariam em Paragon

para acertar os pagamentos e decidir os próximos passos em Purysia. Nenhuma

notícia desde então. Embora se esforçasse para disfarçar, a preocupação com este

tema lançava sobre ele uma sombra de desespero. Combinara havia alguns meses,

ainda em Gradia, com Salazar e Hamm que cada um deveria resolver três assuntos

pendentes. A questão de Purysia era uma missão particular sua. Não poderia — e

tampouco gostaria — de deixar este tema sem uma resposta concreta. Ao término

do Ano da Elegibilidade, ele sabia, Stanhorne o confrontaria. E Salazar, apesar de

sereno, era implacável. Se considerasse um assunto não encerrado como ele queria,

tomava as rédeas da situação sem titubear. Decidido, não iria esperar o líder do

Conselho interrogá-lo, tomaria as medidas cabíveis tão logo a última prova

acabasse, antes que fosse questionado sobre o assunto e pego sem as devidas

respostas.

A poucos metros de distância da tribuna de honra do Conselho, Heidlich

esfregava as mãos uma na outra com intensidade. O nervosismo teimava em tentar

se apossar de seu corpo. Inclinado sobre a cadeira, colocara a coroa real em cima

do parapeito da tribuna. Alternava os olhares com redobrada atenção no brilho

coruscante de sua própria coroa e também para o portão de acesso por onde Ivyna

logo sairia para encarar o derradeiro desafio. Vez ou outra, lançava olhares de

esguelha para sua mãe, à direita. Ela não falava com ele desde o Torneio da

Academia. A decisão de última hora em permitir Ivyna desafiar o campeão a deixara

furiosa. Não era isto que haviam combinado, mas ele achou por bem deixar a irmã

seguir com seus sonhos. Saíra da arena em Badorian no mesmo instante e desde

então o ignorava. Atravessaram Eurodian até Gradia sem que ela lhe dirigisse a

palavra. Havia uma única questão intrigante que perturbava sua paz, contudo, desde

seu regresso à Suntuosa Badorian e à intimação a assentar sobre o Trono Branco

que um dia fora de seu pai. Uma questão tirava seu sono e o fazia passar noites em

claro, contemplando as terras serenas do reino, caminhando pelos corredores do

castelo e pelas ameias, vislumbrando o extenso horizonte, as matas e cadeias de

montanhas: haveria um propósito em sua vida? Nos últimos dias, desde a revelação

estarrecedora que abalou as estruturas do relacionamento com a mãe, passou a

pensar ainda mais no assunto. Jamais se conectou à própria família, jamais quis

sentar sobre o trono e governar uma nação. Nunca foi uma unanimidade como

realeza. Era o Guardião de Eurodian e foi assim por vinte ciclos. Não viu a irmã

crescer, embora o relacionamento entre ambos tenha florescido de um jeito

magnífico. Não se assentou à mesa com o pai para tomar um café em um fim de

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tarde. Nunca brincou com os primos mais novos. A vida que aprendeu a amar era

aquela em que sua própria pele estava em risco a todo instante. A vida que amava

de verdade era a de enfrentar krakens, matar monstros e bestiais nas florestas

escusas dos lugares mais remotos do continente. Era aficionado em investigar e

perseguir mercenários, anarquistas e ladinos. A paixão que o fazia sentir-se vivo

estava em bons duelos e lutas com homens sanguinários e cruéis, ameaçando vidas

inocentes. Assentar sobre o trono e governar uma nação estava sendo a mais difícil

das tarefas de sua carreira. Ao longo de toda a sua jornada, sempre buscou um

propósito na vida. Sabia que, mesmo nas maiores enrascadas, havia um porquê,

havia um objetivo altruísta o impelindo a continuar, mesmo quando a esperança

parecia ter se esgotado. Mas, naquele momento, tendo de conviver com a revelação

execrável de uma traição de sua mãe, despedaçando a imagem de admiração que

sentia por ela e ainda precisando ocultar esse segredo de todos, governando um

reino em que não se sentia parte, pertencendo a uma corte onde se sentia excluído,

encarava um inimigo sem braços ou pernas, sem armas ou armaduras que o

derrotava dia após dia. A cada novo amanhecer, a pergunta era sempre a mesma:

qual é o propósito disso tudo?

Uma trombeta retumbou. Sonora e audível, o barulho ensurdecedor do

instrumento reboou pelos ares das arquibancadas e forçou as multidões de

espectadores a se calarem. Fogos de artifício, buzinas, chocalhos e o vozerio do

povo ao longo da arena emudeceu de imediato. Terminando de enfaixar as mãos,

Rudi aguardava solitário em sua cabine. Quando o silêncio invadiu seus ouvidos

abruptamente, ele se colocou de pé. Atônito, aguardava o pronunciamento de

Lorde Moronov, convocando os cinco para o derradeiro evento do Ano da

Elegibilidade. Dali, finalmente, sairia o grande vencedor e o mais novo líder dos

cinco protetores do mundo. Não tinha muita esperança de conquistar este último

desafio, mas faria o que fosse possível para demonstrar seu poder e ficar pelo

menos entre os três primeiros colocados. Era o evento de Liderança e ele ainda não

tinha muita certeza de como seria essa prova. Os acontecimentos de dois dias antes

ainda o atormentavam. Os olhos frívolos de Vegor, encarando-o em meio à

escuridão, lhe causavam calafrios. Avançando para a entrada da arena, notou que a

porta continuava trancada. Estendida sobre uma parede, a flâmula da Virtuosa

Candorn, com os tons verde e prata e o majestoso Corcel Alado o encarava.

Respirou fundo e apertou os dedos, fechando o punho. Seria oficialmente o

protetor de seu continente depois deste dia. Uma autoridade máxima com a missão

de defender a honra, a paz e a harmonia de todos os oito reinos de Elstoen. E se

Vegor acreditava que poderia ameaçá-lo ou a qualquer outro de seu continente,

então ele teria de enfrentá-lo. Se era guerra o que seu irmão queria, era guerra que

ele teria. A pequena e estreita porta se abriu de repente e dela saiu um rapaz

esgalgado com roupas elegantes e a insígnia do Conselho cravada no peito.

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— Lorde Rudi Wullith?

— Sim? — inquiriu Rudi.

— Siga-me, por favor — continuou o rapaz, controlando o nervosismo —

Preciso que se reúna à sua equipe.

— Equipe?

À primeira vista, Ivyna parecia não acreditar muito no que acabara de ouvir. A

moça designada pelo Conselho abriu uma porta e a conduzia por um corredor. A

guardiã não ouvia mais os ruídos tresloucados das multidões, mas, ao longe, podia

escutar um zumbido que lembrava muito a voz de Moronov falando. Se ele estava

passando instruções, ela não acompanhava. Continuava seguindo a jovem de preto,

avançando lentamente por um corredor escuro. A última prova, pelo que sabia, era

de Liderança e passou muitos dias se perguntando como esse evento seria. Teria de

liderar uma equipe, aparentemente. Mas contra o quê? O que o Conselho estaria

preparando desta vez? A prova de Força fora dificílima e vira Petr ganhá-la

disparado, com tamanha facilidade e uma demonstração de poder impressionante.

Sendo filho de quem era, não fora tanta surpresa vê-lo sair vencedor daquele

desafio.

— Petr?

— Ivyna?

As portas da sala oval foram se abrindo. Os integrantes da equipe surgiam aos

poucos, guiados por representantes do Conselho, que tão logo entravam por uma

porta, saíam por outra. Revelando uma expressão embasbacada, cada novo

membro do time fitava as caretas surpresas uns dos outros.

— Rudi?

— Louk?

— Guilloch?

— Então — Ivyna não escondia a surpresa no rosto — vocês são... a equipe? Ou

estão esperando a equipe de vocês?

— Acho que é bem óbvio, não? — crocitou Louk, tão estupefato quanto os

demais, observando as portas por onde vieram todas fechadas. — Se os homens de

preto aí falaram que íamos conhecer a equipe. E, bem, não estou vendo mais

ninguém além de nós mesmos.

— Mas... este não é um teste de Liderança? — inquiriu Rudi, olhando de Louk

para Ivyna. — Se somos uma equipe, quem irá... bem... liderar?

— Também não é óbvio? — questionou Louk, como se fosse realmente óbvio.

A expressão confusa no rosto dos outros quatro guardiões denotava que não era

tão evidente assim quanto ele achava.

— Não, não é óbvio — grunhiu Guilloch, bufando — Quem vai ser o líder,

cabelo-de-fogo?

— Cabelo-de-fogo é a múmia da tua mãe!

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— Tua mãe que é a...

— Não põe a mãe no meio, que eu ponho no meio da tua!

— Você começou, seu ani...

— Meninos, por favor!

— Ok. — Louk se recompôs, lançando um olhar de desprezo para Guilloch. —

Não é óbvio que o mais velho sempre lidera? E quem é o mais velho de todos aqui?

— E onde está escrito que o mais velho lidera? — interrogou Rudi, cruzando os

braços. — Não recebi nenhum manual dizendo isto...

— Ora, pois — falou Louk, enfezado. — Não precisa de manual para saber isso.

É de conhecimento tácito que o mais velho sempre lidera. Veja no próprio

Conselho. Quem é o mais velho?

— Moronov.

— É?

— Sério? Lorde Zanotchka parece muito mais velho...

— É porque vocês não conhecem tio Golmir, esse sim é velho.

— Gente, por favor, foco aqui.

Um pigarro repentino interrompeu a discussão sem pé nem cabeça dos cinco

guardiões na sala oval. Ninguém reparara, mas Salazar Stanhorne adentrara o

recinto e, com sua cara insípida de sempre, andando devagar, aguardava

pacientemente o término da discussão. Era a primeira vez que Petr não o via de

preto e nem com a mesma roupa. Trajava vestes douradas elegantes e transmitia a

autoridade de sempre.

— Boa tarde, senhores e senhorita — cumprimentou Stanhorne, com sua voz

grave e firme de sempre e arriscou um sorriso. — Este é o último desafio do Ano

da Elegibilidade. Até o momento, vocês desempenharam muito bem ao longo dos

dois primeiros eventos, em Gradia e Paragon, respectivamente. Eu os parabenizo

pela brilhante atuação até aqui.

Guilloch puxou uma salva de palmas, seguido pelos demais. Ivyna tinha lá suas

dúvidas se o Guardião de Aladar era digno de congratulações. Fracassara nos dois

primeiros testes e era o último colocado, com uma atuação pífia. Lorde Salazar

devia estar querendo fazer média com todos, independentemente de suas posições

no ranking.

— Lorde Salazar, — Rudi se adiantou, erguendo uma mão — bem, nós

queríamos saber quem será o líder, já que é um teste de liderança. Isto não está

muito claro para nós.

— Claro, Sr. Rudi. Chegaremos ao cerne desta questão. Como vocês sabem, este

é o teste de Liderança — continuou Salazar, segurando as mãos à frente do corpo.

— Solicitamos que nossos cooperadores os trouxessem até aqui para que pudessem

se unir. Vocês enfrentarão um desafio ímpar, visando colocar à prova não somente

o espírito de liderança de vocês, mas algo muito acima disto. Não dá para ser um

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líder se você não tiver liderados. Não é possível ser líder, sem que antes haja um

time. Vocês conhecem a diferença entre grupo e time?

Guilloch balançou efusivamente a cabeça, como se a resposta fosse notória. Petr,

Rudi e Louk lançaram olhares de desdém para ele. Ivyna não tirava os olhos de

Salazar — muito mais pela ansiedade do que por interesse em suas palavras. Queria

logo uma explicação sobre o que iriam enfrentar e autorizasse a entrada na arena.

— Por que não responde, marrentinho? — perguntou Louk, virando-se para

Guilloch.

O protetor de Aladar fez um muxoxo e fuzilou o Guardião de Amistelar com os

olhos.

— Um grupo é um monte de pessoas aleatórias e um time, bem... é um grupo...

unido?

Salazar esboçou o que pareceu aos cinco um sorriso. Embora Petr não tivesse

tanta certeza se fora um sorriso ou uma careta insatisfeita.

— Um time se completa — proferiu Stanhorne. — Um time luta junto.

Começam e terminam juntos. Um time dá a vida se for preciso. Antes que queiram

ser líderes, sejam um time. Pois, se adentrarem esta arena querendo ser o mais

importante, querendo liderar sem antes serem um time, vocês certamente irão

fracassar.

Um ruído contínuo como de uma trombeta ribombou dentro da sala oval. Uma

das portas se abriu lentamente e a brisa da tarde invadiu as narinas dos cinco

guardiões. Salazar sorriu uma última vez e desejou um tímido “boa sorte”, antes de

desaparecer em uma nuvem misteriosa.

As multidões enlouquecidas voltaram a berrar sobre as arquibancadas e o clima

de festa invadiu os ares externos da poderosa arena. A música animada de uma

banda marcial tocou em um canto, unindo-se aos silvos agudos dos fogos de

artifício explodindo pelo céu azul sem nuvens. Petr, Rudi, Guilloch, Louk e Ivyna

deram alguns passos para trás até que esbarraram uns nos outros, engolfados pela

atmosfera eletrizante dominando o lugar. A guardiã nunca vira nada assim. Nem

em Gradia e tampouco em Paragon, pessoas de todos os tipos e raças se

aglomeravam de forma assustadora. Havia anões formando pirâmides de gente.

Elfos e duendes se espremiam ao lado de humanos e anões para conseguir

contemplar o cerne do espetáculo. Embevecida com a grandiosidade do último

evento, ela foi a primeira a notar o que se espalhava pela arena.

— Senhoras e senhores, homens, mulheres, elfos, anões, duendes, centauros,

mágicos e não-mágicos, cidadãos dos quatro cantos de Eirin, eu lhes anuncio o

Círculo dos Cinco!

Uma saraivada de fogos de artifício explodiu com vigor sobre os céus em uma

miscelânea de variadas cores. Palmas expansivas encheram os ares acalorados do

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começo da tarde, unindo-se às sonoras melodias incessantes da orquestra.

Aplaudindo acima da própria cabeça, Moronov escancarava um largo sorriso na

tribuna principal. O carão vermelho se abria em inúmeras rugas, ao lado de um

sorridente, porém um tanto tímido, Salazar Stanhorne, que rapidamente se unira à

trindade principal do Conselho. Zanotchka era o único a não mostrar os dentes,

mas aplaudia com bastante intensidade.

— Afinal, Salazar falou, falou e não disse nada — berrava Louk e cutucava Ivyna,

tentando fazer a jovem ouvi-lo. — Quem é que vai liderar esse grupo?

— Grupo, não. Time! — crocitou Rudi, alertando Louk que ouvira sua pergunta.

— Ah, vai se ferrar, moleque — respondeu Louk. — Vem com essa baboseira

de time. Ainda acho que eu devia tomar as rédeas da situação.

— Eu te quebro aqui mesmo, seu metido! — exclamou Rudi, furioso — Tá

achando que porque estamos na arena, que eu não te meto a mão?

— Gente, será que podemos parar de brigar só por um minuto? — questionou

Petr, dando um coice nos dois.

— Vocês já repararam no que tem ao redor da arena?

Ivyna estava absorta esse tempo todo e não era à toa. Enxergara algo que nenhum

dos outros quatro aparentemente vira, diante da admiração com as arquibancadas

apinhadas de gente. Cinco bandeiras foram hasteadas e se espalhavam por toda a

extensão da arena. Elas reluziam nas cores dos cinco reinos-guardiões e eram

protegidas por uma espécie de cortina vermelha. Estavam afixadas em pontos

distintos, com uma boa distância entre elas.

— Bandeiras?

— O que isso tem a ver com liderança?

— Estimados espectadores, — A voz de Moronov se sobrepôs às músicas,

palmas, fogos e ao vozerio generalizado e todos pararam para prestar atenção à sua

fala — o derradeiro teste se iniciará. Cinco flâmulas contendo o Leão, a Harpia, o

Grifo, a Fênix e o Corcel estão espalhadas estrategicamente. O mais novo Círculo

dos Cinco, presente sobre o gramado, terá de provar não apenas a liderança em

uma situação de perigo, mas a unidade de um verdadeiro time. Como uma equipe

unida, pronta para encarar o verdadeiro desafio, os cinco guardiões terão de

capturar o máximo de bandeiras até que o tempo limite seja atingido.

— Mas que raios de teste de liderança é esse? — sibilou Louk, confuso.

— Capturar a bandeira? — questionou Petr — Vai ser moleza.

— Contudo, não se enganem — prosseguiu Moronov, com os milhares de pares

de olhos e ouvidos atentos às suas palavras. — Haverá obstáculos para que o

Círculo dos Cinco consiga conquistar os territórios e capture cada flâmula.

— Acho que falei cedo demais... — murmurou Petr.

Uma a uma, desbaratando o clima de mistério, as cortinas foram se abrindo. Ao

redor de cada mastro, figuras hostis se apresentavam. Como legiões de soldados,

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empunhavam lanças, espadas, arcos e flechas, escudos, porretes, machados.

Chamas elementais, pequenos ciclones e chicotes de terra também surgiam. Não

iam encarar criaturas elementais desta vez. Eram guerreiros de carne e osso,

dispostos a enfrentá-los na disputa por território. Posicionavam-se em defesa de

seus estandartes, prontos para lutarem, até às últimas consequências.

— Os melhores guerreiros foram trazidos de cada um dos continentes para

defenderem suas posições — falava Moronov, a animação incontida em cada

palavra proferida. — Diretamente de Eurodian, a Liga das Lâminas resistirá até o

fim para proteger a flâmula da Suntuosa Badorian. As magníficas terras de

Mondrária enviaram a Antiga Aliança Maestral, com os mais poderosos mestres

mágicos de Elstoen. Eles defenderão o território que compreende a bandeira da

Virtuosa Candorn. Altruístas e ávidos guerreiros, as Águias Chispantes vão proteger

a Fênix Indomável da Intrépida Miliat. A Ordem Ancestral dos Impávidos

Alquimestres de Aamiz vai encarar o desafio de proteger o território com a flâmula

da Harpia Voraz, pela honra da Serena Snartria. Por fim e não menos importante,

o Concílio de Frandar atendeu ao desafio e protegerá a bandeira do Leão Indômito,

da Austera Amistelar.

— Ok — balbuciou Louk após as palavras de Moronov. — Um pique-bandeira,

mas... o que isso tem a ver com liderança?

— Olha, Louk — proferiu Ivyna, impaciente. — Se você quer tanto liderar, então

lidera. Isso vai te deixar feliz? Então, fa...

Um silvo longo e estrondoso apitou, interrompendo as palavras da jovem ruiva.

Uivando contra os céus, uma parte dos guerreiros da Liga das Lâminas, da Aliança

Maestral, das Águias Chispantes, da Ordem Ancestral e do Concílio de Frandar

avançou até onde os cinco permaneciam estatelados. A outra parte continuava em

seus postos, guarnecendo os territórios. Vislumbrando os soldados correndo pela

arena precipitadamente, Moronov atirou uma magia contra os céus, dando início,

enfim, ao desafio.

— Que comece o último evento!

A voz com uma leve pontada de rouquidão de Lorde Moronov desapareceu em

meio aos gritos ensandecidos da plateia pululante. O chão vibrava com a força das

multidões saltitando sobre as arquibancadas, balançando bandeiras e gritando sem

parar. Assim como estavam, os cinco guardiões permaneceram. Comprimidos uns

nos outros, fitavam os guerreiros diminuindo a distância entre os pontos com as

bandeiras e eles, na iminência de golpeá-los com suas armas e magias.

— Vamos, líder — proferiu Rudi, debochado — Lidere!

Louk estremeceu onde estava. Não conseguia mover um músculo na dianteira do

grupo. A consciência avassaladora pesava em seu interior de que não era tão bom

assim quando tinha de trabalhar sob pressão. Contemplava os rostos carregados de

ódio e obstinação, avançando pela arena, com espadas, lanças e machados prontos

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para acertá-lo e fazer dele picadinho. Lá no fundo de sua alma, se questionava o

que essa prova tinha de ligação com o tema liderança. Parecia mais uma brincadeira

de criança convertida em um assassinato sádico e exibicionista para agradar uma

multidão tresloucada, sedenta por sangue e diversão. Que tipo de evento louco era

esse do Conselho, colocando guerreiros profissionais, com muitos ciclos de

vivência em combate, contra um bando de jovens guardiões inexperientes. O

arrependimento por ter voltado à casa dos pais e aceitado essa missão pulsava e

gritava em seu âmago.

— ESCUDO DE GELO, AGORA!

O grito de Ivyna ribombou na arena. Sem titubear, Rudi, Petr e Ivyna conjuraram

uma barreira de gelo no mesmo instante. Uma saraivada de flechas flamejantes

descreveu uma parábola no ar e cravou sobre o escudo mágico com estrépito.

Como uma chuva de granizo pesada, os vetores incandescentes se agarravam à

abóbada congelada protegendo os cinco.

— Parabéns, líder — falou Rudi, exasperado. — Tá liderando para caramba,

hein?

— Rudi, agora não é o momento — falou Petr, aumentando o revestimento de

gelo sobre o escudo. — Lembra do que o Cara de Co... o Salazar falou. Somos um

time!

Louk voltou à realidade, interrompida pelos devaneios provocados pelos próprios

medos. Imaginava que liderar um bando de garotos mais jovens do que ele seria

moleza. Mas, na prática, a situação era bem diferente. Ivyna, Rudi e Petr resistiam

às muitas flechas incessantes, pipocando sobre o escudo. Guilloch se esforçava para

conjurar uma estalactite de gelo, mas somente fagulhas esbranquiçadas emanavam

das pontas de seus dedos. Era difícil acreditar que a famosa Miliat houvesse mesmo

escolhido esse cara.

— Confesso que não entendo o que está acontecendo — proferiu Guilloch,

olhando os próprios dedos, vermelho como um pimentão maduro.

— Eu sei o que está acontecendo — falou Ivyna, perdendo a paciência. — Você

precisa treinar mais!

— Como que é, fedelha?

— É isso mesmo que você ouviu. Você é o Guardião de Aladar. Tem noção do

peso de sua responsabilidade? Desde que o Ano da Elegibilidade começou, você

figura na última posição. Nunca conseguiu ficar sequer entre os três primeiros.

— Isso é verdade — inferiu Petr.

— E ainda saiu desmaiado lá de Paragon — acrescentou Rudi. — Eu até achei

que você ia morrer, de verdade.

— Vocês só podem estar...

— Cara, vai por mim — falou Louk, colocando a mão no ombro de Guilloch —

a ruivinha aí tem razão: você é ridículo.

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— Ei!

— Não era isso que eu queria dizer, Guilloch — falou Ivyna, lançando um olhar

irritado para Louk. — Você talvez tenha potencial, mas tem que treinar. Não

adianta achar que por ter o título de Guardião, vai ter todo o poder mágico e não

precisa praticar.

— Pessoal, será que dá para gente parar com essa sessão de autoajuda e voltar

para o que realmente importa? — questionou Rudi — Não dá para ficar o resto do

dia aqui, tomando flechada.

— Concordo — falou Petr. — O que a gente faz, Ivyna?

— Eu? — perguntou Ivyna, sentindo-se um tanto nervosa — O Louk não era o

líder?

— Não, Senhorita Espertinha — proferiu Louk, ajudando a revestir o escudo

com mais gelo. — Talvez seja melhor você dizer o que devemos fazer. Afinal, você

pensou rápido nesse escudo protetor. Se você falhar e não morrermos, obviamente,

a gente alterna o cargo de líder. Acho que deve ser isso o que eles tanto querem

nesse teste imbecil.

Quatro pares de olhos miraram em Ivyna e ela se sentiu desconfortável. Nunca

teve a oportunidade de liderar nada. Nem nas brincadeiras de ciranda, pique ou de

corda com as primas e amigas no palácio a deixavam ser a líder. Jamais tivera essa

pretensão também. Sequer almejou ser rainha um dia. Não tinha essa aspiração.

Gostava das coisas como eram, sem ter o fardo de governar algo sobre as costas.

Mas, naquele instante, era a primeira vez que alguém lhe dava o bastão do poder e

em uma circunstância bastante urgente. Quatro guardiões de outras partes do

mundo contemplavam-na, bem no fundo dos olhos, ansiando pelos próximos

passos que deveriam dar.

— As flechas estão vindo sem parar das Águias Chispantes, à nossa extremadireita.

À esquerda, a Liga das Lâminas protege a bandeira de Eurodian. Eu os

conheço. Eles não são mágicos, mas tem muita habilidade com espadas e outras

lâminas distintas. Petr, você acha que consegue segurar esse escudo, enquanto Rudi,

Louk e eu avançamos até a Liga?

Petr assentiu.

— Mas e quanto a mim? — questionou Guilloch, irritadiço.

— Você fica quietinho e segue os adultos, tá bem, bebê?

— Não, Louk. Para. Isso não é hora para piadas.

— Desculpa, é mais forte do que eu.

— Certo, Guilloch. Me escuta. — Ivyna até tentava encontrar uma função para

Guilloch, mas, diante da situação, não conseguia pensar em nada. — Venha

conosco e... atire bolas de fogo em qualquer coisa que tente nos acertar.

O escudo de gelo explodiu em uma onda eletrizante, fazendo as flechas

elementais se esfarelarem. Petr agitou os braços com destreza e um paredão de gelo

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translúcido surgiu sobre a arena, bloqueando as outras flechas e lanças voando a

esmo em sua direção. Avançando pela tangente, Louk, Rudi e Ivyna assumiam a

dianteira, correndo para o território onde a Liga das Lâminas estava. Os

espadachins e lanceiros de lá deixaram suas posições e prosseguiram para encarar

os três guardiões que disparavam magias de todos os tipos. Balançando suas lâminas

mágicas com sagacidade, desviavam e cortavam feitiços como quem fatia uma

salada de frutas e não paravam de arremessar pequenas adagas na direção deles.

— Eu achei que eles não tinham poderes mágicos! — exclamou Louk para Ivyna,

disparando esferas incandescentes que eram partidas ao meio pelos integrantes da

Liga.

— Eles não têm — respondeu Ivyna, lançando rajadas de gelo que se espatifavam

nas adagas e caíam sobre o chão. — Mas as lâminas, pelo jeito, sim.

— Genial a sua ideia de encará-los primeiro, hein? — crocitou Louk, em tom de

deboche — Brilhante mesmo. Parabéns. Acho até que...

— Ah, cala essa boca, Louk — falou Rudi, exasperado — Ivyna, o que faremos?

Uma ideia ocorreu a Ivyna de súbito. Disparando torpedos congelados sem

cessar, deu por si que essa não era a melhor estratégia. As lâminas podiam estar

somente protegidas, revestidas com feitiços e runas antigas para poder se blindar

de magias mais poderosas. Mas será que elas resistiriam a um fogo elemental

conjugado? Torcendo para sua tática dar certo, Ivyna parou a alguns metros de ser

acertada pelos guerreiros da Liga.

— Rápido, conjurem fogo máximo vermelho.

Rudi e Louk derraparam pela arena, absorvendo as palavras de Ivyna.

— O quê? — inquiriu Rudi, mas uma luz parecia ter acendido em sua cabeça. —

Claro, ótima ideia!

Louk correu até a jovem ruiva e colou as palmas de suas mãos abertas nas de

Ivyna.

— Sabe que se as lâminas deles forem de aço élfico, nós estamos f...

Uma labareda vermelha acendeu na extremidade esquerda da arena. Ela emanou

das mãos de Ivyna, Louk e Rudi e serpeou pelos ares até atingir as espadas e

machados dos soldados avançando até eles. No mesmo instante em que aço e fogo

elemental se encontraram, o metal não resistiu e caiu sobre o gramado como água

fervente. O vapor do metal líquido consumindo a terra misturou-se rapidamente

aos ares cálidos da arena.

— Genial!

— Como é que você sabia que...

— A Liga não usa metais élficos. Eles têm orgulho próprio e forjam suas armas.

— Ei, cadê o Guilloch?

Ivyna estacou. Atarantada, a jovem Heinhardt balançou a cabeça. Petr avançava

sozinho com seu escudo enregelante, desbaratando exércitos inteiros que tentavam,

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inutilmente, romper seu paredão congelado. Ele, por sua vez, seguia inabalável,

avançando pelo centro da arena em direção à guilda da Aliança Maestral. Se seguisse

firme como estava, logo teria a bandeira de Candorn em suas mãos. Mas Guilloch

não os acompanhara. Ivyna, no calor da batalha, não percebera que o Guardião de

Aladar ficara para trás.

Correndo os olhos pela arena, protegida pelas magias de Rudi e Louk e ouvindo

as muitas vozes de espectadores animados e legiões de guerreiros ávidos por

derrotá-los, o desespero começava a querer dominá-la quando finalmente o avistou,

caído no chão, inerte.

— Guilloch está ferido! — exclamou Ivyna, sobressaltada. — Precisamos voltar

lá e ajudá-lo.

— Você ficou maluca? — questionou Louk, derretendo mais adagas que voavam

em sua direção. — Ele já era. Esquece. Temos que avançar. Há cinco bandeiras

para conquistarmos. Ninguém vai lá matá-lo... eu acho.

— Ivyna, odeio ter que dizer isso, mas o Louk tem razão. Guilloch está ferido.

Ele bom já dá trabalho, machucado então vai ser muito complic...

— Somos um time. Uma equipe. Nós somos o Círculo dos Cinco — proferiu

Ivyna, visualizando o estado acabrunhado de Guilloch. — Sendo bons ou ruins,

nós temos que conquistar isso como um só. Conjurem espadas de fogo vermelho

e enfrentem os dois grandões ao redor do estandarte. O restante já está derrotado

mesmo. Assim que conquistarem a bandeira, sigam até o Petr e o ajudem a obliterar

a Aliança Maestral. Ele fez a maior parte do trabalho sozinho. Esse garoto me

assusta.

— E você? — inquiriu Rudi, olhando embasbacado para a jovem guardiã.

— Eu vou socorrer Guilloch.

— Você enlouqueceu? Olha só para e...

— Lembrem-se das palavras de Salazar — proferiu Ivyna. — Somos um time.

— Tá, tá — crocitou Louk, fazendo uma espada de fogo surgir. — Vem,

moleque. Vamos derreter metal.

— Louk, — disse Ivyna, antes que seguissem adiante — acho que agora você é

o líder novamente.

— Dispenso — falou Louk, franzindo os lábios. — Não tenho tino para isso.

Vai, Rudi, você agora é quem manda nessa bagaça.

Titubeando, não muito convicta se tinha ou não tomado a atitude correta, Ivyna

correu na direção oposta de Rudi, Louk e Petr. Ouvindo o zunido de adagas

cortando o ar, bem como de flechas sendo disparadas e de rajadas de magia

explodindo a esmo e que se misturavam ao vozerio da plateia, ela retrocedia para

socorrer o amigo guardião caído e gemendo sobre o gramado. Louk não estava de

todo errado. Guilloch era uma pedra no sapato, um cara bastante tapado,

presunçoso e idiota que não sabia sequer conjurar uma magia simples. Mas as

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palavras de Stanhorne foram categóricas e ela tinha noção de que seu recado

inesperado não fora em vão. Se havia um guardião prodígio e infinitamente

poderoso como Petr ou um grandalhão abobalhado que muito mal conseguia

colaborar com seu próprio poder, ainda assim, eram uma equipe. Teria de conviver

com essas diferenças. Heidlich por várias vezes encarou intensas missões ao lado

de Elliotr e Saldivar e ela recordava bem de vê-los algumas vezes em Badorian.

Embora os três fossem fantásticos, ela sabia da existência de outros integrantes que

não eram lá essas coisas. Todavia, não deixavam de ser aquele Círculo dos Cinco.

A coisa mudava de figura naquele momento. Eram a equipe da vez, com a missão

de zelar pela ordem mundial, defender os mais fracos, preservar a vida e fazer as

Leis Primazes serem cumpridas. Não conseguiria ficar em paz tendo conquistado

cinco bandeiras, com um dos Guardiões caído, deixado para trás, ferido sobre a

arena.

Alcançou Guilloch estirado no chão, gemendo de dor. Uma adaga estava

encravada sobre o ombro esquerdo. Lágrimas escorriam de seus olhos e, embora

ela achasse que ele mais parecia um bebezão choramingando com uma pequena

faquinha, Ivyna decidiu por cuidar do ferimento. Respirou fundo, pressionou

próximo do corte e puxou a lâmina de uma única vez. O brutamontes combalido

encolheu-se e soltou um berro de dor.

— Se acalma, homem. Era só uma faquinha de nada.

— Mas doeu — falou Guilloch, choramingando. — E acho que na queda,

machuquei a minha perna também. O joelho não para de doer.

— Venha, se apoie em mim. — Ivyna ajudou o guardião a ficar de pé e meteu a

cabeça por debaixo de seu braço esquerdo, servindo de apoio para ele continuar.

— Sério... — falou Guilloch, encabulado. — Por que você voltou? Olha meu

estado...

— Será que só eu prestei atenção nas palavras de Stanhorne? Isso é um jogo. Ele

não disse aquilo à toa.

— Ah, aquela baboseira de time? — questionou Guilloch, fazendo uma careta —

Achei que era só um discursinho motivador e...

— Basta — falou Ivyna, puxando o guardião pelo braço. — Ainda temos... duas

bandeiras para conquistar?

Contemplou o cenário sem conseguir acreditar. Louk e Rudi carregavam um

mastro com a bandeira de Badorian sobre os ombros, cada um empunhando uma

espada elemental diferente, prosseguindo em direção ao território do Concílio de

Frandar. Serpentes de gelo cercavam o estandarte, com alguns alquimestres

produzindo mais feras elementais, prontas para o embate. Petr continuava

implacável. Não só vencera sozinho a Aliança Maestral, como obliterara a Ordem

Ancestral dos Impávidos Alquimestres de Aamiz e carregava as bandeiras da

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Virtuosa Candorn e da Serena Snartria sobre os ombros. Isso tudo sem esboçar um

pingo de cansaço.

— Esse garoto não existe — sibilou Ivyna, apalermada.

— As Águias Chispantes — falou Guilloch, comprimindo os olhos. — Acho que

sei como derrotá-los.

— Sabe? — indagou Ivyna, avançando a passos de tartaruga, tentando suportar

o peso do guardião. — Como?

— Está vendo os dois grandalhões em cada lado da bandeira? — perguntou

Guilloch, arrastando a perna machucada, apontando para dois brutamontes

conjurando uma infinidade de flechas que coruscavam pelos céus e se espatifavam

no escudo de gelo de Petr. — Eles são os alquimestres mais fortes do grupo. O

restante é aprendiz. Se abater aqueles dois, a bandeira é nossa.

Ivyna encarou Guilloch sem acreditar. Pela primeira vez, o brucutu dera uma

informação que, finalmente, poderia ajudar o grupo. Uma ideia arriscada brotou na

cabeça de Ivyna e ela interrompeu sua caminhada ao lado do Guardião de Aladar,

desvencilhando-se de seu braço.

— PETR, AO MEU SINAL, FAÇA A BARREIRA DE GELO SUMIR!

— QUÊ?

— CONFIE EM MIM!

Petr meneou a cabeça, contrariado. Ivyna balançou o rosto e arregalou os olhos

como se externasse, sem pronunciar uma única palavra, que o garoto precisava

confiar nela. A contragosto, o menino estalou os dedos e a barreira congelada

desapareceu. Os protetores do estandarte sorriram de canto a canto da orelha.

Novas flechas emanaram de seus arcos elementais e eles as tensionaram sobre as

cordas, na iminência de fazê-las voarem pelos céus mais uma vez. A jovem ruiva

girou as duas mãos em sentido horário e grossas raízes eclodiram da terra e, como

serpentes voadoras, avançaram na direção dos dois maiores guerreiros das Águias

Chispantes.

As flechas se precipitaram dos arcos no mesmo momento em que a magia de

Ivyna atingiu os dois alquimestres grandões. Ambos desabaram no chão,

desmaiados com o impacto do golpe repentino. Os demais alquimestres ficaram

atarantados, como formigas tontas, perdidas de sua fileira. Atoleimados, atiravam

rajadas de vento, água e gelo para todos os lados, com o único propósito de se

defenderem de um ataque iminente.

— Petr, agora!

A sintonia entre Ivyna e Petr era tão grande que, no exato instante em que a

jovem Heinhardt dera a ordem, o garoto deslizou em direção ao território das

Águias Chispantes. Disparando como bala de canhão, ele nocauteou cada

alquimestre aprendiz pelo caminho até colocar as duas mãos na flâmula com a Fênix

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Indomável. Com uma expressão triunfante no rosto, o Guardião de Anlevor

sustentava três estandartes sobre os ombros.

Ivyna não continha a felicidade, apoiando Guilloch com sua perna machucada.

Petr voltava para ela, exibindo as três bandeiras, quando silvos dos fogos de

artifícios, gritos histéricos e música agitada ressoou pelos quatro cantos da arena.

Virando-se para enxergar, a jovem percebeu que Rudi e Louk obliteraram as cobras

de gelo e conquistavam a última flâmula em cima do Concílio de Frandar e, assim

como Petr, caminhavam, cada um com uma bandeira sobre o ombro, para onde ela

apoiava Guilloch.

As palmas se uniram ao coro de vozes frenéticas e às melodias da banda marcial.

Milhares de espectadores aplaudiam de pé o feito do novo Círculo dos Cinco. Até

mesmo os alquimestres, espadachins, arqueiros e outros guerreiros derrotados

reconheciam a intrepidez dos guardiões. Ivyna sorria de felicidade. Jamais vira algo

tão grandioso e estupendo como a deste maravilhoso cenário. Fazia parte de tudo

isso. Como um verdadeiro time, conquistaram as flâmulas e venceram o derradeiro

desafio. Os cinco estavam de pé. A sensação era indescritível. Se pudesse parar o

tempo para guardar esse momento na memória, o faria. Os aplausos não pararam

um minuto sequer e ela recobrou sobre o teste. Pela quantidade de bandeiras

arrebatadas e a atuação impecável, Petr era mais do que merecedor dessa última

conquista. Sozinho, conquistara três das cinco flâmulas.

— Senhoras e senhores, — anunciou Moronov, lágrimas escorriam de seus olhos,

sem que cessasse de aplaudir — numa demonstração de lealdade, espirituosidade,

empatia, estratégia, humildade e, acima de tudo, liderança, o Conselho dos

Guardiões avaliou a atuação de cada um dos novos cinco e deliberou sobre quem

conquista a última prova, a de Liderança. Acima do ideal que parece, à primeira

vista, este não era um teste de lógica ou de força; não era uma mera provação lúdica

de capturar bandeiras e encarar experientes guerreiros. Nas condições de pressão,

rápidas decisões e nos reveses vislumbrados aqui, nos apercebemos das qualidades

essenciais para um verdadeiro líder. Assim sendo, mediante a incrível atuação vista

por todos nós, sem mais alongar-me, declaramos Ivyna Heinhardt como a campeã

do último desafio do Ano da Elegibilidade.

Mais aplausos reboaram pela arena. Petr, Rudi e Guilloch, de igual modo,

aplaudiam e a observavam, com sorrisos nos rostos. Ivyna se viu derramando

lágrimas sem parar. Louk não parecia muito satisfeito com o resultado, mas deu o

braço a torcer, em aplausos mais tímidos. Inacreditável era a única palavra

ribombando no fundo de sua mente. Era indescritível o sentimento que se

apoderava dela. Não conseguia crer que tudo aquilo estava acontecendo. Vivia um

sonho deslumbrante e nem nos seus maiores devaneios, um dia ousou acreditar que

poderia tornar-se realidade. Mas aquilo não acontecia em sua mente. Era Cruisand,

era real.

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— Pelas minhas contas, depois de vencer o primeiro evento, em Gradia, de

Lógica; ficar em segundo lugar para Petr Bravior no teste de Força, em Paragon e

conquistar o terceiro evento com uma Liderança extraordinária, — falava

Moronov, caminhando para perto de onde Ivyna estava e segurando sua mão —

declaro Ivyna Heinhardt, a Guardiã de Eurodian, a grande vencedora do Ano da

Elegibilidade e a líder do novo Círculo dos Cinco. Pela segunda vez em nossa

história, após Hanna Zanotchka desempenhar esta função, uma mulher será a líder

deste honrado grupo em que o próprio filho de Hanna e Elliotr, intrépidos

Guardiões, também ocupa um lugar de destaque. Inaugurando uma nova era de

prosperidade e segurança global, viva os novos Cinco, viva a paz e a união de todos

os povos!

Novas palmas e uivos de um êxtase interminável tomaram conta das

arquibancadas, da arena e das tribunas. A música tornou a ressoar alta outra vez e

os fogos mágicos no céu do início da noite em Cruisand refletiram o Leão, a Harpia,

a Fênix, o Grifo e o Corcel Alado, que se entrelaçavam, formando um único

símbolo cheio de cores vivas e reluzentes.

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Capítulo Quarenta e Seis

Chamas da Vingança

Os céus escuros do movimentado centro de Cruisand se iluminaram como um

dilúculo de verão, inesperado e repentino. Mesmo os dorminhocos estirados nas

inúmeras redes se entrecruzando na torre abandonada, coberta de tapumes, cortinas

e permeada por uma sinfonia execrável de roncos dissonantes, teriam despertado

com o clarão que invadiu a abóbada celeste e ofuscou o brilho das estrelas de uma

das principais cidades mágicas de Eurodian.

Sozinho na torre de vigilância do governador, Zakkar viu o fulgor dos fogos de

artifício e magias reluzentes abraçar o negrume e a melancolia de seu turno

extraordinário. Junto à claridade ofuscante, gritos e brados histéricos pipocaram de

todos os lados. As principais ruas, estradas e até mesmo becos e vielas escusos

foram tomados de assalto por uma vibração avassaladora. Centenas de pessoas

inundavam cada centímetro do centro da cidade, bebendo, pulando e

comemorando em uma aglomeração infindável, o término do principal evento que

movimentou os cinco continentes e arrastou multidões para uma arena opulenta

montada nos limites da capital.

Tentara de variadas formas não ter de assistir a esse festejo desenfreado,

transformando a noite em dia, em uma grande folia esplendorosa. Pedira para

cobrar os impostos nas salineiras, tentou trocar de turno com três pessoas distintas

e até se ofereceu para fazer limpar os conveses de alguns navios para pagar alguém

que fosse em seu lugar. Infelizmente, para sua decepção, não conseguiu. O próprio

Príncipe negara e o impedira de acumular milhares de trabalhos e funções,

mandando-o descansar, pois o turno da noite no palácio do governador o esperava,

do início da noite até o amanhecer. Embora de sua parte não compartilhasse tal

sentimento, o Príncipe dos Ladrões parecia saber.

Ele o fizera de propósito. Designara para essa função, trocara seu turno por outro

com a desculpa de que o governador em pessoa exigira o melhor de seus ladrões

para fazer guarda na torre aquele dia. Justo no último dia do Ano da Elegibilidade.

O Príncipe não sabia o porquê, mas começava a perceber como o evento mexia

com Zakkar. Esforçou-se para suprimir as emoções, mas era impossível controlar

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as caretas. O desejo por vingança contra o Conselho era latente. Externara o ódio

pelo Conselho dos Guardiões nas inúmeras conversas e treinamentos pelas ruas de

Cruisand. Seu mentor explorava esse sentimento nele de propósito e nada tirava

isso de sua cabeça. Restava saber se por um sadismo esdrúxulo em fazê-lo sofrer

ou para ensiná-lo alguma coisa. Autocontrole, talvez?

O brilho das explosões refletia nos olhos de Zakkar. Os luzeiros dos fogos se

estendiam e, quanto mais o tempo passava, mais intensos ficavam seus estrondos

nos céus, unindo-se ao coro das multidões perambulando pelas ruas, como bandos

de formigas ensandecidas e sem rumo. Agarrado às ameias da torreta, os dedos da

mão direita estavam dormentes e notou os dentes rilhando com força.

Encarou a mão esquerda. Entre os dedos firmes, os olhos astutos de uma fênix

encaravam seu olhar deprimido. Uma bandeira vermelha e branca, suja e

maltrapilha, com o indomável animal-símbolo da Intrépida Miliat, quase se fundia

à palma de sua mão. Encontrara a flâmula dias antes, largada em um canto escuso

qualquer, abandonada por alguém que não entendia o valor daquela insígnia para

ele. Não compreendia o que ela representava. Enrolou a bandeira na mão e no

braço e cerrou os punhos.

Uma lágrima escorreu sem que pudesse evitar. O cérebro estava embaralhado.

Uma confusão de sentimentos o dominava. Sem querer, se viu acabrunhado,

chorando de soluçar. O encontro com Selena perturbava sua mente cansada e o

colocava em xeque. Peregrinou por meses, como um fugitivo, vagando pela

Floresta Demoníaca para escapar da morte até descobrir uma traição sem

precedentes, de pessoas que deveriam amá-lo e protegê-lo. Passou dias acreditando

que Selena era uma traidora, merecedora de seu desprezo e de sua sede por

vingança. Ao encontrá-la em Cruisand e ouvir suas palavras, vislumbrar o choro

desesperador, ao tê-la novamente em seus braços, poder se perder outra vez em

seus beijos e possuí-la, mesmo em um lugar execrável, retornava a um ponto

indefinido. Uma sombra de dúvida pairava sobre as decisões implacáveis tomadas

na escuridão atemorizante da floresta.

Novos fogos de artifício explodiram e refletiram seu brilho nos olhos marejados

de Zakkar. Com a bandeira enrolada na palma da mão, ele abaixou-se e arrebatou

um punhado de terra do chão da torre, trazido pelos ventos fortes e pelas botas e

solas de pés descalços dos outros guardas, acumulado ali com o passar dos ciclos e

que ninguém nunca se importou em limpar. Empertigou-se e encarou a arena

iluminada e em festa. Uma chama brilhou em sua mão e consumiu a fênix da

flâmula lentamente.

— Suja, abandonada e lançada ao pó, você vai se erguer — sibilou Zakkar, a voz

trêmula assumia um tom firme a cada palavra proferida. — Juro pela minha vida,

pelo sangue alquimestre de minha mãe e o sangue guardião de meu pai, que farei o

possível para obliterar o Conselho dos Guardiões. Mesmo que perca minha vida,

560


não morrerei sem antes fazê-los sofrer o tanto que sofri. Como uma fênix

indomável, hei de ressurgir das cinzas em que fui lançado e consumirei meus

inimigos, com as chamas da minha vingança.

561


Capítulo Quarenta e Sete

A Era do Caos

O corsário atracou sobre o pequeno píer tão logo o sol tocou as densas Águas de

Argúrius, lançando sobre a calmaria das ondas e vagas o brilho alaranjado do ocaso

que logo sobreviria. As luzes dos postes ao longo do porto e do extenso caminho

conduzindo até os grandes portais de entrada do castelo estavam todas acesas,

aguardando o cair da noite e as densas trevas que cobririam a ilha muito em breve.

Adryan respirou fundo, assim que os dois pés pisaram na madeira molhada pela

água do mar. Havia muito tempo não sentia aquele cheiro que por tantos ciclos lhe

foi familiar. Era o odor de água salgada misturado a um cheiro de peixe podre, dos

cardumes lançados pela violência das ondas sobre os corais ao derredor ou que

sofriam o infortúnio de ficarem presos nas madeiras do píer. A sensação era

reconfortante. Era como se voltasse a um tempo muito distante, recheado de tantas

lembranças boas como também de memórias causticantes e que preferia nunca

terem existido. Um tempo em que fora a maior autoridade em Purysia, tratando de

assuntos tão importantes e de outros de menor relevância. Nos ciclos exilado nas

Terras Distantes, deu-se conta de que a maior saudade sentida era dos momentos

mais simples, daqueles em que se sentava no ponto mais alto do Oráculo para

conversar com alguns arcanos. Das conversas descontraídas com velhos amigos,

dos dias assentado com os pés sobre a areia molhada apenas para aproveitar o doce

ruído das ondas rechaçando sobre a praia e contemplar o sol se pôr no horizonte.

Esses tempos, ele sabia, infelizmente jamais voltariam.

Muitos pares de olhos o encaravam com ardente surpresa ou profundo espanto.

A maioria dos rostos era desconhecido. Uns e outros ainda recordava, boa parte

como sacramentadores bastante jovens à época de sua condenação. Muitos arcanos

aglomerados interrompiam suas atividades de semeadura e colheita, poda e limpeza

dos jardins no entorno da sinuosa estrada de lajotas que conduzia ao palácio para

contemplar a cena a se desenrolar naquele fim de tarde que poderia ter sido só mais

um, como tantos outros fins de tarde na ilha. Caminhando obstinado, Adryan

seguia muito à frente dos outros integrantes do grupo que fora às Terras Distantes

clamar por sua ajuda. Os outros oito avançavam em bando, carregando no rosto

uma expressão temerosa, seguindo em seu encalço. Lembrou-se dos dias de arcano

562


na ilha e recordou-se de seu antigo maedor, Albemus, um sacramentador

diferenciado, amante da religião pura como jamais existiu na Ordem. Por muitos

ciclos, foi convocado a aceitar o desafio de liderar um dos Octaedros — sempre

oferecido a ele o mais destacado de todos, o de Hegemonia. Rejeitou a todos os

convites. Dizia sempre viver em uma luta contra as próprias concupiscências,

contra os desejos ardentes de seu âmago que poderiam levá-lo a agir como um

humano comum. Possuía um temor crônico de que a religião dos elfos fosse

corrompida por ensejos nada altruístas. Perdera a conta de quantas vezes ambos

viraram noites em agradáveis prosas, conversando sobre a sacramentação do

tempo, a importância da pureza no trato, no agir, nas relações em sociedade e,

principalmente, na magia do tempo. Ele lhe ensinou coisas valiosíssimas que

carregava desde então consigo. Quando morreu, no alto dos seus quinhentos e treze

ciclos, fora como se tivesse perdido o próprio pai. Um vazio muito grande o

acometeu por vários dias. Com o passar do tempo, sentia que os preciosos

ensinamentos de Albemus iam se perdendo conforme embarcava nas entranhas das

responsabilidades dentro da Ordem. Como Octaedro, descobriu coisas terríveis na

vida em sociedade que as muitas virtudes ensinadas por seu maedor eram rechaçadas

e substituídas por vícios execráveis. Ainda nos dias atuais, sentia-se em dívida com

seu velho professor, como se deixasse vencer pelos pecados tão combatidos por

ele. Sempre que vislumbrava o próprio reflexo, não tinha vergonha do

sacramentador que um dia se tornara, pois, há muito abandonara a pureza da

religião ao qual tanto lutou para que entendesse. Sentia vergonha do elfo que dizia

ser e de como permitiu ser engolfado pela escuridão.

Escancarou os grandiosos portais de entrada do Oráculo do Tempo. Não

lembrava de serem tão leves assim quando fora expulso da ilha. Uma multidão de

elfos, sacramentadores e arcanos, bem como alguns dos protetores da parte externa

da fortaleza seguiam-no de longe, caminhando com uma expressão curiosa e

confusa estampada no rosto. Muitos se lembravam dele e espreitavam

boquiabertos, como se sua presença fosse o maior dos sacrilégios. Contudo, a maior

parte seguia de olhos bem abertos, sem entender o que estava acontecendo. Lá

dentro, o salão principal seguia exatamente como se lembrava. O teto alto coberto

de vitrais multicoloridos com inscrições em runas antigas das principais vibrações

e oscilações da malha do tempo, todas as descobertas e conhecidas desde que o

elfos realizaram seu êxodo das florestas e seguiram para um pedaço de terra

completamente isolado do mundo, no coração de Argúrius. O piso muito bem

lustrado ainda continha os mesmos desenhos do fim da Era das Trevas, com

pinturas fantásticas exaltando o poder dos alquimestres, a força dos mestres, a

coragem dos Guardiões e a destreza dos sacramentadores — este último em maior

destaque bem no meio do salão por motivos óbvios. A única diferença, contudo,

era a presença de um enorme trono dourado, engastado com uma variedade

563


infindável de joias preciosas sobre os apoios dos braços. Não sabia de quem teria

sido esta ideia infundada de expor um objeto carregado com um luxo exacerbado,

se a sacramentação exigia exatamente o oposto: humildade no lugar da jactância,

abnegação em vez de requinte, sobriedade no lugar da extravagância. Esperava

encontrar assentado sobre ele a figura soberba de Arturo Menfesis, seu antigo

desafeto. Não imaginava que ele chegaria a tal ponto dentro da Ordem, mas pelos

relatos de Sisno Sannfrye e dos outros sacramentadores, a loucura de seu velho

algoz havia extrapolado os limites da sanidade. Inserir um trono, um objeto de

tamanha ostentação, em um local onde as maiores virtudes deveriam reinar, era

uma afronta à toda história e à ética e moral inerentes à religião. Contrariando suas

expectativas, vislumbrou a figura de um jovem sacramentador. Magricela e de

aspecto presunçoso, portava uma longa capa de veludo vermelho pregada sobre os

ombros e uma suntuosa coroa afixada acima dos cabelos loiros escorridos.

Levantou-se do assento real no mesmo instante em que seus olhos encontraram os

de Adryan. Havia um grupo de arcanos ao redor dele, sustentando enormes cachos

de uvas e com um esgar curioso e aterrorizado no rosto. Mais absurdo do que

parecia, o “rei dos sacramentadores” havia tornado aqueles jovens elfos, seus

“servos reais”.

— O que está acontecendo aqui? — pronunciou Klaus Trishnann, a voz exalando

toda sua arrogância.

Outros sacramentadores do palácio se aglutinaram pelo salão, curiosos com a

cena que se desenrolava. Lançavam olhares para o elfo irritadiço com a capa e a

coroa e dele para o segundo elfo de longos cabelos prateados, com um grupo de

conhecidos ex-Octaedros atrás dele.

Adryan não abriu a boca. Não moveu os lábios para dizer uma única palavra,

sequer para questionar onde Menfesis estava. Sabia que Arturo já tinha pleno

conhecimento sobre ele e fez o que imaginara que faria. Fora deveras tolo em

acreditar que confrontaria Menfesis em Purysia. Da mesma forma como um dia

conheceu a entidade, Arturo também a conhecia. O medo naquele momento era o

que ela o mandara fazer. Infelizmente, sua própria vingança ainda demoraria um

pouco até acontecer.

Avançando sem titubear, Adryan cruzou o salão calmamente. Com um espanto

e temor latente, Klaus exalava uma surpresa exacerbada com a ousadia do elfo de

longos cabelos em não responder sua questão. Nenhum dos protetores no entorno

ousou se mover. Assim como os arcanos e sacramentadores, todos contemplavam

a cena à distância.

— Guardas, eu exijo que...

Trishnann não conseguiu terminar sua frase. Desembainhando a espada trazida

nas costas, Adryan moveu a lâmina com destreza e encravou-a no peito do elfo

com a coroa e a capa escarlate, até a ponta da arma atingir o estofado do trono.

564


Grunhidos atarantados ecoaram pelo teto alto do salão. Sacramentadores e arcanos

levaram a mão à boca, embasbacados. Arregalando os olhos para a espada afiada

atravessada em seu coração, Klaus vomitou sangue sobre o trono, até sua cabeça

pender para o lado. O brilho dos olhos sumiu de repente e o movimento contínuo

de sua respiração fora interrompido. O jovem elfo morrera.

Recolhendo a espada com violência e guardando-a de novo na bainha atrás das

costas, Adryan arrancou o corpo inerte de Klaus Trishnann do trono e jogou-o no

meio do salão. As expressões aterrorizadas não desapareciam dos rostos dos elfos

ao redor, contemplando a cena ainda aturdidos e céticos com o que acabara de se

suceder. Assentando sobre o trono dourado manchado de sangue, Varnor

arrebatou uma uva de um arcano e comeu-a com vontade.

— A Ordem dos Sacramentadores tem um novo líder, a partir de hoje — falou,

displicente, admirando as expressões aparvalhadas, encarando-o.

Maihin e Sicária, as duas elfos-negro que acompanharam Adryan por toda viagem

de regresso, correram até ele e cada uma repousou em um braço do trono,

acariciando o rosto do elfo de longos cabelos.

Um tremor repentino sacudiu a ilha, fazendo as paredes do Oráculo do Tempo

reverberarem com estrépito. Arcanos e sacramentadores se lançaram ao chão,

quando parte das vidraças das janelas e do teto abobadado estourou, precipitandose

contra o piso. Três longos badalos ressoaram e abalaram as estruturas do palácio.

Ninguém ousou falar uma única palavra, mas era notório dos mais experientes o

que aquilo queria dizer. A Bússola do Caos movera seus ponteiros uma última vez.

O arco derradeiro em direção ao ponto mais temido por todos os elfos

sacramentadores havia sido descrito, atingindo o marco zero. Estava consumado.

A Era do Caos começara.

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SEJA BEM-VINDO à Eirin, um mundo completamente novo e

fantástico, onde a magia flui entre humanos e elfos.

O Círculo dos Cinco é o primeiro volume da trilogia de As

Crônicas Lendárias. Seis tramas concorrentes se desenrolam e se

alternam ao longo do livro, explorando tramas políticas, guerras,

conspirações, histórias de traição, revelações e mistérios em

mundo habitado por inúmeras criaturas mitológicas.

A obra é complexa, densa e aborda assuntos essenciais da

atualidade no cerne da trama. Livros como O Hobbit, As Crônicas

de Nárnia, O Senhor dos Anéis e a série Harry Potter são grandes

inspirações para o mundo criado e a trama desenvolvida.

P. P. Rodd é a mente por trás de O Círculo dos Cinco,

o primeiro livro da trilogia As Crônicas Lendárias.

Baterista e desenhista nas horas vagas, é fã de

carteirinha de Harry Potter, Dan Brown, O Hobbit e

Watchmen.

Em 2017, publicou seu primeiro livro de forma

independente, um thriller policial intitulado “Os Contos

de New Locked City”.

Idealizou e escreveu esse universo fantástico por cinco

anos, que hoje chegou até você.

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