EBOOK - O Círculo dos Cinco (Edição Jornada Congelante)
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- Page 38 and 39: — É tão burro que nem percebe q
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O
Círculo
dos
Cinco
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Meus mais sinceros agradecimentos às lendas que ajudaram a tornar
esse
sonho uma realidade, em especial a:
Raul Barbosa de Sousa
Suzy da Cruz dos Santos Oliveira
Joselita Rodrigues de Souza Pacheco
Giliard Vitor Costa
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Aos Guardiões, o dever da proteção;
Aos Sacramentadores, a harmonia do
tempo em suas mãos;
Aos alquimestres, o poder da natureza;
Aos mestres, a magia e sua real nobreza.
Epílogo do Tratado de Paragon, ao solstício da Era de Ouro
para os Elfos, ou ao vigésimo sétimo ciclo após o fim da
Grande Era das Trevas para os humanos e mágicos.
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Capítulo Um
Vultos ao Amanhecer
O fim da madrugada trazia um vento enregelante que assoprava pela extensa
avenida coberta de lajotas reluzentes cor do cobre. Estridentes, como um canto
lúgubre e fantasmagórico, os silvos da brisa gélida percorriam as ruas e vielas do
entorno, por entre as colunas e fachadas das belas construções, e eram capazes de
provocar arrepios na espinha até do mais corajoso dos aventureiros.
Um vulto deslizava pressuroso pela escuridão. Caminhando aos trotes, o homem
envolto em longas vestes negras de veludo agarrou as abas de seu sobretudo,
enroscando-se sob ele.
O sol despontava tímido no horizonte, revelando alguns poucos raios cálidos de
tom alaranjado. As nuances azuladas que cobriam a abóbada celeste empalideciam
preguiçosamente, assumindo um tom purpúreo melancólico. As ruas permaneciam
mergulhadas em uma densa penumbra do final da madrugada.
O homem de preto aproximou-se das ameias da sacada do edifício no extremo
da avenida e seus dedos nodosos tocaram a superfície gélida do parapeito com
delicadeza. Os olhos se demoraram nas crostas finíssimas de gelo que se formaram
ao longo da noite por um bom tempo. Absorto, mergulhava dentro das próprias
preocupações.
Esculpido cuidadosamente pelos esmerados duendes artesãos de Pernítrulis, o
edifício era a construção mais suntuosa de Gradia, a Cidade dos Guardiões, no
extremo oeste das terras do reino de Vervaz. Conhecida como A Casa dos
Guardiões, fora construída para abrigar a mais importante força legisladora dos
cinco continentes: o Conselho dos Guardiões. A construção magnífica inspirava
respeito e hegemonia. O fulgor do dilúculo misturado às chamas dos postes refletia
intensamente sobre a redoma central e as altas pilastras de pedra-âmbar que
drapejavam o edifício. Lá em cima, no pátio aberto da sacada mais alta do Conselho,
o homem de vestes negras aguardava, observando a paciência resvalar pouco a
pouco, contemplando a calmaria das águas cristalinas do Mar de Ágata no
longínquo horizonte a sua frente.
— Uma grande novidade, não?
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Os archotes incandescentes ao redor da sacada circular tremularam com a força
do vento. Uma figura envolvida em uma grande capa azul caminhou elegantemente
em direção ao homem de preto escorado às ameias e posicionou-se ao seu lado.
Levemente mais alto, perdia o olhar na suntuosidade do oceano.
— Sem dúvidas — respondeu o homem de preto, concentrando a atenção em
uma nuvem qualquer no horizonte.
— O que atormenta seu coração? — inquiriu o homem de azul, reparando o
estado aflitivo do outro na sacada.
— Há algo de errado em Purysia! O Conselho fora deveras exaustivo e categórico
quanto a Purysia e tenho total conhecimento de suas peculiares tradições. Mas...
creio que passou da hora de intervirmos...
O mais alto repousou a mão direita sobre as ameias e respirou fundo.
— A situação em Purysia me deixa tão perturbado quanto a ti e essa questão já
está passando dos limites. Irei até lá e descobrirei o que eles tanto escondem de nós
— falou o homem envolto no manto azul; mantinha a voz serena, porém firme.
— Certo... — respondeu o homem de preto, crispando os lábios — Porém, você
sabe e isso ficou muito evidente na assembleia do Conselho desta madrugada: há
mais uma coisa com que devemos nos preocupar e, comparado a tal, Purysia é o
menor de nossos problemas...
O homem de vestes negras voltou a contemplar o horizonte, absorto.
— Se está se referindo à indicação...
— Esta Casa não pode permitir que ele chegue ao poder — disse o homem de
preto, alteava a voz e exalava indignação. — As Leis Primazes estão acima de
qualquer coisa e precisam ser cumpridas!
— O Conselho não vê objeção em sua indicação — falava o homem de azul, os
olhos refletiam o brilho da lua. — Nosso mundo corre perigo se ele...
— Não iremos permitir.
Outra voz irrompeu do extremo oposto da sacada. Um vulto de vestes vermelhas
da cor do fogo caminhou em direção aos dois homens que conversavam ao pé das
ameias.
— O Conselho dos Guardiões é a mais importante entidade mágica de todo o
mundo. Nesta sociedade desgastada e corrompida, o que precisamos fazer é manter
a harmonia e o equilíbrio acima de tudo. Nem que para isso tenhamos que tomar
as rédeas da situação com pulso firme. E o atual momento exige medidas drásticas!
Os dois homens assentiram.
— Sugiro que tome as providências cabíveis sobre as quais já conversamos —
inferiu o homem de vermelho, entregando um envelope pardo ao homem de preto.
— Quanto a Elliotr...
— Há muitos mistérios que ainda permeiam o sumiço de Elliotr. As
circunstâncias de seu desaparecimento, as terras congeladas de Gelor-Torine —
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interrompeu o homem de vermelho — entretanto, há questões mais decisivas em
nossas mãos neste momento e que envolvem o futuro de nosso mundo.
Os três homens se encararam, respeitosamente. No horizonte, o sol finalmente
nascera e rutilava o brilho de seus raios sobre as pupilas cansadas dos três vultos na
sacada. Iluminava as outras construções com um fulgor esplêndido, realçando a
grandiosidade da cidade.
— Nobres cavalheiros, regozijem-se — falou o homem de vermelho e apoiou as
mãos sobre os ombros dos outros dois — Hoje se inicia uma nova era em nossas
vidas. Uma era nunca antes vista, com a plenitude de triunfos, glórias e conquistas.
Esqueçamo-nos das eras sombrias de guerra, de dor e de sangue. Da ausência de
paz, equilíbrio e harmonia. Hoje esta Casa marca para sempre a história. As decisões
deste Conselho ecoarão a partir de agora para toda a eternidade. Um marco nunca
antes ocorrido na história dos Guardiões. Que o Ano da Elegibilidade comece!
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Capítulo Dois
Entre Lendas e Monstros
Uma lufada de vento acompanhado de finíssimas gotas de chuva golpeou as faces
macilentas de Torb Nayar. Esgalgado, de olhos profundos e com um acentuado e
notório cansaço, o jovem alquimestre, de cabelos castanhos que escorriam para os
ombros e intensamente encharcados pela chuva da madrugada, fitava as gotículas
irrisórias que fazia sambar por entre seus dedos magricelos.
Encarrapitado em uma das cruzetas superiores, no alto do mastro de um dos
poucos navios ancorados na costa portuária da marinha de Aralyart, embrenhado
entre uma série de grossas cordas de cânhamo e nós muito bem apertados, os
músculos retesados das pernas e braços pareciam ter-se fundido a elas. Observava
o mar encapelado, suas águas negras revoltosas e as furiosas ondas que, de tempos
em tempos, chocavam-se com violência contra a couraça dos navios lavados pela
chuva intensa. O longínquo horizonte permanecia cinzento e lúgubre, coberto por
densas nuvens negras e carregadas que cobriam toda a abóbada celeste. O sol já
havia nascido em algum lugar, mas a esperança por seus raios cálidos e
reconfortantes se esvaía nas trevas mórbidas trazidas pelo temporal.
Os olhos pesarosos do alquimestre vislumbraram mais uma vez as pequenas gotas
rodopiando na palma da mão. Vez ou outra, fazia com que elas voassem em
círculos, alguns centímetros acima dos dedos. Os filetes uniam-se, formavam uma
grande bolha translúcida, cristalina, e logo se desfaziam, retornando ao seu estado
inicial, acumulando em uma poça em sua mão.
Outra rajada de vento balançou seus cabelos e ele agarrou-se mais uma vez às
cordas encharcadas, aprumando-se sobre a cruzeta. O silêncio descomunal
pressionava seus ouvidos, interrompido pelos estrondos perturbadores das ondas
que rechaçavam contra os navios e as intermitentes trovoadas que ribombavam
pelos ares, raramente acompanhadas por raios que iluminavam os céus com
intensos clarões esbranquiçados.
Num estralar dos dedos, as gotinhas que bailavam acima de sua mão rodopiaram
três vezes no ar e uniram-se, tomando a forma de um cubo transparente. Torb
contraiu as maçãs do rosto. Os olhos demoravam-se no formato cúbico da água
que girava por entre a magreza de seus dedos. Um sorriso aparvalhado desenhou-
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se em seus lábios. Desde quando se entendia por gente, era magro daquele jeito.
Desde quando se entendia por gente, tinha o poder de controlar a água.
Apesar das circunstâncias adversas que o faziam estar ali em meio à avassaladora
expectativa juntamente com o que sobrara da marinha de Aralyart, lembrou-se de
quando descobriu que tinha o poder de controlar a água através da magia.
Rodopiou o cubo cristalino acima do dedo indicador e sua mente o fez viajar para
algum lugar muito distante, bem lá no passado.
Era um dia quente de verão, desses dias que as pessoas aproveitam o calor e saem
para lavar roupas à beira dos rios ou apenas descansam à sombra de uma árvore
frondosa para ler um livro. O sol enchia os ares com seu calor afável do início da
manhã. As florestas de imbuias do longínquo Condado de Arthal, o primeiro dos
Condados Triunos, no extremo norte de Aralyart, farfalhavam ruidosamente com
a força do vento e o gorgolejar dos pássaros se ouvia a quilômetros de distância. O
doce aroma de mangas frescas cortadas, queijo quente e de leite maltado em jarros
dentro de um cesto de vime que repousava sobre uma toalha de seda branca se unia
ao gostoso odor que emanava dos campos de capim-limão. Completando o
esplendoroso cenário, o ruído distante de serenas quedas d’água em algum ponto
da floresta. No centro da clareira, à beira das tranquilas águas do lago, as gargalhadas
de três crianças brandindo suas espadas de madeira se uniam ao coro dos pássaros.
— Quando crescer, quero ser um Guardião! — crocitou um dos garotos,
levantando a espada de madeira o mais alto que podia. Corpulento, porém
atarracado, escorria suor em bicas que se projetavam do pescoço e morriam na gola
empapada de sua camisa de algodão. Os cabelos negros e milimetricamente
divididos ao meio contrastavam com a pele alva como o leite. Cada vez que cortava
o ar com a espada, as bochechas rechonchudas intensificavam seu rubor e ele arfava
ruidosamente, como se travasse uma luta de vida ou morte contra um troll
repugnante.
— Mas você não pode, Caily — inferiu a menina de longos cabelos ruivos.
Mais alta que os outros dois e com muitas sardas bem abaixo de seus olhos, os
cabelos vermelhos como o fogo rutilavam sob o forte brilho do sol, como se
estivessem em chamas. Esguia, de pele brandamente tostada pelo sol, ela atacou o
ar com a espada de mogno polido como se desferisse um golpe mortal em alguma
criatura que só existia em sua imaginação.
— É, não pode. Não! — exclamou o terceiro.
Magricela e de pernas raladas, os cabelos castanho-escuro revoltosos a todo
instante caíam-lhe sobre os olhos. Ele agarrou a espada de angelim-pedra com as
duas mãos e saltou a esmo, tomando impulso sobre uma pequena pedra coberta de
musgo próximo à cesta de vime. Emitindo sons de lâminas dilacerando o couro de
monstros imaginários, caiu graciosamente com os dois pés sobre a grama, dando
duas cambalhotas seguidas para os lados.
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— Por que não? — questionou Caily, aborrecido. Franziu o cenho, contrariado
com a resposta dos amigos.
— Porque você é gordo! — exclamaram os outros dois, em uníssono e
desembestaram a rir.
Cruzando os braços, Caily exasperou-se tão rápido quanto as maçãs
rechonchudas de seu rosto assumiram um intenso tom avermelhado. Arremessou
a espada de madeira para longe, enquanto fuzilava seus dois amigos com os olhos.
Ambos rolavam no chão de tanto rir, segurando os estômagos que doíam ao reboar
suas altas gargalhadas em direção ao céu.
— Sou nada. Vocês é que são magrelos de mais... — crocitou Caily, de braços
cruzados. Em sua têmpora, uma veia saltava com o ódio que estava pelas risadas
debochadas dos dois amigos.
Os risos não pararam, cada vez mais altos e exageradamente histéricos,
sobrepujavam os reclames de um enfezado Caily, que enrubescia ainda mais a cada
segundo que passava.
— Babá Arnila vai ficar sabendo disso, quando ela voltar — ameaçou Caily.
Tentava fingir não se importar com as risadas, cruzando os braços e fazendo cara
de desdém, mas no fundo elas o irritavam profundamente.
A menina ruiva interrompeu as risadas e, ainda tremendo e com as maçãs do
rosto doendo de tanto rir, levantou-se e empertigou-se onde estava. Limpou as
lágrimas de riso que escorriam em direção às bochechas com as costas das mãos e
ajeitou os cabelos cor de fogo. Fincou a espada de madeira sobre a grama, apoiando
o próprio peso sobre ela.
— Você não pode ser Guardião porque você não tem sangue de guardião! —
exclamou a menina, como se aquilo fosse óbvio.
— Como assim? — inquiriu Caily, com uma sobrancelha mais arqueada do que
a outra.
— Para ser Guardião com “G” maiúsculo, ou seja, o Protetor do continente, você
precisaria ser da raça dos guardiões, com “g” minúsculo e, até onde sei, você está
muito, muito longe de ter algum parentesco com qualquer um dos Cinco Grandes...
Torb parara de rir para ver a amiga incendiar ainda mais a discussão. Sentara-se
sobre o gramado, cruzando as pernas e repousando a espada de madeira entre os
joelhos ossudos. A brisa leve agitava seus cabelos e o suor escorria-lhe do pescoço
em direção às costas devido ao calor que se intensificava. Os raios de sol
penetravam por entre as folhagens das árvores e iluminavam a discussão de Caily e
de Lala, sua amiga astuta de cabelos vermelhos.
Dos três, Lala sempre fora a mais esperta e também a mais debochada. Torb sabia
que ela era o tipo de garota que não deixava passar nada despercebido e qualquer
coisa era motivo para zombar de alguém: fosse um nariz grande como o de um
porco, o tamanho da circunferência da barriga do tio bebum ou até mesmo a
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ingenuidade e lerdeza de algum amigo, principalmente se esse amigo se chamava
Caily Rondor. Cansara de contar quantas vezes ela ludibriara o garoto e até mesmo
a babá Arnila, que de tão velha já não possuía a mesma lucidez e agilidade para lidar
com as esparrelas da menina ruiva. A última aprontada por ela fora convencer a
velha babá a comprar melões frescos no Condado de Menuth, há duas horas dali,
tudo para que os três pudessem ficar livres para brincar na clareira como quisessem,
sem as broncas chatas da velha caduca.
— Tenho, sim! — exclamou Caily, exasperando-se, ao observar o sorriso
buliçoso nos lábios de Lala — Eu sou primo do tio do cunhado do sobrinho da
irmã da cunhada da avó do filho do irmão de um primo do Guardião de Eurodian...
Uma nova explosão de risos ribombou pelos ares da clareira. Lala acabrunhouse,
com as mãos firmes na espada de madeira engastada na terra, acabando-se de
rir. Torb rolou duas vezes sobre a grama, às altas gargalhadas.
— EU VOU EMBORA — berrava Caily, bufando de raiva. — VOCÊS NÃO
SÃO MAIS MEUS AMIGOS! — O garoto girou nos calcanhares e seguiu trotando
em direção à floresta, rilhando os dentes, com os punhos fechados e pisando forte
sobre a grama.
Lala e Torb bem que tentavam, mas não podiam evitar os risos e a histeria. Riramse
tanto que nenhum dos dois tinha mais força nos joelhos para correr em direção
ao amigo que fugia rumo às árvores sinuosas e à mata fechada. A única coisa que
conseguiam fazer era rolar pela grama, rindo ao mesmo tempo em que Caily se
distanciava e sumia por entre os ásperos caules das imbuias no outro extremo da
clareira.
— Nós... não podemos... perdê-lo... — falava Torb, intercalando sua frase com
novas risadas. A mão direita segurava o estômago e a esquerda tentava colocá-lo,
inutilmente, em pé, apoiando-se no chão.
— Até parece que você não o conhece, Torb! — exclamou Lala, recuperando o
fôlego — No máximo o “primo-do-tio-do-cunhado-do-sobrinho” vai bater em
alguma árvore e voltar correndo, cheio de medo.
Torb soltou novas gargalhadas, jogando-se mais uma vez ao chão, batendo com
o punho fechado sobre a grama. O maxilar doía e as lágrimas escorriam pelos
cantos dos olhos. As risadas histéricas de ambos se misturavam e se prolongavam
pela clareira.
Riu tanto, mas tanto, que não percebeu que ria sozinho.
Enxugou os cantos dos olhos. Com muito esforço, apoiou-se sobre o braço
direito e sentou-se na grama. A visão estava turva e uma rajada de vento jogou seus
cabelos na direção dos olhos. Meneou a cabeça duas vezes, jogando os longos
cabelos revoltos em direção às costas e esfregou as vistas com as palmas das mãos.
Deparou-se com Lala estática, o rosto lívido e a boca entreaberta; os olhos vidrados
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estavam postos no ponto exato onde Caily sumira, no extremo da clareira. Parecia
embasbacada com qualquer coisa que estivesse vendo por lá.
Emudeceu. Tateou a grama até encontrar sua espada de madeira e reuniu forças
para conseguir ficar de pé, ao lado da amiga ruiva. Um silêncio mortificante
dominava todo o perímetro da clareira, interrompido pelos intermitentes silvos do
vento assoprando em algum canto. Os olhos estarrecidos das duas crianças não
criam no que estava diante deles.
Com presas afiadas de mais de doze centímetros em uma boca cheia de dentes,
sua colossal juba negra refletia o brilho intenso do sol, sendo agitada pela brisa que
balançava as árvores ao redor da clareira. Os olhos frívolos, amarelos como o ouro,
comprimiam-se de modo assassino enquanto a besta observava a expressão
assustada das duas crianças do outro lado, próximas da serenidade das águas do
lago. Ouviram falar das lendas, mas para Torb e Lala aquilo que estava perante os
dois não passava disso: uma simples lenda presente nas histórias que se contavam
ao redor de lareiras na hora do jantar, quando se aguardava a truta assar sobre as
brasas. O Leão Bestial Negro, a grande Besta Selvagem das Florestas de Aralyart.
Oriunda das trevas dos longínquos Vales de Halegun, os contos diziam que fora
o leão de estimação de um antigo e poderoso alquimestre que profanara a pureza
dos elementos, ao tentar ressuscitar o animal utilizando a terra amaldiçoada dos
vales. As lendas diziam que o leão ressurgiu dentre os mortos e, com suas presas
afiadas, devorou o alquimestre que o trouxera de volta à vida. Dizia-se, desde então,
que o Leão Bestial Negro fugira dos Vales de Halegun e encontrara abrigo nas
florestas de Aralyart, escondendo-se sempre durante o dia e saindo apenas à noite,
em meio às trevas profundas das matas do Condado de Arthal, alimentando-se de
desvairados aventureiros e inocentes curiosos que se embrenhavam nas
madrugadas pela floresta.
Assombrados, Torb e Lala permaneciam estáticos, tomados pelo medo. A
criatura continuava imóvel; seu olhar maligno estudava as duas presas à frente,
como se decidindo a quem devoraria primeiro.
O terror dominara Torb por completo. Um calafrio subiu por sua espinha. Os
dedos das mãos enraizaram-se ao cabo da espada de madeira e ele a estendeu, como
se pudesse encarar a criatura com um pedaço de pau. A pele queimava e as orelhas
ardiam como se estivessem em chamas. Até os menores pelos de sua nuca e dos
braços estavam completamente eriçados. De esguelha, notou que Lala parecia ter
congelado onde estava. Os olhos arregalados exalavam o terror que a menina sentia.
Podia ouvir o coração da amiga palpitar àquela distância. Ela não arriscava mexer
sequer o dedinho.
Os poucos segundos em que os dois meninos e a criatura se entreolhavam iam se
arrastando. Então, aquela lenda que o avô do avô de Torb ouvia desde que era uma
criança, de fato, era verdade? Mas se as lendas se confirmavam, por que o Leão
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Bestial Negro surgira, em carne e osso, durante o dia? Ele não era uma criatura das
trevas?
Um turbilhão de perguntas fervilhava na mente do garoto, mas ele tinha quase
certeza de que não viveria para conhecer suas respostas.
O grito estridente de Lala ressoou. O Leão Bestial Negro avançara, se assomando
sobre os dois em um salto ameaçador, patas em riste, garras afiadas à mostra; cobria
o sol que irradiava para dentro da clareira com sua carcaça monstruosa.
Instintivamente, Lala conseguira esticar o braço e puxar a gola do blusão de Torb
e arremessá-lo com uma força sobre-humana na direção do lago.
Um misto de confusão e estardalhaço se desdobrou em uma sequência de fatos
atabalhoados. Torb se viu caindo dentro do lago. Desesperado por oxigênio, suas
narinas foram invadidas pelas águas serenas. Uma dor lancinante na cabeça surgiu
assim que seu cocuruto bateu em uma das pedras do fundo. A visão tornou-se turva
de chofre e o mundo girou lentamente em diversos borrões de nuances verdes,
azuis e pretas.
Algo inesperado acontecera.
A cabeça ainda doía por causa da pancada violenta. Os pulmões pareciam cheios
da água que aspirara sem querer. Torb mirou os próprios pés firmes dentro do lago.
E não havia água.
Os olhos percebiam o que acontecia, mas a mente não queria acreditar: espirais
de água cristalina pairavam no ar em sequência a centímetros de suas mãos que
ainda se mantinham instintivamente em riste, protegendo o rosto. Torb arregalara
os olhos, admirado com a suntuosidade dos trechos de água que flutuavam diante
dele. Boquiaberto, contemplava o rastro de águas estáticas que avançavam,
incólumes, em direção ao céu, como um rodamoinho.
As águas do lago se avolumavam e, quanto mais os olhos acompanhavam a trilha
que seguiam, mais arregalados ficavam. Um gigantesco arco mágico se formava ao
redor da clareira e serpeava pelo perímetro, quase tocando as folhagens das árvores.
Enroscava-se como um caracol, bem no centro, parecendo uma gigantesca cobra
formada por água. A metros de distância de sua cabeça, bem lá no alto, o Leão
Bestial Negro se debatia, furioso, sustentado por um fluxo interminável de águas
torrenciais que se renovavam, subindo e descendo, mantendo a besta nas alturas.
— Como... você fez... isso? — perguntou Lala, aparvalhada, tão ou até mais cética
do que o amigo esgalgado.
— Eu... não... sei... — pronunciou Torb, mirando de Lala para o Leão Bestial que
rugia, flutuando metros acima, e de novo para amiga.
— É inacreditável! — Lala engrolou, animada — Você tinha que ter visto! Assim
que você caiu, as águas se agitaram e logo elas... elas... voaram para o alto e se
juntaram. Aí ficaram rodopiando bem perto das árvores e quase afogaram aquela...
coisa lá em cima. Você é um alquimestre, Torb. Sua magia controla as águas.
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Torb não movia um músculo, ainda estático e atarantado. Uma mistura de
excitação e medo aflorava, sem estar convicto de que fora ele mesmo quem acertara
a criatura com aquele monte de água. As mãos continuavam paralisadas na posição
e ele não ousaria mexê-las nem tão cedo. Não queria que aquela criatura demoníaca
despencasse lá do alto e terminasse por fazer dos garotos sua refeição do dia.
— Certo, mas... O que eu faço agora? — inquiriu Torb.
Lala franziu o cenho.
— Não sei, você é o alquimestre aqui. Você é que tem o dom de controlar as
águas...
Apesar de todo medo e da falta de jeito, Torb respirou fundo e resolveu arriscar.
Não poderia ficar ali para sempre, paralisado e morrendo de medo. Uma hora seus
braços iriam ceder ao cansaço. Com um movimento suave das mãos, ele viu o fluxo
de água se mover lá no alto.
Mas algo inesperado aconteceu. Outra vez.
O Leão Bestial Negro girou para a esquerda, agitando as patas traseiras sobre as
correntes de água e em fração de segundos, Lala e Torb viram a fera despencar do
céu e chocar-se com estrépito contra o chão relvado; a terra ao redor dos garotos
tremeu com a força do impacto. Cambaleando e ainda atordoada pela queda, a besta
conseguiu se reerguer e postou-se sobre as quatro patas. Encarou o garoto e a
garota outra vez, arreganhando os dentes afiados. Os olhos se comprimiam em uma
expressão assassina; a baba viscosa escorria de sua boca arreganhada.
— TOOOOOOORB!
O grito de Lala reverberou nos tímpanos do amigo. Uma gota de suor invadiu
seu olho esquerdo e ardeu como uma brasa viva. Os braços retesados insistiam em
permanecer na mesma posição e as pernas tornaram-se como chumbo sobre as
pedras escorregadias do fundo do lago vazio. O Leão Bestial avançava sem pudor.
As patas grosseiras da fera retumbavam com ímpeto sobre a terra e faziam-na
tremer. As mandíbulas da criatura balançavam de uma forma frenética para
abocanhar as duas presas em seu ataque mortal.
Torb tinha de agir e rápido. Os braços giraram no ar por instinto e as mãos, juntas
formando uma concha, apontaram na direção da fera que avançava implacável em
sua investida feroz.
Um vento atroador assoprou e agitou seus cabelos com a fúria de um tufão.
Filetes de água gelada golpearam-lhe a face e encharcaram suas roupas. Um ruído
ensurdecedor ribombou em seus ouvidos. Os olhos, que imediatamente se
fecharam com a força do vento, iam se abrindo aos poucos, bem a tempo de
contemplar a serpente de água viajar pelos arredores da clareira e golpear a
mandíbula do Leão Bestial, lançando-o contra uma das árvores.
— AFOGUE-O!
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Torb não precisou que a amiga pedisse duas vezes. Ao som do grito escandaloso
de Lala, Torb moveu mais uma vez as mãos e as águas envolveram a fera e a
levantaram novamente em direção aos céus. Agitado dentro de um rodamoinho
pela força das águas, o Leão Bestial Negro se contorcia, movendo as patas
inutilmente na tentativa de escapar do afogamento. Torb não parava de girar as
mãos, como se agitasse roupas lavadas em um balde. A criatura moveu as patas uma
última vez até seu corpo negro parar de se debater dentro do rodamoinho.
— O que está acontecendo?
Caily voltara atônito da floresta. A água controlada por Torb se precipitou sobre
a clareira como uma chuva torrencial repentina, molhando os três garotos. O Leão
Bestial Negro caiu, moribundo, em um baque que estremeceu a clareira. No
segundo seguinte, Lala e Torb observaram o amigo tombar de borco no chão,
desmaiado.
Um trovão retumbou no céu e afastou as memórias da infância de Torb no
mesmo instante. Nuvens carregadas se chocaram, provocando um ruído de dar
arrepios na espinha. Um relâmpago fulgente iluminou as trevas dominantes do
horizonte com um brilho esbranquiçado e lançou uma luz vacilante sobre a encosta
de Aralyart.
O mar encapelado agitava-se, rechaçando contra o cais com estrondos
aterrorizantes. Ondas impetuosas fustigavam a carcaça do navio e faziam-no
envergar, balançando de um lado a outro; as vigas do convés colidiam ruidosamente
com as outras fragatas ao ímpeto das águas. Torb firmou-se entre as cordas da
cruzeta. O sorriso nostálgico não desaparecia dos lábios, estampado em seu rosto
como uma tatuagem; recordava-se aos poucos do sórdido motivo de estarem todos
ali, em uma interminável expectativa e o semblante descaía.
Uma criatura adormecida há milênios emergira das profundezas das Águas de
Crispoles, que banhava toda a encosta sul do continente havia três meses.
Avançando com intrepidez sobre os navios e embarcações no coração do mar, a
criatura devastou um terço de toda a frota marítima na enseada de Aralyart,
arremetendo aos poucos em direção aos portos do reino. Ceifando as vidas de uma
centena de marinheiros e pescadores, destruiu dezenas de casas e vilarejos da
encosta com seus tentáculos colossais. Ondas gigantescas cobriram a costa
portuária, matando centenas de habitantes. O pânico e o terror logo se alastraram
pelas terras do reino e dos condados. Fren, o Intrépido, rei de Aralyart e seus
conselheiros não conseguiam encontrar os motivos de tal criatura ter despertado
de seu sono transcendente e nem mesmo os mais sábios e adivinhos do reino
alcançaram sucesso em determinar as causas desse feito. Uma crise se instaurava na
nação e colocava em xeque a governabilidade do rei. Numa tentativa desesperada
de conter a fúria dos ataques cada vez mais constantes da criatura abissal, Rei Fren
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colocou seus melhores soldados, mestres e alquimestres em um combate direto
com o monstro, no meio do mar.
Tudo em vão. Mais de três mil homens morreram no primeiro embate.
As melhores estratégias elaboradas pelos mais obstinados generais de Aralyart
iam, literalmente, por água abaixo. Soldados, espadachins, mestres, alquimestres,
capitães, generais. Milhares de homens dizimados pelos ataques impetuosos de um
kraken. A enseada do reino se transformava em uma terra fantasma e inóspita. Um
lugar de escombros, destruição e morte e que trazia o infortúnio e a desgraça para
as terras abundantes de Aralyart.
A última esperança do rei contra a fúria de uma lenda demoníaca era confiar na
força de outra lenda.
As histórias corriam os quatro cantos do continente. Desde que Torb descobrira
seu poder de controlar a água e fora recrutado pela Marinha Alquimestre do reino
ainda criança, ele ouvia os murmúrios que circulavam desde os jovens aprendizes
até os almirantes do mais alto escalão. Discorriam, sempre na hora do almoço ou
entre as horas vagas de cada plantão noturno, sobre os feitos de um homem que
dedicara toda uma vida a combater monstros, encarar seres mitológicos bestiais dos
mais variados tipos e salvar as vidas dos menos afortunados. Nas longas histórias
contadas pelos pátios e corredores a fora, comentavam que seu poder era infinito
e também que podia controlar qualquer coisa, até mesmo o tempo. Dizia-se que
sua força era como a de dez mil guerreiros. Ouviu os contos sobre sua aparência e
que seu cabelo era grande e reluzente como o ouro, que tinha mais de dois metros
de altura e músculos que cobriam o corpo dos pés à cabeça, que apenas um único
soco seu era capaz de derrotar uma quimera. Torb jamais conseguira descobrir seu
verdadeiro nome. Uma centena de nomes ouvira em toda sua vida. Entre as muitas
especulações de como de fato ele se chamava, somente uma era unânime entre toda
a Marinha de Aralyart e inclusive como os guerreiros, mestres e alquimestres, elfos,
duendes e anões, conselheiros, nobreza e todos os cidadãos do reino o conheciam:
A Lenda.
Rei Fren escrevera uma carta. Uma única carta em uma tentativa desesperada de
frear os ataques do monstro colossal e destruí-lo de uma vez por todas. Escrevera
de próprio punho uma súplica por socorro. Derramara a cera quente sobre o papel,
selando a carta com o Faisão Auspicioso, roxo e dourado, símbolo do reino de
Aralyart e dos Condados Triunos, contido no anel real. Amarrara a carta às patas
dianteiras de seu grifo mais veloz e soltou–o pelos ares, rumo ao horizonte, na
esperança de que o clamor contido naquele pedaço de papel encontrasse o único
que poderia socorrê-lo.
Outro raio rasgou o céu e iluminou a enseada. Alarmado mais uma vez no
extremo da cruzeta, Torb sentiu os pelos de sua nuca se eriçarem pela primeira vez
desde que subira ao topo do navio, no começo da madrugada. O medo que o
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dominava naquele momento era infinitamente maior do que quando enfrentara o
Leão Bestial Negro em sua infância. Cinco dias se passaram desde que o grifo real
cruzara os céus do reino em busca da ajuda daquele que seria o único capaz de livrar
Aralyart da desgraça em que sucumbiam.
Nenhuma resposta.
Fren não podia ceder e se prostrar perante a ameaça iminente do gigantesco
monstro marinho que subjugava sua nação. Não iria fraquejar e entregar seu povo
como presa fácil. A barba densa e acaju que o rei sustentava assumia intensos tons
grisalhos e as olheiras das noites sem dormir eram negras e profundas. Envelhecera
em três meses o que deveria envelhecer em dez ciclos. Convocou os últimos
alquimestres e guerreiros para um derradeiro ataque, uma última investida que não
poderia falhar.
Mil e setecentos homens, entre mestres, alquimestres, espadachins, lanceiros e
arqueiros. Guerreiros de Aralyart, audazes camponeses dos condados que queriam
defender suas terras, leigos pescadores munidos de arpões, garimpeiros vindos dos
mais distantes vales sustentando suas espadas, mercenários interessados apenas na
recompensa oferecida, tropas e esquadrões de reinos vizinhos. Uma multidão de
homens armados, aguardando, lado a lado com seu rei, que também vestira a
armadura dourada real e se juntara aos últimos valentes de Aralyart para aquela que
poderia ser a derradeira batalha de suas vidas. Espalhados no semicírculo dos
resquícios do que antes fora o mais suntuoso porto do reino, encarrapitados no
topo de uma dúzia de fragatas e navios, na iminência do gigantesco kraken insurgir
das profundezas, Fren e seus ávidos guerreiros esperavam. Com medo, agarrados
às suas armas, lavados pelas torrentes de águas que se precipitavam dos céus e das
ondas que não paravam de se chocar contra as embarcações, eles permaneciam na
expectativa. O coração palpitava no fundo do peito. A adrenalina corria nas veias
de cada guerreiro.
Era a última cartada. Lutar ou morrer.
Um dos marinheiros mais experientes da tropa se oferecera como isca e
aguardava em um bote a alguns metros do porto inóspito, em meio às indomadas
águas do oceano. O suor se misturava à chuva que escorria por suas têmporas e os
pelos da nuca se ouriçavam, ora pelas grossas gotas gélidas da chuva, ora pelo medo
avassalador que o dominava.
Um som atroador reverberou por toda a extensão do porto e a atenção de todos
se aguçou. O silêncio imperou de repente. Os acontecimentos seguintes se
desenrolaram muito lentamente, apesar de ocorrerem em questões de segundos que
passaram despercebidos pela grande maioria.
O barquinho que servia de isca foi cuspido na direção das nuvens, com violência.
Os olhares amedrontados nas ruínas do porto conseguiram visualizar a cena, pois
um raio se desenhou nos céus nesse exato momento, tocando as águas negras de
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forma atroz, lançando uma luz exuberante, de brilho leitoso, sobre os soldados,
pescadores, camponeses e outros guerreiros ansiando pelo monstro ao longo da
orla, desta vez mais do que nunca agarrados às suas armas, como se jamais houvesse
um amanhã.
O mar recuou da orla com velocidade e os navios ancorados rangeram as
madeiras de seus velhos cascos e se dobraram até quase virarem de vez. Uma onda
colossal se assomou em direção aos céus de chumbo. As narinas de todos foram
invadidas por um forte cheiro de sal trazido pela maresia e que se misturava ao odor
pungente das incrustações de peixes podres do fundo das fragatas e corsários.
Um novo raio cortou os céus e olhares assustados se arregalaram ainda mais.
Tentáculos monstruosos incrustados de corais surgiram do meio das águas;
erguiam-se aterradoramente contra as densas nuvens negras. Uma cabeça oval e
reluzente emergiu das trevas intensas do oceano. Um olhar frívolo e sanguinário
brilhava à luz dos clarões dos relâmpagos. Arreganhou as mandíbulas, revelando
uma boca com fileiras de dentes afiados em um sorriso maquiavélico. Encarava não
os seus futuros algozes e sim as suas mais novas presas.
Torb fincara os dedos na cruzeta e fundira-se à velha fragata com o medo
crescente. A boca insistia em permanecer escancarada sem que percebesse.
As águas salgadas não paravam de recuar furiosamente enquanto a criatura se
erguia do oceano. As fileiras de navios rangeram suas velhas madeiras com mais
intensidade e apinharam-se uns nos outros como peças de um dominó que acabara
de ser derrubado. Ao mesmo tempo, o enorme kraken revelava seu corpo
pendendo de crustáceos. Coberto por escamas translúcidas, ao brilho dos
intermitentes relâmpagos, a carcaça monstruosa revelava um tom prateado
chispante. Os seis tentáculos se eriçavam, agitando-se sobre as águas. Os quatro
olhos no topo de sua cabeçorra oval eram mínimas fendas e denotavam um rubro
e vívido fulgor. Para os guerreiros de Aralyart, era a visão do inferno.
Ao brado do rei, dezenas de soldados, munidos com suas espadas, machados e
lanças se lançaram do alto dos navios e fragatas ancorados pelo porto, pulando a
esmo, gritando, fincando suas armas sobre a carcaça rígida do temível monstro. As
lâminas se despedaçavam e sumiam no mar ao tentarem perfurar as duras escamas
dos tentáculos do kraken.
Um grito ensurdecedor reverberou por entre as águas; a onda colossal, que se
assomava metros acima desde que o monstro emergiu, rebentou em sua queda e
dois dos quatro tentáculos do monstro rasgaram os céus em um arroubo brutal
contra os navios.
Torb ergueu as mãos. Conseguiu conter o avanço da gigantesca onda como pôde,
usando seu poder, evitando com que o navio em que estava trepado se partisse ao
meio. Mas nem todos tiveram a mesma sorte: os barcos onde estavam os
alquimestres do fogo vieram à pique na primeira investida do monstro. Morte e
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destruição, era tudo o que ele conseguia vislumbrar onde antes havia dezenas de
guerreiros, ávidos por destruírem aquela besta colossal que emergira do oceano.
Gritos ecoavam por todos os lados e se misturavam ao som das rebentações
contra o que sobrara do porto do reino. Os destroços dos navios afetados pelo
ataque do monstro se empilhavam e eram levados para o meio do mar a todo
instante, pelas séries de ondas que iam e voltavam. O kraken impelia os
monstruosos tentáculos contra a orla em uma orquestra de movimentos lentos e
compassados, provocando novas marés colossais que inundavam as pedras e
escombros do que sobrara de um dos píeres e do aglomerado de destroços de
navios. A cada segundo, a criatura avançava em direção ao cais.
A chuva não dava trégua e assolava ainda mais os exauridos remanescentes que
guerreavam inutilmente contra o monstruoso kraken. Torb removeu os cabelos,
lavados pela chuva e pelas marés, que teimavam em escorrer para cima de seus
olhos com as costas das mãos e vislumbrou o cenário estarrecedor: dezenas de
corpos de marinheiros depositados sobre o cais, trazidos pelas inúmeras ondas do
mar em fúria. Afogados, jaziam incólumes, empilhados, sobre as torrenciais chuvas
daquela lúgubre manhã cinzenta.
Entrementes, Torb levantou os olhos e entreviu alguns poucos alquimestres
sobreviventes ainda resistindo. Lançavam incessantes jatos de água sobre a criatura.
Bolas incandescentes voavam a todo o momento das mãos dos alquimestres do
fogo. Cruzavam os céus, deixando rastros crepitantes pelos ares e eram obliteradas
sobre as escamas duras e prateadas do kraken.
Não havia mais esperança.
Aralyart chegara ao fim. A beleza e majestade do antigo reino sucumbiria aos
intentos da poderosa criatura do mar. Os ciclos de fama e glória morreriam naquela
manhã mórbida e chuvosa. O kraken logo chegaria à terra firme e terminaria por
extinguir o reino do mapa.
O alquimestre ergueu a cabeça e encarou as nuvens lúgubres. Naquele dia, o sol
não despontara. Preferia se esconder. Não viera ver o triste fim de Aralyart. Foram
deixados à mercê da própria sorte contra uma besta implacável.
Torb fechara os olhos. Decidira aguardar sua morte iminente.
Um alvoroço descomunal em um extremo do cais se iniciou e passaria
despercebido entre as diversas marés que arrebentavam com fúria contra o píer e
os urros estridentes do kraken em suas investidas incessantes, não fosse por uma
nesga de euforia incontida nas vozes excitadas que não combinava com o terror do
momento.
Não eram gritos de horror, lamento ou súplica. Alaridos de esperança se
sobrepunham aos ruídos das marés e aos estrondos dos trovões.
Abriu os olhos.
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Um raio azul e fluorescente fulgurava, disparando em velocidade, voando no
longínquo horizonte. Por entre as nuvens negras que dominavam a abóbada celeste,
ele se movia obstinado. Torb não conseguia acreditar no que vislumbrava a metros
e metros de distância nos céus e nem mesmo se o que via era de fato real ou uma
alucinação de sua mente cansada.
Novos brados reboaram pelos ares. Os ouvidos exauridos conseguiram captar
dessa vez o que o coro das vozes irrequietas e eufóricas dos últimos e combalidos
guerreiros de Aralyart berravam:
— A Lenda!
— A Lenda!
— A Lenda!
Os ares castigados pela tempestade e pelas investidas do monstro marinho se
encheram de algo que para Torb havia acabado: esperança. O peito ardia
novamente. A euforia mexia com seu âmago. Onde antes havia cinzas, uma chama
de esperança voltava a crepitar aos poucos em seu coração desalentado.
Um súbito e inesperado golpe voraz atingiu as águas, os tentáculos do kraken
golpearam a encosta mais uma vez. Água. Muita água. Borrões difusos em tons de
mogno rodopiando em um nauseante frenesi. Mais água. Desespero por oxigênio.
Um clarão que invade os olhos e quase queima as retinas. Palpitações desenfreadas,
o coração acelerava no fundo do peito de forma incontrolável. Uma intensa e
infindável vertigem. Mais e mais água. Por fim, a paz.
O silêncio pressionou com violência os ouvidos de Torb. O oxigênio de seus
pulmões se esvaía e os primeiros formigamentos nas extremidades de seu corpo
davam um sinal de que precisava correr para sobreviver. O frio se apropriava de
suas emoções; a ausência de luz do fundo do mar enervava a mente e curava as
vistas atordoadas.
A calmaria que apenas a imensidão das profundezas do oceano proporcionava
envolveu-o de repente. A maré gigantesca provocada pela investida da criatura
engoliu os últimos navios que ainda resistiam aos ataques, destruindo-se em
violentas colisões. O baque causticante dos tentáculos do kraken fez a fragata onde
Torb estava romper-se ao meio. As embarcações restantes ao longo da orla voaram
em direção aos céus, trombando-se umas nas outras.
O suave afago das águas salgadas conduzia seu corpo semi-moribundo no fundo
do mar. Os olhos pesarosos permaneciam fechados. Aproveitava o silêncio
reconfortante do oceano e queria continuar assim. Os resquícios de força que o
mantinham vivo instigavam para que voltasse à superfície de imediato em uma
súplica desesperada. Abriu os olhos embaixo d’água e, entre as imagens difusas dos
mastros e couraças das embarcações destruídas que pairavam na imensidão verdemusgo
do mar, ele o viu.
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Era ele. A Lenda. Embora jamais o tivesse visto, algo em seu íntimo afirmava que
era ele.
A poucos centímetros de distância de onde estava, completamente envolvido
pelas águas enregelantes da orla de Aralyart, Torb o contemplava e era exatamente
como sempre imaginou.
Alto, de porte pujante, as muitas histórias a respeito de seus milhares de feitos
heroicos faziam total sentido visto daquele ângulo. Mesmo ali debaixo d’água, os
músculos se avolumavam em uma túnica de seda branca que lhe cobria o pescoço
e ia até o meio da coxa. Um gibão esmeralda longo e aberto, de couro fervido,
pesava sobre seus ombros. Os cabelos longos e lisos batiam no meio de suas costas
e se abriam como os tentáculos poderosos do kraken. Eram muito loiros, quase
brancos, também enlevados pela grandeza do oceano, contrastando com a capa
negra atada ao seu pescoço, que drapejava suas costas. O rosto rígido, de feições
duras, sustentava uma barba rala e dourada e fazia jus à fama de suas lendas: ele não
era alguém novo, mas também não era um ancião. Aparentava ter seus quarenta
ciclos de idade e era o tipo de homem cuja presença impunha respeito. A calmaria
do fundo do mar tornava sua aparência quase etérea, como se ele pertencesse a
outro mundo. No momento em que Aralyart era assolada por um demônio
marinho na superfície, Torb sentiu a esperança arder outra vez.
A Lenda agitou a cabeça e lhe deu um breve sorriso. Transmitia a segurança de
que com ele ali, tudo ficaria bem. Apontou para a superfície com o dedo indicador
e, em um rodamoinho indomável, disparou em direção aos céus. A aura de sua
magia em tom azulado eletrizante preencheu o entorno obscuro do mar onde Torb
estava.
O alquimestre balançou os braços pesados como chumbo e, com o resquício de
força que conseguiu reunir, nadou rumo à superfície.
Sorveu o ar até os pulmões inflarem e doerem. Mergulhou por instinto quando
uma onda arrastou um mastro em sua direção e nadou o máximo que o fôlego
aguentou até a praia. Retornou ao limiar das águas enregelantes, puxando o ar
daquela manhã chuvosa e cinzenta com toda a força que ainda tinha.
Avançava em direção ao cais em largas braçadas. Com o pouco de força que
restara nos braços retesados, Torb tomou um impulso e subiu em um píer, ao som
de outras ondas impetuosas que quebravam em suas costas.
Os olhares dos derradeiros guerreiros e alquimestres ao longo do porto
observavam, embasbacados, a cena que se desenrolava no meio do mar. Uma névoa
azul fluorescente dominava os céus, refletindo sobre as ondas impetuosas e nos
resquícios das anilhas de ferro dos navios destroçados. Rutilando nas pupilas
dilatadas dos olhos arregalados e vidrados de todos, emanava das duas mãos abertas
do homem que era a última esperança para o reino: A Lenda. O monstruoso kraken
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era envolvido com um poder mágico. A criatura se debatia com ferocidade, os
tentáculos provocando novas marés carregadas de destroços de embarcações.
Lavado pelas chuvas e pelas ondas causticantes, Torb e seus companheiros não
acreditavam no que estava diante de seus olhos. Pairado no ar, flutuando com a
força de sua magia sobre as marés furiosas, A Lenda erguia o monstro aos poucos,
retirando-o do fundo do oceano.
Uma explosão de vivas, uivos e gritos de emoção se espalhou por toda a extensão
do porto. As maçãs do rosto macilento de Torb queimavam. Pululava onde estava,
sem perceber, movido pela excitação de que o sofrimento de seu povo finalmente
chegaria ao fim.
— A água — urrou a Lenda e sua voz trovejou pelos quatro cantos do cais. —
Afastem o máximo que puderem dele!
Os alquimestres da água obedeceram à ordem de imediato. Torb correu
atarantado para junto de outros três alquimestres que criaram um vórtex e
afastavam toda a água ao redor do monstro. As ondas cessaram e as águas
rodopiavam intensamente, se condicionando aos movimentos desesperados dos
quatro alquimestres, balançando suas mãos em círculos. Uma enorme cratera se
formava no meio do mar; as marés cediam espaço a uma faixa circular onde era
possível ver os corpos intactos e sem vida dos soldados que sucumbiram às
ofensivas do kraken em meio aos restos de fragatas e navios e aos estandartes roxo
e dourado com o Faisão Auspicioso, rasgados e destruídos, depositados no fundo
do mar.
Entre os urros estridentes do monstro, A Lenda fez sua voz reboar pelos céus
outra vez.
— Alquimestres do fogo, concentrem seu poder.
Os alquimestres do fogo sobreviventes se uniram e dispararam de onde estavam.
Correndo, nadando, se desvencilhando dos mastros e pedras lavadas dos
escombros, alguns com ferimentos caóticos, com braços e pernas mutilados e o
esgar apático de quem travara uma injusta guerra. Os últimos dez que restaram se
uniram em um extremo do cais. Empenhavam todas as suas energias em concentrar
a magia do fogo que ainda lhes sobrava. As mãos trêmulas faziam as labaredas se
misturarem umas às outras, crepitando acima de suas cabeças, e os olhares
esperançosos observavam A Lenda, envolvido em uma névoa cintilante e azulada
de magia, elevar ainda mais o gigantesco monstro enquanto toda a água do mar
abaixo de ambos se continha através do poder dos alquimestres da água.
A esfera coruscante ia tomando volume. Fumegava, ficando quase do tamanho
de um bote a remo e, a cada minuto, tornando-se mais pesada e quente.
A Lenda soltou umas das mãos que erguia o kraken. O rosto lívido, os olhos
refletindo o brilho azulado de seu poder, ele esticou a mão livre e sua aura de magia
envolveu a esfera de fogo, fazendo-a flutuar sobre os ares.
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Um clarão dominou a abóbada celeste como um dia quente de verão, iluminando
a extensão da orla. Um estrondo ensurdecedor ribombou em todos os ouvidos e
os últimos guerreiros de Aralyart sentiram os pés desprenderem-se do cais quando
foram arremessados contra o chão com o baque repentino.
Tateando as lajotas do que sobrara do píer, com a vista ainda turva e um zumbido
nos ouvidos, Torb se pôs de pé com dificuldade. Levou um tempo até parar de
cambalear, os pés se firmarem e a audição perceber uma agitação anormal pelas
ruínas do porto. Os sentidos ainda se recuperavam e ele pode se dar conta de que
não era uma simples agitação: os últimos sobreviventes daquela batalha
comemoravam, vibrando à beira das águas que rechaçavam contra os destroços do
cais.
A Lenda derrotara o kraken, explodindo-o pelos ares.
A chuva resolvera não dar uma trégua sobre as terras de Aralyart. Precipitava-se
constantemente das densas nuvens que cobriam os céus sobre as centenas de
telhados oblíquos dos casebres e edifícios dos Condados Triunos. Retumbavam um
plic-plic e ploc-ploc de gotas em cima dos baldes de latão semi amassados das calçadas,
escorrendo em torrentes pelas ruas e vielas sinuosas, lavando as ásperas lajotas que
serviam de pavimento.
Os céus empalideceram brandamente. Abandonaram o tom cinza-chumbo e
cintilavam uma nesga de luz que transparecia entre as nuvens, revelando um cinza
lívido, porém ainda tristonho.
Diferente das ruas assoladas pela forte tempestade, o clima era intenso e
acalorado dentro dos quatro cantos da taverna mais famosa dos Condados Triunos.
Sobre ondas de cantorias alegres, vivas e o tilin-tilin de monstruosas canecas de latão
transbordando do melhor rum envelhecido em barris de carvalho de toda Aralyart,
cuja fama se estendia para muito além das Águas de Crispoles, os guerreiros mais
valentes do reino comemoravam a vitória sobre o kraken.
Uma névoa quase palpável dominava os ares da taverna e pressionava os vidros
quadriculados das janelas, embaçados com a animação das danças no centro do
salão. Duendes e anões, alquimestres do fogo, da água e do ar, mestres e
espadachins e até mesmo alguns poucos elfos do Relicário do Condado de Séquiro,
a quase duas milhas dali, davam-se as mãos em uma dança típica que já tomava
conta do ínfimo espaço do lugar. Com grande entusiasmo, as vozes ébrias
engrolavam versos improvisados na hora:
Sobre ondas e vagas e o escuro sem fim,
Em morte afrontosa, o que será de mim?
Em brilho Lazúli, cortando o céu,
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Rasgando os mares, sem deixar-nos ao léu.
O poderoso kraken, quem pode deter?
A Lenda é seu nome, isso posso dizer.
Gritavam “A Lenda”, levantando as canecas o mais alto que conseguiam,
resvalando a bebida pelo piso de mogno.
Apesar do convite do Rei Fren para um banquete em comemoração no Salão
Principal do palácio com todos os seus conselheiros e a realeza, A Lenda preferira
estar rodeado pelos corajosos guerreiros que o ajudaram a destruir a fera e a todo
povo que festejava, se acotovelando no interior da taverna. Rejeitando as honrarias
e preferindo encher as canecas com as melhores bebidas da periferia de Aralyart, A
Lenda se sentia em casa. Sorrindo, com os cabelos louros amarrados em um longo
rabo de cavalo, saboreava o delicioso rum em grandes goladas. Com o peitoral de
fora e apoiado no encosto de uma grande cadeira de carvalho, A Lenda arreganhava
seu sorriso cheio de dentes e intercalava salvas de palmas calorosas entre as várias
doses de rum e os versos cantados em sua homenagem. Entrementes, Torb Nayar
e dezenas de outros soldados se espremiam para ficar o mais perto possível do
salvador de Aralyart, ao redor de uma grande mesa redonda também de carvalho
polido.
— A Lenda, você pod...
— Por favor, — disse ele, sorrindo pelo canto da boca — meu nome é Heidlich,
do Trono dos Heinhardt, das Suntuosas Terras de Badorian e Segundo Guardião,
protetor também das terras de Aralyart. Parem de me chamar de “A Lenda”. Pareço
ter uns mil ciclos quando vocês me chamam desse jeito e não sou nem tão velho
assim...
Todos desataram a rir. Alguns até de forma exagerada. Os guerreiros se
acotovelavam ao redor dele querendo fazer uma infinidade de perguntas, mas a
grande maioria não tinha coragem suficiente de atrapalhar sua bebedeira. Heidlich
virou uma caneca de uma golada só e, além do poder infinito, parecia ter a
habilidade de ler as mentes de seus colegas de mesa.
— Por que vocês estão tão calados? Querem me fazer alguma pergunta ou
incomoda aos senhores minha presença aqui?
— Não, de maneira alguma — respondeu um anão, de olhos arregalados, alisando
os cabelos grisalhos.
— Como soube do kraken? — perguntou alguém, mas nem todos conseguiram
ver de onde viera a questão.
— A carta de Fren, seu imbecil! — respondeu outro. E ouviram dedos estalarem
no cocuruto de alguém.
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Heidlich se levantou, entusiasmado. Palmas interromperam a conversa e
encheram o salão quando uma trupe de duendes fez um espetáculo acrobático e
formaram uma pirâmide feita pelas próprias criaturinhas e uma série de truques de
mágica.
— De fato, encontrei o grifo do rei. Ou melhor, ele me encontrou. — Heidlich
riu, ajeitando a cadeira e escorando as costas sobre ela. — Estava em Boralioch, em
grandes apuros...
Ao redor da mesa, vários pares de olhos se entreolharam.
— Enfrentando uma Quimera? — perguntou um alquimestre, curioso.
— Não... — respondeu Heidlich, displicente.
— Matando dragões?
— Destruindo outros krakens?
— Dilacerando minotauros?
— Também não...
— Então o quê? — interrogaram todos, em uníssono.
— Recebendo um prêmio no palácio real! — falou Heidlich, erguendo a caneca
de rum.
Novas risadas encheram os ares ao redor da mesa.
— Prefiro um milhão de vezes matar dez dragões e mil minotauros do que estar
em um palácio cheio de requinte e pomposidade. — Heidlich engrolava; a bebida
já afetava suas faculdades mentais. — Não nasci para tronos reais.
— É verdade que você matou uma Hidra?
— Uma? — Heidlich riu e piscou na direção de uma morena esguia que servia
jarras de vinho próximo ao balcão. — Foram duas!
Uma saraivada de interrogações eclodiu de vários lugares e a quantidade de
pessoas ao redor dele dobrava de tamanho. Dúvidas se Heidlich de fato matara um
monstro elemental de fogo apenas com uma faca e um braço amarrado nas costas;
se o guardião derrubara um ciclope que ameaçava aldeões na Ilha Doret e até se
movera uma montanha do lugar que atrapalhava o caminho entre dois reinos para
além das Águas de Argúrius.
Heidlich ria a cada nova pergunta absurda. A morena deixara as canecas e viera
se sentar em seu colo. A mão do guardião corria pelas costas da mulher com
suavidade, repousando de uma forma lasciva no meio de suas pernas. Ela ria,
mordiscando os lábios.
— Eu cresci ouvindo todas as lendas a seu respeito. — Torb reuniu coragem o
suficiente para falar. Mais para ele próprio do que para o guardião — Foram elas
que me inspiraram a querer ser o melhor alquimestre que Aralyart poderia ter...
Heidlich bebericou de mais uma caneca de rum. O silêncio imperou sobre a mesa
e as atenções dos guerreiros ao redor se voltaram para o alquimestre da água. O
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guardião encarou Torb de forma serena, absorto, e ele podia sentir as bochechas
enrubescerem com tantos olhares em sua direção.
— Eu também acredito em lendas — inferiu Heidlich, empurrando uma caneca
para ele.
— Até na de Farhill, a Ilha Perdida?
— Até em Farhill e não, ainda não consegui encontrar essa maldita ilha —
proferiu o guardião, abrindo um sorriso. — Foram as lendas que me fizeram querer
honrar meu sangue guardião. As lendas são o motivo de querer cumprir à risca a
primeira das Leis Primazes. Até mesmo quando as assolações me provocaram o
maior dos medos, mesmo quando achei que não veria novamente a luz do sol, ou
o brilho no olhar de uma bela jovem de cabelos negros, — E aqui ele fitou a moça
sentada em seu colo e a beijou nos lábios com vontade — eu sabia: jamais desejaria
outra vida que não fosse a de protetor, de Guardião, usando meu poder a favor do
povo. Mesmo que essas lendas provocassem tantas outras lendas absurdas sobre
mim.
Aplaudindo com vontade, a multidão ao redor da mesa retomou a cantoria e as
danças no centro do salão.
O guardião terminava de acariciar os cabelos encaracolados da morena e lhe
beijava o pescoço quando alguém envolto em trajes reais, com um gigantesco elmo
de prata embaixo do braço direito, o chamou. Heidlich levantou-se, vestindo sua
túnica fina e abotoando o gibão. Ladeava o homem de armadura e trajes reais rumo
aos fundos da taverna, passando por um longo corredor estreito drapejado de
tábuas de carvalho áspero, na direção da adega.
— Vida longa ao rei! — exclamou o soldado, fazendo uma longa saudação.
— Eu não sou rei — respondeu Heidlich, sério.
— Lorde Heidlich Heinhardt, eu sinto muito — falou o homem consternado,
tirando do interior das vestes um envelope marfim, com o selo real do Trono dos
Heinhardt.
Heidlich tomou a carta em suas mãos e abriu-a, desesperado. O sorriso
desapareceu e uma lágrima escorreu de seus olhos quando terminou de lê-la.
— Seu pai, o Nobre e Valoroso Rei Cench Heinhardt veio a falecer na noite
passada — sibilou o mensageiro, de cabeça baixa. — O Trono Branco da Suntuosa
Badorian clama urgentemente por seu regresso.
29
Capítulo Três
Uma Prosa Acalorada
Quem via as vastas e abundantes terras da Intrépida Miliat, um dos maiores e
mais gloriosos reinos do continente de Aladar destacado de forma majestosa, não
imaginaria o quanto elas eram diferentes muitos séculos antes. Mesmo ao sofrível
findar da atroadora e sanguinária Era das Trevas, quando para os elfos iniciava o
que eles costumam chamar até os dias atuais de A Majestosa Era de Ouro dos
Humanos e Mágicos, as densas florestas cobertas de monstruosas faias, carvalhos
e salgueiros cobriam boa parte do continente e os reis que conseguiam estabelecer
seus reinos em meio à mata selvagem e às terríveis criaturas que ainda a habitavam
eram considerados verdadeiros e destemidos desbravadores. De caules gigantescos
e raízes maiores que duas legiões de homens, se estendiam por milhas e milhas
continente a fora. A floresta sempre fora temida, até mesmo pelos mais corajosos
aventureiros. Ao colocar os pés em Aladar, aqueles que conseguiram erguer seus
reinos à sombra da soturna floresta, conservavam um profundo respeito pelas
lendas e histórias contadas sobre os acontecimentos no coração da mata e, entre os
poucos reinos que iniciaram a colonização do continente, um nome ficou popular
para definir a selva hostil e fechada: a Floresta Demoníaca.
Com o passar dos ciclos, a extensão dos territórios de um reino passou a ser
símbolo de domínio e poder e as temidas criaturas da Floresta Demoníaca foram
perdendo espaço para o avanço dos reis em sua sede por hegemonia sobre o
continente de Aladar. Os últimos drows, ou elfos sombrios, bem como os trolls
remanescentes da guerra que marcou o fim da Era das Trevas, foram exterminados
ou sumariamente banidos da floresta. Os milenares salgueiros e carvalhos foram
derrubados e transformados em vigas e colunas de uma dezena de suntuosos
palácios e fortalezas para abrigar os novos Lordes e Ladies em franca expansão de
seus domínios rumo ao coração do continente. A notícia de que a Floresta
Demoníaca já não era mais tão temida assim, todavia ainda tendo uma boa faixa
dela cortando Aladar de leste a oeste em uma tortuosa diagonal, correu os cinco
continentes. Em pouco tempo, mestres e alquimestres ansiando por dedicar e
aprimorar seus poderes sob juramento de fidelidade ao brasão de alguma nobreza,
homens à procura de aventuras e novos horizontes, artesãos e garimpeiros em
30
busca de grandes negócios, elfos, duendes, anões, faunos e centauros
desembarcaram em Aladar.
Ao longo dos séculos, após o período sombrio das grandes guerras, o continente
presenciou dezenas de reis estabelecerem pactos e alianças e realizarem feitos
extraordinários.
Entretanto, ninguém jamais fora tão notável e magnífico quanto Lorde Bertúlios,
dos Ayarza, ou Rei Bertúlios, o Obstinado. Os Ayarza deixaram para trás o frio
atroador que assoprava dos alpes congelados sobre as planícies de Boralioch por
um bocado de novas emoções em terras calorosas e desconhecidas e Bertúlios logo
se destacou mais do que a todos os seus seis irmãos. Não por seu sangue guardião
aflorar e ser incrivelmente poderoso, em que sua magia podia ser sentida a milhas
de distância; era guardião oriundo de uma família tradicionalmente guardiã e seu
poder era grandioso, porém Bertúlios era avesso à magia, mas um grande amante
da guerra. Espadas, sabres, arcos e flechas, lanças. Combates corporais em campos
abertos ou em matas fechadas, batalhas em alto mar sobre o comando de grandes
fragatas e até mesmo embates sobre o dorso de um grifo entre as mais altas nuvens.
Tudo era motivo para uma boa briga. Dizia-se que Vingança Sanguinária de Aladar,
seu sabre predileto, forjado em ouro e temperado vinte e sete vezes com gris-âmbar
puríssimo nas terras de Vaelfar, zunia nos combates pelos ares com imponente
maestria, como se ela fosse um instrumento enlevado de paixão na qual a guerra
era sua orquestra sinfônica. Não apenas Vingança Sanguinária ganhou fama nas
mãos do jovem estrangeiro, Bertúlios era um exímio colecionador e apreciador de
armas; sempre tomava para si as armas de seus mais aguerridos adversários e fazia
delas seus troféus. O hall de entrada do castelo de Miliat passou a exibir as espadas
e escudos que Bertúlios angariou ao longo de suas dezenas de batalhas, assim que
subiu ao trono.
Não demorou muito para que a destreza de jovem Ayarza fosse reconhecida e ele
foi convidado por Lorde Char dos Greenhan, o rei de Miliat àquela época, para
que, juntamente com sua família, integrasse a nobreza do reino. Bertúlios fora
colocado como Grão-General dos Exércitos e Legiões de Miliat, um dos mais altos
postos na corte, abaixo apenas do rei.
Assim que Lorde Greenhan anunciou o casamento de sua filha, a princesa
Moun’Reily, com Bertúlios, Miliat comemorou como nunca. Os festejos duraram
quatro dias. Os céus se encheram de fogos de artifício durante as noites e o palácio
real nunca recebera tantas figuras ilustres como naqueles dias; desde os principais
membros do Conselho dos Guardiões e da Ordem dos Sacramentadores até os
maiores reis e rainhas dos cinco continentes, todos vieram testemunhar o
casamento do século.
Como rei, Bertúlios fora agraciado com o título de Obstinado. Os feitos
tornaram-se ainda mais notórios quando assumiu a coroa. Depois da morte de
31
Greenhan, Lorde Bertúlios assentou-se sobre o Trono de Jaspe da Intrépida Miliat
e não se dava por satisfeito com a extensão de suas terras. Nomeou novos generais,
vestiu a armadura e tomou Vingança Sanguinária de Aladar nas mãos mais uma
dezena de vezes até que seus olhos deixassem de contemplar a orla banhada pelas
Águas de Argúrius e enxergassem as planícies lavadas pelas Águas de Crispoles, do
outro lado do continente. Expulsou os últimos trolls que haviam sobre o que sobrara
da Floresta Demoníaca e fundou a Frondosa Namit, a cidade portuária mais
conhecida do reino de Miliat.
Somente um de seus irmãos herdara a mesma paixão acirrada pela guerra que ele
tinha e fora o único que o acompanhou na grande maioria das lutas em que se
embrenhava, principalmente aquelas contra as criaturas abissais que habitavam a
floresta. Nos últimos ciclos de seu reinado, o rei de Miliat nomeou Golmir, o caçula
dos Ayarza, para integrar o Círculo dos Guardiões, como Terceiro Guardião e
protetor do continente de Aladar como uma forma de homenagear seu mais
querido e amado irmão. Aquém a toda essa vida de aventuras e épicas batalhas, Rei
Bertúlios, o Obstinado, teve dois filhos com Lady Moun’Reily, a quem amou tanto
quanto a guerra, aos quais deu os nomes de Bartel e Bernat.
Vinte ciclos depois da morte do mais obstinado dos reis que Miliat já conhecera,
o sol a pino refletia sobre o pináculo das montanhas calcárias que circundavam as
fronteiras entre Neergúria e Miliat e lançava seus raios causticantes do meio da tarde
sobre as extensas planícies de grama muito verde e de raros carvalhos aqui e acolá
que ladeavam a estrada real coberta de lajotas de mármore cintilante que interligava
os dois reinos. A estrada fora construída pelo Rei Bertúlios depois de conquistar o
outro lado do continente. Cinco ciclos foram precisos para que ela saísse dos
portões principais de Miliat e alcançasse os grandes arcos do aqueduto de
Neergúria; as mais finas lajotas de mármore lavrado foram utilizadas durante a
construção em um acordo nunca antes feito com os duendes-artesãos de
Pernítrulis, ao sudoeste de Aladar. A Estrada Real tornara-se um marco de um
pacto inédito de paz e cumplicidade entre os dois reinos após séculos de rusgas e
desafetos entre a nobreza de ambos os tronos e era desde então a principal via de
acesso entre as duas nações.
Uma comitiva de cavaleiros avançava sem pressa. Animados, carregavam a
dourada Fênix Indomável, símbolo da Intrépida Miliat, estampada sobre os
estandartes vermelhos e brancos que flamulavam com a força do vento; rumavam
para o reino vizinho, trotando seus cavalos e corcéis sobre as pedras de mármore
que refletiam o brilho dos raios solares. Entre as altas gargalhadas que intercalavam
em suas prosas acaloradas, contavam antigas histórias de grandes lutas e
memoráveis batalhas de seus antepassados anteriormente citados, como somente
os Ayarza conseguiam fazer — e acreditem, as histórias mais relembradas sempre
eram as de Lorde Jullien, o Louco.
32
O atual soberano de Miliat, Lorde Bartel, o Pujante, o primogênito de Bertúlios,
conduzia seu cavalo de pelos acajus. Calvo desde os trinta e dois ciclos de idade,
Bartel não ganhara o título de Pujante graças a seu físico atlético ou a feitos
heroicos. Era grande como o pai e, como grande, não se restringe apenas à nobreza
de seus atos, mas, de fato, a ser alto e corpulento. A robustez do soberano não
estava nos músculos definidos, mas sim no tamanho da circunferência de sua
barriga e das mãos e braços largos. Bartel tinha uma presença marcante, quer fosse
no meio dos conselheiros ou do povo; os olhos cinzentos, penetrantes, o nariz
levemente adunco com algumas poucas sardas e até o sorriso que ia de canto a
canto da boca, onde os lábios se escancaravam de forma autêntica, eram idênticos
ao de Bertúlios, porém, em seu peito nunca ardeu aquela paixão desenfreada pela
guerra e, mesmo sendo de sangue puro de guardiões, jamais precisou pegar em
armas ou estar na frente de qualquer batalha.
O rei de Miliat terminava uma longa e sonora risada que reboava pelos ares das
campinas abertas ao redor da sinuosa estrada real. Sacolejava a barriga proeminente
e apertava os dedos sobre as rédeas de seu cavalo. Se havia uma mania característica
em todos os Ayarza era externar seus sentimentos sempre de forma exagerada.
Riam alto e falavam mais alto ainda; por vezes, comemorações no palácio pareciam
tórridas discussões pelo volume das vozes que preenchiam os cômodos do castelo.
Bernat, o Primeiro-Ministro de Miliat e irmão do rei, também se ria
escandalosamente montado sobre seu corcel branco. Ligeiramente menos gordo
que o irmão mais velho, a calvície ainda não o havia tomado por completo. Os
poucos cabelos de nuances grisalhas, rareando aqui e acolá, eram ralos e sempre
penteados para a esquerda. A pele era queimada de sol, pois, diferente de Bartel,
Bernat adorava a cavalgada, admirava os torneios de espada e os banhos de mar e,
durante a juventude, fora um implacável explorador das Montanhas Agudas, ao
norte do reino. Na risada e no formato do nariz, os dois eram muito parecidos e
por vezes até confundidos.
Os dois puxavam o cortejo lá na frente, como sempre faziam, esquecendo-se do
longo caminho quando se perdiam nas histórias de infância. Logo atrás, vinha Lady
Elma, esposa de Bartel e rainha de Miliat. Com a pele tão alva quanto o leite,
entretia-se em uma conversa com Lady Tressilda e Lady Prisca dos Greenhan no
aconchego de uma carruagem dourada, ladeadas por uma tropa alvirrubra de
guardas reais. Lady Elma era totalmente o oposto do marido; sempre tão serena,
detestava ter que levantar a voz, mesmo que fosse para dar uma ordem. Tentou por
ciclos, sem sucesso, corrigir esse que considerava o maior defeito do rei, até que se
acostumou e cedeu ao comportamento incomum do marido. Tida como muito
justa e majestosamente polida, a rainha era querida pelo povo e pela nobreza,
mesmo não vindo de uma família de sangue puramente guardião. Quando Bartel
conheceu Elma, esta era uma promissora alquimestre do vento.
33
Na comitiva da realeza de Miliat, de não mais do que vinte e cinco pessoas, e que
prosseguia pela estrada real entre prosas ao vento cálido da tarde, não havia
ninguém mais entediado em ter que cruzar um quarto de todo o reino rumo à
Neergúria do que Zakkar Ayarza. Filho único da união entre Bartel e Elma e,
portanto, o herdeiro direto do trono da Intrépida Miliat, possuía enigmáticos olhos
da cor de ônix que herdara da mãe e que passavam uma extrema confiança ao passo
que eram, em raros momentos, aterradores. A barba rala dominava-lhe quase toda
a extensão do maxilar e queixo quadrados, salvo algumas pequenas falhas em
função de seus vinte e três ciclos de idade; gostava de manter os cabelos volumosos
e sempre revoltos penteados para trás, mesmo que, quase sempre, tivesse de colocar
uma ou outra mecha que insistia em se precipitar para a testa de volta ao lugar.
No alto de seu cavalo imponente, de pelos negros, trotando e acompanhando o
ritmo dos outros, Zakkar perdia os olhares na extensão de carvalhos e faias
agressivas da Floresta Demoníaca ao longe, lá no horizonte, depois das campinas
peladas que ladeavam a Estrada Real. O farfalhar das árvores frondosas era
exuberante à primeira vista. As folhas longas, os caules sinuosos, o vento agitando
compassadamente a vegetação alta enlevava o espírito de qualquer estrangeiro que
admirava a orla da floresta, principalmente quando vistas do topo da mais alta torre
do palácio de Miliat, onde era possível ver boa parte da extensão da mata.
Para Zakkar, entretanto, nem sempre foi assim. A janela de seu dormitório ficava
no penúltimo andar de uma das torres da ala oeste do castelo, a mais próxima do
trecho mais obscuro da floresta. Quando criança, não conseguia dormir. Os
pesadelos terríveis com a orla misteriosa da mata tiravam-lhe o sono e, por diversas
vezes, seus gritos assustados reverberavam por todo o palácio quando despertava
de mais um sonho ruim. Foi uma época muito difícil. Lady Elma levantava no meio
da madrugada, por diversas noites, enrolada em um grosso robe e atravessava os
corredores do castelo para consolar o filho em sua cama, correndo suavemente os
dedos por entre seus cabelos negros e revoltos até que ele adormecesse. As canções
da rainha ecoavam do quarto do jovem príncipe para além dos corredores e as letras
afáveis entoadas por sua mãe nas madrugadas tenebrosas ficaram guardadas para
sempre em sua mente:
Mesmo estando em trevas,
No infortúnio e na solidão;
Em risco esteja minha vida,
Em meio à escuridão;
Há luz no fim do túnel,
Esperança que posso sentir;
34
O Sol desponta no horizonte,
Você está perto de mim.
Então vou fechar os meus olhos,
Esquecer meus medos enfim;
Vou crer até não ter medo,
Vou pensar em você;
Há luz no fim do túnel,
O mal vai desaparecer.
Na adolescência, superado o trauma de dormir à noite, Zakkar podia jurar de pés
juntos ter avistado dezenas de criaturas das trevas perambulando por entre as
árvores, ao longe. Pontos vermelhos e chispantes rutilavam no horizonte, por entre
a mata cerrada, como se fossem incontáveis olhos infernais o vigiando. Certa feita,
em uma noite chuvosa, quando a tempestade lavava as vidraças de seu quarto e a
forte ventania assoprava pelas galerias e torres do palácio, agitando as dezenas de
janelas e portas dos outros aposentos, um vulto negro sobrevoava acima das copas
das árvores. O forte aguaceiro o impedia de discernir o que era, mas ele não tinha
dúvidas de que, no longínquo céu, vislumbrava um dragão das sombras em busca
de abrigo.
Um calafrio correu por sua espinha. Zakkar não sentia mais o mesmo medo e ele
tinha certeza que já não era mais temor, pois podia contemplar a mata hostil a
qualquer hora do dia ou da noite e até aceitaria embrenhar-se na floresta se fosse
preciso, mais uma vez, para desbravar o que seu avô deixara dela; porém ele possuía
um profundo respeito para o que quer que ainda habitasse a Floresta Demoníaca e,
no fundo de seu coração, acreditava que as criaturas da floresta também se
resignavam em permanecer no trecho de mata em que Rei Bertúlios as limitou no
passado.
— Ainda procurando dragões, primo, ou apenas esperando que os olhos
vermelhos saiam correndo da floresta para vir te pegar?
A risada de Guilloch ecoou pelo ar.
Muito mais alto que Zakkar e também bastante corpulento, Guilloch era o
afilhado e protegido de Bernat e, para falar a verdade, ninguém em toda Miliat
jamais entendeu muito bem como ele surgiu no castelo. O que todos sabiam era
que ele fora adotado pelo irmão do rei e só. Um dia o menino, com seus dez ciclos
de idade, apareceu no castelo trazido por Bernat que o anunciara como seu afilhado
e um burburinho rapidamente se espalhou como uma avalanche por entre os
corredores e salões e se especulava que Guilloch era fruto de um caso antigo e
proibido do Primeiro-Ministro com uma nobre de sangue guardião da Austera
35
Amistelar, no continente de Turmis. Outros, mais audaciosos e criativos, ousavam
comentar que era filho de Lady Alkanara dos Drunírio das Terras Virtuosas de
Candorn e que fora adotado quando a guardiã morrera, vítima de uma poderosa
Hidra no coração das Águas de Argúrius. A verdadeira razão, no entanto,
permanecia um mistério, guardado a sete chaves pelo irmão do rei.
Guilloch emparelhou o cavalo cinzento ao lado direito de Zakkar. De nariz fino
e protuberante, os cabelos ralos e loiros refulgiam à luz do sol, mas não tanto
quanto as generosas entradas do início de uma calvície em suas têmporas. Três
ciclos mais velho do que o príncipe, o que tinha de alto e forte também o tinha de
idiota e arrogante.
— Ah, já sei — prosseguiu Guilloch com um risinho de deboche no canto da
boca — deve estar sonhando acordado com monstros imaginários da floresta!
— Para falar a verdade, não, Guilloch — inferiu Zakkar, encarando o primo com
tanto ou mais deboche estampado em sua face. — Estou aqui me perguntando se,
por um caso, aquilo que você perdeu não estaria no coração da Floresta
Demoníaca...
Guilloch franziu o cenho.
— Como assim ‘aquilo que eu perdi’?
— Sim, aquilo que você perdeu. Esqueceu? — continuou Zakkar, sorrindo
sarcástico.
— O que foi que eu perdi? — arguiu Guilloch, intrigado e exasperado.
— Seu cérebro! — exclamou Zakkar — Ah, me esqueci. Você não nasceu com
um, então nem adianta procurar entre as árvores.
— Imbecil! — disse Guilloch, fechando a cara.
— Ainda com essas piadas de pesadelos e cérebros?
A atenção de ambos se voltou para uma terceira voz que surgiu ao lado esquerdo
de Zakkar. Emparelhando o cavalo malhado com os outros dois, uma jovem esguia
de longos e ondulados cabelos castanho-claros conduzia sua montaria
graciosamente; revirava os olhos para os dois como se tivesse presenciado aquele
tipo de situação uma centena de vezes.
O nome dela era Selena. A mais nova de cinco irmãs, pertencia à nobre família
dos Vycard — uma das duas famílias de guardiões que se aliançara aos Ayarza
quando Bertúlios se tornou o rei de Miliat. Os Vycard tiveram papel fundamental
na expansão do reino rumo ao outro lado do continente e como prova de sua
lealdade à família de guardiões, Bertúlios nomeou o avô de Selena, Amadoris, como
o primeiro governador da cidade portuária de Namit, por todo esmero e empenho
nas batalhas pela propagação das terras de Miliat. De pele aveludada como um
pêssego e algumas sardas um pouco acima das bochechas levemente rosadas, Selena
era filha temporã e dona de uma beleza sem par; a mesma beleza fascinante de suas
irmãs mais velhas, todas casadas e damas da nobreza de Amistelar e Badorian. Na
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contramão do destino escolhido por suas irmãs, Selena não queria ser mais uma
lady da alta nobreza. Detestava vestidos de gala, anáguas, espartilhos, meias calças
e sapatos de salto alto e a simples ideia de casar e viver para ser uma duquesa,
condessa ou rainha lhe causava náuseas. As festas nos salões luxuosos do palácio
eram terrivelmente entediantes, exceto aquelas em que ela e Zakkar decidiam
aprontar alguma coisa. Fosse talvez por isso — e pela idade, já que era somente um
ano mais nova do que ele — que era tão mais próxima do filho do rei do que de
Guilloch que, desde cedo, se encantava com as celebrações dos nobres nos salões
reais. A sua verdadeira paixão era a aventura. Adorava brigas, lutas de espadas e de
gladiadores e principalmente um bom duelo de magia, quer entre mestres,
alquimestres ou mesmo guardiões, fossem eles nas arenas do reino ou mesmo nas
tavernas mais obscuras da periferia de Miliat. O maior de seus entretenimentos era,
sem dúvida, a caçada. Nas Festas da Colheita, era uma das poucas mulheres que
vestia um grosso e pesado gibão de algodão, jogava o arco e uma aljava de flechas
nas costas, montava em seu cavalo malhado e partia rumo à tradicional Caçada da
Nona Hora com os outros cavaleiros. Por três vezes voltara da caçada campeã, com
o maior número de coelhos alvejados por suas flechas, pendurados sobre os flancos
de sua montaria. Não deixava de ser o alvo preferido das críticas das mulheres mais
velhas, que reprovavam o comportamento tão bruto e aventureiro como de um
homem, diferente do restante das jovens de sua idade.
— Não há piada alguma — falou Guilloch, displicente. — Só achei que a visão
de Zakkar estava novamente apurada, a ponto de enxergar dragões sobrevoando o
topo das árvores.
Guilloch desembestou a rir e Selena e Zakkar se entreolharam, como sempre
faziam quando o afilhado de Bernat ria sozinho de suas próprias piadas.
— Que tal falarmos sobre aquele seu pesadelo de...
— Cale a boca, Zakkar! — Guilloch vociferou, interrompendo as risadas e
ficando visivelmente alterado.
— Ué, não vejo problema em comentar que naquela noite chuv...
— Acho que vocês dois estão bem grandinhos para continuar com essas rusgas
de criancinhas — inferiu Selena, interrompendo o início da discussão dos dois. —
Ainda não estamos nem na metade do caminho, pode ser que vocês fiquem sem
motivos para discutir daqui a duas horas, por exemplo...
Zakkar e Guilloch comprimiram os olhos na direção da garota. Selena ria-se,
satisfeita, contemplando de esguelha os dois irritadiços à sua direita.
— E quem é que está discutindo aqui? — arguiu Zakkar, displicente — Quem
adora discussão é o Cabeça-de-Ogro aí, ó!
Uma veia pulsava ferozmente sobre as têmporas de Guilloch.
— Quem é Cabeça-de-Ogro? — berrava Guilloch, exasperado.
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— É tão burro que nem percebe quando estamos falando dele... — com esgar de
deboche, Zakkar sibilava para Selena, como se evitasse que o primo ouvisse o que
dizia.
— EU ESTOU OUVINDO! — bufava Guilloch.
— Pelo menos, percebe-se que não é surdo — crocitava Zakkar. — Somente
burro, mesmo!
— Burro é você, seu imbecil!
— Ui. A menininha ficou ofendidinha.
— Retardado.
— Será que vou ter que repetir que ainda é muito cedo para vocês começarem a
implicar um com o outro? — inquiria Selena, prendendo os cabelos em um rabo
de cavalo — Ainda faltam três horas de cavalgada, preciso dizer novamente que
vocês podem ficar sem ofensas para dizer um ao outro? Hein?
— Sem ofensas para o Cabeça-de-Ogro? Impossível!
— Cabeça-de-Ogro! — retorquiu Guilloch, enfezado — Você parece uma
criancinha de dois ciclos me chamando assim!
— Concordo — completou Selena, displicente — E digo mais, acho que esse
apelido está mais do que ultrapassado para o Cabeça-de-Nós-Todos aí!
— Ei!
— Ufa, por um instante achei que você estava do lado do Cabeça-de-Aladar!
— Babaca!
— Idiota!
— Chorão!
— Melhor pararem — sussurrou Selena. — Sei muito bem como é que isso
termina e não vai ser legal vocês chegarem arrebentados e sangrando em Neergúria.
Dessa vez, não sou eu que vou impedir se vocês quiserem se matar...
— A verdade é que estou cansado dessas homenagens — acrescentou Zakkar,
mirando de Guilloch para Selena. — É a terceira homenagem somente esse mês
para tio Golmir. No mês passado, foram sete. Sete! Sem contar as três festas no
Salão Real em comemoração aos seus feitos como Guardião...
— Não deveria estar falando dessa forma, meu filho.
Não sabia ao certo se tinha falado alto o suficiente, mas, por um instante, todos
os olhos da comitiva pareciam se concentrar na conversa dos três jovens. Lorde
Bartel claramente ouvira as queixas de Zakkar e fez sinal com a mão direita para
que ele, Selena e Guilloch apressassem os cavalos e acompanhassem o rei e o
Primeiro-Ministro na frente do cortejo. Os três estugaram o passo de suas
montarias, avançando por entre a comitiva até emparelharem com Lorde Bartel e
Bernat.
— Pai, sabe que respeito muito tio Golmir. Ele é o único irmão do vovô que
ainda vive e não preciso nem mencionar todos os seus feitos como Guardião, afinal,
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o senhor sempre os contou para mim desde criancinha. Sei de cor todas as batalhas
em que ele se meteu, todos os monstros que enfrentou. Mas, admita, esse monte
de homenagens cansa... — desabafou Zakkar, se justificando.
— Ah, meu filho — crocitou Bartel, paternal. — Você deveria aproveitar essas
épocas de paz e tranquilidade, quando ainda pode ter a companhia da família e dos
amigos, e passear ao ar livre, sentir o frescor da brisa de uma tarde ensolarada e se
deliciar com uma boa prosa. A função de um Guardião não é nada nobre. Não
basta nascer com sangue de guardião e dominar a magia e os elementos da natureza.
Se assim o fosse, você poderia ser um mestre ou até um alquimestre...
Um silêncio se seguiu brevemente em que Zakkar roía as unhas da mão direita e
mirava do chão para as árvores ao longe até que, com uma incontida ansiedade na
voz, engrolou a pergunta que tanto o inquietava:
— Quero saber quando finalmente assumirei o posto de Guardião de Aladar. —
E se atropelou na frase de uma única vez, gaguejando. Consumido de ansiedade,
encarava o fundo dos olhos do pai; sabia que ele estivera na reunião do Conselho
dos Guardiões para tratar desse assunto, mas desde que voltara de Gradia, em
Vervaz, não mencionara um momento sequer sobre sua indicação.
Bartel soltou mais uma de suas características e sonoras gargalhadas.
— Por que não me surpreende termos chegado justamente a esse ponto? —
trovejou Lorde Bartel, dando um tapinha nas costas do filho.
— Talvez seja hora de explicar para meu sobrinho sobre o rito que envolve uma
Sucessão Honrosa, meu irmão — falou Bernat, cordial.
Lorde Bartel empertigou-se sobre o cavalo acaju e pigarreou duas vezes.
Observou as expressões curiosas de Selena, Guilloch e Zakkar com seu corriqueiro
olhar paternal antes de abrir um largo sorriso de orelha a orelha, acentuando ainda
mais as rugas nos cantos dos olhos e as linhas de expressão caricatas.
— Meus meninos, parece que foi ontem que vi os três correndo pelos corredores
e salões do palácio, brincando com espadas de madeira. Hoje, estamos aqui tendo
que conversar sobre assuntos sérios que entrarão para a história de nossa nação.
Pois bem, já que falaremos disso, chega de tanta enrolação.
“Uma Sucessão Honrosa é uma cerimônia marcante para a vida de todo
Guardião, e, como vocês já sabem, é dividida em três grandes momentos: Jubilação,
Indicação e Ordenação. Em suma, é a transição entre o Guardião antigo, quando
este sofre uma Jubilação, ou, em linhas gerais, é afastado de suas atividades de
Guardião do continente por idade ou qualquer outro motivo que o impossibilite de
continuar para que um novo protetor assuma seu posto. Em Aladar e nos outros
continentes, conforme a definição mais atual do Tratado de Paragon, o reinoguardião
deve indicar o substituto do que está sendo jubilado, quando ocorre a
cerimônia de Indicação. Cada reino em seu respectivo continente possui liberdade
para fornecer seus futuros guardiões...”.
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— Por exemplo, — Bernat interrompeu, gesticulando — os Guardiões de nosso
reino são todos indicações do soberano de Miliat. Tio Golmir fora uma indicação
louvável de nosso pai, Bertúlios.
— Exatamente, meu irmão — continuou Bartel, contemplando a euforia
estampada nos rostos de Zakkar, Selena e Guilloch. — Como eu dizia,
imediatamente após a Indicação, ocorre a última cerimônia da Sucessão Honrosa:
a Ordenação. É um evento glorioso, marcado pela presença de todo o Conselho
dos Guardiões, os soberanos do reino que o indicou e os outros reis do continente.
Há uma coroação tão majestosa como a de um rei. Medalhas e anéis são ofertados,
bem como forjadas armaduras e joias élficas especiais e, por fim, lhe é concedido o
título de Guardião de todas as terras e reinos do continente. É feito o juramento
pelas Leis Primazes e pelos Pilares da Magia e o novo Guardião passa a dedicar sua
vida e poder em função do dever da proteção dos mais fracos.
— E vocês conhecem as Três Leis Primazes? — questionou Bernat, ajeitando a
capa em suas costas.
— O mais forte protege o mais fraco... — respondeu Guilloch.
— A vida acima da magia... — completou Selena.
— Harmonia e equilíbrio acima de todas as coisas — finalizou Zakkar,
pressuroso.
— Um Guardião precisa guiar seus passos e traçar seus caminhos sempre,
sempre, meu filho. — E Lorde Bartel apagou o sorriso nesse instante, apertou os
dedos no ombro de Zakkar e encarou o filho como jamais fizera. — Sempre nessas
três leis.
Zakkar arregalou os olhos, assustado. Apertava as rédeas de seu cavalo e respirava
ruidosamente. O pai o encarava de um jeito diferente. Um jeito que ele nunca vira.
Que as responsabilidades do posto de Guardião eram demasiadamente
exorbitantes, disso ele tinha consciência. Toda aquela conversa com seu velho pai,
entretanto, fitando-o com tamanha seriedade, não como um pai tem com um filho,
mas como um guerreiro falando a outro, o fazia se sentir mais maduro e adulto do
que era.
— Quero honrar esse compromisso, meu pai — falou Zakkar, a voz ainda
vacilante. — Pretendo me tornar o protetor que Aladar que a comunidade mágica
e não mágica merecem, sempre alicerçado sobre as Leis Primazes e os Pilares da
Magia. É com isso que sonho todos os dias, desde os meus doze ciclos de idade!
— Isso é verdade! — inferiu Selena — Desde os doze que fala em ser o futuro
Guardião. Mas nos últimos dias, tem ficado impossível. Parou até de ir ao Clube de
Duelos só para estudar mais a respeito dos antigos guardiões. Ninguém aguenta
mais você se gabando que será o futuro protetor de Aladar!
Todos desembestaram a rir.
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— Contudo, — Lorde Bartel alteava a voz, tentando se sobrepor às risadas —
este ano, algo inédito em toda nossa história está para acontecer. O destino
preparou uma grande surpresa para o nosso mundo. Pela primeira vez, teremos o
Ano da Elegibilidade!
A frase do rei ecoou pelos ares e logo atraiu a atenção de todos. Até mesmo os
guardas carregando os estandartes de Miliat apuraram os ouvidos e vidraram os
olhos em Bartel e no que ele estava para dizer.
— O Ano da Elegibilidade é um marco em toda a história do Conselho dos
Guardiões, desde que ele fora fundado e nós estamos vivendo esta época. Somos
parte dela! — Bartel fazia sua voz trovejar. O rei adorava ter os olhos e ouvidos de
todos atentos às suas palavras — É a primeira vez que os Cinco Guardiões sobem
ao posto ao mesmo tempo, desde que o grande Hazer Gundorf foi nomeado o
Primeiro Guardião depois de selado o Tratado de Paragon. Aconteceu, em tempos
passados, em que três e até mesmo quatro guardiões ascenderam à posição de
protetores de seus continentes. Mas desta vez é diferente. Após o anúncio das
Sucessões Honrosas em Miliat e Amistelar, a renúncia de Lorde Saldivar de
Candorn em favor de seu filho mais velho, a morte do antigo Guardião de Snartria
e a renúncia de Lorde Heidlich para assumir o trono de Badorian no lugar de seu
pai, o Conselho declarou aberto o Ano da Elegibilidade.
— Mas o que há de tão especial nesse Ano da Elegilibi... Eleligibi...
— Elegibilidade? — inquiriu Zakkar para Guilloch, que se atrapalhava com as
palavras. Selena tentava, mas não conseguia conter as risadas.
— É, isso aí — continuou Guilloch, alteando a voz e ignorando as gargalhadas
de Selena. — Parece só mais um nome idiota...
— Claro que não, meu sobrinho! — exclamou Bartel com sua característica
euforia incontida — Depois das indicações dos cinco continentes, Cruisand,
Paragon e Gradia sediarão três grandes eventos que vão colocar os novos
Guardiões à prova, definir o futuro Primeiro Guardião, que vai liderar os demais e
coroar o novo Círculo dos Cinco ao final. O mundo de Eirin viverá uma época
inigualável de paz, harmonia e equilíbrio, brindada por uma grande festa com a
escolha de seus novos Guardiões!
— E pelo brilho nos olhos do Zakkar, é bem provável que ele já se imagina lá,
sendo coroado o Primeiro Guardião! — crocitou Selena, deixando um Zakkar
encabulado e ao mesmo tempo exasperado no alto de seu cavalo.
Ao redor, todos voltaram a entreter-se em suas conversas. Lorde Bartel seguia
entusiasmado, tomando uma boa distância dos demais outra vez, guiando seu corcel
à frente da comitiva ao lado do irmão. Zakkar, Selena e Guilloch diminuíram o
passo de suas montarias sem se darem conta, falando e rindo às altas gargalhadas.
Lady Elma continuava envolvida em sua prosa suave com as irmãs Greenhan.
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— Aproveitando a oportunidade, meu irmão — começou Bernat, tirando das
longas vestes de veludo vinho um papel esmaecido cheio de anotações — preciso
lhe informar, antes que esqueça, que fechamos um acordo com a Forja Élfica para
a fabricação das novas espadas e escudos banhados em mahit, que Sua Majestade
solicitou. É provável que no próximo mês elas já estejam em Miliat, ou até mesmo
antes.
— Excelente! — exclamou Bartel, entusiasmado — Assim, realizamos o sonho
de nosso pai de equipar o exército do reino com armas puramente élficas.
Finalmente, vamos nos livrar daquelas espadas de papel forjadas pelos duendes.
Os dois riram, um para o outro.
— A propósito, — Bernat interrompeu os risos e assumiu um esgar sombrio
abruptamente — sei que isso ainda está sendo tratado pelo Conselho a portas
fechadas, mas é inevitável. Notícias voam e os comentários tem se espalhado mais
rápido do que folhas secas nas ventanias do Outono: tens mais informações sobre
o infortúnio que atingiu Snartria? Toda a nobreza está comentando sobre o
assunto...
— Sim — falou Bartel, acabrunhado. — O infortúnio que se estabeleceu sobre
as Terras Serenas de Snartria foi o assunto mais discutido pelo Conselho, visto que
ele foi duplamente sentido através das mortes do rei do Trono dos Bravior,
Maximo, e o desaparecimento de seu filho Guardião, Elliotr, nas Montanhas
Congeladas de Gelor-Torine, ainda completamente sem explicação. O Conselho o
declarou morto, mas eu tenho minhas dúvidas. Para piorar, Elliotr deixou um
herdeiro. Canelas peladas, pouca idade... é o que sei a seu respeito. Sobre seus
ombros estão agora uma colossal responsabilidade e uma dura decisão.
— De fato, perdas lastimáveis — falou Bernat, emudecendo.
Ambos se calaram por alguns instantes e o único som em meio às campinas
abertas era o do trotar dos cavalos da comitiva e das risadas de Zakkar, Selena e
Guilloch em algum lugar lá atrás; Bernat estava inquieto e decidiu interromper o
silêncio, prosseguindo com a conversa.
— Retornando ao assunto sobre o futuro de nosso continente, acredito que
Zakkar pode ser um grande Guardião — falou o Primeiro-Ministro, mirando das
lajotas reluzentes para a gola empapada de suor de seu irmão Bartel. — Ele é afoito,
irrequieto, por diversas vezes lembra nosso pai...
— Sem dúvida — afirmou Bartel e seu semblante tornara-se subitamente
preocupado. — Mas ainda estou receoso quanto a indicação de meu filho e por
dois vieses, o primeiro muito mais preocupante do que o segundo. — Fez-se um
silêncio momentâneo em que Bartel vislumbrou por cima do ombro se o filho não
estava perto o suficiente e então continuou. — Zakkar é irrequieto, sem dúvidas, e
afoito como o avô, como você disse... mas também é muito imaturo e
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inconsequente. Meu erro e de Elma foi tê-lo mimado de mais. O pior dos meus
temores é perdê-lo em uma dessas batalhas pelo bem do continente...
Bernat franziu a testa.
— Meu irmão, Aladar não é mais o mesmo antro de criaturas diabólicas que fora
no passado. Nosso pai se encarregou de exterminar uma boa parte que ainda
assolava nossas terras. Há quanto tempo não vemos mais dragões? E por acaso
você ainda se lembra quando fora a última vez que avistara um troll ou um
minotauro? Bartel, ainda que meu sobrinho seja imaturo, ele aprenderá com o peso
da responsabilidade de ser um Guardião a como moldar seu caráter e se tornará um
grande homem... — falou Bernat, ficando subitamente reticente — Mas dissestes
que há um segundo viés de seu receio... Qual seria?
Lorde Bartel respirou fundo e se aprumou sobre o cavalo; estufava o peito e
expirava com força, como se estivesse contrariado.
— Salazar meneou a cabeça várias vezes durante a reunião e fez objeção quanto
à indicação de Zakkar perante o Conselho, embora os demais conselheiros em si
não se opuseram quanto ao meu filho. Temo que seja por ele não ser de puro sangue
guardião...
— Bartel, se a grande maioria do Conselho dos Guardiões aprovou a indicação
do meu sobrinho, não há nada que Salazar Stanhorne possa fazer, mesmo sendo o
líder do Conselho dos Guardiões. Essa questão de sangue puro é uma grande
baboseira, todos nós sabemos — argumentou Bernat, balançando a cabeça para o
irmão. — Fique tranquilo. Você tem o meu apoio, de tio Golmir e com certeza de
uma boa parte dos outros conselheiros em sua sábia indicação. O que podemos
fazer é buscar esses conselheiros para persuadir Stanhorne.
Os dois irmãos sorriram um para o outro e se cumprimentaram. Lorde Bartel
estava bem mais tranquilo; sabia que podia sempre contar com o apoio de seu irmão
e amigo. Prosseguiram com a viagem através da Estrada Real, rindo e conversando
sobre dezenas de outros assuntos, desde os novos negócios do reino até às velhas
histórias das bravuras de Lorde Bertúlios, o rei mais ousado que Miliat conhecera.
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Capítulo Quatro
Difíceis Decisões
O céu estava branco. Não aquele tom branco de um corriqueiro dia ensolarado
de verão, em que o sol desponta no horizonte e ilumina a abóbada celeste com toda
sua claridade majestosa, em que mesmo as nuvens são obrigadas a recolher-se em
sua insignificância e dar espaço na imensidão para a estrela maior reinar. Era uma
brancura pálida e melancólica desta vez, daquelas em que as alvas nuvens carregadas
de flocos de neve se juntam e aglutinam umas nas outras em um ponto onde não é
mais possível dizer onde uma nuvem termina e outra começa e tampouco se
consegue enxergar a vivacidade do azul do céu ou em que ponto de toda a
imensidão o sol está imperando. Nas vastas terras da Serena Snartria, todo
snartriano sabia que esse fenômeno marcava a chegada do inverno no continente
de Anlevor e que, a qualquer momento, uma densa cerração dominaria os campos
vastos e os grandes vales, bem como as cadeias de montanhas mais íngremes e
ainda sobre as avenidas, ruas e vielas do reino e embaçaria as vidraças dos casebres,
casarões, tavernas, palacetes e palácios; viria, após isso, a intensa e característica
Chuva do Solstício.
O pátio do Palácio de Ônix da Serena Snartria estava tomado por um mar de
cadeiras de carvalho polido tão negras quanto o mármore lustroso que cobria o
pavimento. Perfeitamente arrumadas em inúmeras fileiras, as cadeiras circundavam
o imenso pátio, fazendo companhia aos dois caixões negros e incólumes,
posicionados bem no centro do lugar, tendo entalhada em prata sobre as tampas a
Harpia Voraz, o símbolo real. Centenas de pessoas de todas as partes do reino e do
continente haviam passado por ali horas antes e mesmo os reis de Gelor-Torine e
Aamiz e a rainha de Dothansa, Lady Marini, atravessaram o continente para dar um
último adeus e prestar suas homenagens ao antigo rei da Serena Snartria, Maximo
Bravior e seu único filho, Elliotr, em um momento tão adverso. Humanos, mágicos
e não mágicos, elfos, centauros, anões, duendes e faunos, todos cruzaram o grande
pátio circular e, enlutados e com lágrimas nos olhos, tocavam os caixões,
depositavam buquês de lírios e orquídeas ou simplesmente derramavam suas
lágrimas e iam embora.
Naquele momento, Petr Bravior estava só.
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Uma pequena e insignificante gota de chuva se precipitou dos céus. Caiu por
entre as pernas cruzadas de Petr e se rechaçou sobre o granito negro do pavimento,
marcando o chão. Absorto, o garoto acordou dos muitos devaneios que o
enlevavam e morosamente inclinou a cabeça para o piso espelhado, apoiando os
cotovelos sobre os joelhos magricelos.
Os olhos cor de mel contemplavam um adolescente de treze ciclos de idade.
Rosto magro, nariz arrebitado, queixo protuberante. Os cabelos castanhos e
desarrumados cobriam-lhe a testa, alcançando as sobrancelhas grossas e também
castanhas. Observava a si mesmo no reflexo: abatido e esgotado.
Outra gota caiu sobre o piso. Quente e salgada, essa não era uma gota de chuva.
Ergueu a cabeça. As bochechas queimavam e as maçãs do rosto ardiam com
voracidade. Relutava para não se derramar em lágrimas outra vez. Detestava que o
vissem chorar e, mesmo estando completamente sozinho em uma infinidade de
cadeiras vazias, os dedos gélidos enxugaram com vontade os resquícios da lágrima
de seus olhos fundos e pesarosos.
Um vento enregelante assoprou e os cabelos da nuca de Petr se eriçaram. Puxou
rapidamente a capa verde-musgo para cima e se aconchegou sob ela, cobrindo o
pescoço e parte da cabeça. Vislumbrou de relance as chamas das tochas sobre o
topo das colunas ao redor vacilarem com a força da ventania. Era um indício de
que a primeira chuva do inverno logo chegaria, lavaria as elevadas torres negras do
palácio do reino e o dia terminaria mais nebuloso e lúgubre do que já estava.
Uma dor que não era física atormentava seu coração. Seria isso o que chamavam
de saudade? Um vazio devastador o consumia. A vontade que tinha era de correr.
Correr sem rumo, pelas ruas e vielas da capital do reino e sumir entre as árvores ou
embarcar em algum navio e desaparecer em alto-mar, na esperança de que isso
fizesse toda sua angústia acabar de vez. A única coisa que de fato queria era arrancar
do peito a tristeza e, naquele instante, outra lágrima escorreu de seus olhos e ele
não se importou em enxugá-la. Deixou que ela percorresse seu rosto e morresse
sob a gola das vestes.
O garoto inclinou a cabeça para o lado e observou a imensa floresta de pinheiros
centenários ser agitada pela ventania enregelante, além dos pilares do grande pátio.
Fechou os olhos por um instante e sentiu outra lágrima teimando em querer escapar
pela tangente. Longe do iminente frio atroador, as lembranças de um maravilhoso
dia de primavera emergiram em sua mente, marcadas pelo calor ameno do sol que
irradiava por entre as folhas cintilantes das árvores e o frescor da brisa que vinha
do mar com seu típico aroma salgado. Recordava de trotar sobre um pônei
caramelo. Usava uma blusa fina de seda branca aberta até a altura do peito e uma
capa marrom por cima dos ombros. Nas costas, carregava uma aljava de couro
curtido com dezenas de flechas. Com a mão direita empunhava as rédeas de sua
montaria e com a outra segurava do jeito que podia o arco de madeira de carvalho
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que fora esculpido pelos anões de Aamiz, feito sob medida para comemorar seu
aniversário de dez ciclos. Cheios de animação, os olhos focavam a figura imponente
do avô que seguia logo à frente, guiando seu cavalo negro, desvencilhando-se dos
galhos mais baixos da trilha por entre as árvores da floresta. A coroa dourada e
cravejada de esmeraldas reluzia ao brilho dos raios solares e uma felpuda pele de
lobo branco pulsava sobre os ombros largos a cada galope de sua montaria real. E
a capa. Ah, a capa vermelha do rei. Era deslumbrante e majestosa. Longa e pesada,
ela se agitava com ímpeto e esvoaçava pelos ares com a velocidade em que
cavalgavam. Avô e neto avançavam, galgando uma distância considerável do
palácio, embrenhando-se na floresta.
Seguiram pela trilha até que se acharam em uma clareira, aos pés das Montanhas
Azaziv. Era o local preferido dos dois. O refúgio onde avô e neto podiam escapar
de toda agitação da nobreza e aproveitar o tempo livre que tinham. Pelo menos
duas vezes por semana, deixavam o alvoroço e a correria do dia a dia no palácio, se
aventuravam por entre as árvores e cavalgavam até ali. Os lírios desabrochavam
aqui e acolá, cobrindo o perímetro, exibindo seu tom leitoso e crisântemos
amarelos, roxos e vermelhos se abriam ao longo da terra fofa e relvada à orla da
Grande Lagoa, onde as quedas d’água se precipitavam da encosta rochosa das
montanhas.
O rei desceu de seu cavalo, fez um último afago sobre a crina do animal e deixouo
descansando como quisesse. Colocou a coroa sobre a grama orvalhada e
pendurou a longa capa vermelha em um galho mais baixo de um pinheiro. Tirou
das costas sua própria aljava de flechas e o arco de madeira de cerejeira que era
quase de seu tamanho. Ajeitou as luvas de couro nas mãos e empunhou o arco,
testando a tensão da corda.
— Me espera, vô!
Petr desmontou do pônei, atrapalhando-se com as flechas e o arco; caminhava
trôpego pelo gramado para onde o avô se preparava. Ergueu também seu arco e
puxou a corda o máximo que pôde, até que ela vibrasse em tons graves de tão
tensionada e sua madeira estralasse ruidosamente.
Imitava todos os gestos de Lorde Maximo, inclusive aqueles mais singulares como
flexionar bastante as pernas ou colocar a língua para fora involuntariamente para
mirar em um alvo ao longe. Mesmo no auge de seus setenta e cinco ciclos de idade,
Lorde Maximo ainda era um homem arrojado. O peso dos ciclos se refletia nas suas
muitas rugas, nas olheiras e na vasta cabeleira branca, mas a disposição para a
aventura continuava a mesma de quando subiu ao trono aos vinte e dois ciclos de
idade.
— Já preparou seu arco, Petr? — questionou Lorde Maximo, observando
minuciosamente a postura do neto.
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— É claro! — exclamou o garoto, segurando a flecha sobre o arco entre o dedo
médio e o anelar — Já tenho o alvo na mira.
A clareira ao pé da montanha sofrera uma série de modificações realizadas por
avô e neto desde que ambos descobriram o lugar. Em suas visitas frequentes para
brincar, treinar ou mesmo tomar um banho na cachoeira serena do Grande Lago,
Maximo e Petr construíram bonecos com troncos retorcidos e galhos secos e
desenharam diversos alvos nas dezenas de pinheiros que cobriam o perímetro.
Maximo apoiou-se sobre o arco e avaliou bem a postura do garoto. Naquele
instante, em que seus dedos longos alisavam a barba e bigodes grisalhos e os olhos
comprimiam-se e se arregalavam estudando Petr, seus lábios foram tomados por
um sorriso cheio de dentes.
— Com esses joelhos tão inclinados assim, quase se encostando à grama, tenho
certeza que essa sua flecha vai voar pelas copas das árvores e acertar em cheio as
Montanhas Congeladas de Gelor-Torine.
O garoto riu, encabulado e Lorde Maximo comprimiu as maçãs do rosto,
arreganhando ainda mais seu largo sorriso.
— Você é um guerreiro, Petr. Um Bravior de puro sangue guardião. Não vai
querer Lorde Marvan torrando nossa paciência porque uma flecha passou voando
sobre a janela congelada de seu quarto. Sabe que qualquer coisa é uma desculpa
para ele sair correndo de Gelor-Torine e ficar meses nos perturbando, em algum
aposento real de Snartria. Principalmente nessa época de Primavera, em que os dias
são bem mais acalorados do que as geleiras que dominam as terras dele.
O garoto soltou uma gargalhada alta; seu estômago doeu com a risada histérica.
— Ok, vamos lá. — O rei empunhou novamente seu arco e pegou uma flecha
da aljava. Inclinou a cabeça e com um olho mirava o alvo desenhado sobre a última
árvore da orla, a mais distante de todas. Vislumbrou ao longe os diversos buracos
das muitas flechas que atiraram sobre ele.
A flecha cortou os ares, zunindo ao cruzar toda a orla bem na altura do nariz de
Lorde Maximo e acertou em cheio o centro do alvo com um baque surdo. Petr
arregalou os olhos, embasbacado e por um momento deixou cair a flecha que
segurava entre os dedos. A mira de seu avô sempre fora milimetricamente apurada.
A idade avançada nunca afetara a agilidade que possuía com o arco; pelo contrário,
o passar dos ciclos incrementava sua destreza com a arma e tornava-o cada vez
mais habilidoso.
— Agora é sua vez — falou o rei, fincando uma ponta do arco sobre a grama.
O garoto hesitou.
Aparvalhado, agachou-se e tomou nas mãos a flecha que deixara cair sobre a
grama. Empunhou o arco. Os dedos tremiam, como bambus agitados pelo vento.
Os olhos compenetrados do avô visualizando seu desempenho deixavam-no
acuado. Não queria desapontá-lo. Aliás, não podia desapontá-lo. Acertar era sua
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obrigação. Ofegante, não conseguia se concentrar. E se não acertasse? E se a flecha
zunisse pelos ares e de fato fosse parar na janela do castelo de Lorde Marvan de
Gelor-Torine e ele se enfezasse com o avô e com todos em Snartria? As pernas
também tremiam e uma gota de suor escorria-lhe das têmporas em direção ao olho
esquerdo, o único aberto, tentando mirar o mesmo alvo que mantinha firme a
flecha atirada por Lorde Maximo.
Os dedos soltaram a corda e a flecha voou pela clareira como que em velocidade
reduzida. O coração de Petr pulsava acelerado e ele acompanhava o trajeto da flecha
absorto. Prendeu a respiração. Vislumbrava de esguelha o esgar sereno, porém
embevecido do avô. A flecha resvalou o alvo e acertou outro pinheiro mais
afastado.
— Eu nunca vou conseguir! — exclamou Petr, pesaroso. Jogou o arco sobre o
chão e fechou os olhos por longos segundos, decepcionado consigo mesmo.
Sem se dar conta de que ficara de olhos fechados por um bom espaço de tempo,
contemplou Lorde Maximo ajoelhado à sua frente assim que levantou as pálpebras.
Os olhos azuis do rei o encaravam com seu jeito sereno e paternal. Aguardando um
duro sermão do avô pelo seu fracasso com o arco e flecha, as palavras não foram
exatamente o que imaginara.
— Jamais diga que não conseguirá alguma coisa. — Lorde Maximo encarou o
neto com seu olhar penetrante — Você é um Bravior. Repita comigo: Eu...
— Eu...
— Sou...
— Sou...
— Um Bravior.
— Um Bravior!
Lorde Maximo acariciou os cabelos de Petr e encarou-o ainda mais no fundo de
seus olhos.
— Petr, você pode qualquer coisa. Lembra-se de quando não tinha altura para
subir em uma sela, mas queria aprender a montar? Você arrumou um jeito. Subiu
em uma cerca do estábulo, saltou para cima do corcel e montou sobre ele. Se atingir
um alvo é a sua dificuldade, treine mais, se esforce mais, se empenhe mais e você
vai conseguir. Eu não quero, nunca mais, ouvi-lo repetindo essas palavras. Ouviu
bem, mocinho?
Petr aquiesceu.
— Agora, enquanto você ainda não é melhor arqueiro do que eu — falou Lorde
Maximo, descalçando as luvas, rindo pelo canto da boca — Sua tia-avó Eilene disseme
que você possui outras habilidades. Quero pô-las a prova aqui!
Petr sorriu. Sabia bem a que o avô se referia.
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— Vou preparar uma nova flecha — inferiu o rei, mexendo na aljava — e quando
colocá-la sobre o arco, espero ver um pássaro elemental de gelo sobrevoando
livremente pelos ares.
O garoto não pensou duas vezes. Com um giro rápido das mãos, fez surgir entre
seus dedos um gigantesco pássaro de gelo translúcido. A ave elemental abriu as
asas, soltando pequenas lascas congeladas pela grama e alçou voo por entre as copas
das árvores, distanciando-se cada vez mais em direção às nuvens. Outra flecha
zarpou rumo aos céus atirada do arco de cerejeira e acertou o pássaro de gelo; ele
explodiu em mil pedacinhos congelados que caíram lá do alto bem devagarzinho,
flutuando como flocos de neve.
— Quero uma ave de fogo agora — ordenou Lorde Maximo já preparando uma
nova flecha. — Vamos ver se você é tão bom assim tanto quanto dizem no palácio.
Uma águia em chamas abriu longas asas crepitantes e adejou em direção ao topo
do paredão rochoso, bem perto de onde as águas da cachoeira se precipitavam em
suas quedas. A segunda flecha do rei torrou nas asas coruscantes do animal de fogo
e despencou lá do alto, caindo em brasas sobre o Grande Lago. Os dois ouviram
um duradouro tsss da flecha queimada quando ela tocou as águas tranquilas da
cachoeira e foi levada pelas suaves correntezas.
O rei aplaudiu com veemência. Petr estufava o peito, cheio de orgulho. Fez o
pássaro em chamas sobrevoar lá nas alturas, dar dois ou três rasantes nos céus e
cruzar o meio das quedas da cachoeira; as asas da ave de fogo evaporaram as águas
cristalinas que se precipitavam e formaram ondas de vapor que subiam contra as
nuvens. Percebeu então que o avô já não prestava mais atenção em suas proezas.
Estacara a meio metro do espelho d’água da lagoa; o olhar estava vidrado em algum
ponto do céu, a leste. Denotava o mesmo esgar absorto de sempre: os dedos finos
alisando novamente a barba branca, os lábios balbuciando palavras inaudíveis e os
olhos azuis, profundos, sequer ousavam piscar em sua contemplação
compenetrada.
— O que houve, vô?
— O velho ditado sobre o leste... — balbuciou Lorde Maximo; Petr apurou os
ouvidos e pôde finalmente entender o que o avô dizia.
Lorde Maximo permanecia imóvel e taciturno. Não ignorava a pergunta do neto,
mas arrazoava sobre qual seria a melhor resposta a se dar para uma criança de dez
ciclos de idade. Pois, se você ainda não sabe, provavelmente virá a descobrir mais
à frente que a resposta que o rei das Serenas Terras de Snartria daria a Petr é, sem
dúvida nenhuma, o maior ditado entre todos os ditados dos Cinco Continentes.
— Nada que venha do leste é bom, Petr... — falou Lorde Maximo, arrumando
os cabelos bagunçados do neto. — Arrume suas coisas e monte em seu pônei.
Infelizmente, teremos que abreviar nosso momento de diversão na clareira. Uma
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nuvem negra se forma ao leste: mais uma daquelas tempestades surpresa se
aproxima.
Logo, avô e neto juntaram as flechas, vestiram as próprias capas e pularam para
o dorso de suas montarias. Regressavam ao palácio pela trilha entre a floresta de
pinheiros mais rápido do que poderiam dizer “tempestade devastadora” e,
enquanto prosseguiam por entre as árvores, galopando e desviando de galhos mais
baixos ou raízes mais altas, Petr lançava olhares intrigados para o céu, onde antes o
avô vidrara os olhos em algum ponto a leste. Uma nuvem pintava de cinza-chumbo
o intenso azul do céu com rapidez e avançava impetuosamente, cobrindo o
horizonte com nuances sem vida, se assomando na direção em que seguiam.
— Grave isso para sua vida, meu neto. — Lorde Maximo fazia a voz reboar por
entre as árvores, firme sobre as rédeas de seu cavalo. — Nada que vem do leste é
bom. Absolutamente nada.
Um sorriso tímido e nostálgico estampava seus lábios quando Petr voltou à
realidade. Continuava sozinho, de frente para os dois caixões negros. Curvado, com
os cotovelos pressionando os joelhos e as mãos balançando a esmo no ar, o frio
atroador do inverno agitou outra vez a longa capa esmeralda. A saudade o
engolfava, mas era nas melhores lembranças da infância com seu avô que ele
encontrava algum conforto.
— Nada que vem do leste é bom — repetiu Petr, fechando os olhos e rindo-se
debilmente.
— Depende do ponto de vista...
Uma voz grave interrompeu os devaneios do garoto e ele rapidamente se
aprumou sobre a cadeira. A mão firme de Salazar Stanhorne segurou em seu ombro
esquerdo, fazendo-o se sobressaltar. Envolto em um longo sobretudo preto
drapejado de duas fileiras de botões dourados na altura do abdômen, os ventos
fortes no pátio agitavam os cabelos castanhos e curtos repartidos ao meio de seu
corte militar. Não eram cem por cento castanhos: muitos fios acima das orelhas
estavam completamente brancos e prosseguiam avançando rumo ao restante do
couro cabeludo. De estatura mediana e sempre rígido e extremamente cordato,
possuía olhos cinzentos que quando comprimidos lembravam muito os de uma
águia. O nariz era levemente torto para a direita e tinha aquele aspecto inexplicável
das narinas, que pareciam amassadas contra o próprio rosto por um martelo. O
queixo duro e quadrado puxava para baixo as linhas de expressão nas laterais de
seus lábios e davam a ele um ar de corriqueira insatisfação, quando na verdade nem
sempre era. Para toda a comunidade mágica e não-mágica, o homem parado ao lado
de Petr, com a mão direita apoiada em seu ombro, era Salazar dos Stanhorne da
Austera Amistelar, o líder do Conselho dos Guardiões: uma das autoridades mais
conhecidas, respeitadas e prestigiadas entre todos os reinos do mundo e amigo
pessoal de seu falecido avô. Contudo, acima de sua proeminência que ia para muito
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além dos Cinco Grandes Reinos, desde a primeira vez que o vira, Petr passou a
chamá-lo de... o Cara de Coruja.
— Posso me assentar? — inquiriu, fazendo trovejar sua voz possante.
— É claro — disse Petr, meio sem jeito, apontando uma das cadeiras.
Salazar Stanhorne puxou uma cadeira ao lado do garoto e se sentou.
Imediatamente, esfregou as mãos uma na outra para afugentar o frio que dominava
o lugar.
— Como disse, vir do leste é tudo uma questão de ponto de vista, se é que você
me entende. Prosseguindo de Gradia, cruzando Vervaz e passando por Vaelfar e
Aamiz, de fato, estarei vindo do leste. E como você mesmo afirmou e como seu
avô sempre fazia questão de repetir...
— Nada que vem do leste é bom! — repetiram os dois em uníssono.
Eles se entreolharam, sorrindo um para o outro até o esgar de ambos murchar ao
voltarem seus olhos outra vez para os caixões negros logo à frente.
Pela primeira vez, a presença do líder do Conselho dos Guardiões não era um
incômodo. Não que Salazar Stanhorne fosse uma péssima companhia ou alguém
que o tratasse mal quando vinha a Snartria. Pelo contrário, como disse antes, o líder
do Conselho era alguém rígido, porém deveras cordial e educado e que se portava
como um cavalheiro nas mais diversas situações. Sorria de forma afável para o
garoto nos muitos jantares de gala em que participou e, mesmo nas costumeiras
Festas da Vinha Madura ou no grandioso Festival da Primavera, Stanhorne
mostrava-se animado e verdadeiramente feliz em estar presente nas comemorações
e não apenas cumprindo sua agenda de visitas a Anlevor. A melancolia no coração
de Petr diminuía ligeiramente. O rosto extenuado e os olhos de águia de Salazar
grudados nos caixões exalavam o desalento real de quem perdera um amigo de
verdade. Ele não precisava sustentar uma postura de imponência ali, nem se manter
tão comedido como sua função exigia. Não havia ninguém olhando desta vez. Um
dos homens mais importantes do mundo podia ser, naquele dia, quem ele realmente
era e Petr jurou, ao observá-lo de soslaio, que os olhos penetrantes de Salazar
estavam carregados de lágrimas.
O vento impetuoso, assoprando sobre as torres mais altas do palácio e correndo
por entre as colunas, era a única coisa que interrompia o silêncio que recaíra
abruptamente sobre o grande pátio. Petr e Salazar continuavam, lado a lado,
taciturnos. O garoto não sabia o que dizer e, sinceramente, não queria dizer nada.
Ansiava que dissessem que tudo ia ficar bem, mas ele sabia que não ia. Queria que
lhe dissessem que acharam seu pai e que ele logo retornaria e colocaria o reino
novamente nos eixos, mas mesmo para isso suas convicções vacilavam. As
Montanhas Congeladas de Gelor-Torine foram a última missão de seu pai e,
embora todos afirmassem que ele jazia sob as brancas camadas de gelo, uma ínfima
chama de esperança em seu peito teimava em acreditar que Elliotr não sucumbira
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no reino congelado. Mas ele mesmo não tinha o que dizer. Havia o que lamentar,
havia o que chorar. E ele decidiu sustentar o silêncio. Quieto, continuou curvado,
dedos cruzados e olhares perdidos enquanto as memórias do avô e do pai a todo
instante ressurgiam em sua mente.
— Creio que deva passar pela sua cabeça se, de fato, seu pai realmente morreu.
— Salazar interrompeu o silêncio, o queixo apoiado sobre os polegares e os olhos
vidrados nos caixões negros.
Petr virou os olhos para ele, atônito, mas não ousou fazer nenhuma pergunta.
Perdeu os olhares novamente em ponto algum e preferiu apurar os ouvidos.
— Elliotr era muito poderoso. Um dos melhores guardiões que já vimos nos
últimos ciclos. Dedicado, era um valoroso guerreiro, extremamente habilidoso com
sua magia e, não por acaso, o Primeiro Guardião, o líder do Círculo dos Cinco.
Desde que recebemos a trágica notícia de seu desaparecimento, iniciamos
imediatamente as buscas por ele. O frio é rigoroso em Gelor-Torine, mesmo no
verão, como você bem sabe, e no inverno, o frio extremo torna as Montanhas
Congeladas impossíveis. Durante um mês, fizemos tudo o que podíamos para
encontrá-lo: enviamos comitivas de buscas, unimos alquimestres e mestres para
incursionar nas montanhas e mesmo Lorde Saldivar, o Quarto Guardião, arriscouse
sobre as geleiras tonitruantes do lugar. Tudo em vão. A única coisa que achamos
foi uma capa de pele de urso que pertencia ao seu pai, a qual entregamos a Lorde
Maximo.
Petr balançou a cabeça. Ainda era recente em sua mente o dia em que um
representante do Conselho dos Guardiões adentrou os portões do palácio.
Pesaroso, trazia consigo uma longa capa branca de pele de urso com muitas
manchas de sangue. Foi a partir daquele fatídico dia que seu avô adoeceu. A dor da
perda do único filho era demais para seu corpo velho e cansado. Os olhos de Petr
marejaram; sentia um nó na garganta.
— Orgulhe-se de seu pai, Petr. — Salazar encarou o garoto, respirando fundo.
— Não sabemos o que o levou às Montanhas Congeladas, mas esse caixão vazio à
frente é uma forma de honrar a memória dele e tudo o que ele representou para
nós. Os feitos magníficos, a coragem e seu modo de ser devem ser sempre
lembrados; não apenas como guerreiro ou guardião, mas, acima de tudo, como seu
pai e amigo. Ele te amava muito e viveu uma vida dedicada a usar a própria magia
para proteger os mais fracos e a manter a harmonia e o equilíbrio em toda Anlevor.
As lágrimas escorreram de seus olhos com ímpeto e Petr escondeu o rosto nas
palmas das mãos com rapidez. Chorava de soluçar. De saudade, de medo, de
angústia, derramava lágrimas que resvalavam entre os dedos retesados. O braço de
Salazar o envolveu de súbito, consolando-o; ressaltou-se com o gesto inesperado e
a mão direita do líder do Conselho dos Guardiões apertando seu ombro com
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carinho relembrou muito a forma como seu avô o abraçava, sempre puxando o
garoto contra o peito, afagando-o e isso aumentava ainda mais a dor que sentia.
— Chore, garoto — disse Salazar, sua voz vacilando. — Chorar faz bem, leva os
sentimentos ruins e traz algum alento ao coração.
Continuou chorando sem se dar conta do tempo, sob o abraço do velho amigo
de seu avô. Jamais fora tão paternal quanto naquele momento, mas uma força
inesperada brotava em seu interior e Petr estava decidido que não queria mais
chorar. Enxugou os olhos na barra da manga do capão, interrompendo os prantos,
entretanto se negou a levantar o esgar choroso e encarar Salazar Stanhorne outra
vez.
— Ainda há uma decisão, Petr — inferiu Salazar, forçando-se a manter a voz
firme. — Uma dura decisão que, em meio ao infortúnio que recaiu sobre Snartria,
precisa ser tomada.
O garoto levantou os olhos. Stanhorne o encarava. Impassível, o queixo mais
duro do que nunca e as linhas de expressão ao redor dos lábios puxando-os para
baixo como jamais vira.
— Uma decisão? — arguiu Petr, confuso e com a voz embargada.
— Sim, garoto. Ainda há uma decisão.
Salazar tirou de dentro das vestes uma carta com o símbolo do Conselho dos
Guardiões marcado em cera quente. Segurou-a sobre a palma das mãos sem inclinar
o rosto para baixo uma única vez.
— Você é poderoso, Petr. Um guardião de guardiões cuja magia é imensamente
mais forte do que a de qualquer outro que já ascendera ao seleto Círculo dos Cinco.
Lembro-me de quando seu avô, seu pai e eu descobrimos isto. As circunstâncias de
seu nascimento, à época, não eram favoráveis para a princesa Hanna dos
Zanotchka, sua mãe. Estava debilitada. Grávida de você e acometida de uma grave
doença, ela não resistiu às vinte e três horas de parto e veio a falecer. Isto é para
nós até os dias de hoje uma grande tragédia, a perda inestimável de nossa antiga e
poderosa Primeira Guardiã que abdicou de tudo para casar-se com seu pai, o
Príncipe Elliotr, para viver a bela história de amor que conhecemos e poder realizar
o sonho de ser mãe.
“Mas mesmo em meio ao caos, garoto, há sempre uma chama de esperança.
Havia magia em suas mãos quando Hanna deu à luz a você; uma magia que fluía
de suas palmas pequeninas e espiralava pelo ar, enchendo todo o lugar, envolvendo
você e a todos os presentes naquele aposento. A intensidade do seu poder era
grande e comprovamos isso com o quasar de litch, quando nele vimos que sua gama
de magia estava muito acima até mesmo da de Lorde Hazer Gundorf, o Guardião
mais poderoso que já existiu em toda a nossa história.
“E é por isso que também estou aqui: o Conselho dos Guardiões emitiu um
comunicado, mostrando-se favorável à sua indicação como o Guardião que o
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continente de Anlevor necessita, de forma unânime, cumprindo-se à risca o que
manda nossas leis, sugerindo dentre todos o mais forte.”
Salazar entregou o envelope nas mãos de Petr, que rapidamente destacou o selo
do Conselho e tirou de dentro a carta. As assinaturas dos vinte e cinco conselheiros
estavam registradas ali, clamando para que aceitasse com urgência o pedido do
Conselho em se tornar o novo Guardião de Anlevor. A assinatura de Hamm Louis
Zanotchka, o avô materno que jamais conheceu, também constava lá.
— Buscamos ser justos e optamos sempre pela liberdade de escolha dos Cinco
Grandes Reinos — prosseguiu Salazar; os olhos de Petr ainda vidrados na carta. —
Os reinos guardiões são livres para escolher, como quiserem, seus novos
Guardiões, Petr. Entretanto, as circunstâncias atuais exigem medidas drásticas e
pressurosas. É imperativo que Snartria indique um novo Guardião e
imediatamente.
No silêncio que se seguiu, em que Stanhorne contemplava-o do alto de seus olhos
ansiosos, aguardando alguma resposta pronta e positiva: uma aceitação de seu
pedido ou os belos juramentos que os Guardiões faziam quando eram convocados
pelos soberanos dos Cinco Grandes Reinos, Petr só conseguia pensar que havia
outra decisão tão difícil quanto esta. Desde o desaparecimento de seu pai e a doença
que se acometeu o avô, o relacionamento com sua avó ficou impossível. Lorde
Maximo sempre foi o exemplo do soberano que as serenas terras de Snartria
mereciam: cordial, justo, valente, longânime e altruísta. O rei que todos amavam e
veneravam como grande líder da nação. O que ninguém jamais conseguiu
compreender foi como ele tivera um casamento tão duradouro com a rainha. É
inevitável dizer que Lady Asturias dos Wallensig, em sua juventude, fora a mais bela
dentre todas as donzelas da nobreza e que seu rosto e corpo esculturais encantavam
a todos na corte, o que bastava para justificar a tórrida paixão do jovem Maximo
Bravior, o sucessor do trono à época. O tempo acabou mostrando que o que a
rainha tinha de deslumbrante, também tinha de esnobe e mesquinha; totalmente o
oposto de Lorde Maximo. O desaparecimento do único filho, Elliotr e o
agravamento da doença do rei serviram apenas para mostrar quem de fato era Lady
Asturias. Da noite para o dia, exigiu que fosse declarada a única e legítima soberana
sobre toda a Snartria e ordenou o afastamento e a prisão de diversos conselheiros
contrários às suas decisões. A notícia dos feitos tresloucados da rainha se espalhou
pelos quatro cantos do reino e uma crise quase se instaurou entre os condados e a
capital. Governadores, magistrados e conselheiros de toda Snartria se reuniram em
uma audiência, às pressas, no palácio. A rainha fora sumariamente proibida de
participar. Um antigo decreto real foi trazido à tona, determinando que somente o
herdeiro direto do trono possuía o poder de arbitrar sobre o futuro soberano de
Snartria. A difícil decisão de quem subiria ao trono estava nas mãos de Petr Bravior.
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— Agradeço, Sr. Stanhorne, por tamanho voto de confiança do Conselho dos
Guardiões, mas... — Petr titubeou. As lembranças da última discussão de Lady
Asturias com seu avô, um dia antes de ele morrer, ainda estavam muito recentes
em sua mente. — Eu... não posso aceitar tamanha responsabilidade e deixar o reino
nas mãos de...
— Sua avó! — completou Salazar, ao que Petr arregalou os olhos em sua direção.
— Não se surpreenda. Os últimos acontecimentos que antecederam a morte de seu
avô chegaram aos meus ouvidos, garoto. Eu também estaria preocupado se alguém,
mesmo sendo da minha família, quisesse usurpar o poder estando o rei ainda vivo.
Sei, porém, que a corte real de Snartria se opõe à postura tomada por sua avó e
desejam que você suba ao trono imediatamente, mesmo tendo apenas treze ciclos
de idade.
— Sr. Stanhorne, eu...
— Chame-me apenas de Salazar. — O líder do Conselho o interrompeu, dando
uma batidinha no joelho de Petr. — Fica menos formal...
— Salazar, — falou Petr, achando esquisito chamá-lo pelo primeiro nome —
confesso que não sei o que fazer. Não sei o que pensar...
— Não sei se você ouviria o conselho de um velho, mas talvez haja uma solução
para isso.
— Qual? — inquiriu Petr, desesperado.
— As questões sobre Anlevor são delicadas e decisivas. Há uma fragilidade
política nos reinos adjacentes fragmentando as relações com Snartria e perigos
iminentes surgindo a todo instante sobre a vastidão do continente. Não apenas o
Conselho dos Guardiões clama por um novo Guardião, mas também Snartria e
Anlevor. A unanimidade do Conselho não é em vão: você é poderoso como seus
pais e justo como seu avô. E não pense que você é novo de mais para essa função.
O Conselho o considera poderoso o suficiente para suplantar, inclusive, sua pouca
idade. A experiência virá com o passar do tempo. Essa decisão, sobre quem
governará as terras de Snartria, está em suas mãos. Embora a corte insista para que
você suba ao trono, eis o que posso sugerir: assuma como Guardião e indique um
soberano. Um regente. Alguém de sua inteira confiança que tenha capacidade para
assumir as terras do reino sob sua supervisão e aconselhamento, até que a harmonia
e o equilíbrio voltem a imperar e você possa indicar um novo Guardião e retornar
como o grande rei que Snartria merece. Dessa forma, você satisfaz o desejo da
capital e dos condados que clamam por um novo soberano e de todo o continente,
que aguarda dos Bravior a decisão sobre o futuro Guardião de Anlevor.
Um longo e agudo silvo do vento assoprando entre as pilastras do grande pátio
invadiu os ouvidos de Petr no silêncio que se seguiu entre ambos. As palavras de
Salazar Stanhorne martelavam bem lá no fundo de sua mente naquele momento,
onde a voz possante do líder do Conselho dos Guardiões ecoava sem parar;
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entretanto, ele ainda não tinha cabeça para pensar. Não queria decidir nada naquele
instante. Queria apenas ficar só e relembrar os momentos felizes com seu avô.
Petr levantou-se e ajeitou a capa verde sobre os ombros, indicando que a conversa
chegara ao fim. Salazar Stanhorne fez o mesmo: empertigando-se, ajeitou as luvas
negras nas mãos e passou um dedo sobre os cabelos bem aparados. Aguardava uma
decisão do garoto.
Parados um de frente para o outro, foi Petr quem falou primeiro.
— Salazar, — ainda achava engraçado chamá-lo assim, depois de tantos ciclos
chamando-o simplesmente de Sr. Stanhorne — preciso de tempo. É uma decisão
difícil e... acabei de perder meu pai e meu avô. As coisas não estão bem para mim,
se é que o senh... você me entende...
Ao contrário do que Petr esperava, Salazar lhe sorriu de forma afável.
— É claro, garoto. Tenha o tempo que precisar para pensar. Quando perdi minha
mãe, eu era apenas um ciclo mais velho do que você. Fiquei arrasado por muitos
ciclos, mas foi a morte dela que me fez acordar e me motivar a querer viver para
ser um Guardião.
Salazar estendeu-lhe a mão direita em um cumprimento e Petr apertou-a.
— Saiba que, independentemente de sua decisão, você tem meu total apoio e o
de todo o Conselho dos Guardiões. — Ele fez uma pausa, ajeitou a lapela do capão
e então prosseguiu: — Que as lembranças dos feitos do seu avô e de seu pai possam
motivá-lo a querer dedicar a sua vida em função dos mais fracos e a usar seu poder
para ser o Guardião que estas terras merecem.
Acenando a cabeça, Petr assentiu. O líder do Conselho girou nos calcanhares e
caminhou elegantemente em direção aos portões de saída do pátio.
O frio intenso que se acirrava fez o garoto enroscar ainda mais os braços contra
o peito. Não quis mais continuar ali sozinho. Atravessou o pátio circular,
desviando-se das cadeiras negras e vazias e alcançou a escadaria de pedra engastada
sobre a encosta. A imensidão de pinheiros da floresta logo abaixo era agitada com
a força dos ventos e uma melancólica cerração cinzenta dominava as árvores e
ocultava as cadeias de montanhas que demarcavam a fronteira entre Snartria e
Gelor-Torine. Uma fina camada de orvalho impregnava os degraus entalhados e
tortuosos que seguiam num semicírculo perfeito até os jardins baixos, contíguos ao
palácio. Lá, ele avistou alguém que trouxe algum conforto para a tristeza que
perturbava seu coração.
Desviando das muitas parreiras do jardim e das diversas rosas vermelhas e azuis
que adornavam uma série de canteiros ao longo do lugar, ele encontrou seu amigo
Chermont tentando cortar uma rosa excepcionalmente grande e desabrochada, aos
pés de um dos corredores que dava acesso às cozinhas do castelo. Embora
existissem dezenas de rosas ali, Petr sabia, aquela não era qualquer rosa.
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— Ainda intrigado com essa flor? — questionou Petr, pegando o rapaz de
surpresa.
No susto com a presença inesperada do garoto, Chermont deixou a tesoura que
carregava cair e levou a mão ao coração.
— Por que você sempre faz isso? — perguntou o rapaz, atônito.
Recuperando a tesoura caída no chão, Petr ria com o susto que dera no amigo.
Não o fazia por querer, mas sabia que tinha de se livrar desse hábito terrível de se
aproximar sem ser notado e perguntar as coisas como se já estivesse ali há bastante
tempo. Mesmo assim, adorava ver a reação do amigo toda vez que era
surpreendido. Entrementes, era sempre a mesma: se sobressaltava, arregalava os
olhos, jogava qualquer coisa que estivesse em suas mãos para o alto e deixava
escapar pela boca um ruído característico. Petr desatava a rir com a cena todas as
vezes. Contudo, Chermont era um rapaz bacana e um grande amigo. Com vinte e
dois ciclos de idade, era um habilidoso alquimestre do vento e um dos muitos
mordomos que cuidavam do palácio, porém um dos poucos que conseguira criar
um vínculo tão forte com Lorde Maximo e principalmente com Petr. Magrelo e
esguio, mantinha os cabelos negros sempre penteados para trás e tinha os trejeitos
mais engraçados dentre todos os empregados no castelo e também os hábitos mais
incomuns, como checar as inúmeras trancas das portas do palácio antes de dormir
ou inspecionar se cada uma das velas dos candelabros ao longo da mesa de jantar
estavam perfeitamente alinhadas e com a mesma altura. Quando encontrava uma
mais baixa, tratava logo de perseguir alguma vela pelo castelo que combinasse com
as demais e não descansava até encontrar. Para Petr, ele era um fiel amigo e
conselheiro, o irmão mais velho que nunca tivera. Depois de seu avô, era um dos
poucos em quem confiava no palácio.
— Desculpe-me, — falou Petr devolvendo a tesoura, sem conter a risada —
prometo que vou parar com isso...
— Deve ser a vigésima vez que você me dá um susto e a vigésima vez que
promete parar com isso — crocitou Chermont, zangado, tomando a tesoura outra
vez. — E se essa tesoura cai no meu ou no seu pé? Já imaginou o estrago? E ainda
seria capaz de sua avó me acusar de querer assassiná-lo...
Petr desatou a rir.
— Pois é, já imaginou você no calabouço? Não ia mais poder conferir as trancas
dos quartos, só da sua cela. Como você ia viver com isso?
Os dois riram.
— Onde estava? — perguntou Chermont, displicente. Ergueu a tesoura com uma
mão e com a outra afofou a terra. Mirava, com seu olhar curioso, a rosa abissal no
canteiro.
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A figura imponente de Salazar Stanhorne sentado à frente de Petr minutos antes,
repetindo o conselho sobre nomear alguém como regente e assumir o posto de
Guardião de Anlevor, retornava com ímpeto em sua cabeça.
— No pátio, com Salazar Stanhorne — sibilou Petr, absorto.
A tesoura tornou a cair das mãos de Chermont sobre o piso do jardim. O rapaz
imediatamente parou tudo o que estava fazendo, boquiaberto e com uma nítida
expressão de espanto para o que Petr acabara de dizer.
— Com o líder do Conselho dos Guardiões? — questionou o mordomo,
embasbacado.
— Sim, com ele.
— E o que ele queria com você?
Petr puxou a carta com o símbolo do Conselho de dentro dos bolsos internos do
capão e entregou ao amigo. Chermont abriu o envelope em um frenesi de
curiosidade e correu os olhos rapidamente sobre o pedido contido na carta e suas
vinte e cinco assinaturas.
— O Conselho dos Guardiões está recrutando você? — o rapaz engrolou a
pergunta, ainda mais apalermado do que já estava.
— Não diria recrutando... — falou Petr, imaginando qual seria o melhor termo
para o que o Conselho pedia naquele papel. — Diria... suplicando que eu aceite me
tornar o Guardião de Anlevor...
Denotando um esgar que misturava confusão e ansiedade, Chermont guardou a
carta no envelope e entregou-o novamente ao seu dono. Pegou a tesoura mais uma
vez de onde ela estava e finalmente guardou-a no bolso do avental laranja.
— Mas... e quanto ao trono de Snartria? — perguntou Chermont, sem entender.
— Não sei o que fazer, Chermont — desabafou Petr. Sentou-se sobre um banco
próximo a uma grande parreira. — Snartria não tem um rei, Anlevor não tem
Guardião. Eu só gostaria que meu avô estivesse aqui. Ele me olharia do alto da sua
cabeleira branca, piscaria um olho para mim e diria que tudo ia se resolver como
num passe de mágica.
O mordomo franziu os lábios. Tirou o avental e, dobrando-o, sentou ao lado do
garoto. Vasculhou alguma coisa entre os bolsos das calças e tirou um pequeno
tablete de chocolate.
— Tome. — Chermont quebrou a barra ao meio e entregou ao garoto. — Está
meio frio e acho que esse chocolate vai te fazer bem.
Petr sorriu para o amigo e comeu o pequeno doce.
— Você é novo demais para tomar decisões tão difíceis, Petr. — Chermont dizia
enquanto abria novos pedaços de chocolate e comia junto com o garoto. — Decidir
sobre o futuro do reino ou ainda de Anlevor é um peso muito grande para seus
ombros. Você só tem treze ciclos!
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— Eu sei — falou Petr, cabisbaixo. — Mas o destino quis assim e agora eu
preciso encarar essas responsabilidades e, pior, ainda preciso aturar minha avó que
vai tentar me convencer a torná-la rainha e lhe conceder o poder que tanto cobiça.
Sabe, Chermont, neste momento, não há harmonia e equilíbrio para os Bravior.
O mordomo levantou-se de um salto. Agitou os braços acima da cabeça e, de
suas mãos, conjurou um grande falcão de vento. A ave abriu as longas asas
elementais e alçou voo sobre o jardim, pairando acima das parreiras. Sobrevoava
bem rente aos janelões do paredão negro do castelo real, em voos ligeiros e rasantes.
— 'Petr, eu quero ser rainha. Petr, me dê o trono ou te coloco de castigo!’ —
falava Chermont, com a voz nasalizada, guiando o pássaro de vento sobre o topo
das árvores.
— O que é isso? — inquiriu o garoto, rindo. Acompanhava cada movimento da
ave elemental controlada por seu amigo, lá no alto.
— Não reconheceu? É a sua avó, ué. Não ouviu sua voz grunhindo ameaças? —
disse Chermont, cínico — Acho melhor você fazer um arco elemental e atirar uma
flecha antes que ela roube o trono de você. Se você for capaz, é claro...
Um arco e flecha de fogo elemental crepitaram entre as mãos de Petr, que ria aos
montes. A flecha em chamas estava firme entre seus dedos e ele esticou a corda de
fogo do arco. Arqueou as pernas, fechou um dos olhos e colocou a língua para fora.
O falcão de vento em movimento estava travado em sua mira, ziguezagueando de
um lado a outro entre as nuvens.
— ‘Ou me dá o trono ou fica sem sobremesa, moleque’ — Chermont continuava
imitando Lady Asturias, fazendo o pássaro rodopiar no céu.
A flecha chamuscante irrompeu do arco em chamas. Subiu com ímpeto por entre
as roseiras e parreiras e deixou os jardins para trás. Acertou em cheio o coração da
ave de vento que logo foi tomada pelas labaredas vermelhas e laranjas, se
incendiando por completo e provocando um enorme espetáculo pirotécnico no céu
até apagar-se lentamente com a força dos ventos enregelantes.
Chermont aplaudiu a performance de Petr, entusiasmado. Curvava-se para saudálo
com certo exagero. O garoto abriu um largo sorriso e que murchou tão rápido
quanto apareceu.
— Pena que meu avô não viveu para me ver fazendo isto.
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Capítulo Cinco
Incertezas
As chamas elementais crepitavam no alto das tochas douradas ao longo de toda
a extensão da grande sacada retangular. O brilho azul e intenso dos archotes refletia
sobre as altas pilastras do grandioso Palácio de Marfim e preenchia o perímetro
com nuances marcantes e que inspiravam uma serenidade ímpar que se
intensificava através do fulgor deslumbrante da lua cheia sobre os céus abertos e
límpidos da Magnífica Mistral e do cântico doce e sereno das ninfas da floresta em
algum lugar para além das montanhas.
Os melhores alquimestres do fogo eram incumbidos pessoalmente pelo rei de
manterem as chamas naquele intenso tom de azul. Assim, todos os dias ao
crepúsculo, eles se dirigiam à grande sacada e acendiam com fogo mágico cada uma
das tochas. Quando as sombras da noite surgiam sobre a abóbada celeste ao
término do pôr do sol e o negrume das colinas se assomava sobre o castelo, as
torres se iluminavam de uma forma arrebatadora e a paz e a tranquilidade
imperavam nos domínios reais.
Ao pé das ameias da ampla varanda, duas xícaras de porcelana repousavam sobre
uma pequena mesa de madeira, próximas a uma chaleira também de porcelana fina.
A fumaça translúcida do chá de camomila quente espiralava pelos ares da noite,
subindo em direção aos céus.
Com as pernas cruzadas e muito bem aconchegado em uma poltrona de carvalho
estofada, Lorde Argus Norhein bebericou de sua xícara de forma comedida,
deliciando-se com a serenidade do início da noite. Aproveitava o aroma e o sabor
adocicado da bebida quando escondeu um sorriso inesperado sobre as bordas da
xícara. Admirava como a luz bruxuleante do luar e o azul vívido do fogo
acentuavam ainda mais a beleza de sua amiga elfo sentada na poltrona à frente.
Alta e incomumente estonteante, Ada Alezeia Turim era uma lenda viva da
Ordem dos Sacramentadores. Além da aparência extasiante, da pele morena
perfeita e dos cabelos deslumbrantes, eram as histórias de seus incríveis feitos como
sacramentadora que ecoavam por toda extensão do reino e do continente. Como a
protetora da malha do tempo nas eras em que esteve à frente do pilar de Serenidade,
sua poderosa magia impediu que mais de uma dezena de desastres varressem
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Mistral e outros reinos do mapa ao longo dos ciclos, como a Furiosa Tempestade
de Alevan e a Grande Tormenta de Argúrius, em que uma tempestade vinda do
oceano causou grandes temores em vários reinos do continente até ser totalmente
obliterada pela elfo. Feitos tão grandiosos, que nem mesmo os guardiões seriam
capazes de reproduzir. Majestosamente polida e de grande sabedoria, ela sustentava
a fisionomia de uma jovem de vinte e cinco ciclos de idade, mesmo já tendo mais
de duzentos, porque os elfos vivem quatrocentos e vinte ciclos a mais do que a
média dos humanos e têm o incrível poder de manter sua jovialidade por muitas
eras, como vocês bem sabem. Com um rosto angelical, como se esculpido com
delicadeza ao longo do tempo, era o símbolo quase etéreo da perfeição: nariz fino
e levemente arrebitado e grossos lábios que pareciam desenhados cuidadosamente
pela natureza; os cabelos castanho-escuros, muito lisos, possuíam um brilho natural
fascinante, escorrendo pelos ombros até a altura dos quadris. Não obstante o rosto
extasiante, os grandes olhos de íris da cor do vinho eram hipnóticos, de um
magnetismo capaz de deixar qualquer um de queixo caído e perdidamente
apaixonado por aquela bela elfo sentada com tanta elegância, sustentando o pires
com a mão esquerda e a xícara de chá entre os dedos delicados da outra mão.
Entretanto, a formosura arrebatadora de Alezeia era como a de uma fabulosa
escultura exposta em um museu: perfeita para se admirar e nada mais. Lorde
Norhein, mais do que todos, sabia muito bem disso. A amizade com a antiga
sacramentadora de suas terras vinha de muitas gerações dos Norhein de Mistral e
tivera início havia muitos ciclos, numa era em que iminentes flagelos ameaçavam a
harmonia do tempo sobre o continente. À época, Alezeia iniciava sua carreira como
sacramentadora e, rapidamente, graças a seu carisma e presença, veio a se tornar
uma grande amiga e conselheira do jovem príncipe Simus, bisavô de Argus. Quando
Simus ascendeu ao trono e tornou-se o soberano de Mistral, fortaleceu um grande
laço de amizade com a nova sacramentadora e deu início a uma tradição que se
estendeu por muitos ciclos, até a morte do rei: as prosas e conselhos à luz do luar
sobre a grande sacada no Palácio de Marfim. A tradição continuou mesmo após a
morte do rei. Lorde Pramis, o filho de Simus, via em Alezeia o ponto de equilíbrio
e sabedoria de que precisava para poder reinar com justiça e consolidar a harmonia
que o reino conquistara através de seu pai, até se deixar levar pelo maior dos erros
que um humano poderia cometer: apaixonar-se por uma elfo. Enlevado pela beleza
de Alezeia, o rei dera ouvido a seus mais profundos desejos carnais e apaixonara-se
perdidamente pela sacramentadora, ao ponto de querer abandonar o trono, a
esposa e seus dois filhos. Mas Alezeia era dona de princípios rígidos. Consciente de
que o rei possuía uma família e, acima de tudo, convicta de que humanos e elfos
eram de naturezas muito distintas, ela repudiou duramente o sentimento de Pramis.
Obstinado, o rei não admitia não poder possuir o único bem que tanto desejava.
Logo, sua obsessão pela beleza da elfo o levou à loucura e Mistral quase definhou
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ante a insanidade de seu rei. A sabedoria de Alezeia fez com que entendesse que
aquele era o momento de afastar-se da Magnífica Mistral e de sua amizade com os
humanos e, por muitos ciclos, dedicou-se unicamente a Purysia e à Ordem dos
Sacramentadores. Somente quando Lorde Grandus, o filho de Pramis, reinava havia
trinta e sete ciclos e Argus, seu filho mais velho, aguardava na iminência de ascender
ao trono em virtude da idade avançada do pai, Alezeia aproximou-se outra vez de
Mistral. Argus lembrava-se bem do dia em que a conheceu. Era o Baile dos Quatro
Reinos e, naquele ano, o Palácio de Marfim estava mais reluzente e deslumbrante
do que nunca. Decorado para os festejos em comemoração à aliança entre os
principais reinos de Eurodian, o castelo cintilava com as cores intensas da
primavera. As cidades e condados do reino estavam igualmente decorados e os
cidadãos de Mistral festejavam o resultado das colheitas pelas ruas, comemorando
a chegada dos reis, rainhas e demais nobres de Badorian, Sombroceano e Boralioch.
O palácio se apinhava de nobres por todos os lados, bebendo e conversando e,
quando ela irrompeu pelos portões do Salão Principal, tudo pareceu se transformar.
Vinha acompanhada de outras elfos, sacramentadoras como ela, em uma visita
oficial, como a representante da Ordem ao reino, também para comemorar. Argus
não sabia explicar o porquê, mas havia um magnetismo que fazia com que os
olhares se voltassem unicamente para Alezeia, a mais deslumbrante de todas. O sol
forte do meio da tarde entrava por entre as vidraças do palácio e refulgia em seus
longos cabelos, cintilando sobre a tiara de diamantes no topo de sua cabeça. O
longo vestido azul de seda pura flutuava conforme ia avançando pelo grande salão.
Havia um brilho magistral nela, impossível de se explicar. Era como se ela emanasse
aquele fulgor, como se ela fosse a estrela maior que viera iluminar Mistral. Não
tinha muita certeza se deixara transparecer de mais sua admiração, mas lembravase
claramente do duro discurso de seu pai quando a festa ia se aproximando do fim,
tarde da noite, nos jardins suspensos do palácio.
— Vejo a mesma irracionalidade que havia em seu avô! — trovejava Lorde
Grandus sob a luz das estrelas.
— Do que o senhor está falando? — arguiu Argus, franzindo as sobrancelhas. Lá
no fundo, porém, ele sabia ao que seu pai estava se referindo.
— Não se finja de idiota! — esbravejou Lorde Grandus, cerrando os punhos —
Eu vi como você olhou para a sacramentadora. Seus olhos pareciam saltar das
órbitas. Todos os ministros e conselheiros do palácio me perturbaram a noite
inteira com sua reação. Agora eles temem que você aja como seu avô...
— Mas eu só estava admirando a beleza dela... — crocitou Argus, exasperado.
— Será que você esquece que este reino quase desapareceu graças a uma paixão
irracional de seu avô? — Lorde Grandus gritava então e uma veia saltava de suas
têmporas.
— Não, mas...
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— Entenda de uma vez por todas que você está comprometido com a princesa
Iamira e se você não está apaixonado por ela, sugiro que convença a mim e a todos
os ministros deste reino de que está. Mistral não pode sofrer novamente com um
rei fraco que se deixa levar por paixonites...
— EU NÃO SEREI UM REI FRACO! — berrou Argus, bufando de raiva.
— Então, aprenda, de uma vez por todas, — Lorde Grandus agarrou os braços
do filho e olhou no fundo de seus olhos — a beleza dos elfos não pertence aos
humanos. Seja o rei que Mistral precisa e não se deixe trair pelos seus sentimentos.
Os ciclos passaram desde aquela conversa. Lorde Argus subiu ao trono, casado
com Lady Iamira, que lhe deu três belos filhos. Uma de suas primeiras medidas foi
retomar a tradição antes perdida pela insana paixão de seu avô e que o levou à
loucura: as conversas com Alezeia, com quem aprendeu a extrair dessas prosas os
melhores conselhos para poder reger Mistral com justiça. Descobriu então que os
elfos, principalmente os que dedicam suas vidas à sacramentação, não se deixam
levar por coisas tão corriqueiras para os humanos como paixões, amores levianos
ou decisões geradas pela emoção.
Alezeia tomou mais um gole do delicioso chá e inclinou o rosto para além das
ameias da grande sacada. O Palácio de Marfim se erguia ao pé da Cordilheira Burcos
e a varanda retangular em que estavam possuía uma vista espetacular. A vegetação
densa que cobria cada milímetro da montanha se espalhava em inúmeras
ramificações entre as raízes tortuosas das árvores de troncos brutos e ásperos e
galhos sinuosos com grandes folhas. A gigantesca cachoeira jorrava suas
indomáveis águas cristalinas do sopé da montanha e cintilava à luz do luar. A
extensa sacada ficava na torre mais alta do palácio e, mesmo quem se inclinasse
sobre o parapeito não conseguiria enxergar em que lugar do pé da montanha as
águas desembocavam. Contudo, a vista era deslumbrante e o som das águas
borbotando incessantemente proporcionava um ambiente de perene tranquilidade.
A sacramentadora inspirava o ar puro da noite com vontade, soltando o ar dos
pulmões vagarosamente, esquecendo-se de suas iminentes inquietações. Adorava
os momentos que passava ali, admirando o céu estrelado, a encosta e sua gloriosa
cachoeira. O cheiro agradável do mato molhado invadia suas narinas e a luz azulada
dos archotes iluminando o trecho da cordilheira e a sacada onde estavam traziam à
tona sentimentos que há muito não experimentava. Uma sensação de paz
reconfortante envolvia seu coração e ela sentia-se aconchegada, ouvindo e
aconselhando seu amigo Argus sobre questões decisivas a respeito do reino, mas,
principalmente, podendo fugir do caos que havia se instaurado em Purysia.
Alezeia tomou um pouco mais de sua bebida e respirou fundo outra vez. A
calmaria resvalava de seu interior, indo embora tão rápido quanto expirava o ar da
noite. Um sentimento próprio dos humanos crescia em seu âmago. Ela não queria
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ter de voltar à ilha dos Sacramentadores carregando dentro do peito aquilo que os
homens chamavam de ansiedade.
— Argus, você é um grande amigo. Uma pessoa em quem confio minha própria
vida. Sei que não é costume dos sacramentadores comentar o que se passa dentro
da Ordem e... — titubeava, mas precisava prosseguir: — Posso estar infringindo
muitas de nossas leis, porém... as coisas estão estranhas em Purysia e isso muito me
perturba.
O rei franziu as sobrancelhas diante das palavras de Alezeia. Inclinou-se para
frente e depositou a xícara vazia em cima da mesa, apoiando o braço direito sobre
o joelho. Era estranho perceber como, para ela, Argus lembrava tanto o primeiro
amigo humano que fizera nas terras de Mistral, quando ainda era uma jovem e
inexperiente sacramentadora. O porte pujante, os olhos azuis e enigmáticos da cor
do oceano, a barba loira, bem aparada rente ao rosto e os longos cabelos dourados
com algumas poucas mechas grisalhas eram idênticos aos do pai. Entretanto, era o
jeito com que olhava para ela e como se posicionava para escutar suas palavras,
quer fossem conselhos ou mesmo um segredo inquietante à luz das tochas, que
faziam-na recordar de Lorde Simus e isso lhe deu mais segurança para seguir com
seu desabafo. Argus era um dos poucos humanos e amigos com quem fazia questão
de se esforçar para manter um linguajar menos rebuscado. As palavras floridas e os
discursos eloquentes e elaborados eram corriqueiros entre os elfos, que se
habituaram a essa forma de se expressar. Com ele, sentia prazer em utilizar palavras
mais simples e discursos sinceros, palavras que fossem diretas, sucintas, sem tantos
floreios.
— Alezeia, você tem a mim e a toda a Magnífica Mistral como servos seus por
tudo o que fizestes em favor destas terras. Pode confiar que as palavras ditas aqui
jamais sairão deste lugar e farei o que estiver ao meu alcance para poder ajudá-la. O
que quer dizer com ‘coisas estranhas em Purysia’? — inquiriu Argus, solícito. As
palavras de seu amigo rei lhe deram coragem para prosseguir. Era a primeira vez
que ela transparecia uma preocupação não contida.
— Há algo estranho acontecendo em Purysia, meu amigo — engrolava, arfando
ao pronunciar cada palavra como se não soubesse por onde começar, com um
medo latente em sua fala. — Eu não saberia explicar, pois, como você sabe, nós
elfos somos sensíveis ao que acontece ao nosso redor. Apesar de tudo parecer
dentro da normalidade e todos manterem suas rotinas e responsabilidades para com
a sacramentação do tempo, eu sinto uma perturbação, há algo fora do lugar na
Ordem. Além do que...
Alezeia hesitou.
Não estava convicta se deveria dizer o que queria dizer. As palavras estavam a
ponto de serem pronunciadas, mas seguir adiante era perigoso. Argus mantinha os
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olhos vidrados nos dela e os ouvidos aguçados para o que ela falava; o esgar assumia
o mesmo tom de preocupação que o da sacramentadora.
— Há dois meses não vejo Menfesis!
Argus arregalou os olhos, espantado.
Um silêncio momentâneo se seguiu entre ambos e as recordações de Alezeia
afloraram com ímpeto. Lembrou-se da última vez que o vira, antes de o Primeiro-
Líder da Ordem dos Sacramentadores desaparecer de vez do convívio com os
demais. Era uma semana de grandes decisões sobre as agitações que perturbavam
a malha do tempo e os líderes de Infortúnio, Perspicácia e Solidão regressavam de
seus postos à ilha constantemente, buscando decisões concisas de suas análises
sobre o que alvoroçava seus pilares. Entretanto, acima de tudo, aguardavam a
palavra final do líder da Ordem. No começo da semana, ele havia se trancado no
Acervo Sacramental e pediu que não fosse importunado. Proibiu qualquer um de
cruzar as portas da grande biblioteca de Purysia e colocou dois guardas alquimestres
para proteger o lugar. Ninguém entendia o porquê, mas respeitaram sua decisão.
Ao longo da semana, sua ausência fora sentida e notória nas reuniões da Ordem.
Os sacramentadores ansiavam pelas decisões que afetavam seus pilares. A grande
cadeira dourada do Supremo Chanceler permanecia vazia durante as sessões e
Alezeia, a cada dia, ficava mais inquieta pela falta de respostas sobre o que tanto
Menfesis fazia enfurnado lá dentro. Ao fim da semana, as portas do Acervo se
abriram e um Menfesis impassível saiu de lá. Taciturno, reuniu todos os
sacramentadores uma única vez, em frente às grandes portas de carvalho da
biblioteca de Purysia para ler um decreto, escrito e assinado por ele mesmo.
— A partir de hoje, o Acervo Sacramental de Purysia está selado por uma era e
sendo unicamente revogado apenas pelo Supremo-Chanceler da Ordem dos
Sacramentadores.
Ao final, enrolou o documento em suas mãos e se retirou. Um burburinho
generalizado dominou as bocas das dezenas de elfos confusos presentes no salão
do Acervo. Não havia lógica na decisão do grande líder em selar o Acervo
Sacramental. As obras de mais de uma centena de sacramentadores a respeito da
harmonia do tempo estavam presentes ali, além das profecias e antigas histórias de
quando os elfos ainda habitavam as florestas. Alezeia, depois de uma semana
conturbada com a ausência de seu antigo amigo sacramentador, estugou o passo
em sua direção na busca por explicações.
— Menfesis, o que significa isso? — questionou, segurando o braço do Primeiro-
Líder.
Menfesis virou-se e ali ela percebeu que algo estranho estava acontecendo. Ele
lançou um olhar frívolo para a expressão confusa de Alezeia e dali para os dedos
da amiga segurando seu braço esquerdo.
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— Será que vou ter que lhe ensinar o que é um decreto ou você esqueceu? Estou
selando o Acervo por cem ciclos até que julgue necessário revogar minha decisão.
— Mas, Menfesis, você não pode tomar esse tipo de decisão, qual motivo de...
O Supremo-Chanceler empurrou a mão de Alezeia e virou-se de frente para a
elfo. Uma fúria crescente dominava seu rosto, os olhos comprimiam-se em fendas
mínimas.
— Posso tomar as decisões que considerar necessárias. Sou o líder da Ordem dos
Sacramentadores e minha decisão não será revogada. A Guarda Sacramental já está
instruída a não deixar ninguém cruzar aqueles portões, sob a pena de ter uma morte
dolorosa. — E girou nos calcanhares, subindo a escadaria da torre da Grande
Bússola.
Desde então, ninguém mais vira Menfesis.
— Mas vocês convivem juntos na ilha. — As palavras de Argus interromperam
os devaneios de Alezeia. O rei estava obstinado a compreender as motivações para
um sumiço tão repentino. — Você sempre me disse que Menfesis era sensato,
sociável com os demais elfos e nem precisa mencionar que fora o principal
protagonista na grande proximidade que existe hoje entre a Ordem e o Conselho
dos Guardiões. Acredito eu que algo o perturba e, talvez, depois de tantos ciclos
tentando uma aproximação dos sacramentadores com o Conselho, ele precise de
um tempo sozinho. E você, o que acha que poderia ser?
Alezeia bebericou do chá, absorta.
— Deveras, Argus. Acredito também que seja isto...
Mas, no fundo, Alezeia não acreditava na teoria de seu amigo rei. Havia muita
coisa em Purysia ainda sem explicação e a letargia do Supremo-Chanceler, sua
irritabilidade e o desejo de estar sozinho não eram em vão. Menfesis descobrira
alguma coisa e a estava ocultando de todos. Queria acreditar que não, mas uma
nesga em seu interior insistia em crer que algo associado à máxima dos temores de
qualquer sacramentador, desde que a Grande Era das Trevas terminara, estava para
acontecer: a Era do Caos.
Um calafrio percorreu a espinha de Alezeia que voltou à realidade, com o rei
Norhein terminando de ponderar sobre os diversos motivos de um líder querer
estar sozinho. Ela estava consciente que jamais poderia compartilhar esse temor
com ele. Argus não compreenderia. Teria de buscar respostas por si só ou aguardar
unicamente que Menfesis retornasse de sua clausura na torre mais alta da fortaleza
de Purysia.
— Eu realmente não consigo compreender os motivos — falou Alezeia,
depositando a xícara sobre a mesa. — Quando se vive tanto tempo, Argus,
buscamos o caminho mais curto para uma decisão imediata: o caminho da lógica,
do pensamento. Não há tanta filosofia e tantos devaneios entre os elfos quanto há
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entre os humanos. Ao notarmos dificuldades, buscamos decisões conjuntas. Que
Menfesis está com algum problema, isto é notório. Contudo, sua demora em
encontrar uma solução e o afastamento do convívio com quem poderia ajudá-lo
nessa busca está provocando questionamentos em todos os Cinco Continentes.
Argus assentiu. Ouvira um boato qualquer sobre algo estranho em Purysia
tempos antes, mas não dera muita importância. Confiava que, qualquer que fosse o
distúrbio do tempo, Alezeia e a Ordem eram capazes de oferecer uma solução
rápida.
— Os sacramentadores de todo mundo estão insatisfeitos com Menfesis. —
Alezeia estava visivelmente acabrunhada, como se precisasse compartilhar sua
inquietação com a ausência do grande líder de Purysia. — Antes de seu
afastamento, ele cometeu uma sucessão de erros que provocou intensa discórdia na
Ordem. Há quatro meses, ele quebrou uma de nossas principais leis e destituiu
todos os sacramentadores dos Oito Pilares antes que completassem uma era,
alegando que eles perderam a capacidade de manter o equilíbrio na malha do tempo
em suas regiões. À época, Menfesis convenceu a todos que havia sabedoria em sua
decisão de afastar os atuais líderes. Então, com seu afastamento inexplicável, os
antigos sacramentadores vêm à ilha constantemente questionar Menfesis do que
acreditam ser uma precipitada decisão sua e são sempre barrados pelos guardas no
salão da Bússola, que tem ordem expressa de não deixar ninguém passar. Quando
me questionam o que está havendo, minha resposta é sempre a mesma: eu não sei.
Não ter respostas quando uma iminente crise parece querer se instaurar é a pior das
aflições. Os novos sacramentadores indicados por ele já estão se preparando para
assumir seus postos e eu sequer sei os nomes de todos. Não obstante, Argus, os
trigêmeos da Forja Élfica não param de enviar suas cartas à Purysia. Estão
aborrecidos com a ausência de encomendas de artefatos mágicos forjados para a
ilha...
Alezeia terminou e notou que jamais parecera tanto com um humano como
naquele momento: o desabafo ao pé da cachoeira a ajudava a manter a cabeça no
lugar. Norhein mantinha os olhos fixos na amiga. Nunca a vira daquele jeito. Ao
fim de sua confissão, ele não conseguia pensar no que dizer. Palavras de conforto
talvez não fossem suficientes. A situação era muito pior do que sequer podia
imaginar.
— Argus, desculpe-me por essas palavras, eu...
— Alezeia, — o rei interrompeu a amiga elfo que se mantinha cabisbaixa e
desolada — desabafar é bom. Um pouco de sentimento, às vezes, em um mar de
tanta razão é necessário.
Alezeia sorriu pelo canto da boca. As palavras de seu amigo lhe trouxeram algum
conforto e acalmaram seu coração conturbado. Mas o sorriso logo desapareceu.
— Não sei o que será de Purysia se as coisas continuarem assim...
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Capítulo Seis
Apuros em Paragon
— Vira!
— Vira!
— Vira!
— Vira!
— Quem ganhou?
— Gavor!
— Impossível! Revanche!
— Vira!
— Vira!
— Vira!
— Vira!
— E agora?
— Você!
— É! Desce mais uma rodada para comemorar!
Aos brados eufóricos e risadas histéricas, oito canecas se ergueram no ar. Fizeram
um sonoro tim-tim entre elas e quase se quebraram com a violência do brinde, em
meio aos ares ébrios da taverna. Uma tênue névoa cinzenta preenchia os quatro
cantos do recinto. Com um odor agridoce e que incomodava as vistas num primeiro
momento, era um conjunto de ervas de fumo queimadas lançadas às baforadas para
o alto, misturado com carne de carneiro que assava sobre brasas, bem lá nos fundos,
nas cozinhas da taverna, cuja fumaça estorricada invadia o salão contíguo,
mantendo o clima carregado, mas perfeito para uma comemoração inconsequente.
Pequenos grupos se acomodavam em suas cadeiras aqui e ali, aproveitando as
bebidas geladas magicamente que sambavam nas canecas. Os mais barulhentos,
como sempre, eram os tórridos anões, que tomavam canecões cheios de rum como
se fossem tonéis de água e estivessem mortos de sede. As barbas loiras e acajus se
encharcavam, por vezes, com a bebida e ecoavam estrondosas gargalhadas pelo
salão, batendo os cabos de seus machados ou cajados contra o assoalho.
Diferentemente da extravagância dos anões, dois elfos, altos, belos e de longos
cabelos brancos, degustavam suas taças de vinho delicadamente. E era notório que
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ali não era o melhor ambiente para sujeitos tão comedidos e que papeavam sem
nenhuma pressa, como se nada estivesse acontecendo.
No meio do salão, em volta de uma mesa redonda coberta de pequenas manchas
— também redondas das muitas canecas molhadas que estatelavam ali, oito jovens
terminavam de virar suas bebidas e faziam estrepitar as canecas sobre a superfície
da mesa, limpando os bigodes de espuma abaixo dos narizes com as costas das
mãos, sem o menor pudor, partindo de imediato para a próxima rodada.
— Onde nós estávamos com a cabeça quando deixamos o Dean escolher esse
lugar? — falou um dos oito, levantando uma das sobrancelhas enquanto contraía a
outra, em um sincero esgar de desaprovação. O nome dele era Bald. Corpulento e
atarracado, tinha cabelos escorridos da cor de palha velha e inúmeras sardas que se
concentravam logo acima do nariz e se espalhavam pelas maçãs do rosto.
— Ei, nem venha querer me culpar agora — falou Dean, esgalgado e de ombros
largos, cujos cabelos muito lisos repousavam, divididos, em cada um dos seus
ombros. — Vocês disseram que queriam tomar uma boa cerveja para comemorar
e não há lugar mais fétido e podre para se tomar uma cerveja artesanal do que a
Taluna Taverna!
— Eu quero saber da tal Feiticeira Vaginal...
— Lá vem você de novo com essa história.
— Parem de brigar! — interpelou Jano, o mais sensato de todos. — Importante
é que depois de tantos dias, finalmente estamos em Paragon, a mais badalada cidade
do mundo. Berço de toda população mágica. A cidade que abriga um dos Pilares
da Magia. Aliás, vocês sabiam que...
— Paragon nunca dorme — repetiram todos, em uníssono.
Jano segurou o queixo quadrado e passou um dos dedos sobre os cabelos muito
encaracolados, observando cada um dos rostos risonhos de seus sete amigos que
caíam na gargalhada.
— Acho que repito isso demais... — ponderou Jano.
— Deve ser a cerveja afetando seu cérebro — concluiu Mark, enchendo
novamente as canecas. Era a décima nona garrafa que esvaziavam.
— Aposto que é muito mais do que a cerveja. Essa fumaça toda afetou minha
mente e com certeza deve ter afetado a dos anões ali também. Estão agindo como
loucos faz tempo e não param de bater com aqueles cajados e machados no chão.
Logo, logo abrem um buraco no piso — completou um jovem de cabeça raspada
e pele azeitonada. Ropher era seu nome e apontou para o grupo de anões que
iniciava uma alegre e retumbante cantoria, a terceira seguida.
Uma das canecas se ergueu novamente ao ar. O braço em riste, cambaleante e
notoriamente bêbado, Herm se segurou na borda da mesa e depois no encosto da
cadeira para evitar cair por cima das diversas garrafas e do restante das canecas. Os
outros sete riam sem parar do amigo de cabelos loiros e dentes acavalados.
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— Quero dizer, hic, que não podemos esquecer... — Herm franzia as
sobrancelhas, como se tentasse lembrar o que não podiam esquecer — não
podemos esquecer... o que é que eu estava dizendo mesmo?
Os sete desembestaram a rir novamente.
— Ah, é. Isso. Isso mesmo. Isso aí. — Herm balançava para frente e para trás,
apontando para alguém invisível que o fizera lembrar o que precisava dizer. — Não
podemos esquecer que hoje é uma data especial e que finalmente estamos
comemorando nessa magnífica e pútrida espelunca, os vinte e sete ciclos de idade
do nosso querido safado, digo, amigo... é... Quem mesmo? Ah, é: Louk.
Uma salva de palmas eclodiu na taverna, puxada pelos oito ao redor da mesa e
que logo contagiou os demais, exceto os dois elfos ao fundo, que lançavam olhares
desaprovadores para o bando de bêbados tresloucados aplaudindo a esmo.
Arrastando a cadeira e colocando-se de pé lentamente, Louk fez tilintar sua caneca
com as dos demais outra vez, ao passo que as maçãs do rosto queimavam e ele via
sua própria aparência refletida no líquido dourado que saboreava lentamente, sem
muita vontade: olhos azuis que por vezes pareciam cinzas e que denotavam uma
mescla de excitação e uma ínfima ponta de cansaço; no topo da cabeça, os cabelos
ruivos desgrenhados, com metade das mechas ainda pendendo para o lado
esquerdo no resquício do que antes fora um belo e arrumado penteado. Havia aqui
e ali uma ruga ou outra linha de expressão que demonstravam que, de fato, o tempo
começava a castigá-lo.
Assim que cessaram as palmas — e acreditem, elas se arrastaram por longos
segundos, pois, aparentemente, nem todos os anões bebuns tinham se dado conta
de que a mesa que começara a aplaudir tinha parado havia muito tempo e partia
para uma nova leva de bebidas, Louk chafurdou na cadeira e bateu o copo sobre a
mesa, fazendo com que todos se sobressaltassem. Estampava no rosto a notória
expressão de quem acabava de ter uma brilhante ideia e Gavor, o campeão de “Vira-
Vira” de cerveja da noite logo desconfiou da conhecida expressão no rosto do
amigo. Coisa boa, provavelmente, não era.
— Como vocês sabem, nós estamos em Paragon, a cidade onde os sonhos viram
realidade — disse Louk, animado — e eu não posso sair daqui sem antes realizar
um sonho meu de infância.
— Lá vem... — crocitou Gavor, levantando uma das sobrancelhas.
Louk pigarreou alto e deixou escapar um muxoxo, comprimindo os olhos na
direção do amigo.
— Não esqueçam que hoje é meu aniversário, vocês são meus melhores amigos
(e primos) — E mirou Jano e Mark brevemente — e precisam, ou melhor, estão
intimados a ajudar a realizar meu sonho.
— Temo até perguntar qual é esse sonho, mas como sei que ele vai dizer de
qualquer forma... — sibilou Mark.
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— Qual é, gente? — Louk retrucava. — Nós estamos no Paraíso das Realizações
e eu não posso voltar para Amistelar e assumir o posto de Guardião de Turmis no
lugar de Lorde Dorner dos Ottonis sem antes fazer uma grande loucura nesse lugar.
— Uma grande loucura? — indagou Jano, alarmado.
— Sim!
— Mas como assim? — perguntou Gavor — Que tipo de loucura?
— Há inúmeras possibilidades — respondeu Louk, entusiasmado. — Invadir o
Palácio do Governador e passar um trote nele é uma delas. Soltar os touros das
fazendas do oeste da cidade pelas ruas e observar as pessoas correrem como loucas
de um lado a outro também é uma opção. Por favor, precisamos fazer história nesse
lugar. Imagina quão chato deverá ser contar para meus filhos no futuro que minha
maior realização foi sempre ser o ‘bom moço’ e ‘soldadinho do Conselho’ porque
papai mandou e...
— Não estou muito certo, Louk — falou Jano, tamborilando os dedos sobre a
mesa e alisando uma barbicha que não tinha. — Tio Leoris quase não permitiu que
viéssemos a Paragon comemorar. Acho que ele não confiava que fôssemos nos
comportar. Não acha que seria muito arriscado? Afinal, se algo der errado e formos
descobertos, seu posto de Guardião pode ficar comprometido e seríamos proibidos
de sair de Turmis, quiçá até de Amistelar.
— Eu quero que se dane, Jano — disse Louk, mesmo não estando muito certo
disso; talvez fosse o efeito da bebida, dando-lhe uma coragem que não lembrava
ter. — Estou fazendo vinte e sete ciclos de idade hoje e antes de ter de viver em
função da lei, preciso, ao menos, uma vez na vida, transgredi-la. Quero ter histórias
para contar no futuro e não apenas de que viemos a Paragon e bebemos,
comportadamente, junto com um bando de anões tresloucados e dois elfos
esnobes. Então? Quais são as nossas opções?
Cinco deles engrolaram dezenas de ideias para Louk, uma mais louca que a outra,
atropelando uns aos outros enquanto falavam, cuspindo mirabolantes sugestões a
torto e a direito do que poderiam fazer para entrar para a história. Somente dois
mantinham-se calados: Jano, que sustentava no rosto sua expressão de
descontentamento, observando os demais amigos e balançando a cabeça a cada
nova ideia e Herm, que de tão bêbado apenas sorria para os amigos quando eles
anunciavam suas insanas propostas e agitava a cabeça entre as goladas de cerveja
que tomava — o que para Louk era praticamente um sinal de aprovação. Mas foi
de Ropher a melhor — ou mais ensandecida — ideia e que fez com que todos se
empolgassem, exceto Jano.
— E se nós subíssemos ao ponto mais alto do Pilar da Magia. Digo, no cume da
torre? — inquiriu Ropher, vislumbrando os olhares carregados de excitação dos
demais.
— Claro! — crocitaram todos, descompassadamente.
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— Vocês enlouqueceram? — questionou Jano, pondo-se de pé — A Torre da
Magia é um marco histórico de nossos antepassados. Paragon só existe por causa
dela. É um dos monumentos mais importantes de Eirin e se o Conselho descobre
que nós profanamos aquele espaço, eu nem imagino o que é que pode acontecer
com todos nós. Sabe que seu tio Salazar pode até querer cortar nossas cabeças,
Herm!
Herm contraiu o rosto num esgar de dúvida e logo arreganhou os dentes, sorrindo
abertamente; agitando o indicador para Jano, ingeriu mais duas grandes goladas de
cerveja. Recordava que Salazar Stanhorne era seu tio, mas sequer se dava conta do
que eles estavam falando.
— Não seja um chato-estraga-prazer, Jano! — retrucou Louk, também se
levantando e encarando o primo — Você sempre quer estragar nossos planos.
— Claro! Desde criança que seus planos sempre terminam com a gente em
apuros e eu perdi a conta de quantas vezes fomos castigados por sua culpa. Mas
parece que agora você enlouqueceu de vez! — exclamava Jano, enfurecido.
— Isso é verdade! — concordou Mark, arrazoando.
— Até você? — confrontou Louk, exasperado.
Mark sobressaltou-se, atrapalhando-se com sua caneca de cerveja e algumas
garrafas vazias.
— Não, digo, é... Só a parte dos seus planos dar errado quando éramos crianças...
Louk comprimiu os olhos na direção de um assustado Mark que ainda tentava
não deixar as garrafas rolarem para fora da mesa, abraçando-as. Imediatamente,
voltou o foco para o pivô da discussão: seu outro primo.
— Ninguém está te obrigando a ir, Jano — falou Louk, cerrando os punhos —
Se não quiser nos seguir, fique. Aproveite sua estadia em Paragon nesta pocilga,
com esses anões sujos e embriagados. Nós vamos deixar nossa marca na Torre da
Magia.
Os outros seis também ficaram em pé, encarando Jano com o mesmo trejeito
petulante de Louk, desafiando-o. Somente Herm continuava sentado, ainda
entretido demais com sua caneca semivazia para prestar atenção na discussão dos
demais amigos.
Jano contorcia o cenho, contrariado. Sempre que perdia uma discussão para o
primo, sua série de tiques aflorava e olhava para cima e para baixo diversas vezes,
procurando uma alternativa que fosse agradável para todos, mas, desta vez,
nenhuma ideia brotava em sua mente.
— Ok. Vocês venceram. Mas que fique bem claro: se algo de ruim acontecer, sou
o primeiro a negar que conheço vocês. E eu vou fugir sem titubear.
— Certo, mas... — Dean abriu os braços, impedindo que todos se levantassem
— Nós não podemos ver a Feiticeira Vaginal primeiro?
— Dean, vai tomar no meio do seu...
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— Não, sério — interpelou Ropher, revelando uma autêntica curiosidade. — O
que raios é uma Feiticeira Vaginal?
— E lá vamos nós de novo...
— Uma Feiticeira Vaginal é uma bruxa do sexo. São muito raras nos dias de
hoje...
— Isso nem existe... — balbuciou Jano no pé do ouvido de Ropher.
— Shiu! — Dean levou o dedo em riste até os lábios, em sinal de reprovação. —
Não fale do que você não sabe. Como eu ia dizendo, uma Feiticeira Vaginal é uma
bruxa do prazer. Dizem que ela tem uma magia clitoriana que faz o orgasmo durar
uma hora e meia completa. Já pensou?
Ropher levou a mão à cabeça e deu um tapa na face de Dean, que fez o rapaz
rodopiar.
— Espero que esse tapa recupere, em forma de agressão física gratuita e
espontânea, os vinte segundos perdidos da minha vida, ouvindo esse besteirol
narrado por você. Agora, vamos!
Cinco jovens irromperam pelas portas da taverna em direção às ruas de Paragon,
seguidos por outros três retardatários que engoliram, pressurosos, o que ainda
restava de cerveja em suas canecas. Por sorte, Jano lembrou-se de pagar pelas vinte
e sete garrafas e meia que consumiram e saiu, cambaleando e quase caindo por cima
de uma cadeira.
O frescor do inverno de Paragon permeava as ruas da cidade e, diferente de
Anlevor e seu inverno congelante, a brisa gélida não era tão atroadora; na maioria
das vezes, era bastante agradável, principalmente perto do cais, onde as correntes
marinhas traziam um sopro ameno das Águas de Crispoles. Em todos os lugares,
desde os mais badalados até aqueles mais escusos e soturnos, os ventos enregelantes
da agitada noite da cidade faziam reverberar longos e assombrosos zunidos entre
as dezenas de torres e palacetes ao redor e este mesmo vento era o que golpeava as
maçãs do rosto de Louk naquele momento. Os olhos contemplaram a lua cheia
reinando com toda sua exuberância, assim que saíram da taverna. O céu estava
límpido, coberto de estrelas cintilantes e não havia nuvens ameaçando estragar seus
planos de quebrar as centenas de regras que fora obrigado a decorar durante muito
tempo. Só queria diversão naquela noite sem arrependimentos. O brilho do luar
banhava, com seu aspecto leitoso, o mar de telhados, oblíquos e retos, aplainados
e tortuosos, das inúmeras construções colossais e milenares de Paragon e Louk,
acuado junto à porta de entrada da taverna, se via obrigado a dar um novo passo
para o lado, toda vez que um de seus amigos irrompia pela portinha de carvalho.
Atabalhoados, os oito jovens se acotovelavam, espremidos e acossados por uma
multidão festeira, em polvorosa, que dominava o perímetro externo. Fantasiados,
usando máscaras espalhafatosas e roupas de cores extravagantes, a multidão
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cantava e dançava pelas ruas, jogando serpentinas e confetes mágicos e
multicoloridos para o ar, brindando aqui e ali, com garrafas de cerveja e vinho nas
mãos. Dragões elementais surgiam no ar e sobrevoavam por cima das cabeças de
todos. Coruscando em um vermelho vivo, soltavam rajadas de fogo contra os céus.
Subiam em direção aos telhados mais altos e se aninhavam nas torres, descendo em
uma espiral incandescente. E aquela caravana animada e barulhenta seguia pelas
ruas, por todo canto, arrastando qualquer um que estivesse no caminho, rumo ao
coração da cidade.
— O que é que está havendo? — crocitou Mark, tentando se fazer ouvir em meio
aos berros histéricos da cantoria da multidão.
— É o aniversário do governador, seu animal — gritou Jano de volta, depois de
um silêncio de quase três minutos, em que os oito acompanharam um homem
vestido de arqueiro chapar um longo e demorado beijo em uma mulher enquanto
enfiava a mão por debaixo de seu vestido de pavão, bem na frente deles.
— Ele está dando uma... festa? — questionou Mark novamente, ainda
embasbacado com a cena que vira.
— É o Baile Anual à Fantasia do Governador — retrucou Jano, enfezado. — Te
falei mil vezes sobre ele enquanto cruzávamos as Águas de Crispoles... mas eu
achava que seria amanhã. Creio que confundi as datas...
— Como sempre... — sibilou Ropher para Louk.
— Todos eles devem estar a caminho da Praça do Tratado — concluiu Jano,
soberbo.
— E o que nós ainda estamos fazendo aqui? — perguntou Louk para os outros.
— Ainda acho que sua ideia é uma loucu...
— Não me interessa o que você acha, Jano. Você acha que com essa multidão de
gente bêbada e fantasiada, alguém vai reparar que nós subimos na Torre da Magia?
Olha quantas pessoas estão na cidade hoje...
— É verdade! — responderam todos em coro, concordando com Louk.
— Mas eu estou com um mal pressentimento...
— Ah, agora você virou vidente? — questionou Louk, irritadiço, virando-se para
Gavor.
— Não, é que... talvez Jano tenha razão...
— Mais um que vai amarelar...
— Eu não vou amarelar!
— Já chega! — falou Louk. — Eu não estou obrigando ninguém a me seguir.
Estou fazendo isso por minha conta e risco. Nenhum de vocês é mais criança e eu
não sou pai de vocês. Quem não quiser me seguir, que fique. Ah, e aproveite e tome
conta do Herm porque ele está seguindo aquela loira ali.
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Ropher voou na direção de Herm e o agarrou pelo colarinho, bem a tempo de
impedi-lo de colocar as duas mãos nos peitos de uma loira fantasiada de ninfa das
florestas.
Desvencilhando-se da multidão agitada, empurrando um grupo de jovens que
cantava aos berros, erguendo garrafas de rum para o ar e quase atropelando um
casal que se comia em um beco adjacente à taverna, Louk partiu em direção à Torre
da Magia. Espremidos pelas caravanas fantasiadas e que entoavam velhas cantigas
da cidade, vinha Mark, Ropher, Bald, Dean, Gavor e, bem lá atrás, Jano, que ia
arrastando um desolado Herm, choramingando por não ter conseguido agarrar os
peitos da mulher-ninfa. Os oito seguiram pelo beco, se apertando entre a multidão
irrequieta, esquivando-se aqui e ali. Por inúmeras vezes, se enfiavam por baixo das
pernas de um sem fim de homens e mulheres de fantasias exageradas, esgueirandose
por onde dava, aproveitando cada nesga de espaço em que conseguiam se meter
até que se depararam com uma extensa, porém estreita ladeira coberta de lajotas
escuras. Ofegante de tanto se apertar aqui e ali, derramando suor em bicas e com a
gola da camisa empapada, Louk se pôs a correr. Não havia tanta gente na ladeira
quanto nas ruas em que passaram, somente duas mulheres de longos vestidos
rodados, caindo de bêbadas, se apoiavam nas paredes de uma loja de souvenires
fechada. Ambas riram histericamente e caíram no chão quando os oito seguiram
correndo — Herm riu de volta, tão alto e histérico quanto elas.
Banhados pelo luar e pelas coruscantes chamas no topo dos postes ao longo da
ladeira, Louk ergueu os olhos para o alto e ao redor de onde estavam, observando
a arquitetura da cidade e suas construções antigas. As sinuosas avenidas, ruas, becos
e vielas de Paragon eram cobertas de grandes lajotas cintilantes, lavradas em ônix
e, mesmo sendo uma cidade milenar, as pedras perfeitamente entalhadas e
esculpidas reluziam à luz do luar e das lanternas nos postes. Mesmo estando
completamente apagados e com as portas e janelas devidamente trancadas, as
dezenas de lojas, casarões e casebres, sobrados e palacetes no caminho, pareciam
despertados sobre o relevo escalonado dos morros e vales da cidade, como se
decidindo se seria a hora correta para adormecer ou não, acompanhando com
intensa curiosidade, os oito jovens que corriam desabalados pelas ruas, elucubrando
o velho ditado exaustivamente repetido por Jano de que Paragon nunca dorme.
Reiterava a antiga impressão de que a cidade era um grande organismo vivo e
pulsante.
— Para onde agora, Jano? — berrava Louk. A sua frente só havia lojas e outras
construções negras em constante subida e uma grande encruzilhada.
— Sempre reto! — gritou Jano de volta, sua voz quase um sussurro ofegante ao
longe.
As pernas de Louk latejavam de dor. Os joelhos estavam prestes a ceder a
qualquer instante. A ladeira íngreme não parava de subir e subir. Confiava em um
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ditado sempre repetido por seu pai de que tudo que sobe, uma hora tem que descer,
ansiando que, a qualquer momento, seus olhos estariam finalmente diante da
majestosa Torre da Magia.
Atravessou o cruzamento, enxugando o suor que escorria em bicas de suas
têmporas com as costas das mãos. Não havia uma viva alma que não fosse a dos
oito correndo obstinados. Contemplou os amigos de esguelha, se obrigando a ir o
mais depressa possível, quase morrendo de cansaço. Mark já não estava logo atrás
dele. Era quase o último, muito próximo de Jano que carregava Herm nas costas
— provavelmente desmaiado, de tanto beber. Ropher seguia confiante, com um
brilho travesso no olhar. Se existia alguém que poderia estar mais louco do que
Louk para subir na Torre e marcar aquele dia na história, este alguém era Ropher.
Desde criança, seu amigo esgalgado e de pele morena sempre foi o mais
inconsequente do grupo e o único que topava qualquer loucura sugerida por ele,
sem nem mesmo perguntar porque ou avaliar as consequências. Mesmo quando os
demais concordavam que alguma ideia era muito insana, ele sempre arrumava
meios para tentar convencer o restante do contrário. Bald, Dean e Gavor seguiam
atrás de Ropher, mas não com o mesmo fôlego do amigo. Quando Louk atingiu o
ponto mais alto da ladeira, ele estacou.
Do alto da viela íngreme, os olhos avistaram o esplendor refulgente da Torre da
Magia de Paragon, um dos símbolos máximos de toda comunidade mágica de Eirin,
o marco do Tratado de Paragon e um dos monumentos mais famosos do mundo.
Bem ao centro da Praça do Tratado, a luz flamejante de sua chama eterna de
nuances azuladas iluminava o perímetro de casarões e palacetes em seu entorno,
ofuscando todo e qualquer edifício ao redor, até mesmo o palácio do governador,
que se sobrepunha às demais construções em beleza e excentricidade. As pessoas
lá embaixo pareciam formigas aglomeradas ao redor de um monstruoso doce
reluzente. Imperando como um gigantesco farol, a Torre da Magia de Paragon
lançava seu fulgor em direção aos céus e sua chama resplandecente sumia na
vastidão da abóbada celeste. Dizia-se que das Torres da Magia de Paragon e
Cruisand a vida se originou, quer mágica ou não mágica e que aquele colossal
cilindro em chamas apontando para o alto emanava o poder mágico do núcleo que
havia nas profundezas do planeta. Contava-se também que as tais chamas eternas
poderiam dar plenos poderes a quem conseguisse absorvê-las e uma antiga lenda
dizia que, um dia, um poderoso guardião conseguiu absorver parte das chamas e
que somente assim ele conseguiu derrotar os gigantes e drows durante a Era das
Trevas, mas tudo isso não passavam de velhas fábulas. Louk jamais acreditou em
boa parte dessas histórias contadas por seus pais e principalmente pelos avós
quando era criança, contudo, mesmo assim, a magnitude e exuberância do Pilar da
Magia o fascinavam.
— Uau — exclamou Ropher, embasbacado.
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Um a um, os outros sete paravam ao lado de Louk no cume da ladeira. Exaustos,
arfavam ruidosamente e apoiavam as mãos sobre os joelhos, curvados de tanto
cansaço. Mas todos reagiam da mesma maneira quando erguiam as cabeças para o
horizonte: fascinação. Os olhos dos oito amigos vidraram no fulgor do grande
monumento e as forças se renovavam, diante daquele vislumbre tão magnífico.
— Agora, precisamos descer e marcar nossos nomes na história — crocitou
Louk, entusiasmado, enchendo os pulmões de ar.
Os oito se puseram a correr, de súbito, ladeira abaixo. Com a brisa da noite
golpeando-lhes a face e agitando suas roupas, alcançaram rapidamente a multidão
fantasiada que se dirigia, bebendo, cantando e dançando, em direção ao centro da
Praça do Tratado. Esgueirando-se por entre a aglomeração mais uma vez, eles
seguiam em fila indiana, abrindo caminho por entre as pessoas que abarrotavam
todo o círculo da grande praça. Louk seguia na liderança dos demais e, quando
terminava de se esquivar de um trio que jorrava jatos de água elemental para os
ares, sentiu uma mão puxá-lo pelo colarinho para um canto.
— Ei!
— Acho melhor nós desistirmos. — Era Jano, desta vez com uma expressão
assustada, berrando acima das cantorias da multidão.
Louk franziu o cenho mais uma vez.
— Você quer novamente estragar nossos planos? — disse Louk, exasperando-se
outra vez — Já disse e vou repetir: não estou te obrigando a vir comigo. Eu vou
fazer isso, você querendo ou não.
— Louk, deixa de ser burro. Dá uma olhada no que tem lá.
Com o dedo indicador esticado, Jano apontava em direção ao centro da praça.
Ao redor da torre fortificada que cercava e protegia a parte de baixo do grande Pilar
da Magia, Louk avistou um extenso cordão de isolamento formado pelos Protetores
Mágicos, o esquadrão de alquimestres que guardava a Torre da Magia. Equipados
com armaduras de quartzo negro e capacetes, caminhavam de um lado a outro em
sua ronda ao redor da torre, mantendo os olhos de águia pelo perímetro, afastando
qualquer um que chegasse perto de mais, para fazer exatamente aquilo que os oito
estavam dispostos a fazer.
— É melhor desistirmos — continuou Jano, meneando a cabeça. — Era loucura
de mais mesmo...
Contudo, os olhos de Louk permaneciam vidrados no horizonte, nos muros da
fortaleza ao redor da Torre da Magia. Havia neles um brilho descomunal ou talvez
o reflexo dos fogos elementais que explodiam pelos ares. Mas Jano conhecia aquele
olhar. Não era o brilho natural, refletido sobre as irises de quem admira explosões
artificiais acima de sua cabeça. O rutilar notório em seus olhos significava uma coisa
e Jano estremecia só de imaginar o que o primo iria sugerir a seguir, o que não
demorou muito para acontecer.
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— Tenho um plano!
Louk arrastou os outros sete para uma viela próxima. Formaram um círculo e
apuraram bem os ouvidos, acima de toda balbúrdia dos arredores, para ouvi-lo falar.
— É o seguinte — falava Louk, com a língua num canto da boca, tentando não
se esquecer de nenhum detalhe do plano — Precisamos nos dividir.
— Definitivamente, não. — Jano interrompeu, imediatamente.
Os sete encararam o amigo. Crispavam os lábios e seus olhos destilavam um ódio
mortal.
— Enfim, — Louk prosseguiu, ignorando Jano — como ia dizendo... Os
Protetores Mágicos... os Protetores... Eles estão cercando a Torre da Magia. Isso
dificulta um pouco nossos planos. Eles estão armados. Muito armados. Armados
até os dentes, colocando para fora qualquer suspeito que se aproxime demais do
perímetro dos muros.
“A minha ideia é muito simples: precisamos nos separar. Até porque, se oito caras
chegarem perto o suficiente deles, é bem óbvio que coisa boa não é. Logo,
precisamos adotar uma estratégia de guerra. De vida ou morte e...”
— Ele não consegue ser direto, né? — sibilou Dean para Mark.
— Eu ouvi isso! — exclamou Louk, comprimindo os olhos para o amigo.
— Desculpe.
— Então, onde eu estava? Ah, é. Vamos nos dividir ao redor da Torre.
Louk desenhou no ar, com sua magia elemental, um mapa da Praça do Tratado.
Com a Torre da Magia bem ao meio, fazia brotar de seus dedos pequenas linhas
sinuosas que serpenteavam, flutuando nos ares, e assumiam seus lugares como as
ruas e vielas do mapa de Paragon.
— A Praça é muito grande. Enorme, para falar a verdade, e nos arredores dela há
essas quinze ruas que convergem para a Torre. Eu preciso que escolham uma dessas
ruas e se posicionem. Ao meu sinal, nós oito sairemos ao mesmo tempo, na direção
dos guardas. Gavor e Bald, — E Louk apontou para os dois e em seguida para uma
viela de seu desenho flutuante — preciso que vocês criem uma distração neste
ponto. Pode ser uma explosão elemental, uma chuva torrencial, algo que chame a
atenção dos guardas. Só não me venham com um urso bestial porquê da última vez
que você fez isso, Bald, minha mãe quase morreu. Entendido?
— Ok — responderam os dois amigos, quase ao mesmo tempo.
— Mark e Dean, vocês dois podem vir por aqui — Louk apontou para outra viela
cintilante de seu mapa no lado oposto das de Gavor e Bald — e também precisam
criar uma boa distração. Mais uma vez, sem ursos bestiais ou qualquer outro animal
elemental. Certo?
— Certo, certo — responderam Mark e Dean, descompassadamente.
— Ropher, você vem comigo por aqui. — Louk apontou para uma rua próxima
ao palácio do governador. — Quando eles criarem a distração, nós dois vamos
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escalar os muros e deixar nossa marca no topo da Torre, em um ponto onde todos
possam ver.
— Perfeito! — exclamou Ropher.
— Ok — continuou Louk, desfazendo o mapa elemental. — Agora cada um
pode assumir suas posições e...
— Ei, calma aí. — Jano interrompeu, exasperado — Por que Herm e eu não
estamos no seu plano?
— Não sei se você reparou, Jano, mas tem pelo menos uns vinte minutos que
Herm está estirado bem ali.
Os olhares dos sete se voltaram para um canto onde Herm repousava, dormindo
com a tranquilidade de um bebê, aos roncos retumbantes.
— É, verdade. — Jano ponderou e continuou — Mas e quanto a mim? Porque
não estou em nenhuma rua, criando uma distração, subindo na Torre...?
— Você? — inquiriu Ropher, surpreso — Subindo na Torre?
Todos desataram a rir e Jano fechou a cara.
— É CLARO QUE SUBIRIA... SUBIREI...
— Jano, — falou Louk, interrompendo a crise de riso generalizada — nós
sabemos que você sempre dá para trás. Vai por mim, fique aqui e não deixe
ninguém, sei lá, sequestrar o Herm.
Louk sentia o ódio destilado nos olhares frívolos do primo, que acabou acatando
seu conselho e sentou ao lado de Herm, com os braços cruzados, aquém a toda
festa ao redor.
— Ok. Quando chegarem aos seus postos, desenhem as iniciais de seus nomes
no ar. Mas só executem o plano quando eu der o sinal. Lembrem-se: tudo o que
acontece em Paragon, fica em Paragon. Todos entenderam? Então, vamos!
Os seis saíram do beco em que se encontravam. Seguindo a ideia mirabolante,
cada par designado foi para um lado. Atropelando a multidão, esquivando-se por
entre as pessoas, eles seguiram sorrateiros na direção oposta à Torre, rumo aos
pontos orientados por Louk de onde deveriam ficar, até que fosse dado o sinal,
seguindo à risca o que mandava o plano.
Desviando-se como podia, Louk também rumava para o local combinado,
seguido logo atrás por Ropher. A adrenalina tomava conta de seu corpo e as veias
pulsavam com o ímpeto das sensações que o impeliam a prosseguir. Nem mesmo
a leve brisa que corria pela extensão da praça conseguia fazê-lo parar de transpirar.
Cachoeiras de suor jorravam de suas têmporas, por vezes invadindo seus olhos,
fazendo-os arderem e a grossa camisa verde de algodão grudava em seus braços e
nas costas. Passaram afoitos por um grupo de garotas fantasiadas de ogros e
trombaram com três anões agitando garrafões de cerveja escura de um lado a outro.
Louk e Ropher pararam derrapando no lugar marcado e aguardaram o sinal.
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Vislumbravam a numerosa multidão, entretida demais com as comemorações, as
cantigas e os fogos de artifício que reboavam pelos ares, contrastando com a imensa
Torre da Magia, reinando bem no centro da praça e os guardas reais atentos a
qualquer movimento suspeito. Não havia o menor sinal do que combinaram
minutos antes de alcançarem suas posições.
Um M e um D surgiram de súbito no céu, cintilando em um tom púrpura
fluorescente, em um quadrante da praça, à direita de onde estavam. Indicava que
Mark e Dean haviam chegado ao lugar marcado. Segundos depois, Ropher cutucou
Louk para um gigantesco G e um B, brilhando num verde vivo em outro ponto.
Gavor e Bald estavam em suas posições afinal.
— Ok. — Louk respirou fundo, com o coração a mil. — Pronto?
— Nasci para fazer isso — crocitou Ropher, sacudindo as palmas das mãos e
estalando os dedos.
— Sem pressa, sem pressa. Ao meu sinal...
Uma fumaça azul subiu até os céus, emanando das mãos de Louk. Um grande L
e um R se desenharam, reluzindo acima das cabeças de todos. Admirados com o
brilho de duas letras aleatórias, uma série de eventos bizarros se desenrolou em
cascata.
Ao mesmo tempo em que Louk e Ropher dispararam por entre a pessoas em
direção à Torre da Magia, um monstruoso urso escarlate surgiu no meio da
multidão. Gigantesco, com olhos vermelhos e assassinos, observando as centenas
de homens e mulheres fantasiados, ele soltou um urro ensurdecedor, com os braços
em riste e garras afiadas, o que foi suficiente para fazer sumir com toda e qualquer
cantoria ao longo da praça. No lugar de música e alegria, gritos e berros
desesperados ribombaram de onde o urso apareceu, instaurando um caos
generalizado no quadrante de Gavor e Bald.
— Mas qual a parte do ‘não faz um urso elemental’ o Bald não entendeu?
Contudo, nem bem terminara de concluir sua frase, correndo na contramão das
pessoas desesperadas ao redor da praça, uma serpente verde, colossal e
incandescente, se assomava do quadrante oposto ao de Gavor e Bald. Erguia-se
aterradoramente contra a multidão, com olhos como mínimas fendas ameaçadoras
e dentes afiados à mostra. A serpente agitava com ferocidade o chocalho no
extremo de sua cauda. A aglomeração do outro lado da praça se atropelava, gritando
de forma histérica, desesperados para fugir da presença da serpente bestial que não
parava de se esticar, preparando-se para dar o bote.
— Genial. Era disso mesmo que precisávamos. Por que não pensamos nisso
antes? Faltava mesmo mais uma besta elemental para nos ajudar.
— Ei, Louk — gritava Ropher, enquanto tentava continuar seguindo o amigo,
no meio da multidão agitada que se dispersava na direção contrária. — Parece que
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deu certo. Os Protetores Mágicos daqui estão correndo para enfrentar as bestas
elementais.
Ropher estava certo.
Os protetores mágicos, próximos da rua onde antes estavam, partiram,
desesperados e assombrados, disparando bolas de fogo e rajadas de vento e gelo,
na direção do urso e da serpente gigante que ameaçavam a multidão.
Parecia que o plano dera certo.
Não saíra exatamente como queria. Não eram bem duas bestas elementais se
assomando contra todo mundo o que ele imaginava, quando pediu que seus amigos
elaborassem uma distração. Ao menos, a mágica de seus amigos afugentara os
guardas de seus postos, deixando o caminho livre para que pudessem subir na torre.
Só não sabia por quanto tempo seus amigos conseguiriam controlar as feras
elementais, antes de serem descobertos.
— Temos que ser rápidos — inferiu Ropher, lendo os pensamentos de Louk. —
Não acho que Gavor e Bald tenham energia para sustentar aquele urso por muito
tempo.
— Sim — berrou Louk, desviando de dois caras com orelhas pontudas falsas e
perucas loiras, fantasiados de elfos. — Vamos por ali.
Apontando para um canto onde não havia tanta gente, Louk e Ropher se
lançaram sobre os muros da fortaleza que cercava a Torre da Magia e iniciaram a
escalada rumo ao ponto mais alto, subindo pelas fendas e lacunas das pedras do
paredão.
— Já tem ideia do que vai escrever... ou onde...?
— Talvez — falava Louk, escalando as pedras farpadas do grande muro. — Tem
que ser lá em cima, de frente para a janela do governador. Ele tem que ver nossa
marca para saber que nem os Protetores Mágicos conseguem nos parar.
— É isso aí! — berrava Ropher, entusiasmado.
Os ventos fortes agitavam os cabelos ruivos de Louk. A vista panorâmica da
cidade de Paragon era estonteante da altura em que alcançara. As cadeias de morros
e vales em constante subida e descida, as casinhas antiquadas de telhados oblíquos,
os palacetes e casarões suntuosos dos nobres paragoneses e as demais construções
esplêndidas, banhadas pelo brilho leitoso do luar. Inclinando a cabeça, viu que as
luzes dos cômodos do palácio do governador estavam todas acesas. Era a garantia
de que o homem mais importante de Paragon estava presente para registrar aquele
momento ímpar. Então, percebeu que um estranho silêncio pairava no ar, quando
ambos estavam próximos do ponto mais alto da fortaleza.
— O que vocês estão fazendo aí? — gritava um dos guardas lá de baixo.
O urso e a serpente elemental sumiram sem deixar vestígios e a multidão
aterrorizada se atropelava, dispersa, fugindo por todas as ruas e vielas nos arredores
da praça. Lá do alto, Louk avistou Mark e Dean disparando por uma das ruas,
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empurrando e colidindo com uma centena de pessoas pelo caminho, enquanto um
grupo de Protetores seguia em seus encalços. Gavor e Bald irrompiam por uma
viela no lado oposto, aos trancos e barrancos, apertados por outra caravana festeira
que corria no pandemônio que havia se instaurado, com uma tropa de guardas logo
atrás deles, lançando magias que pipocavam por todos os lados, tentando detê-los.
No centro da praça, quando quatro guardas estavam prestes a perseguir os fujões
que conjuraram um urso e uma cobra, um deles girou a cabeça e olhou para o alto.
— Rápido. Ali. Peguem aqueles dois vândalos lá em cima!
Disparando como os rojões dos fogos de artifício, mas dessa vez em direção ao
chão, Louk e Ropher desistiram de subir. Regressavam às ruas de lajotas vazias nos
arredores da Torre da Magia, pondo-se a correr, sem hesitar, para não serem presos.
Quatro protetores mágicos cruzavam a grande praça no encalço dos dois, gritando
e lançando magias na direção deles.
— Vai por ali, que eu vou por aqui!
Ropher se esgueirou para uma viela no exato segundo em que Louk deu a ordem,
correndo sem ousar olhar para trás. Louk avistou dois dos protetores mágicos
acompanharem o percurso de seu amigo, em alta velocidade, enquanto mantinha o
foco em seu trajeto de fuga improvisado. Um misto dos brados de ordem dos
guardas da Torre invadia seus ouvidos, mandando-o parar imediatamente e se unia
aos gritos aterrorizados da multidão fantasiada da cidade, ainda assustados com os
monstros elementais. Apesar de Louk se obrigar a disparar por entre a aglomeração
de fantasiados fugitivos correndo a esmo, a adrenalina e o calor do momento
dominavam seu corpo, o que lhe dava ainda mais energia para continuar sua rota
de fuga, mesmo não tendo tanto certeza se os joelhos contribuiriam com essa
jornada.
Alcançou uma dezena de homens e mulheres fantasiados que se escondiam entre
os prédios das vielas e travessas paralelas à rua por onde seguia. Os cabelos de Louk
se eriçaram assim que mergulhou em um dos muitos becos: uma imensa bola de
fogo lançada por um dos protetores acertara um dos prédios, explodindo uma das
colunas do edifício. Um dos escombros quase não o derrubou por muito pouco.
Subindo por uma ladeira íngreme, Louk contemplava os protetores mágicos
obstinados, bem atrás dele. Precisava urgentemente despistá-los. As pernas
cansadas uma hora iriam ceder ou talvez seus pulmões explodiriam, de tanto
arquejar. A energia que restava ia aos poucos se exaurindo e uma dor lancinante
brotava no fundo de seu estômago: não sabia ao certo se de fome ou de medo.
Uma série de becos e vielas surgiu em seu percurso e Louk se embrenhava em
cada um deles, respirando ruidosamente, na tentativa desesperada de tirar os
guardas de seu caminho, sem ter a mínima noção de onde ia parar ou para onde
estava indo. Precisava de tempo, para reunir novamente os amigos, que seguiram
cada um por um caminho, e pensar em como iriam se livrar dessa enrascada.
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Vislumbrava Jano rindo-se, satisfeito, em sua mente, com a nímia expressão de “eu
te avisei”, segurando um Herm ainda desmaiado de bêbado.
Sacudiu a cabeça, tentando tirar do imaginário a imagem nefasta que insistia em
permanecer por lá, mas ainda em dúvida se Ropher, Gavor, Bald, Mark e Dean
estariam bem ou se os protetores mágicos os tinham alcançado.
Os guardas começavam a exalar a mesma exaustão que o abatia, mas não
deixavam de persegui-lo pelos caminhos insanos que tomava e, depois de subir por
uma nova ladeira íngreme, Louk dobrou em outro beco, dessa vez em constante
descida. Cortou por um grande portal e embrenhou-se em outra viela, disparou por
um beco extremamente estreito e quase passou por cima de um gato preto e, no
segundo em que estava prestes a adentrar uma viela sinuosa, sentiu o pé tropeçar
em alguma coisa. Projetando-se diretamente contra o chão, rolou por alguns metros
pelas lajotas ásperas até que sua cabeça colidiu, por fim, em um enorme paredão
com um baque oco.
A vista turva e uma dor de estremecer o cocuruto, Louk tateou o chão. O mundo
rodava ao redor e ele não conseguia firmar os pés e se levantar. Apurou a visão e
vislumbrou o que parecia uma mão estendida em sua direção.
— Você está bem?
Uma voz serena arguiu. Titubeou em esticar a própria mão, imaginando se não
havia mulheres entre os protetores e se uma delas não estava oferecendo ajuda para
poder prendê-lo. Assim que seus olhos focaram o mundo novamente, ele a viu.
Um rosto angelical se iluminou em meio à dor lancinante na cabeça e nos
músculos retesados por correr tanto. De semblante alvo como a neve e delicado
como uma pluma, as tenras bochechas rosadas contrastavam de uma forma
estonteante com seus olhos castanhos escuros que brilhavam intensamente. Não
estava certo se possuíam luz própria ou se a mente fora tão afetada que enxergava
um brilho vivo no fundo daqueles grandes olhos de cílios perfeitos, tão abertos em
uma expressão de profundo espanto e preocupação. O nariz era redondo e
pequeno, graciosamente esculpido em um rosto perfeito de queixo quadrado e
feições permeadas por uma seriedade ímpar. Os lábios desenhados se moviam,
como se ela quisesse perguntar algo, mas ainda não conseguisse. Quem sabe era seu
estado deplorável, encharcado de suor e estirado sobre o chão que não permitiam
tal criatura esplendorosa formular qualquer questionamento. Os cabelos castanhos
e ondulados, balançando com suavidade com a leve brisa davam o toque final
àquela obra de arte que se apresentava a sua frente. Não era a primeira vez que os
via. Visitavam Amistelar ou Frandar, Líria e Zavir, os reinos vizinhos com
frequência, para tratar de assuntos relacionados ao tempo, os quais ele nunca
conseguiu — ou quis — entender. Possuíam uma característica marcante, além da
rara beleza e da longevidade: as orelhas pontudas. Ela era uma elfo. A mais linda de
todas que ele já vira, sem sombra de dúvidas.
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— Será que ele está ouvindo? — inquiriu, preocupada, virando-se para trás.
Uma comitiva de elfos a acompanhava, observando Louk caído com o mesmo
espanto que ela sustentava em sua face. Altos, belos — mas não tanto quanto ela
— e de orelhas pontudas, todos vestiam longos roupões reais dourados, finos
lenços no alto de suas cabeças e nos pescoços e com mantas cintilantes drapejando
seus ombros, além de tiaras brilhantes de joias raríssimas. Arabescos e outros
desenhos, que deviam significar alguma coisa na cultura dos elfos, estampavam as
bochechas e testas de todos eles, em um verde esmeralda extremamente brilhante.
Repousando acima dos cabelos castanhos da elfo a sua frente, um diadema cravado
de rubis cintilava à luz do luar.
— Estou... sim... — respondeu Louk; o maxilar latejava de dor.
— Acho que você tropeçou — dizia ela, muito cordata, deixando escapar um leve
sorriso — e colidiu diretamente com este muro.
— É... — respondeu Louk, levantando-se, enquanto ela o ajudava a se pôr de pé.
— Eu...
— Ali está ele!
Além da comitiva de elfos que os cercavam, os protetores mágicos haviam
encontrado Louk. Ainda sendo socorrido pela bela elfo, que o ajudava a se
recompor, os demais elfos ao redor viraram-se, assustados e curiosos com o grito
repentino dos guardas. Louk balançou a cabeça, mas só conseguia enxergar uma
única opção para se ver livre da prisão iminente.
Os guardas se assomaram por entre os elfos com voracidade, empurrando dois
deles para os lados, ofegando ruidosamente, banhados de suor e sedentos para pôr
as mãos no delinquente bem diante deles. Louk agiu mais rápido que seus captores.
Agarrou um dos braços da elfo que o amparava e se postou atrás dela, fazendo-a
de refém.
Todos estacaram em suas posições de imediato. Os dois elfos que foram lançados
ao chão se colocaram de pé, com os olhos arregalados para a cena. Um deles
desmaiou segundos depois, chocando-se com estrépito no chão do beco. Os
guardas estavam atarantados e instintivamente puxaram as espadas da bainha,
fazendo crepitar em suas mãos pequenas chamas elementais. Outros três elfos da
comitiva, que ainda permaneciam em pé, tremiam dos pés à cabeça e se espremiam
para trás dos protetores.
— Qualquer movimento e eu mato ela! — disse Louk e de uma de suas mãos
uma chama azulada surgiu.
— Enlouquecestes, por acaso? — vociferava a elfo feito refém — Como ousas
fazer tal coisa?
Mas Louk não ouvia o que ela dizia. Preocupava-se com o movimento dos
protetores mágicos, tensos, com as mãos arraigadas às suas espadas e com a própria
liberdade em risco. A despeito dos elfos assustados ao redor, eram dois guardas a
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postos contra ele sozinho. Estava em desvantagem. Um movimento errado e não
sairia do beco com vida.
— Não ousem fazer nenhuma gracinha ou eu mato a... a... a...
— Sequer sabeis quem sou?
— Não, eu...
— Não, não sabes. — E ela sorria, satisfeita, mesmo não estando em posição
favorável.
— É claro que sei — argumentou Louk, exasperado.
— Não, tu não s...
— Ora, parem de discutir. Ela é Dhara Lovrens, a sacramentadora do octaedro
de Hegemonia, seu idiota! — crocitou um dos protetores mágicos, impaciente.
Dhara fuzilou o guarda com os olhos, enquanto Louk arreganhou um largo
sorriso.
— É claro que é. Uma sacramentadora de primeira linha — falou Louk, abrindo
um sorriso de orelha a orelha — Agora, sugiro que guardem suas espadas ou mato
ela na frente de vocês.
— Não tendes tamanha coragem e presunção para tal! — exclamou Dhara,
lutando para se livrar dele.
— Senhora, não testai a loucura deste humano — disse um dos elfos da comitiva
— Ele é deveras tresloucado... ou pelo menos parece...
— É isso aí — dizia Louk, a mão com a chama elemental para cima, tremendo
enquanto apontava de um guarda para outro. — Não me provoquem. Eu sou
louco, ouviram?
No silêncio breve que se fez, na tensão entre Louk e Dhara, a comitiva de elfos
que a acompanhavam e os dois guardas prontos para atacar, o jovem ruivo avaliou
as possibilidades de fugir dali. O beco em que estava encurralado era apertado,
iluminado pelo brilho de alguns archotes e da fraca luz da lua que entrava por entre
os edifícios. Atrás da comitiva e dos guardas, dois palacetes de mármore, de
telhados oblíquos e escarlates, com janelas altas de vidros escuros se assomavam
contra a escuridão da noite, mas foi no gigantesco muro do prédio em construção
em que estavam escorados que ele vislumbrou a saída de que precisava.
A chama azulada na palma da mão de Louk serpeou para o alto em um
movimento ligeiro e se converteu em uma fumaça densa e negra que espiralou na
direção dos guardas como um furacão indomável, fazendo-os caírem por cima dos
elfos acuados atrás deles. Rodopiando Dhara e soltando o seu braço, Louk agarrou
a elfo pela cintura, quase colando seu rosto no dela.
— O que estais a fazer? — gritava, cética com o que acontecia.
— Salvando a minha pele.
Uma corda em chamas brotou de chofre da mão livre de Louk, que disparou e se
enroscou em uma roldana no alto do edifício em construção, fazendo os dois
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voarem em direção aos céus, aos gritos desesperados de Dhara, avançando céleres
para o topo dos telhados.
— Só podes estar louco de verdade! — falava Dhara, tomando cuidado onde
colocava o pé.
— Hoje é meu aniversário — disse Louk, também pisando com cautela por entre
as telhas, torcendo para que nenhuma delas cedesse. — Não é muito legal ser preso
no dia do próprio aniversário, não é mesmo?
A sacramentadora lançou-lhe um olhar fulminante, que mesclava ódio e uma
pitada de medo.
O vento agitava as vestes elegantes de Dhara e ela tentava manter o equilíbrio no
topo do edifício, entre as poucas telhas fixas no extenso telhado inclinado. Louk
continuava tenso e inquieto. Lá de cima, observava os protetores mágicos e sua
insistência em capturá-lo. Iniciavam uma escalada por entre as armações de madeira
que serviam como andaimes para a construção, obstinados até as últimas
consequências. Era hora de buscar uma nova saída sobre o mar de telhas diante de
seus olhos e não demorou muito até que vislumbrasse um caminho para a salvação.
Agarrado à mão de Dhara como se seus dedos fossem raízes encravadas sobre a
terra, Louk fez sair uma finíssima corda azulada da ponta de seus dedos e ela
amarrou-se ao redor dos pulsos de ambos.
— O que é isso? — perguntava Dhara, aparvalhada.
— Eu sou a sua única chance de sair daqui... e você é minha única chance de fugir
daqui — disse Louk, encarando-a no fundo dos olhos — Venha e pare de reclamar.
Disparando pelos telhados, ouvindo o crack-crack das centenas de telhas
quebradas que deixavam para trás, com o vento frio do início da madrugada
agitando as vestes e cabelos dos dois, a elfo e o guardião corriam sobre os topos
dos edifícios e casarões, saltando de telhado em telhado, fugindo para longe do
alcance dos protetores mágicos que os perseguiam naquele instante, a todo custo,
tentando apanhar o fugitivo Louk e sua refém sacramentadora no pináculo das
maiores construções.
— Por acaso tendes nome? — perguntou Dhara, correndo e saltando, sem
conseguir se desvencilhar da mão de Louk, para o telhado de um sobrado onde
ficava uma importante loja de doces.
— Para que você quer saber? — questionava Louk, rindo, decidindo para qual
novo edifício deveriam seguir.
— Se porventura estás me sequestrando e, em tese e indiretamente, estou
livrando-o de uma iminente e inevitável prisão, não conjecturas que devo saber o
nome do meu... sequestrador?
— Conjecturas? Bem, talvez sim, talvez não. Não sei quais são suas intenções...
Ofegantes e suados, pulando e correndo por entre telhados, lajes e chaminés,
Louk observou que o número de guardas acelerando pelo cume dos edifícios ao
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redor, no encalço dos dois, havia mais que quadruplicado. Uma tropa implacável
os perseguia, lançando magias de fogo, de gelo, vento, rajadas de água, explodindo
telhas e algumas torres pelo caminho, fazendo tijolos e pedaços de vigas e colunas
voarem.
— Vestes de algodão e linho fino, um cordão e um anel real... — dizia Dhara,
correndo ao seu lado, enquanto o analisava dos pés à cabeça, sem deixar de prestar
atenção por onde seus pés passavam. — Com roupas e adornos tão caros, posso
afirmar que não és um plebeu qualquer...
Os dois saltaram para um palacete alguns metros abaixo, antes que uma bola de
fogo os atingisse. Parte do telhado explodiu, lançando telhas e escombros pelos
ares, assim que pousaram na laje mais abaixo.
— Esses guardas endoidaram? — inquiriu Louk, aparvalhado.
— Não duvido que vossa mercê tenha feito algo extremamente terrível para têlos
deixado assim, tão irritados...
— Digamos que eu tentei entrar para a história...
— ...desafiando-os para uma luta?
— Não, deixando minha marca na Torre da Magia!
Dhara deixou escapar uma leve risada irônica.
— Com a cidade apinhada de visitantes? Só podes ser louco mesmo... ou burro.
— Eu não estava sozinho. Tive ajuda — dizia Louk, zombando da cara da elfo.
— E o plano teria dado certo se...
— Se não tivesse dado errado — completou Dhara, erguendo uma das
sobrancelhas. — E agora estás a tentar fugir de uma legião inteira de protetores
mágicos altamente treinados, levando uma sacramentadora como refém. Deveras,
não sei dizer-lhe qual plano é pior.
Louk virou-se rapidamente para a elfo, comprimindo os olhos em sua direção.
— O plano era brilhante. Se meus amigos tivessem me ouvido, teria dado certo.
Agora, preciso arrumar um meio de escapar dessa furada.
— Imagino que tua família em Amistelar não ficaria satisfeita se soubessem que
tua estirpe fora presa, acusada de vandalismo a um patrimônio da comunidade
mágica e pelo sequestro de uma importante autoridade da Ordem dos
Sacramentadores...
— Como sabe que sou de Amistelar?
— O Leão Indômito cravado no anel que carregas o revelou — disse Dhara,
triunfante. — Então, és um Savya, Stanhorne, Gundorf ou Ottonis? Vais dizer-me
quem és ou terei de lograr êxito em descobri-lo sozinha?
— Para que quer saber? — questionou Louk, observando-a de rabo de olho,
sorrindo pelo canto da boca — Vai me denunciar? Ou será que está pensando em
me fazer uma visita na Austera Amistelar? E sabe de uma coisa, seu linguajar é
estranho, sabia? Parece uma velha falando.
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Dhara fechou a cara.
Pularam para outro telhado mais baixo e Louk sentiu cheiro de água salgada. O
cais devia ser ali perto. Não tinha se dado conta da direção que tomavam, ele apenas
corria para salvar a própria pele das magias lançadas pelos protetores mágicos,
impulsionado pelo frescor da madrugada, como se houvesse algo mágico no ar que
conduzia seus passos naquela direção. Até que ambos se viram de frente para um
gigantesco paredão, sem perceber, do principal forte à beira-mar de Paragon.
— Acho que você não tem mais para onde fugir — falou Dhara, quando os dois
estacaram de frente para a fortaleza colossal diante deles.
Ofegante, Louk entreviu uma dúzia de guardas irromperem por um corredor a
um canto de onde estavam, parando ao redor dos dois, as espadas para cima e as
mãos prontas para disparar magias elementais contra ele. Outra dúzia de protetores
mágicos surgiu no lado oposto, assumindo suas posições, também
desembainhando suas lâminas, conjurando bolas de gelo e fogo nas pontas dos
dedos. Estavam cercados por todos os lados.
— Afinal, meu recado foi compreendido...
— Como? — questionou Louk, virando-se para a elfo.
— Achaste que eu estava mesmo com o desejo de manter o fio de uma prosa
com sua pessoa? — perguntou Dhara. — Ao passo em que corríamos sem rumo
em sua jornada insólita, utilizei de meus poderes para fazer com que os ventos
guiassem nosso caminho até aqui. Quando percebi que tinhas adentrado no curso
da atmosfera, mandei um recado para os protetores através da vibração do ar até as
ninfas dos ventos. Elas se encarregaram de entregar a mensagem para o chefe da
guarda da cidade. Não tendes mais para onde fugir.
— Não há escapatória, filho. — O chefe da guarda surgiu entre os demais — Se
entregue agora mesmo ou sofrerá com as consequências.
Louk estava aparvalhado. Graças à elfo, estava encurralado ao pé do monstruoso
paredão sem saída. Os protetores mágicos os cercavam por todos os lados,
apontando suas armas e magias na direção deles, aguardando a decisão de Louk de
se entregar. Dhara permanecia presa a seu pulso pela corda mágica que lançou assim
que a sequestrou no beco e era a única coisa que não a impedia de sair correndo
dali e também de não ser atacado por todos os lados e obliterado pelos guardas.
Fora ludibriado pela mágica esquisita dos elfos. Devia ter suspeitado dos ventos
que pareciam tão agradáveis que o impeliam a seguir por ali. Mas como poderia
saber? Ela fora mais rápida e sagaz do que ele. Estava em uma sinuca de bico.
Precisava pensar e agir rápido, se quisesse sair dali.
— Não há escapatória — sibilou Dhara, sorridente. — Eles são muitos e atrás
de nós só há o mar...
Uma luz brilhou bem lá no fundo da mente escassa de opções do jovem guardião.
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Contemplou de relance o rosto em expectativa dos guardas ao redor, atentos a
todo e qualquer movimento seu e também o do chefe da guarda, com seu queixo
rígido e o olhar vidrado nele e na elfo a seu lado. Inspirou profundamente e o ar
carregado de sal queimou levemente suas narinas. O céu estava um tom de azul
mais claro, porém ainda repleto de estrelas e, em algum ponto no horizonte, sua
intuição dizia que o sol logo, logo nasceria. Ouvia as ondas quebrando contra a
fortaleza bem atrás dele e a brisa fria agitou seus cabelos uma última vez. Num
ligeiro movimento, Louk girou Dhara para seu colo e lhe deu um longo e vigoroso
beijo nos lábios. Cortando a fita mágica que prendia seu pulso no da elfo, ele a
encarou no fundo dos olhos, espantados com tal reação inesperada.
— É Louk!
— Como? — dizia, atarantada e sem fôlego.
— Meu nome é Louk, do trono dos Savya. Grave esse nome.
Dizendo isso, apontou as palmas das mãos abertas para o chão e delas surgiram
jatos espiralados de uma fumaça branca que o impulsionaram e ele saiu voando,
rápido como um balaço de canhão, em direção aos céus.
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Capítulo Sete
Entre Irmãos
Estalando os pés descalços sobre os degraus da tortuosa escadaria em espiral,
quatro crianças corriam contra o tempo. O suor jorrava em cascatas, empapando
suas roupas e com o coração a mil, subiam em direção ao topo da maior torre da
cidade, a do grande mercado.
— Se não formos mais rápido, não vamos conseguir vê-lo.
A torre do mercado era escura e úmida. Era uma construção muito velha, erguida
há muitas eras, quando Candorn ainda era reconhecida pelo seu simples entreposto
comercial à beira-mar e suas muitas minas de carvão inexploradas. Dezenas de
rachaduras se espalhavam ao longo da estrutura da torre e algumas davam arrepios
na espinha de tão profundas que eram e, claro, um emaranhado infindável de teias
de aranhas colossais, translúcidas, reluzindo a uma nesga de luz que entrava por
ínfimos vãos entre os antiquados blocos de tijolos no topo do edifício e os buracos
no telhado.
Estugados e correndo sem parar, os joelhos vacilavam nos últimos degraus. Um
misto de cansaço repentino e exacerbada excitação estampava o rosto de cada um.
Cansaço pelo pique ininterrupto desde as vielas da Rua Quinze, próximo ao porto,
passando pelas centenas de barracas e ambulantes em alvoroço no mercado,
desvencilhando-se das muitas galinhas e cabras em gaiolas e dos incontáveis
abacaxis, avelãs e laranjas em exposição nas barracas até aos tortuosos degraus da
velha escadaria da ainda mais velha torre. A inquietação incontida suplantava até
mesmo a fadiga que perturbava os joelhos das quatro crianças, pelo grande
espetáculo que estavam prestes a assistir. Esbarrando uns nos outros abruptamente,
estacaram no cume da torre, atropelando-se enquanto interrompiam suas corridas.
— Ai.
— Cuidado aí!
— O que está acontecendo?
— Diz para mim que nós chegamos, diz, por favor... Chegamos?
— Ainda não.
Os quatro estavam diante de uma rústica porta de carvalho, assolada pelo tempo
e pelas muitas intempéries que a afligiram.
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— A porta está emperrada — retrucou a líder do bando, após agarrar a maçaneta
e sacudi-la três vezes para baixo, com violência.
Encabeçando o grupo, a menina tinha a pele morena como um jambo maduro
recém-colhido e longos cabelos negros e encaracolados que batiam no meio de suas
costas. Usava um vestido vermelho, drapejado de pequenas pedras de um tom
esverdeado reluzente e calças bege com muitas manchas cinzentas, molhadas de
suor. O nome dela era Mashaine, a mais velha dos quatro e a segunda mais alta do
grupo, perdendo em estatura apenas para o último garoto da fila, esgalgado e
ofegante, ao pé do antepenúltimo degrau.
— Eu dou um jeito! — crocitou o segundo menino, se adiantando. Atarracado e
de cabelos cor de palha, arrepiados, ele arfava de uma forma esdrúxula.
Mais rápida do que todos, Mashaine meteu o pé na porta num solavanco
repentino e as dobradiças enferrujadas estalaram ruidosamente, antes de voarem
pelos ares e desabarem em queda livre no vão da torre. A velha porta de madeira
estatelou-se no lado oposto de onde estavam, caindo como o peso morto que era.
O sol a pino de meio dia invadiu suas retinas sem pedir licença, quase cegandoos
com seu fulgor, após dez minutos de uma exaustiva subida no negrume intenso
da velha torre. Os ventos cálidos do verão de Erthorgen, a capital de Candorn,
tinham uma característica peculiar: sempre traziam minúsculas partículas das areias
do litoral ao crepúsculo de cada dia. Por esta razão, quase sempre, os telhados das
casas mais baixas e até mesmo o pináculo das torres dos palacetes e do castelo real
estavam sempre cobertos de finíssimas camadas de uma areia tão fina e branca,
como se pequenos cristais migrassem das praias, toda noite, para cobrir a cidade
com um manto delicado e cintilante, como se nevasse em pleno verão. A este
fenômeno, nesta época do ciclo, dava-se o nome de Virações Cristalinas. Ali no
telhado, não era diferente.
Os quatro retornaram ao frescor das ameias do telhado do mercado, com as
vestes agitando à força do vento. Ofuscados pela claridade dominante, eles
apuraram os olhos e observaram um longo e sinuoso caminho à frente, atabalhoado
de tralhas como pedaços de madeira apodrecida e queimada pelo sol, telhas
quebradas e empilhadas e outras quinquilharias como velhos jarros destruídos que
alguém, algum dia possivelmente, tentou roubar, roupas esgarçadas que voaram de
um varal em algum canto e que, por um acaso, caíram ali e ali ficaram esquecidas;
todas cobertas de minúsculas camadas de cristais de areia das Virações.
— Rápido, por aqui. Lá na frente há uma vista espetacular — falou Mashaine e
todos se puseram a correr outra vez, seguindo a amiga.
A terceira do bando esfregou bem os olhos antes de retomar sua corrida. Lorine
era ruiva e queimada de sol, com sardas pequeninas e avermelhadas que tomavam
boa parte de suas bochechas. Enxergava o antigo telhado oblíquo do mercado
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dominando o lado esquerdo, enegrecido pelo tempo, com diversas telhas ausentes
e tantas bugigangas perdidas por ali quanto pelas ameias que percorriam naquele
momento e do outro, a visão de um mar de outras dezenas de telhados,
sobrepondo-se uns aos outros.
“Espero que essa vista seja realmente boa, porque daqui só vejo entulho e tralhas”
— Lorine pensava, enquanto os calcanhares latejavam de dor.
Mashaine seguia obstinada. Ofegando, uma pontada aguda despontava do lado
direito do estômago. Uma dor que sua mãe comumente chamava de “dor de correr”
e que acontecia justamente pelas bruscas corridas em que se metia ao longo das
ruas e vielas de Erthorgen, nas brincadeiras de pique-esconde com seus amigos. Ou
no pique-bandeira, em que era a maior recordista, por saber que havia uma
portinhola esquecida no Ourives da Rua Baixa, que quase nunca era usada e que
era a passagem ideal para o esconderijo secreto onde o grupo rival mantinha sua
bandeira. Quando perguntavam como ela conseguia encontrar a bandeira, sem que
os outros membros do grupo a vissem, ela se recusava a revelar seu maior segredo.
Assim, mantinha-se a maior campeã do jogo. Contudo, ela não estava metida em
nenhuma competição. O objetivo era muito maior desta vez.
Fora seu irmão quem falara daquele lugar e ele havia jurado, de pés juntos, que
das ameias do velho mercado estava a mais suntuosa vista de toda capital, quiçá até
mais deslumbrante do que a da torre mais alta do palácio do reino. Mesmo jamais
tendo pisado ali, ela acreditava piamente nas palavras dele, ainda que, de vez em
quando, suas maiores mentiras eram realmente convincentes. Precisava encontrar
logo um ótimo ponto de vista: o evento mais aguardado dos últimos ciclos em
Candorn estava prestes a acontecer e a paciência de seus amigos ia se esgotando
conforme avançavam.
Os quatro pularam por uma dezena de telhas quebradas e se esgueiraram por um
velho pedaço de madeira podre apoiado em uma chaminé, até que chegaram ao
local que tanto ansiavam. Naquele extremo das ameias, deixaram as telhas
enegrecidas dos velhos prédios da cidade e vislumbraram a gigantesca e suntuosa
Ágora do Princípio. Aos pés do palácio real, a praça era o marco histórico e um dos
principais monumentos do reino. Construída ao término da Grande Era das Trevas,
fora um presente dado pelos elfos de Vaelfar, quando ainda mantinham uma
relação amigável com os duendes artesãos de Pernítrulis. Uma obra de arte
magnífica e deslumbrante. Vinte e sete estátuas, dos últimos reis de Candorn, se
alinhavam perfeitamente, dispostas ao longo de uma praça circular, de calçamento
cuidadosamente trabalhado em topázio-esmeralda. O Corcel Alado, o símbolo do
reino, adornava seis mandalas esculpidas no chão ao longo do perímetro. No
centro, uma fonte prateada jorrava suas águas cristalinas em direção ao céu.
Uma multidão alvoroçada nos prédios ao redor e na extensa avenida lá embaixo
agitava pequenos chocalhos de madeira, que se enroscavam ao redor de seus pulsos.
92
Outra aglomeração, a um extremo do principal acesso à cidade, flamulava enormes
bandeiras verde e prata, com o Corcel Alado costurado a mão, agitando-se contra
o vento. Milhares de candornianos lotavam as ruas, atiravam fitas verdes e prateadas
pelos ares e soltavam fogos de artifício. Pessoas dos mais variados tipos, vindas de
todos os condados do reino e até mesmo de reinos vizinhos como Legur, Sincar,
Poyares e Turvoreio, gritavam em coros na avenida e agitavam os brasões de suas
nações. Uma infinidade de homens, mulheres, elfos, anões, duendes e centauros se
espremia sobre as sacadas dos edifícios ao redor, buscando encontrar o melhor
lugar para contemplar o que estava por vir. Os exércitos do reino ocupavam as ruas,
formando um cordão de isolamento bem no centro da avenida, pressionado pelas
multidões em êxtase. Todos, sem exceção, aguardavam com intensa expectativa
presenciar um marco lendário da história recente da Virtuosa Candorn: o retorno
de seu rei.
E tão repentina quanto inesperada, uma enorme gritaria eclodiu em uma
extremidade da avenida e as multidões que abarrotavam os dois lados da rua se
alvoroçaram freneticamente, pressionando ainda mais o cordão de isolamento da
guarda real, por um triz de se arrebentar, mas que ainda resistia à intensa agitação.
Mashaine e seus amigos se penduraram sobre as ameias e apuraram os olhos para
além do mar de telhados da praça.
Lá no final de onde sua visão podia alcançar, ele surgiu.
As pessoas ao redor gritavam em uma histeria tresloucada. Mesmo o calor intenso
da hora do almoço não conseguia deter a monstruosa aglomeração, celebrando com
imenso vigor sobre a principal avenida de Erthorgen.
Acompanhado de sua comitiva, Saldivar sentia o suor escorrer por baixo do
capacete. Correndo por suas têmporas, sumia vagarosamente em algum ponto da
barba grisalha. Havia tempos que não utilizava aquele elmo e nem mesmo a sua
velha armadura — que comprimia seu corpo de um jeito nada confortável e o
forçava a andar de peito estufado e barriga encolhida. Ambos, assim como a espada
que carregava na bainha de seu cinturão, foram presentes que recebera havia mais
de vinte ciclos, quando fora nomeado Guardião de Elstoen. Moldada em Vaelfar,
pela Forja Élfica, era um excelente e requintado trabalho de elfos artífices, forjado
em artuno puro e banhado em ouro. À época, suas olheiras não eram tão profundas
e o vigor da juventude era enorme. A magia fluía por suas veias e sentia-se capaz
de derrotar dez mil dragões, se fosse preciso. O que restava então era o cansaço,
uma enorme pança e a expectativa de ver o filho mais velho assumindo o posto que
lhe fora confiado há tanto tempo. Aos trotes do cavalo, e com o gosto de bile nas
papas da língua, Saldivar contemplava a enorme festa que o povo fazia nas ruas por
causa de seu regresso. Arriscava falar uma coisa ou outra com a multidão, mas a
armadura comprimindo suas banhas mal permitia respirar, por isto limitava-se a
93
arreganhar um sorriso simpático, cheio de dentes e a erguer a mão em breves
acenos.
Mashaine subiu em um beiral das ameias do telhado para poder contemplar
melhor, acima dos trilhões de papéis picados que voavam pelos ares, as bandeiras
colossais e pelos estrondosos e cintilantes fogos de artifício ribombando nos céus.
Além de sua armadura — que já não parecia tão boa para o físico avantajadamente
acima do peso, Saldivar exalava a fadiga dos ciclos. O tempo não fora nada
agradável com ele, castigando sua cútis negra: enormes linhas de expressão
ocupavam o topo da testa e as laterais de seu nariz bulboso. A barba grisalha estava
desgrenhada, com aspecto de malcuidada, como se ele jamais a tivesse penteado ou
mesmo passado um fio de navalha. Os olhos, porém, eram gentis. Cativavam à
primeira vista, mesmo com os profundos pés de galinha, e seu sorriso era sincero,
verdadeiro. Ele não era mais o mesmo guerreiro que seus pais tanto lhe narraram
em toda sua infância, o que via lá embaixo era uma sombra do que um dia fora e
que habitava o imaginário pelas histórias que tanto ouviu. Dentre os vários contos
a seu respeito, o que mais lhe impressionava era a Batalha de Amartarat, quando
Saldivar, sozinho, derrotou um Lobo Infernal monstruoso, explodindo-o por
dentro, obrigando um exército de bárbaros que tentava invadir Poyares a sair em
disparada do continente, de mãos abanando. Entretanto, a carreira de Saldivar fora
marcada não apenas pelos dias de glória como o herói da nação: a morte de sua
esposa por motivos escusos, quando seus filhos ainda eram muito pequenos e o
sumiço de Sâmia, sua irmã mais nova, eram partes conturbadas e mal explicadas de
sua história. À época, os burburinhos se espalharam pelas ruas e vielas dos
condados de Candorn e perduraram por muitos ciclos, mas se desgastaram com o
tempo, jamais tirando a admiração do povo por seu rei, que então retornava.
Acima das lendas e contos a respeito de sua vida e trajetória, o rei da família
Wullith retornava de forma triunfal, transmitindo uma felicidade patente aos olhos
de todos, comemorada com um entusiasmo vibrante.
O sol escaldante castigava seus cocurutos, quando Mashaine se empertigou ainda
mais nas ameias e levantou os olhos. Saldivar avançava lentamente, sendo
ovacionado por seu povo e pelos povos vizinhos, no topo de seu cavalo branco,
também adornado com uma armadura própria, carregando o brasão de Candorn
nos flancos. A menina mirou na outra ponta da avenida, bem no meio da Ágora do
Princípio, próximo ao chafariz, onde um palco havia sido montado.
Denotando uma impaciência incontida, os Drunírio e os Campwell, as duas
famílias de guardiões aliadas dos Wullith, aguardavam no extremo canto esquerdo.
Dizia-se que esta era a aliança mais antiga entre guardiões de toda Eirin e que
perdurava até os dias atuais, mesmo após as Batalhas Sombrias de Sahtrine, o último
grande evento que envolveu parte dos continentes e que expulsou os derradeiros
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minotauros sanguinários de Elstoen, Aladar e Eurodian, onde muitas famílias de
guardiões deixaram de lado o individualismo e se aliaram para formar os maiores
impérios da atualidade.
Bem no centro, sempre em posição de destaque nos eventos do reino, estava
Deelya Wullith. Corpulenta e costumeiramente mais espalhafatosa do que todos, o
longo vestido amarelo-manga drapejado de joias que exibia reluzia à luz do sol,
como se ela fosse um imenso farol cintilando no centro da praça. Ela não parava
de sorrir, arreganhando os dentes para todos, mantendo a pose empertigada, sem
deixar de transparecer um esgar afoito e uma leve nota de nervosismo em seu rosto.
Uma mão ajeitava os longos cabelos negros no topo da cabeça, enrolados como
uma cobra em seu coque justo e a outra cravava as unhas no ombro de sua terceira
filha, Layla, que pulava em seu lugar a cada novo aperto da mãe.
As quatro filhas de Deelya estavam ali: Talline, a mais velha e sensata das quatro;
Nidya, a saliente e tresloucada; a insípida Layla e Malya, a caçula. O esgalgado e
bebum Lorde Trawlin, marido de Deelya, se postava ao seu lado parecendo um
tanto entediado. Mashaine acompanhava os olhares buliçosos de Nidya para Cal ou
Chest Drunírio, os gêmeos, filhos do pujante Lorde Feizar. Nenhum dos dois
jamais dera bola para Nidya, mesmo com todas as tentativas da filha de Lady Deelya
de se jogar no colo de ambos. Ninguém sabia ao certo se era pelo fato de sua fama
de pervertida correr os quatro cantos de Elstoen ou se pelo interesse comum de
todos os jovens da realeza em Becca Drunírio, a exuberante filha mais velha de
Lorde Derrick, um dos membros mais antigos do Conselho dos Guardiões.
Longe de comparações, Becca era realmente a mais bela das damas do reino. Era
alta, de longos cabelos negros e encaracolados, pele morena e porte de Lady. Claro,
tanta beleza, definitivamente, herdada da mãe, Betine, prima de Saldivar. Porque,
entrementes, se havia algo que Derrick não herdara do clã dos Drunírio era a beleza:
era calvo, pançudo e tinha também um nariz esquisito, adunco, levemente torto
para a direita.
Por fim, na fileira dos Wullith, Drunírio e Campwell, não faltava ninguém.
Mastenion e Airis empinavam os narizes, com os três filhos à frente deles, como
era o costume em apresentações reais, bem ao lado de Deelya, Trawlin e suas filhas.
Lady Lolleene e Lorde Hallzer também marcavam presença, acompanhados dos
filhos. Lady Betine, Lorde Derrick e família também sorriam para a multidão. Como
de praxe, não poderia faltar também a megera Lady Janesse e seu inconveniente
marido. Ambos exalavam sua antipatia pelo povo e Mashaine tinha quase certeza
de que dos lábios de Janesse saía algum tipo de maldição para toda a “corja” ao seu
redor. Kevan, o filho mais velho do casal, também comparecia ao evento, a todo
momento lançando olhares para o trajeto por onde vinha Saldivar e para Becca, a
seis pessoas de distância dele. Lorde Callan Campwell também estava lá. O solitário
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general dos exércitos de Candorn portava o costumeiro esgar de duras feições, mas
em seu olhar cansado, havia uma felicidade verdadeira pelo retorno de seu rei.
Quanto mais Lorde Saldivar se aproximava da Ágora do Princípio, mais
empertigados ficavam os Drunírio, os Wullith e os Campwell e mais fortes eram os
gritos das multidões que abarrotavam as ruas da capital. Mashaine e os amigos
viram Lady Betine sair de seu lugar, pousar as mãos com o carinho de uma mãe
sobre os ombros de Vegor e Rudi e conduzi-los até o topo do palco, bem ao centro
da praça, bastante emocionada, e imediatamente voltar à companhia de seus filhos
e marido.
Esquecendo a afobação dos amigos ao redor, que brigavam pela melhor vista no
topo das ameias, Mashaine concentrou os olhos nos filhos de Saldivar, a frente de
todos na praça. Como eram parecidos e ao mesmo tempo tão diferentes. Parecidos
por possuírem muitos traços do pai: algumas pintas escuras abaixo dos olhos, o
modo como sorriam, puxando os lábios levemente para a direita, os olhos
marcantes e cativantes. Dizia-se que Vegor, o mais velho, era uma cópia autêntica
de Saldivar com a atual idade do filho: vinte e nove ciclos. Porte atlético, braços
robustos, cabelos curtos e encaracolados. Contudo, longe das atenções de todos, as
diferenças entre ambos eram gritantes.
Mashaine relembrava das muitas vezes em que desceu aos Campos de Ordanes
para levar almoço aos irmãos mais velhos e aproveitava esses momentos para
acompanhar o treinamento dos soldados. Entre os muitos guerreiros que duelavam
com espadas, arqueiros atirando flechas em alvos à distância, alquimestres e mestres
que aprimoravam suas magias em trincheiras, lanceiros em seus treinamentos de
guerra, ela o via. Enfurnado entre os soldados, fosse sob sol escaldante ou chuvas
torrenciais, Rudi permanecia empenhado. Ignorando o sangue real e a linhagem
nobre, o filho mais novo de Saldivar treinava junto com os demais, empunhando
espadas e escudos nas simulações de batalhas, atirando com arco e flecha,
rastejando sobre a lama ou nas brigas de fim de expediente, usando nada mais do
que os punhos. Mesmo com apenas vinte e dois ciclos de idade, sua força e destreza
eram impressionantes.
Num desses dias, Mashaine se escondera sobre a relva ao entardecer, bem
próxima a Rudi, quando avistou Lorde Callan vindo, trotando com seu cavalo, até
o ponto mais baixo dos Campos de Treinamento, lá onde a lama chafurdava nos
calcanhares. Ele desceu de sua montaria, tirou o capacete e sorriu para o que viu.
— Parece que está fácil de mais, não é, senhor Rudi?
Rudi levantou os olhos.
Sujo da cabeça aos pés, terminava de derrubar o sétimo soldado sobre o lamaçal
enquanto o sol se punha em algum lugar no horizonte. O lusco-fusco e a lama preta
impediam-no de reconhecer quem o abordava.
— Sr. Callan?
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— Sim, sr. Rudi. — Callan sorria, chapinhando suas botas sobre a lama. Analisava
o cenário com atenção. — Então é você quem está abatendo meus soldados ao pôr
do sol?
Rudi riu.
— Abatendo? Jamais. Apenas fiz uma aposta. Disseram que eu não era forte o
suficiente para uma luta mano a mano, sem magias. Prometi duzentos candolins para
quem me derrubasse primeiro!
— Deixe-me adivinhar, sr. Rudi, − E Lorde Callan fez uma pausa para contar os
corpos − este é o sétimo imbecil que não conseguiu obter duzentos candolins do
senhor. Estou certo?
Rudi limpou a lama do rosto e jogou o soldado desmaiado para longe do “palco”
da luta.
— Na verdade, não, sr. Callan. Este é o décimo primeiro que eu derrubo.
Somente estes sete quiseram uma revanche, os demais foram embora mesmo.
E Rudi arreganhou o sorriso torto tão parecido com o de seu pai.
— O senhor, por acaso, não saberia de alguém forte o suficiente para me derrotar
em uma boa luta, no velho estilo, por dezuentos candolins, saberia?
Lorde Callan levou a mão ao queixo e arqueou as sobrancelhas.
— Deixe-me pensar... Será que um legítimo guardião, o melhor espadachim deste
continente, quiçá de toda Eirin, general dos exércitos da Virtuosa Candorn e
herdeiro dos Campwell estaria a sua altura ou vossa realeza gostaria de alguém mais
poderoso?
— É. — Rudi fez um muxoxo, sorrindo com confiança. — Acho que o senhor
dá para o gasto.
E, enquanto Lorde Callan descalçava as luvas de couro e jogava o gibão sobre a
lama, falou:
— Mas, antes que eu lhe dê uma surra e te deixe completamente desmaiado, diria
mesmo semimorto e pague suas despesas médicas, e quem sabe um pouco de rum
para mim, com os duzentos candolins que ganharei de você, preciso que preste
bastante atenção para a lição que vou lhe dar hoje, ok?
— Lição? — Rudi se aprumava, os punhos já em riste aguardando o rival.
— Sim. — Lorde Callan também erguia os punhos.
— Qual? — perguntou Rudi, curioso.
— Jamais confie em ninguém.
Uma bola de lama voou de súbito sobre os olhos de Rudi.
O que Mashaine viu de onde estava foi deplorável. Lorde Callan massacrou o
filho mais novo de Saldivar, levando-o desmaiado em seu cavalo assim que a luta
terminou. Seguiu morro acima, puxando as rédeas de sua montaria, cantarolando
tudo o que faria com o que sobrasse dos duzentos candolins, assim que quitasse as
despesas médicas e o barril de rum.
97
Se as histórias que Mashaine conhecia de Rudi eram tão divertidas, as de Vegor
eram lastimáveis. A menina jamais vira Vegor de perto, não pelo menos durante o
dia. O primogênito de Saldivar não andava entre o povo, nem era do tipo que faria
uma visita ao grande mercado, aos campos de trigo ou algodão, ou mesmo aos
demais condados do reino para cumprimentar seus compatriotas, nem mesmo
treinar com soldados como fazia o irmão. Vegor não era do tipo que queria saber
algo sobre guerra, lutas ou treinamento ou mesmo, algum dia, tornar-se o futuro
Protetor de Elstoen. Das histórias que a irmã mais velha de Lorine contava, Vegor
só queria saber de uma coisa: farra. Numa dessas aventuras, que Mashaine e Lorine
ouviram, bisbilhotando através de uma fresta da janela, Vegor e seu fiel amigo de
festas e encrencas, Kevan, se embrenharam pelas ruas do Cais do Velho Farol, altas
horas da madrugada e sumiram por duas semanas. O palácio inteiro entrou em
colapso e tentou abafar o caso, afirmando que ambos haviam viajado até Anvor-
Elíada a passeio. Tudo mentira! Lady Janesse quase teve um infarto durante aqueles
dias e andava pela cidade desesperada e com grandes olheiras das noites sem
dormir, procurando pelo filho perdido. Diziam até que a sempre dócil Lady Betine
perdeu as estribeiras com Lorde Loubor e Lady Janesse e ameaçou dar uma sova
na mãe de Kevan se ela não parasse de lhe dar ordens para enviar incursões pelos
vinte condados à procura de seu filho e de Vegor. Um belo dia, no meio da
madrugada, os dois foram deixados aos pés da escadaria principal do castelo por
quatro misteriosas mulheres, completamente alcoolizados e seminus. Os boatos
diziam que o chefe da guarda real vira a cena, completamente estarrecido, e resolveu
abordar as mulheres antes que sumissem na escuridão da noite.
— Estávamos procurando por eles há duas semanas. Onde os encontraram?
— Nos bordéis do Cais — falou uma delas, abrindo um sorriso de dentes podres.
— Nos... bordéis? — O chefe da guarda arregalou os olhos. — Então, vocês
são...
— Prostitutas — responderam as quatro em coro.
O chefe da guarda levou a mão ao coração e chamou alguns soldados, que não
continham as risadas, para carregar um Vegor e um Kevan totalmente apagados
sobre os degraus.
— Peço a gentileza de não contarem nada a ninguém sobre este... este... momento
deplorável — suplicou o chefe da guarda, envergonhado. — Vocês sabem, eles são
da realeza e isso é...
— Claro que não vamos contar, bobinho — disse uma delas. Faltava-lhe um tufo
de cabelo no topo da testa. — Nossa boca é um túmulo.
Pelos dentes estragados das duas da frente, o chefe da guarda não duvidava nada
de que a boca de ambas fosse realmente um túmulo. E antes que fossem embora,
ele interpelou-as uma última vez, consumido pela curiosidade.
— Esperem... Há algo que ainda me intriga... Por que os trouxeram de volta?
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Elas sorriram e a loira de dentes podres da frente apressou-se em responder.
— Acabou o dinheiro deles, amorzinho!
Ainda observando a expressão dos dois irmãos, ansiosos e na expectativa de rever
o pai, o olhar altivo de Vegor e a expressão acanhada de Rudi, Mashaine tinha
certeza que, se um deles deveria assumir o posto de Guardião, o filho mais novo
do rei era o mais preparado de ambos, mesmo que isso contrariasse as tradições.
Saldivar alcançou o centro da Ágora do Princípio com dores no maxilar de tanto
sorrir e com o braço cansado dos muitos acenos para a multidão. O frenesi que
dominava os candornianos ao redor se intensificava e os coros de vivas e o
estardalhaço dos chocalhos ficavam mais ensurdecedores. Hallzer, Mastenion e
Derrick haviam deixado suas posições ao lado das esposas e filhos e se
posicionavam à frente, aguardando a chegada do rei, ao lado de Vegor e Rudi no
topo do palanque: Lorde Hallzer por ter assumido a coroa interinamente quando o
pai de Saldivar, o antigo rei, morreu, havia onze ciclos; não era dos mais queridos
regentes e nem mesmo um dos membros mais simpáticos dos Wullith, mas era
alguém frio para os negócios e que sabia conduzir as questões políticas de Candorn
com muita sobriedade; Lorde Derrick estava ali por ser o mais antigo representante
dos Wullith no Conselho dos Guardiões e também por ser quase um irmão mais
velho para Saldivar; era de longe o melhor amigo do rei; Lorde Mastenion era o
ministro de confiança de Lorde Hallzer e o conde do maior condado do reino:
Alziria; mas a grande maioria dos Campwell e Drunírio acreditava que ele gostava
mesmo era de estar em evidência, principalmente por quase ter sido cunhado de
Saldivar, na juventude. Mesmo tendo grandes responsabilidade em Alziria,
Mastenion e sua família mantinha residência no palácio de Erthorgen.
Desmontando do cavalo, Saldivar acariciou a crina de sua montaria uma última
vez. Removeu o capacete e o vento da tarde agitou seus cabelos grisalhos e
desgrenhados. O frescor da brisa tratou de apagar os últimos resquícios de suor que
escorria de suas têmporas e do pescoço e ele foi tomado por uma sensação de alívio.
O velho sentimento de aconchego o invadia e era sempre assim, toda vez que
retornava ao seu lar. Contudo, aquele dia era diferente. Havia um gostinho especial
depois de dois ciclos distante. Retornava para nunca mais ter de partir. Regressava,
triunfante, para assumir o posto que fora de seu pai e, antes, do avô.
Entregou o capacete a um oficial da guarda real e caminhou até onde estavam os
Wullith, os Campwell e os Drunírio, logo atrás do palanque. Cumprimentou Lady
Lolleene, a cunhada, e seus respectivos filhos, Wigan e Hal. Ainda que o tempo
tivesse adicionado algumas linhas de expressão e poucas rugas aqui e ali, ela
continuava exuberante. Mesmo sendo a caçula dos quatro irmãos, era a mais
parecida com sua falecida esposa, Lolla. Hal lhe apertou a mão com energia e um
largo sorriso, idêntico ao do pai. Foi aí que Saldivar se deu conta de como os ciclos
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passaram rápido: não havia nem muito tempo, recordava-se de vê-lo criança,
brincando com Rudi pelos corredores do palácio, correndo de um lado a outro.
Saldivar seguiu cumprimentando os demais. Recebeu um abraço sincero e
esmagador de Lady Betine, aquele que ela sempre lhe dava toda vez que voltava de
suas viagens. Deu dois beijinhos em Deelya, como de praxe, e avaliou como a
expressão aduladora da irmã de Derrick não mudara em nada e até parecia contagiar
as filhas mais novas, que o abraçaram com um entusiasmo um tanto exacerbado,
tanto que Saldivar sentiu a coluna estralar em três pontos diferentes. Passou pela
sua cabeça que aquelas meninas não podiam ser filhas de Deelya, sendo as quatro
tão belas, tendo pais tão bizarros. Guardou os pensamentos para si e seguiu com
os cumprimentos. Apertou a mão de Loubor e concluiu que Janesse continuava a
mesma rabugenta de sempre: empinava ainda mais o nariz exageradamente altivo e
denotava a velha expressão de insatisfação, sabe-se lá com o quê. Cumprimentou
Callina e Feizar e deu um abraço apertado no general dos exércitos de seu pai,
Callan, que ficou um pouco acanhado, mas logo lhe devolveu um abraço tão
verdadeiro e cheio de sentimento quanto o de Betine. Poucas vezes Saldivar o via
expressar-se tanto como naquele abraço. Por fim, Saldivar abraçou Lorde Danrel e
Teonar, respectivamente os reis de Turvoreio e Sincar, deu um beijo em Lady Yisi,
a monarca de Legur e apertou as mãos de Lorde Brenrar e Grenbolth, os reis de
Poyares e Mondrária. Virou-se para o palanque, enquanto o povo ao redor
continuava em êxtase, aos berros e vivas, aglomerando-se no centro da Ágora para
ouvir o novo rei na iminência de seu discurso. Vegor se aprumou e estufou o peito,
ao passo que Rudi não conseguia parar de encarar os próprios pés.
— Meus filhos! — exclamou Saldivar; seus olhos brilhavam enquanto
contemplava Vegor e Rudi. — Dois ciclos se passaram desde que tive de partir de
Candorn e quanta coisa mudou.
Rudi levantou os olhos para o pai e sorriu. A voz de Saldivar já não era mais a
mesma para ele: revelava estafa e o peso dos ciclos, mas ressoava também uma nota
de alívio; talvez fosse por, finalmente, abdicar de sua função como Guardião depois
de tanto tempo dedicado com afinco e distante de casa.
— Vegor!
Saldivar agarrou o filho mais velho e lhe deu um longo abraço.
— Como você está forte! — O rei contemplava o primogênito de alto a baixo.
— Vejo tanto de mim em você, quando tinha a sua idade...
Vegor soltou um sorrisinho maroto pelo canto da boca e as feições mudaram
para a velha expressão soberba e arrogante, toda vez que alguém lhe dizia parecerse
com o pai. Sendo o próprio Saldivar lhe falando isto naquele momento, os
trejeitos eram mais prepotentes do que nunca. Rudi detestava isso no irmão mais
velho.
100
— Ah, pai — falou Vegor, com uma falsa modéstia. — O senhor sabe o que
dizem: os filhos mais velhos sempre parecem mais com o pai...
Rudi revirou os olhos.
— Mas vejo que estás bem forte, meu filho. Pelo visto, tem treinado arduamente
para me suceder.
Rudi deixou um risinho escapar e logo sentiu um pisão de Vegor em seu pé.
— Claro, claro... — retrucou Vegor, estugado. — Malho todos os dias, tenho
torneado os braços e peitoral como pode perceber.
Saldivar deu dois tapinhas nos ombros de Vegor e apressou-se a abraçar Rudi
logo em seguida, afagando seus cabelos.
— Rudi, meu caçula! — Havia uma lágrima no canto dos olhos de Saldivar. —
Lembro-me de você tão pequeno e agora és um homem feito. Sorte a sua ter
herdado a beleza de sua mãe e não as minhas trágicas feições.
Foi a vez de Vegor soltar um risinho e Rudi pisar o pé do irmão.
Saldivar cumprimentou Lorde Hallzer na sequência, com um cortês aperto de
mão. O antigo regente sequer lhe sorriu, como de praxe. Hallzer era linha dura e
acostumou-se a esse jeito rabugento de ser. Mas, se o antigo regente fora tão
insípido, não se podia dizer o mesmo dos outros dois ao lado: Mastenion e Derrick,
seus velhos amigos, o abraçaram como se não o vissem há décadas.
O Guardião de Elstoen tomou o centro do palanque para discursar ao término
dos cumprimentos e uma explosão de comemorações retumbou das multidões. Os
fogos de artifício, os chocalhos, os papéis picados e as bandeiras a flamular se uniam
em uma festa de mil cores sobre as ruas da cidade. Saldivar abria os braços, todo
sorridente, festejando junto com o povo seu retorno em definitivo. Ao som de
trombetas da orquestra real, o silêncio finalmente pairou por toda Erthorgen para
que Saldivar pudesse discursar.
— Compatriotas candornianos, amigos de Poyares, Sincar, Turvoreio, Legur,
Nogaza, Mondrária e Anvor-Elíada, eu vos saúdo. É motivo de grande alegria
poder discursar a todos vocês e desfrutar do carinho e da hospitalidade com que
sempre me recebem em meu país. Apesar dos ciclos distante, defendendo nosso
tão amado continente, meu coração sempre esteve aqui, nessas terras acolhedoras,
com um povo de amor inestimável. Hoje, não regresso mais com a alcunha de
Guardião, mas agora como vosso rei!
Uma explosão de vivas e palmas dominou as multidões outra vez, sendo somente
interrompida pelas trombetas, mais uma vez, para que Saldivar pudesse retomar o
discurso.
— Em minha juventude, como manda a tradição em nossas terras, fui indicado
ao cargo de Protetor através de uma Sucessão Honrosa, onde meu pai abdicou de
seu posto em meu favor. Hoje estou aqui, com a sensação de dever cumprido e
com tudo que estava ao meu alcance sendo consumado. Estabelecemos a união
101
entre os reinos vizinhos e criamos um grande conselho para tratar dos assuntos que
permeiam a nossa eterna amizade. Com muito zelo e com o fervor de mim
requerido, tudo foi realizado para que a harmonia e o equilíbrio em todos os reinos
e condados fosse patente, apesar de minha imensa frustração em relação aos povos
bárbaros, que ainda assolam nossos reinos amigos, sendo impelido pelo Conselho
dos Guardiões a buscar soluções diplomáticas, mas que, infelizmente, ainda em
nada resultaram. Entretanto, apesar de todos os pesares que ainda nos assolam,
Elstoen e os Cinco Continentes vivem a expectativa de um momento histórico,
nunca antes concebido em nosso mundo: O Ano da Elegibilidade.
“Pela primeira vez, os Cinco Guardiões de Eirin ascenderão ao posto ao mesmo
tempo e o Conselho dos Guardiões celebrará a aurora desta nova era de paz em
nosso mundo com três grandes eventos, que acontecerão em Cruisand e Paragon,
os Pilares da Magia e em Gradia, a Cidade dos Guardiões.
“Como é sabido, o Conselho permite a livre escolha de cada continente na
indicação de seu futuro protetor, sempre levando em consideração o que mandam
as Três Leis Primazes de que precisamos garantir comissionar o nosso guardião
mais forte e preparado para a proteção dos mais fracos. Assim como foi entre mim
e meu pai, seguindo as antigas leis candornianas, orgulho-me em chamar aqui à
frente meu sucessor, meu primogênito: Vegor!”
Uma salva de palmas arrebatou as multidões, aplaudindo calorosamente. A
orquestra real entoou o hino nacional de Candorn acima dos assobios e aplausos,
enquanto Vegor estufava o peito o máximo que conseguia e caminhava em direção
ao local em que seu pai se postava. Saldivar abraçou Vegor mais uma vez,
emocionado, e seus olhos vislumbraram de relance uma expressão contrariada no
rosto de Rudi. Vegor ergueu o braço direito, saudando o povo, que explodiu em
novos vivas e fogos de artifício pelos céus. O silêncio instaurou-se, assim que o
primogênito de Saldivar pediu a palavra.
— Quero dizer que será uma honra para mim, pai, poder servir ao Conselho dos
Guardiões e ao povo de Elstoen como seu futuro Protetor, empenhando-me e
demonstrando a mesma garra que o senhor ao longo desses ciclos. — E antes que
o povo pudesse aplaudir novamente, Vegor concluiu, sorridente: — Claro, só
espero que eu não utilize a mesma armadura que o senhor, não é? Afinal, esta já
não serve nem para ferro velho.
Rudi revirou os olhos outra vez e levou a mão à testa. Kevan soltou uma
gargalhada reboante lá atrás, antes de ser atingido por um tapa muito audível de
Lady Janesse, sua mãe. Aparentemente, ninguém ao redor gostou muito da piada
infame de Vegor e Saldivar cortou o silêncio constrangedor que pairou no ar.
— Vaelfar sempre terá uma armadura nova e exclusiva, forjada para um novo
Guardião, meu filho. Não há com o que se preocupar.
102
O novo rei de Candorn ergueu a mão do filho para os ares e uma nova onda de
palmas encheu a praça.
— Neste momento ímpar que estamos vivendo, — prosseguiu Saldivar, assim
que as palmas diminuíram — para que não fiquemos somente em minhas palavras,
diante dos reis amigos de Candorn e dos Campwell, Wullith e Drunírio, a mais
antiga aliança entre famílias de guardiões, meu filho Vegor fará uma demonstração
do grande poder dos Wullith e, obviamente, de sua incrível magia, para que não
haja dúvidas de sua força e capacidade.
Vegor franziu o cenho e Rudi contraiu as sobrancelhas, sem entender.
A um aceno de Saldivar, de um canto extremo da praça, uma imensa jaula coberta
por um pano surgiu entre as aglomerações. Dando espaço para os soldados
passarem, eles arrastavam, com dificuldade, a gaiola de ferro que se agitava e
comprimia as quatro pequenas e frágeis rodas de madeira contra o chão. Urros
aterradores e intermitentes ecoavam, vindos debaixo do pano cinzento, cheio de
grandes manchas de musgo. Os berros assustadores enchiam os ares cálidos da
Ágora do Princípio, fazendo todos ao redor estremecerem. Era o único som que a
multidão, então emudecida e alarmada, se propunha a ouvir.
— Guardas, retirem o pano — ordenou Saldivar, com um enorme sorriso de
satisfação nos lábios.
Um dos soldados puxou o pano e uma intensa gritaria reboou pelos ares.
Assombradas, as milhares de pessoas ao redor trataram de fugir para longe da gaiola
da criatura grotesca que se apresentava. Um gigantesco troll urrava a plenos
pulmões, agitando as grades de sua prisão até quase quebrá-las ou arrancá-las dali
com as mãos enormes de unhas pontiagudas como lâminas mortais. Aparentava ter
quase quatro metros de altura e exibia dentes amarelados e afiados como pontas de
lanças, em uma expressão demoníaca. A baba verde e viscosa escorria entre os
dentes e pelos lábios, morrendo ora no chão de madeira da jaula, ora em sua densa
pelagem cinzenta. A criatura contida na jaula não estava nada satisfeita em ficar
enfurnada ali, limitada pelas grades e, para Rudi, o troll assassino comeria a multidão
ao redor em questão de segundos, se pudesse se soltar de suas cadeias.
— Compatriotas de Candorn, não se preocupem — berrou Saldivar, tentando
sobrepor a voz acima dos urros da nefasta criatura e do povo que fugia, assustado.
— Este simples troll que capturei em minha última viagem pelas colinas de
Turvoreio é irrisório para o poder de meu filho Vegor. Com um mero tostão de
seu poder, ele esmagará este monstro como se pisasse em palha seca.
Vegor arregalou os olhos para o pai. Rudi, lá atrás, também ficou alarmado.
— É... pai... — sussurrou Vegor e encarou a criatura berrando na jaula, os olhares
assustados do povo lá embaixo e, por fim, a expressão confiante de seu pai bem à
sua frente — porque o senhor não me avisou que faria essa... hum... surpresa? Eu
teria me preparado melhor e...
103
Saldivar franziu o cenho.
— Se preparar?
— Sim... é... pai... Sabe, eu teria...
Saldivar agarrou o rosto do filho de chofre e contraiu as sobrancelhas.
— Vegor, você está com medo?
— N-não, pai... claro que n-não, eu só... só...
Saldivar deu dois passos para trás e comprimiu os olhos, atestando o que
suspeitava.
— Você está com medo.
— Claro que não! — exclamou Vegor, inflando os pulmões.
E Vegor girou nos calcanhares no mesmo instante. Desceu do palanque e
caminhou em direção ao imenso troll, torcendo para que ninguém reparasse em sua
nítida expressão de terror.
— Soltem a criatura! — berrou Saldivar, cheio de orgulho do próprio filho.
Vegor cruzava a praça, os braços arqueados e o medo estampado em seu rosto,
quando os soldados puxaram as correntes que prendiam a gaiola e a multidão ao
redor silenciou. Prendiam a respiração em grande expectativa. A porta da jaula
despencou sobre as lajotas da avenida principal de Erthorgen com um baque surdo
e o troll estava finalmente livre, com seu olhar assassino e dentes à mostra, diante
de um amedrontado Vegor que o encarava, caminhando em direção a ele para
enfrentá-lo.
Num infinitésimo de segundo, o inesperado aconteceu.
O gigantesco troll rugiu e os dentes afiados ficaram ainda mais aterradores,
cuspindo sua baba gosmenta em todas as direções. Vegor estacou, protegendo o
rosto e soltou um grito histérico de terror. No instante seguinte, o primogênito de
Saldivar voou pelos ares e caiu desmaiado sobre o chafariz no centro da praça, com
o incrível golpe que levou da criatura.
O que aconteceu a seguir foi ainda mais aterrador.
As multidões ao redor gritaram desesperadas e começaram a correr de um lado a
outro, tentando fugir da criatura demoníaca solta nas ruas da capital. Os soldados
desembainharam suas espadas e lanças, tentando conter o monstro que mantinha
seus olhos frívolos no único ser que ela queria trucidar e arrancar até a última tripa:
Vegor. Saldivar permanecia estupefato, estacado aos pés do palanque em que havia
discursado, contemplando a cena sem querer acreditar. Mastenion, Derrick e
Hallzer quase faziam os olhos saltarem das órbitas, tamanha era a descrença no que
viam. Os demais reis vizinhos e os Campwell, Wullith e Drunírio permaneciam
boquiabertos, assustados e embasbacados com o pandemônio a sua frente.
O caos estava instaurado.
Agitando seu poderoso braço peludo, o troll derrubou o esquadrão de lanceiros
que tentava jogá-lo novamente para a jaula como se fossem pedaços de papel. Os
104
arqueiros corriam de um lado a outro e já se posicionavam em pontos estratégicos
para abater a fera e os espadachins contemplavam suas espadas se partirem ao meio
quando tentavam cravá-las sobre o couro intransponível da criatura. A aglomeração
ao redor se dissipava, com as multidões correndo para o mais longe possível de
onde o monstro atacava. Mas o troll não queria saber de ninguém, seus olhos se
concentravam em Vegor. Avançava, implacável, por entre os soldados que
tentavam, inutilmente, contê-lo.
O troll havia derrubado uma legião de espadachins que o impedia de seguir até
seu alvo, quando algo ainda mais inesperado ocorreu. Prestes a dar o último golpe
em Vegor, um imenso braço de pedra se chocou violentamente contra os punhos
em riste do troll assassino, fazendo-o ricochetear e tombar para trás, destruindo o
chão de lajotas.
A gritaria ensandecida desapareceu e deu lugar a um silêncio absoluto e repentino.
Olhares curiosos se voltaram para a frente do chafariz, de onde a criatura fora
arremessada. Ninguém ao redor acreditava, exceto Mashaine que, do alto do
telhado do velho mercado, assistira tudo: enquanto o troll se preparava para esmagar
Vegor, ainda desmaiado e ensopado dentro do chafariz, Rudi voou do palanque e,
com sua magia, conjurou um braço de pedra colossal que colidiu instantaneamente
com os dedos nodosos da criatura.
Mas o troll ainda não estava morto.
Consumido pelo ódio, o monstro encarava seu mais novo alvo. Rugiu contra os
céus, rilhando os dentes, expelindo ainda mais saliva viscosa, se assomando em
direção a Rudi com toda fúria do mundo.
Rudi mantinha a calma, aguardando o ataque iminente.
Lady Deelya correu para tapar os olhos de Nidya e Malya; Dana e Layla
suspiravam com a atitude corajosa do irmão de Vegor.
O troll avançou mais uma vez na direção de Rudi. Vegor havia sumido. Despertara
do desmaio e desaparecera do chafariz, para algum lugar muito longe do monstro
e de toda aquela confusão.
Voando em direção aos céus, Rudi se desvencilhou do golpe mortal da criatura,
que tropeçou no beiral da fonte e caiu sobre o chafariz. Encarando o monstro, o
filho mais novo de Saldivar ergueu os punhos.
— Ei, idiota, eu estou aqui — gritou Rudi.
Virando-se em direção ao garoto, a criatura berrou outra vez. Pulou da fonte de
volta às ruas e correu novamente para atacar Rudi, em uma nova investida.
O jovem guardião esperou. O medo tentava dominá-lo, mas ele não podia deixar
que a criatura fizesse um estrago com tantas pessoas ao redor. O monstro fazia o
chão tremer com suas pisadas.
Aguardou mais um pouco.
105
O troll seguia célere, ribombando o chão de lajotas e mostrando as garras e dentes,
salivando sem cessar.
Rudi estava sereno e permaneceu estático, esperando.
E num giro rápido, quando o troll estava a centímetros de atingi-lo, dois punhos
de fogo elemental abissais surgiram no ar e prensaram a cabeçorra da criatura,
nocauteando-a instantaneamente. O monstro apagou e tombou sobre a praça,
estremecendo o chão.
Ao redor, ninguém acreditava. Diante dos pés de Rudi, a criatura jazia, desmaiada,
enquanto ele arfava ruidosamente. Fora uma completa loucura, mas seu plano afinal
dera certo.
Um segundo de silêncio e estarrecimento invadiu a Ágora do Princípio.
Era isso mesmo? O filho mais novo de Saldivar abatera um troll das montanhas?
Descrentes com o que viram, uma explosão de vivas, uma saraivada de fogos de
artifício e esfuziantes salvas de palmas encheram os ares. Saldivar estava cético, bem
como Mastenion, Hallzer e Derrick, ainda boquiabertos e embasbacados. Mas,
naquele momento, o povo aclamava a plenos pulmões e em uma só voz o nome de
seu novo e preferido Guardião: Rudi Wullith.
106
Capítulo Oito
Conflito à luz de velas
Um vento forte assoprou, assobiando sobre as copas das árvores e agitou seus
cabelos.
Escondido atrás de uma imbuia frondosa e com o coração dando cambalhotas
no peito, Zakkar se escorava sobre o tronco da árvore, tentando conter a respiração
ruidosa inutilmente. O cabelo estava bagunçado, encharcado com tanto suor que
colava sobre a fronte e cobria a testa, quase invadindo seus olhos, escorrendo para
a camisa já empapada. A adrenalina corria nas veias de uma forma eletrizante,
pulsando em seu corpo e o tomando de excitação. A qualquer momento, a criatura
o encontraria, ou ele encontraria a criatura.
Era uma batalha pela honra, por assim dizer, e somente o mais astuto sairia
vencedor.
Às margens do vale no meio da floresta de Gezir, muito além das vultosas
construções de Oldar, a mais bela cidade de Neergúria, Zakkar aguçava os ouvidos,
atento até mesmo ao menor dos ruídos ao redor, balançando a cabeça a cada nova
suspeita de um ataque surpresa. Mordia os lábios por seguidas vezes e prendia a
respiração; tentava, sem sucesso, evitar os ruídos estridentes provocados pelo
movimento intermitente de seus pulmões, o que poderia acabar entregando sua
posição. O barulho no meio da mata, para além de onde estava, não apresentava
tantas variações. Conseguia distinguir a ventania agitando as copas das árvores,
balançando os galhos mais altos. Pássaros gorjeavam em um lugar ou outro e uma
meia dúzia de falcões cortava os céus, pipilando alto de um modo tresloucado,
comunicando que estavam apenas de passagem no meio daquele palco de guerra.
O som de quedas d’água preenchia o vale em outro ponto e trazia, de certa forma,
uma paz momentânea.
Zakkar vislumbrou de relance as próprias mãos, na iminência de ser surpreendido
a qualquer instante. Duas esferas de fogo crepitavam sobre as palmas abertas e
ardiam em sua pele de leve, mas sem o queimar. As chamas se adensavam entre
seus dedos, tomando volume a cada instante, pulsando em suas veias tanto quanto
a adrenalina da expectativa, como se quisessem pular dali e voar ao encontro de seu
alvo. Conjurar os elementos através de seu poder era um pouco mais difícil do que
107
manipulá-los de uma fonte existente. Fazer surgir chamas mágicas do nada exigia
estudo e muito treino. Desde que aprendeu com doze ciclos de idade, não deixou
de aprimorar sua magia um dia sequer.
— Não adianta se esconder. Uma hora meu minotauro de terra vai te encontrar
e teremos picadinho de Zakkar — berrava Selena; ria de forma maquiavélica e
sarcástica como só ela fazia nesses duelos.
Zakkar a observava, escondido, por uma ínfima brecha entre dois galhos
retorcidos.
No topo das pedras da encosta, onde a cachoeira desabava suas águas torrenciais,
Selena esquadrinhava o entorno, obstinada. Movimentava as mãos com destreza,
controlando seu monstro elemental que corria de um lado a outro pelos campos
abertos do ermo, à procura de Zakkar. Comprimindo os olhos, ela vasculhava cada
centímetro do vale. Mas, de onde estava, não enxergava sua presa escondida atrás
da árvore. Uma coisa era certa: Selena era extremamente competitiva e detestava
perder. Encarrapitada na parte mais íngreme, ela permanecia irrequieta, fazendo o
monstro devastar tudo ao redor atrás de seu alvo. Zakkar até acreditava que ela
seria capaz de destruir todas as imbuias do perímetro do vale e até extinguir a
cachoeira apenas para achá-lo e ganhar o jogo.
Correndo risco de ser detectado, Zakkar vidrava os olhos na silhueta de Selena.
Como ela estava sexy daquele ângulo. A blusa de algodão marfim pendia para um
lado por causa de seus movimentos e mostrava parte de seu ombro esquerdo; as
calças de couro completavam aquela visão estonteante, acentuando as curvas
sensacionais de seus quadris e pernas. E que belo par de pernas!
Algo correu abruptamente nas veias de Zakkar e ele sabia que não era mais a
adrenalina. O corpo estremeceu de repente e as chamas em suas mãos quase
explodiram em direção aos céus.
— Aí está você!
Os olhos dela encontraram os dele.
O minotauro desviou seu curso do outro lado do vale no mesmo instante,
correndo fugaz pela grama e se assomando para onde o guardião estava refugiado.
Não tinha mais como fugir.
Deixando as sombras das imbuias, ele entrou em rota de colisão com o
minotauro. Ribombando as terras do vale, a criatura bufava pelo focinho de touro,
inclinando os chifres afiados para acertá-lo. Zakkar abriu os braços, avivando as
chamas em direção aos céus.
Não havia mais tempo, o monstro estava a poucos metros de golpeá-lo.
Zakkar pressionou um punho contra o outro em um movimento instintivo. Abriu
bem as mãos e as chamas se uniram em uma intensa esfera coruscante. Uma rajada
incandescente disparou de seus dedos, atingindo com estrépito o rosto de terra do
minotauro.
108
— Você não vai ganhar desta vez — berrou Selena. Descendo rapidamente do
cume da montanha, pulando entre as rochas cobertas de musgo, ela estugava o
passo para o foco da batalha, posicionando-se logo atrás de seu monstro.
A criatura ergueu os braços, a um gesto da guardiã, tentando proteger a cabeçorra
de touro das chamas incessantes que emanavam das mãos de Zakkar. Fogo contra
terra, ambos arreganhavam os dedos, inclinando-se para frente, empenhando sua
magia ao máximo. Nenhum dos dois queria sair perdedor desta batalha. O jato de
fogo impedia o avanço do minotauro e seus braços de terra iam, pouco a pouco, se
tornando barro cozido, empedrando e se esfacelando devagar.
Selena percebeu que era tarde de mais. Aumentou a intensidade de seu poder o
quanto pôde, avançando alguns centímetros na direção de Zakkar, mas as forças se
esgotavam. Acrescentou mais terra sobre o monstro elemental, tentando revestir as
partes que se quebravam com o fogo. Contudo, ele não resistiu ao calor das chamas
de seu rival. Desabou sobre a grama do vale em centenas de blocos de barro
fumegantes.
Ofegando, os dois se entreolharam.
— Sério que você... queria me vencer... com... um... minotauro... de terra? —
falava Zakkar e pausava repetidas vezes, com a mão no peito, respirando com
dificuldade. — É o melhor que pode fazer?
Selena fitou-o, com um olhar fulminante. Ele conseguira, afinal, provocar a fera.
— Acho que tenho algo especial aqui para você, então...
Uma ínfima esfera chamuscante brotou das mãos da guardiã. Selena virou a palma
da mão para o chão e a bolinha de fogo aninhou-se de forma tênue sobre a grama
esmeralda e lentamente foi tomando volume, se assomando em direção aos céus,
crescendo entre os dois. Zakkar crispou os lábios num primeiro instante, sem
entender. Logo, os olhos castanhos do guardião quase saltaram das órbitas com o
que emanava diante dele.
— Se é guerra que você quer, é guerra que você vai ter. — Selena sorria pelo
canto da boca, satisfeita. — Então, senhor Guardião, ainda tem medo de dragões?
A esfera vermelha se contorceu e um rosto demoníaco e cintilante o encarou. Os
olhos assassinos, como mínimas fendas verticais de íris escarlates, miraram
profundamente o terror que exalava nos olhos de Zakkar. O pescoço coberto de
escamas faiscantes se projetou contra o lusco-fusco e iluminou o ermo ao redor. A
boca cheia de dentes afiados se arreganhava: o dragão elemental se preparava para
o ataque.
Girando sobre o próprio eixo, Zakkar desembestou a correr a esmo. As chamas
do monstro logo arrebatariam a grama ao redor e precisava estar o mais longe
possível quando isso acontecesse. Não queria virar carvão ou pior: perder a batalhar
para sua oponente com sede de vitória.
109
Selena balançava as mãos com maestria, como quem conduz uma marionete com
as pontas dos dedos ou a batuta de uma grande orquestra. No seu belo e delicado
rosto, de longos cabelos castanho-claros desgrenhados e cobertos de pequenas
partículas de barro cozido que voaram do minotauro, ela mantinha a típica
expressão docemente diabólica, a mesma que fazia sempre que uma ideia
mirabolante surgia em sua cabeça.
E Zakkar permanecia em sua rota de fuga.
A cabeça triangular do dragão alcançara o ponto máximo que o longo pescoço
flamejante permitia. A bocarra escancarou-se e uma labareda em espiral se
precipitou, lançando-se voraz sobre a relva, como uma enorme serpente que se
desenrosca em alta velocidade, na iminência de dar o bote em sua presa fugitiva. As
chamas avançaram sobre o vale como torrentes escarlates e chispantes,
chamuscando a grama e consumindo tudo o que estava em seu caminho.
Longe de ter uma estratégia melhor, algo passou na mente de Zakkar, que
estacou bruscamente e rodopiou cento e oitenta graus em seu próprio eixo. Frente
a frente com a criatura e seu mar flamejante, viu a onda escarlate implacável perto
de alcançá-lo. Um frio correu por sua espinha, estupefato com o dragão e seu ataque
voraz. Selena conseguira recriar, com perfeição, um monstro idêntico ao de seus
piores pesadelos. Levantando uma das mãos e respirando fundo, Zakkar ergueu um
bloco de terra do vale, fazendo-o se assomar contra as chamas, formando uma
imensa parede. O fogo arrasador colidiu em um estrondo com o escudo
improvisado de terra e pedras. Parte das chamas fugiu pelas tangentes do paredão
e o guardião só teve tempo de se abrigar junto ao bloco, abraçando os próprios
joelhos, para não sofrer nenhuma queimadura de segundo ou terceiro grau.
— Parece que o jogo virou, não é mesmo? — crocitou Selena, desvairada.
Escondido atrás do muro de pedra, Zakkar vasculhou a clareira ao redor. O calor
das chamas intensas do dragão investindo contra ele começava a arder em sua pele.
O escudo de terra que o protegia não aguentaria por muito tempo e esfacelaria
como barro cozido sobre o vale, assim como o primeiro monstro mágico que
Selena produzira. Precisava encontrar uma saída ou viraria churrasquinho.
Vislumbrava o perímetro ao redor, na busca desesperada por uma solução. Não
queria morrer queimado e muito menos perder a batalha para Selena. Procurando
uma alternativa viável entre as árvores e no sopé da cachoeira, seus olhos vidraram
de súbito em um único ponto. Uma ideia ocorreu de repente. Deixando o casulo
de terra que desmoronava para trás, na hora em que uma bola de fogo cuspida pelo
dragão explodiu os blocos de barro, Zakkar seguiu desabalado pela grama, temendo
pela própria vida. O rastro quente das labaredas do monstro esturricava suas
roupas; ao longe, a risada debochada de Selena ecoava pelos ares em algum lugar.
— Não adianta se esconder — crocitou Selena. — Renda-se ao meu poder agora!
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O fogo começava a consumir a barra das calças de Zakkar, quando ele se atirou
por cima das pedras e mergulhou de cabeça sobre as águas do rio que atravessava
o vale, bem onde a cachoeira desembocava.
— Finalmente, teremos sopa de Zakkar.
Selena estugou o passo, correndo para o mais próximo possível do local onde seu
amigo imergira. O dragão elemental seguia sua criadora, avançando pela grama,
aproximando-se da margem do rio; brandindo as patas colossais sobre o vale, a
terra tremia a cada passo da criatura. Zakkar desaparecera do campo de visão,
totalmente submerso sobre as águas revoltas do extenso rio.
O monstro de fogo empertigou-se, abrindo a mandíbula cheia de dentes rubros,
ficando de pé sobre as patas traseiras. Selena arfava a cada gesto, conduzindo sua
fera poderosa que crestava a grama com suas patas abissais. Gastava os resquícios
de suas energias em um último golpe mágico.
Um brilho repentino coruscou sobre o céu púrpuro do início da noite.
O dragão produzia uma imensa esfera de fogo entre os dentes, quando Zakkar
irrompeu do fundo do rio. Abrindo os braços, completamente ensopado, uma aura
escarlate emanava ao redor de seu corpo. Selena observava o amigo, assustada. Não
acreditava no que estava diante de seus olhos. Conforme a aura de Zakkar se
intensificava, tornando-se tão avermelhada quanto o fogo que o dragão estava
prestes a cuspir, as águas torrenciais ao redor do guardião invertiam seu curso,
pouco a pouco, correndo em sentido contrário, para o ponto exato onde Zakkar
estava parado, como se uma força impelisse as ondas a se moverem em sua direção.
A aura do guardião tornava-se cada vez mais rubra. Embasbacada com aquela visão,
Selena sequer ousava respirar. As mãos erguidas, o dragão permanecia estagnado,
pronto para a ofensiva.
As águas do rio correram violentamente na direção de Zakkar e desapareciam
sobre a redoma escarlate que o envolvia. Ele absorvia rapidamente toda a água que
desembocava da cachoeira.
Estupefata, os olhos de Selena se arregalavam, sem conseguir compreender.
Aos poucos, o nível das águas foi abaixando, abaixando, até que ela entreviu os
pés do jovem guardião fincados sobre um lamaçal enegrecido onde antes estivera
o rio. Nem mesmo a indomável cachoeira sobrara para contar a história. Estacado
em meio ao barro, ele absorvera toda a água do ermo.
Num arroubo, Selena berrou e investiu contra seu oponente. O dragão voou em
direção às copas das árvores, agitando a cabeçorra contra o que sobrara do rio,
batendo as imensas asas de fogo. A gigantesca esfera flamejante se converteu em
uma densa coluna de fogo que rasgou os céus e se precipitou ligeira na direção de
Zakkar. Juntando as palmas das mãos abertas, direcionando seu poder, a aura
escarlate do guardião explodiu, fazendo os galhos das imbuias do entorno se
envergarem e quase quebrarem bruscamente. A força das águas emanou de seus
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dedos de imediato, em um jato extraordinário de alta pressão, que voou dos
resquícios do que antes fora um rio, em direção aos céus.
Água e fogo se encontraram, chocando-se com estrépito. Uma coluna de vapor
esbranquiçado emanou no momento em que os dois elementos colidiram, emitindo
um som retumbante de água entrando em ebulição. Zakkar comprimiu os olhos,
inclinando-se para frente. Flexionou os dedos, os pulsos colados um no outro,
sentindo a força das águas irrompendo pela própria magia, fluindo de suas mãos.
Aumentava a cada instante a intensidade de seu poder. Era o momento de vencer
esta batalha. Não queria ver o sorriso da vitória estampado no rosto de Selena e
muito menos ser a chacota de Miliat e de Guilloch, por ter perdido um duelo para
uma garota.
Selena intensificou seu poder o quanto ainda suportava, voando a meio metro do
chão. Os cabelos da guardiã se eriçavam com o vapor e o suor escorria em cascatas
por seu pescoço. Não aguentaria por muito tempo. A magia que utilizava para fazer
o dragão sustentar aquele embate consumia rapidamente sua energia. Era como se
tivesse corrido uma maratona inteira ou lutasse incansavelmente por horas, até
mesmo dias, contra hordas de soldados em campo de batalha. Mas não admitia a
derrota para Zakkar. A última vez em que tiveram um duelo de magia, a batalha
terminara em um empate. Nenhum dos dois aguentou mais do que meia hora
sustentar seus ogros elementais na arena real. Era sua vez de desempatar essa briga.
Mesmo que o corpo implorasse por descanso, seguia firme no duelo.
Um segundo jato de água surgiu nos céus de súbito. Selena arregalou os olhos,
sem forças — e nem mesmo tempo — para reagir. Um terceiro e um quarto jato
apareceram e atingiram os flancos do dragão, levantando imensas colunas de vapor.
Zakkar caminhou lentamente para fora do lamaçal, sustentava o embate com
apenas uma das mãos. Da mão livre, direcionava golfadas de águas torrenciais,
acertando o monstro da oponente em diversos pontos.
Selena não tinha reação. Inutilmente, tentava aumentar o próprio poder, avivando
as chamas de sua criatura, mas as colunas de água de Zakkar brotavam de todos os
lados e envolviam o dragão, embaçando o vermelho vivo da criatura com as densas
nuvens brancas a cada nova investida.
A nuvem de vapor que inundava o ermo se esvaiu e Selena finalmente enxergou.
As águas revoltosas envolviam o dragão em uma grandiosa esfera translúcida.
Milésimos de segundos depois, a guardiã observou o monstro de fogo se dissolver
por completo, convertendo a gigantesca bolha d’água em uma enorme coluna de
vapor que Zakkar fez sumir entre as nuvens no céu.
Ao som dos urros de triunfo de Zakkar, Selena tombou sobre a relva. Exausta, a
guardiã ofegava intensamente, com um palmo de língua para fora; decidiu-se curtir
a maciez da grama que ainda sobrava e o frescor da brisa invadindo o vale e ignorar
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os berros tresloucados do amigo. As estrelas fulguravam sobre a abóbada celeste
diante de seus olhos e a lua ascendia, ainda tímida, a um extremo no horizonte. Os
ares acalentadores do início da noite assopravam sobre o ermo e ela inspirava
profundamente, sorvendo tanto oxigênio quanto possível; precisava recuperar as
energias. Zakkar então abrira uma pequena vantagem, infelizmente. Mas ela estava
convicta de que isto seria por pouco tempo. Haveria uma nova chance de reverter
esse placar. Ainda devaneando com a próxima batalha, Selena nem percebeu que
seu amigo guardião se atirara ao seu lado, também deitando sobre a grama e
cruzando os braços por trás da cabeça.
— Não consigo entender — dizia Selena, também cruzando os dedos e apoiando
a cabeça sobre as mãos.
— Como eu te venço sempre? — proferiu Zakkar — Eu te explico...
— Idiota!
— O que você não entende?
— Não entendo como você consegue absorver a água... desse jeito! — Selena o
encarou, apoiando-se sobre o cotovelo esquerdo. — Digo, guardiões manipulam
elementos e os absorvem, é óbvio. Isso é muito comum, eu mesma já fiz... mas
sempre, repito, SEMPRE, o elemento absorvido envolve seu absorvedor... Era para
você ficar gigante, um monstro de água colossal sobre o vale, pronto para lançar
toda cachoeira em meu dragão. Mas parece que você... some com a água e depois
faz surgir como se tivesse conjurado do nada...
Zakkar riu, olhando no fundo dos olhos de sua amiga; reparava em como ela era
atraente também daquele ângulo, mesmo cansada e coberta de sujeira da batalha.
— Eu também não entendo, Selena. — Zakkar desviou os olhos, torcendo para
que a garota não tivesse percebido um olhar lascivo em sua direção, voltando a
mirar as estrelas. — Acredito que isso seja da minha herança genética. Você sabe:
meio-guardião e meio-alquimestre. Acho que minha magia... absorve os elementos
ou algo assim. Em vez de me envolver, os elementos me tornam mais fortes e
intensificam meu poder de produzir água. Talvez seja por isso que meu jato
derrotou a coluna de fogo do seu dragão... Ou, quem sabe, porque você é realmente
mais fraca do que eu... Mas isto é só uma hipótese, claro.
Selena fitou-o de esguelha, fuzilando-o com os olhos.
— Você esvazia a cachoeira do vale e ainda espera que eu consiga evaporar toda
aquela água com um mísero dragão? — Selena ria pelo canto da boca. — Você sabe
que, em tese, seu ataque não foi nada justo e se fosse um duelo formal, eu teria sido
a vencedora.
— Mas nem nos seus sonhos — inferiu Zakkar.
Os dois riram e ficaram um bom tempo deitados lado a lado, em silêncio,
admirando o brilho das estrelas que pontilhavam a imensidão e a lua imperar em
definitivo sobre o céu enegrecido.
113
— Até que enfim, a última noite em Neergúria. — Selena quebrou o silêncio,
liberando sua estafa. — Não aguento mais esse monte de festas para o tio Golmir.
Todo dia tendo que entrar em enormes vestidos, dezenas de anáguas, uma
infinidade de maquiagens e joias, dançar com quase todos os nobres do palácio,
ouvir meia dúzia de idiotas disputar quem tem o pau maior. Isso tudo para receber
homenagens do rei anão de Pernítrulis em um dia, jantar com o elfo-narizempinado-por-favor-não-olhe-nos-meus-olhos-estou-muito-acima-de-vocês
e ter
de aturá-lo por horas a fio explicando como a magia do tempo deles é muito,
excessivamente, estratosfericamente, superior à nossa e por fim, o próprio rei de
Neergúria completamente embriagado, exibindo seus mamilos rosados todos os
dias, deixando todo mundo constrangido. Eu me pergunto: o que temos para hoje?
Jantar com trolls?
Zakkar estava distante. Ouvia cada palavra, mas não escutava nada. Entretia-se
na multidão de seus pensamentos.
— Hoje é o jantar com o Conselho dos Guardiões — proferiu ele, soturno. —
Ou com parte dele...
— Ah — acrescentou Selena, emudecendo.
Desde que chegaram à Neergúria, Zakkar não conseguia pensar em mais nada
além desse jantar. Selena sabia como esse assunto o deixava irrequieto, apesar de
ele não ter mencionado nada ao longo desses dias. O silêncio de Lorde Bartel desde
que voltara da reunião do Conselho era perturbador para ele, ainda mais porque
seu pai parecia estar-lhe escondendo alguma coisa, sempre fugindo do assunto
quando questionado. Por várias vezes, ela observou Zakkar sentado sozinho,
contemplando o horizonte das janelas do palácio, taciturno e com a mente
conturbada com este maldito assunto. Para Selena, que sempre possuiu um grande
afeto por Lorde Bartel desde a morte de seu próprio pai, o rei de Miliat tentava
revelar ao filho, mas sem saber como, algo que ele não estava pronto para ouvir.
— Selena, — Zakkar quebrou o silêncio que perdurou entre ambos — você acha
que o Conselho... aprova... a minha indicação para Guardião de Aladar? Digo, você
sabe... Essa questão de não ser ‘puro-sangue guardião’ e tudo mais... Acha que isso
atrapalharia... minha escolha?
Selena inspirou profundamente e soltou o ar pela boca com violência.
— Sinceramente, acho todo esse assunto de ‘mestiços’ e ‘puro-sangue guardião’
uma tremenda babaquice. A verdade é que não há ninguém que seja totalmente
puro, na minha opinião. Antes do Conselho existir, tenho certeza que os guardiões
casavam com mestres, alquimestres, não mágicos e por aí vai. Nada nunca foi
comprovado. Lady Elma é uma exímia alquimestre tanto quanto Lorde Bartel é um
poderoso guardião. A relação dos dois jamais interferiu em seus poderes, Zakkar.
Você domina todos os elementos com tanta maestria quanto qualquer outro
guardião. Essa tradição de ‘guardião só casa com guardião’ é uma grande baboseira,
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se quer saber. Isso só serve para criar mais divisões em nosso mundo, como se
fôssemos uma classe mágica acima das demais. Há grandiosos mestres que são
extremamente dedicados por aí que derrotariam uma dezena de guardiões que só
querem encher a pança de cerveja e se esbaldar com prostitutas.
— Hoje você está afiada, hein? — Zakkar sorriu. — Quero ver falar isso na cara
do Conselho, na mesa do jantar.
— Eu bem que gostaria — inferiu Selena. — Mas, você sabe, a harmonia e o
equilíbrio não deixam que eu diga umas boas verdades para aqueles velhos babões.
— Babões? — inquiriu Zakkar — Você tem quantos ciclos? Cinco?
Os dois riram e voltaram a mirar as estrelas.
— Não podemos nos atrasar. Este é o jantar mais importante de todos. Que
horas você acha que devem ser? — questionou Selena.
— Não sei — respondeu Zakkar, displicente.
— Acha que o Conselho já chegou ao palácio?
— Não sei.
— ‘Não sei’. — Selena esganiçou a voz, sentando-se sobre a grama. — É só isso
que você sabe dizer?
Zakkar também se sentou sobre a grama e encostou os lábios o mais próximo do
ouvido da garota.
— Sei dizer também que nós nunca transamos sob a luz das estrelas!
Uma onda de excitação tomou Selena de repente. Depois de sussurrar, Zakkar
aproximou-se ainda mais da guardiã e mordiscou de leve sua orelha. Embrenhou
os dedos por entre os cabelos castanhos da garota com uma das mãos e puxou-a
para si, em um longo beijo desesperado em seus lábios. Selena enroscou-se na nuca
de Zakkar e se entregou aos beijos, movendo os dedos pelas costas do guardião.
— Para sua informação — cochichava a garota, arrancando a camisa de Zakkar,
que corria os lábios pelo pescoço dela — já transamos à luz das estrelas...
— É mesmo? — perguntou, despindo a blusa de Selena, descendo a boca para
os seios da guardiã — Não me lembro.
— Sim — dizia, sentindo correntes de prazer percorrendo seu corpo — Mas
nunca em uma clareira, no meio da floresta.
Num assomo, Selena enfiou a mão por dentro das calças de Zakkar. O guardião
sugava os seios da garota com vontade e ela gemia de excitação, instigando Zakkar
de forma intensa.
Agarrando-a pelos quadris, Zakkar deitou-a sobre a grama e abaixou suas calças.
Descendo dos seios e lambendo o abdômen de leve, ele enfiou a língua quente por
entre as pernas de Selena. A guardiã cravara os dedos no chão; a voz reboava sobre
o vale, urrando de prazer.
Zakkar puxou as próprias calças num arroubo, agarrando-a pelos quadris e
penetrou-a ali mesmo, com ímpeto.
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— Não! — dizia a guardiã, entre os gemidos incessantes — É a minha vez de
ficar por cima.
Selena segurou os braços de Zakkar e jogou-o para o lado, atirando-o de costas
para a grama. Pulando sobre ele, ela encaixou-se em seus quadris, movendo-se
freneticamente. Zakkar agarrou as nádegas de Selena, puxando-a para si e
penetrando-a com mais força. Ela gemia com vontade, correndo as mãos pelo
peitoral nu do guardião. Uivando de excitação, ambos aceleravam seus movimentos
intermitentes e compassados. Enlevados pelo sexo indomável sobre o ermo, os
dois perdiam os sentidos e as ondas de excitação percorriam cada centímetro de
seus corpos. Em um último uivo de prazer, Selena desabou, esgotada, sobre o tórax
de Zakkar, que também havia atingido seu ápice.
— Sabe de uma coisa? — crocitou Selena, ofegante. Os cabelos desgrenhados
cobrindo sua boca. — Precisamos transar mais sob a luz do luar.
A noite reinava em Neergúria. Nuvens obscuras e carregadas surgiam em vários
pontos no horizonte, movendo-se sobre os céus com velocidade quando Selena e
Zakkar retornaram ao palácio real. O vento da noite assoprava com veemência
sobre as mais altas torres do castelo e, sempre que cortava por entre os nichos de
pedra dos pináculos, uivos fantasmagóricos ressoavam no entorno, provocando
arrepios tonitruantes na espinha de quem estivesse por perto. Os pinheiros
milimetricamente podados que se enfileiravam, ladeando a estrada de lajotas ao
longo dos jardins exteriores, quase envergavam com a força da ventania. Os
soldados reais de prontidão, incólumes no topo de suas armaduras prateadas
guardando os portões de entrada, estavam habituados e sabiam que essas rajadas
inesperadas nesta época do ano, tomando o reino de assalto e abaixando as
temperaturas, indicavam que mais uma forte tempestade vinha de Sombroceano.
Selena e Zakkar tentavam parecer apresentáveis — o máximo que conseguiam.
Pressurosos, ajeitavam as mangas das camisas e corriam os dedos pelos cabelos
numa tentativa de fazê-los parecer menos bagunçados. Selena amarrava-o em um
coque, tentando não deixar nem um fio desgarrado sequer. Arrumou um jeito de
limpar as marcas de terra do rosto e da roupa pelo caminho. Não queria que ficasse
tão nítido que estivera fora por tanto tempo. Zakkar tentava conter os cabelos
revoltosos, mas sem muito sucesso. Batia as palmas das mãos sobre o colete,
expurgando as manchas escuras de barro e fuligem. Os dois limparam a sujeira das
calças como podiam e a grama incrustada sobre os cotovelos. Bateram calcanhar
com calcanhar de forma audível, para espantar a lama impregnada nas botas;
precisavam parecer limpos o suficiente e com urgência, como se tivessem dado um
pequeno passeio pela cidade. Um passeio de quase um dia inteiro.
— Calma — crocitou Selena, segurando um dos ombros de Zakkar. — Vi
lavanda aqui em algum lugar.
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— Lavanda? — inquiriu Zakkar, irrequieto — Para quê?
— Não sei se você percebeu, mas ainda estamos cheirando a sexo!
— Ah, ok.
Correndo contra o tempo, atravessando os campos de grama esmeralda do jardim
exterior a passos largos e com os dedos cruzados, torcendo para que o jantar ainda
não tivesse iniciado ou mesmo que sua mãe ou Lady Tressilda estivessem se
atrasado com a maquiagem ou com os vestidos, Zakkar estremeceu e estacou
bruscamente, assim que cruzou os arcos posteriores ao jardim.
— As carruagens do Conselho — balbuciou, estupefato.
Selena também as viu, ficando quase tão pálida quanto o amigo.
— Estamos ferrados... — sussurrou a guardiã.
Cintilando à luz do luar e refletindo o brilho das tochas encarrapitadas sobre as
torretas de mármore lavrado no entorno do pátio inferior, quatro elegantes
carruagens negras estavam estacionadas a um canto. O brasão dourado do
Conselho cintilava com as chamas dos archotes e marcava todas elas distintamente.
Os cavalos, oito garanhões robustos e de pelagem negra, brilhante, degustavam
tranquilamente a refeição vespertina: generosas porções de feno e ração, servida a
eles em grandes tonéis de carvalho.
Correndo desabalados pelas escadarias, Zakkar e Selena ignoraram a própria
aparência e até mesmo os resquícios de grama que ainda permaneciam agarrados
nos cabelos de ambos e adentraram o castelo pelos portões de acesso ao saguão
inferior.
— Meu pai vai me matar, meu pai vai me matar...
— Calma, Zakkar.
— Não devíamos ter demorado tanto... — sussurrava Zakkar, puxando as
maçanetas das pesadas portas de carvalho.
O saguão que adentraram era deveras amplo e opulento, ainda que fosse apenas
um cômodo de transição, que interligava outros grandes aposentos do palácio: as
cozinhas, o Salão Principal e as escadarias para os quartos e suítes reais. As luzes
dos candelabros e velas sobre o topo de uma dúzia de postes no entorno do saguão
crepitavam de um modo bruxuleante e davam ao lugar um tom melancólico.
Diversos quadros de molduras douradas e cobertas de floreios drapejavam algumas
das paredes; todas com variações da mesma pintura: a do Rei Belbert, O Arrojado,
segurando uma espada com uma das mãos e com a outra um suntuoso cetro de
marfim, encarando-os com um olhar inquisidor. Tapeçarias finas de nuances
escarlates se erguiam de alto a baixo nas demais paredes. Assim que fecharam a
porta, Zakkar sentiu-se ainda mais inquieto e ofegante, sem conseguir raciocinar
direito e nem saber o que fazer; no ambiente soturno do saguão, Selena apoiou uma
das mãos no quadril e com a outra segurou o queixo. Avaliava o local ao redor com
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rapidez, movendo os olhos das chamas que estalavam sobre os archotes para as
expressões caricatas do soberano de Neergúria ao longo dos quadros; aguardava
que uma solução caísse do céu e torcia para que Lorde Bartel ou seu irmão, Bernat,
não aparecessem ali de surpresa. No salão contíguo, o vozerio e as altas risadas
ribombavam através das paredes. O jantar tinha começado e pela animação das
conversas do lado de lá, havia algum tempo.
— Não há solução fácil — sussurrou Selena, obstinada. — Temos que entrar.
— Mas e se perguntarem onde estávamos? — inquiriu Zakkar, apalermado — E
se suspeitarem de nós?
— Quanto a você, eu não sei. Eu direi que estava escolhendo minha maquiagem
até este momento, por isto não desci dos meus aposentos. — Selena sorriu e piscou
para o amigo. — Essa desculpa sempre cola...
— Sempre cola se você é uma mulherzinha, coisa que você não é — inferiu
Zakkar, irritadiço. — Se não tem outra alternativa, é melhor fazermos o seguinte:
entre primeiro e diga qualquer coisa, eu entrarei logo em seguida para não dar muito
na cara de que estávamos juntos até essa hora.
— Ok, Senhor Guardião — falou Selena, ajeitou os cabelos uma última vez e
deslizou delicadamente pelos portões do Salão Principal.
Atento ao menor dos ruídos das reações no salão ao lado, Zakkar apurou os
ouvidos, colando uma das orelhas sobre a porta. As risadas e o vozerio cessaram e
um silêncio mortificante dominou o outro lado. Deviam estar surpresos com a
entrada inesperada de Selena, ou avaliando o estado de suas roupas e cabelos. Será
que suas desculpas seriam convincentes? A voz de trovão de Lorde Belbert foi o
primeiro som que escutou. Pelo tom com que falava, saudando-a tão efusivamente
e engrolando as palavras de forma confusa, chamando a guardiã de um nome que
nem ele mesmo entendera, o rei de Neergúria já devia estar completamente bêbado.
Uma voz perene pronunciou alguma coisa em seguida. Falava tão mansa e
pausadamente que Zakkar sentia a orelha direita latejar de tanto que a comprimia
contra a madeira para poder ouvir o que dizia. Lady Meredia, a mãe de Selena,
apresentava a filha a todos, com sua habitual serenidade ao falar e exalando uma
leve nota de cansaço na voz. Uma série de outras vozes, graves e agudas,
cumprimentou a guardiã e o ruído de cadeiras se arrastando encheu o salão do outro
lado. Silêncio. Deviam estar comendo ou bebericando de vinho ou rum. Alguém
questionou a ausência de Zakkar em dado momento. Poderia ser seu tio Golmir ou
Bernat; ambos tinham as vozes muito parecidas: graves, com uma nota de
rouquidão e parecendo abatidas. Por último, a voz suave de sua mãe, Lady Elma,
encheu o salão, questionando diretamente à recém-chegada onde estava Zakkar.
Selena desconversou de uma forma nada convincente, dizendo que não sabia e que
o vira pela última vez na cidade havia algumas horas, quando resolver regressar ao
castelo para se arrumar. Atrás da porta, Zakkar escutou quando a amiga guardiã
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comentou estar surpresa de ele ainda não estar ali, visto que era um evento tão
importante, com a presença, inclusive, do Conselho dos Guardiões.
Não tinha mais jeito. Zakkar respirou fundo, abanou as mãos suadas de
nervosismo, ajustou uma última vez as mangas da camisa e passou um dedo pelos
cabelos, numa tentativa desesperada de mantê-los minimamente arrumados e
adentrou o grande salão.
Com ares calorosos, o clima ali dentro era aconchegante. A fragrância agridoce
de carne de porco assada com tomilho e cerveja contrastava com o aroma frutado
do vinho que ocupava as dezenas de taças douradas que repousavam ao longo da
mesa de cedro, bem no centro do salão. Com um requinte e opulência inigualável,
podia-se dizer que aquele ambiente fazia jus ao nome de Salão Principal. Era quase
o triplo do tamanho do salão em que Zakkar estivera anteriormente. O teto
exageradamente alto e amplo possuía uma abóbada de vitrais multicoloridos que
formavam o desenho do brasão de Neergúria: o Leopardo Arrojado. As janelas
eram igualmente altas, de formato esdrúxulo, oblongo e pesadas cortinas da cor do
chumbo adornavam cada uma delas. As paredes eram cobertas de um carvalho
polido muito brilhante e, afixados sobre elas, outras dezenas de quadros do Rei
Belbert, em outras dezenas de poses inusitadas. O rei de Neergúria era,
definitivamente, um notório narcisista. Duas dúzias de soldados ocupavam o
perímetro. Enfurnados em suas armaduras de prata, eles mantinham-se imóveis,
com as espadas e escudos em riste ladeando, cada um dos quadros, como se as
pinturas de Lorde Belbert fossem seus comandantes. Entrementes, Zakkar achava
tudo aquilo um grande exagero, ainda mais em um jantar oficial com o Conselho
dos Guardiões, dentro de uma fortaleza no ponto mais alto do reino, mas ele
também sabia que o Rei Belbert era assim, adorava toda essa ostentação particular
e se gabava em dizer que não havia reino mais seguro e fortificado do que o dele.
A luz indireta e incandescente dos candelabros que adornavam a extensão da
mesa refletia sobre as retinas surpresas e interessadas dos vários pares de olhos que
se arregalavam para o extremo do Salão Principal, encarando o último convidado
que faltava chegar daquele ilustre jantar.
— Eis aí o jovem que faltava!
Rei Belbert ergueu-se de sua cadeira no extremo da mesa com alguma dificuldade.
Não por acaso, seu assento era o maior e mais luxuoso da mesa. Notoriamente
bêbado, o carão redondo e o nariz de gancho estavam extremamente mais
enrubescidos do que normalmente eram, como se ele tivesse passado o dia inteiro
sobre o sol escaldante. A barba cheia, vermelha e farta, com inúmeros tufos
grisalhos se revelando estava encharcada — não se sabia ao certo se de molho de
porco ou de vinho, provavelmente dos dois — e manchas gordurosas estampavam
as vestes reais em alguns pontos, sobre sua pança exorbitante. Cambaleando para
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os lados e apoiando-se sobre um soldado parado próximo a ele, o rei levantou sua
taça de vinho o mais alto que conseguiu.
— Seja muito bem vindo, jovem Zaf.., Zaj... — E Lorde Belbert virou-se para
Golmir com uma expressão de dúvida. — Como é mesmo o nome dele, Golmir?
— Zakkar, Belbert. O nome dele é Zakkar. O filho de meu sobrinho Bartel.
E Golmir sorriu para Zakkar, acenando para que ele se sentasse imediatamente.
O que havia de mais interessante no tio Golmir era o fato de ele ser extremamente
sutil e polido. Os longos cabelos grisalhos, presos em um rabo de cavalo e a barba
cinzenta, sempre com um aspecto de malcuidada e com duas pequenas tranças nas
pontas, na altura do queixo, eram quase uma marca registrada e lhe davam um
aspecto de bárbaro, embora sua educação de realeza sobressaísse em eventos assim.
Zakkar não conseguia lembrar-se de alguma vez em que sua aparência estivera
diferente. Nem mesmo nos eventos de gala promovidos em Miliat. Talvez, seus
cabelos e barba fossem menos grisalhos ou menos desalinhados, mas sempre existiu
um rabo de cavalo e uma barba grande com duas trancinhas. Isto porque Golmir
era um aficionado pela cultura dos anões. Adorava imitar seus costumes e possuía
uma verdadeira devoção pelas histórias e tradições dos valentes de pequena estatura
— principalmente por considerá-los os maiores guerreiros que existiam em Aladar
e quiçá em toda Eirin. Dizia-se que na Caçada do Balneário de Corínio, uma das
histórias preferidas de Zakkar, foram os anões, com sua ousadia e coragem, seus
machados e martelos, que formaram um paredão vivo e o ajudaram a combater os
wargs que devastavam os vilarejos e cidades do reino. Desde então, ficou ainda mais
próximo das tribos de anões de Aladar, principalmente das que habitavam a Ilha
Benit e a região noroeste de Corínio. Zakkar sabia que o tio-avô dedicara sua vida
à proteção do continente, embrenhando-se em centenas de batalhas e, por ciclos a
fio, sem jamais voltar à sua terra natal para rever a família. Esse era, talvez, o modo
que encontrou para lidar com a ausência do irmão, após sua morte. Bernat
costumava dizer que o tio se tornara um amante da solidão e que fizera da saudade
sua amiga, preferindo estar longe de Miliat, rememorando os ciclos de glória ao
lado de Bertúlios. Mas tio Golmir sempre sustentava um jeito afável e acolhedor,
sem transparecer a dor que todos sabiam que carregava consigo. Óbvio, ele jamais
deixou de ser político, algo que aprendera com o irmão, para lidar com as mais
diversas situações, até mesmo as constrangedoras. Não havia quem discordasse que
sua presença era agradável. O que ninguém jamais entendeu era como ele se tornara
um amigo tão íntimo de alguém como Lorde Belbert; a única coisa que Zakkar
sabia era que o rei de Neergúria possuía uma dívida de gratidão com seu tio-avô e,
por isso, sempre que podia, o convidava para uma temporada no reino ou para
viajarem pelas terras do continente, em busca de alguma boa aventura.
— Claro! Zakkar! — berrou Belbert, batendo a taça sobre a mesa. — Como
poderia me esquecer?
120
Contornando a mesa, cumprimentando seu tio Bernat que comia e bebia de
forma comedida, mas sem deixar de dar um empurrão proposital em Guilloch,
Zakkar sentou-se bem ao lado do pai. Sustentando uma carranca medonha,
observando de esguelha o filho tomar assento, ele não parecia nada satisfeito com
seu atraso.
Zakkar ajeitou o guardanapo sobre o colo sem perder tempo e vislumbrou de
relance as demais cadeiras ao redor. Lorde Belbert virava outra taça de vinho até a
última gota, ainda entretido com as histórias sobre alguma aventura que vivera ao
lado de seu tio Golmir. O rubor nas bochechas rechonchudas do rei de Neergúria
se intensificava a cada nova taça, quase tão intenso quanto a cor da bebida que
tomava. Entrementes, Golmir ria sem parar. Talvez esta fosse realmente uma baita
história. As filhas de Lorde Belbert, tão ruivas quanto o pai, cochichavam entre si
e disfarçavam as risadinhas, olhando fixamente para o ponto onde Zakkar estava.
Selena havia se sentado do lado oposto, num extremo canto da mesa, ao lado da
mãe e das demais mulheres do reino, inclusive da esposa do rei de Neergúria, com
um rosto extremamente pálido pelos quilos de pó de arroz que sustentava sobre as
bochechas e nariz. A todo instante, Selena lhe lançava olhares furtivos, em uma
expressão triunfante, com um sorriso traquinas no canto da boca, como se quisesse
confirmar que o plano de ambos dera certo e o atraso deles quase passara
despercebido, mas o olhar inquiridor de seu pai denotava o oposto. Em frente a
Zakkar, estavam os demais membros do Conselho dos Guardiões. A maioria
prestava bastante atenção às histórias de Golmir e Belbert, desatando a rir nos
trechos engraçados, que eram contados ou mesmo comentados com alguma
lembrança. Afinal, tio Golmir convivera com a maioria daqueles senhores de barba
branca, profundas olheiras e linhas de expressão marcantes ao redor. Logo, logo,
ele mesmo ingressaria no seleto grupo de conselheiros dos Guardiões. Alguns deles
preferiam papear com Bartel, que parecia ter esquecido, finalmente, a expressão
contrariada com o atraso de Zakkar e conversava naquele momento de um jeito
animado. Bernat e Guilloch se enfurnaram em uma longa conversa com um
conselheiro alto e magricela, totalmente careca, mas que sustentava uma volumosa
barba grisalha.
Observando o esgar de cada um, Zakkar tentava adivinhar qual deles teria algum
cargo de importância no Conselho. Ouvira seu pai e o tio comentarem sobre a
presença de alguém da alta cúpula — e era por isso que Bartel parecia tão
contrariado quando ele chegou. Os conselheiros se divertiam, rindo a esmo, com
as mentes levemente alteradas pela bebida. Mas um deles atraiu sua atenção, entre
todos à mesa.
De barba ruiva, rareando em tons grisalhos, rosto pontudo e com cabelos
milimetricamente aparados, ele se destacava entre os demais conselheiros.
Bebericava de seu vinho de forma elegante, empertigando-se sobre a cadeira,
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segurando o queixo quadrado. Demonstrava algum interesse pelas histórias de
Golmir e, por vezes, esboçava um sorriso cheio de dentes. Um sorriso nodoso e
muito mais político do que sincero. Com o indicador e o polegar deslizando pela
barba sem cessar, ele não deixava de avaliar os presentes ao redor com seus olhos
de águia, atento ao que acontecia a sua volta. Os dedos tamborilavam sobre a mesa
e denotava certa impaciência. Não parecia compartilhar da mesma euforia e
entusiasmo de todos e era notório que a mente estava longe dali.
Lorde Belbert estatelou a taça de vinho sobre a mesa mais uma vez e todos
eclodiram audíveis gargalhadas pelo salão, foi quando o olhar astucioso daquele
conselheiro encontrou os olhos curiosos de Zakkar. Sobressaltou-se onde estava
no mesmo instante, sentindo um frio enregelante subir pela espinha. Na fração de
segundos em que ambos se encararam, pareceu a ele que o homem de barba ruiva
e porte militar tinha o poder de desvendar até os segredos mais escusos de sua
mente e inclusive sentir a intensidade de sua inquietação.
O homem ergueu a taça em sua direção e lhe sorriu de forma branda. Zakkar
ficou alguns segundos observando-o, ainda tomado por um medo inexplicável e
um desconforto no estômago. Ergueu a caneca de vinho um tempo depois, sem
jeito, cumprimentando. Uma sensação incômoda o dominava em seu íntimo, um
temor súbito e inexplicável.
— Por que demorou tanto?
O sussurro de Lorde Bartel interrompeu os devaneios de Zakkar.
— Eu... me perdi na cidade.
— Pensei ter deixado bem claro que este era o jantar mais importante de todos.
O Conselho dos Guardiões não veio apenas dar um ‘tapinha’ nas costas de tio
Golmir e ouvir as histórias de Lorde Belbert. Eles vieram avaliar você.
— Eu sei, meu pai, mas eu...
— Não quero suas desculpas. Você não é mais um moleque, Zakkar. Não pode
ser tão irresponsável. Logo, logo será o protetor de Aladar.
— Pai, eu...
— Não é mesmo, Zakkar?
— Oi?
Lorde Belbert ressoara sua trovejante gargalhada.
— Está tudo bem contigo, meu jovem? — inquiriu Belbert — Parece afobado.
— Afobado? Não, é que eu...
— Esqueça! — O rei de Neergúria interrompeu, entornando uma caneca inteira
de um barril de cerveja recém chegado. — Eu dizia, quando você entrou e
interrompeu meu discurso, que os filhos de um rei precisam ser versados em
batalhas. Não é porque tem uma armada real inteira à disposição ou uma frota de
navios prontos para bombardear o inimigo por sua causa que você vai deixar de
aprender a se defender. Estão entendendo?
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Zakkar notou um pigarro tão audível que reboou pelo salão acima da voz
trovejante do rei. Observou de relance se mais alguém notara o som gutural, mas
ao redor todos só tinham olhos para o espalhafatoso monarca de Neergúria. A um
canto, as quatro jovens ruivas, idênticas, mas em uma escada etária notória pareciam
em um estado de vergonha alheia completa pelas palavras do pai, como se
soubessem o que viria acontecer logo em seguida.
— Loreia, fique de pé!
A uma ordem retumbante do rei, a mais velha das quatro se colocou de pé de um
pulo, atraindo a atenção de todos para ela. As maçãs tão proeminentes de seu rosto
redondo ruborizaram de imediato e ela ficou quase da cor de seus cabelos cor de
fogo presos uma trança longa que ia até a cintura e contrastaram de um jeito
espalhafatoso com seus grandes olhos verdes. O queixo duro, ela sequer fez questão
de expressar um sorriso. Os lábios finos enrijeceram e ela empinou o nariz em uma
expressão de respeito e autoridade. Devia ter feito isso uma centena de vezes, julgou
Zakkar, mas o rubor da timidez acabava sendo inevitável.
— Milordes, apresento-vos a minha filha mais velha, Princesa Loreia. Criada com
todo rigor para ser uma rainha. Versada em todas as regras de etiqueta, política,
diversas línguas e culturas. E, claro, como vinha falando, com o diferencial de ser
uma exímia espadachim. Educada nas artes das mais variadas lâminas desde os seis
ciclos de idade. Digo mais, eu aposto trezentos mil goloetes com qualquer um
presente nessa mesa, que minha filha consegue derrotar o mais experiente e
habilidoso espadachim desse continente. Podem escolher um desafiante e trazê-lo
a este país.
— Fantástico, Belbert! — disse um dos conselheiros, maravilhado. — Quem a
desposar, com certeza estará mais do que protegido.
O rei de Neergúria emitiu uma sonora gargalhada e arrebatou mais cerveja do
barril.
— Sem dúvida, Lorde Kaint. Quanto às outras meninas, seguem o mesmo
caminho da irmã. Sempre lhes digo que não basta confiar na própria magia,
precisam ter versatilidade e destreza com lâminas ou não serão ninguém.
A primogênita do rei tomou assento e a vermelhidão de suas bochechas diminuiu
de forma expressiva, mas a contrariedade pela exposição continuava marcada em
seu rosto.
Lorde Belbert se espreguiçava, agarrado à taça, irrequieto. Arrastou a cadeira
fazendo um enorme barulho. Ele sorriu abertamente para todos, puxando Golmir
pelo braço sem nenhum pudor, fazendo-o também ficar de pé, meio sem jeito.
— Nobres guardiões, chegou o momento. Quero propor um brinde a esse velho
safado aqui do meu lado, Golmir Ayarza e, claro, uma salva de palmas a esse
Guardião que já livrou minha cara uma pancada de vezes. Por ser um amigo tão fiel
nas horas incertas, o irmão que nunca tive e por todas as lutas que travamos lado a
123
lado e pelas batalhas em que triunfou, defendendo não só Neergúria, como também
Miliat, Pernítrulis e aquele ingrato, bastardo e estúpido rei de Corínio.
O Salão Principal se encheu de palmas e assovios. Dezenas de taças tilintaram
descompassadamente, encostando-se umas nas outras em um demorado brinde.
— A propósito, — Rei Belbert trovejou sobre o salão, fazendo todos
emudecerem — Lorde Zanotchka, o que você dizia a respeito do Ano da
Elegibilidade?
O homem com barba da cor do bronze aprumou-se sobre a cadeira e sorriu para
todos com elegância, erguendo a taça para os presentes.
— Eu discorria a respeito dos eventos que acontecerão em virtude do Ano da
Elegibilidade, Nobre Belbert. Em toda história de nosso Conselho, os cinco
Guardiões jamais ascenderam aos seus postos em um mesmo espaço de tempo.
Claro, é importante lembrar, que tivemos até três Sucessões Honrosas, porém
jamais cinco baixas em um tão curto período de tempo. Claro, não se pode ignorar
que esta lendária ocasião se sucedeu quando da criação do Conselho, ao término da
Era das Trevas, quando os primeiros Guardiões de Eirin subiram aos seus postos.
Felizmente, o Tratado de Paragon trata de tal assunto, embora jamais precisássemos
consultá-lo quanto a este trâmite. Ele estabelece três grandes eventos, que colocarão
à prova as capacidades dos novos Guardiões, definindo assim o novo líder do
Círculo dos Cinco.
— E o que acontecerá em cada evento? — questionou Bernat, curioso.
— Bem, Lorde Bernat, isto ainda permanece em segredo. Queremos testar os
poderes e verificar as qualidades de nossos futuros Guardiões. Nos dias harmônicos
que vivemos, queremos mostrar ao mundo que o Conselho está empenhado em
fornecer somente os melhores guerreiros e zelar pelas Três Leis Primazes e a
segurança mundial.
— Acreditamos que Miliat já tenha escolhido seu futuro Guardião, estou certo?
— um dos membros do Conselho questionou Lorde Bartel com grande interesse.
O rei de Miliat abriu um largo sorriso. Aprumou-se sobre a cadeira e pigarreou
duas vezes. Mesmo tentando disfarçar, Zakkar sentia uma ponta de nervosismo na
expressão de seu pai. Assim como ele, ajeitou-se sobre o assento e aguardou. Os
olhos e ouvidos de todos ao redor da mesa se aguçavam para a resposta iminente.
— É claro, Lorde Kurkov. É uma honra poder anunciar diante de membros tão
respeitados do Conselho, o futuro Guardião de Aladar.
Puxando o filho pelo colarinho, Lorde Bartel posicionou-o de modo a ficar
imponente e causar uma boa impressão à mesa. Zakkar estufou o peito, empinou
o nariz e abriu um sorriso que pretendia ser confiante. Esforçou-se para deixar os
ombros ajustados e não parecer desengonçado demais e aprumou as costas sobre
o encosto da cadeira.
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Zakkar se sentiu invadido por um breve instante. Os olhares dos conselheiros
diante dele eram um misto de inúmeras reações. Uma pequena parte parecia curiosa
com a apresentação do futuro Guardião de Aladar e até realmente contentes em
conhecê-lo, avaliando-o de cima a baixo, inclusive cochichando entre si o quanto
seu porte lembrava o de Golmir na juventude, ao mesmo tempo em que possuía
muitos traços do avô. Outros conselheiros arrazoavam entre si e meneavam as
cabeças, crispando os lábios, como se reprovassem sua escolha. Zanotchka, ao
centro, permanecia impassível. Os dedos não deixavam de tamborilar sobre a mesa
e terminou de virar sua taça de vinho. Sequer levantou os olhos para o rei e o
príncipe da Intrépida Miliat. Zakkar ponderava se o vice-líder do Conselho dos
Guardiões não aprovava sua escolha.
— Nobre Bartel, espero que sua decisão tenha sido baseada estritamente no que
diz nossa Primeira Lei Primaz — falou um dos membros do Conselho ao lado de
Zanotchka e o silêncio se instaurou sobre o recinto. Zakkar reparou que havia uma
expressão de nojo em sua face, que nem mesmo a volumosa e espessa barba escura
conseguiam esconder.
— O que quer dizer com isto, Lorde Kaint? — interrogou Golmir, sem entender,
virando o pescoço na direção do conselheiro, do outro lado da mesa.
— Considerei e, muito, o que diz nossa Primeira Lei, de que o mais forte protege
o mais fraco. — Bartel interpelou quando o tal Kaint esboçava uma resposta. —
Possuo plena convicção de que meu filho, o Príncipe Zakkar, é poderoso o
suficiente para proteger nosso continente e manter a harmonia e o equilíbrio que
sempre imperou em Aladar.
O silêncio voltou a preencher o grande salão, instaurando um clima de tensão.
Os ruídos de talheres tocando louças e das taças sendo depositadas sobre a mesa
eram as únicas coisas audíveis naquele momento.
Terminando de enxugar a boca em um guardanapo, um conselheiro se pôs de pé.
Ele era alto, de porte arrojado e com duas camadas de papadas abaixo do queixo.
Sustentava um cavanhaque loiro abaixo do nariz e um intenso esgar de
contrariedade. Encarou o rei de Miliat no fundo dos olhos e respirou fundo. O
silêncio perturbador pressionava os ouvidos de todos e até mesmo Rei Belbert
observava, constrangido, cada detalhe da conversa atravessada a sua frente, um
tanto perplexo e confuso.
— Perdoe-me, Lorde Bartel, mas você sempre soube que ao casar com uma
alquimestre, sua herança genética de guardião estaria comprometida. Não há
garantias de que ele seja plenamente poderoso como um guardião, sendo metade
alquimestre. Nós não consideramos o seu filho, como vamos dizer, ‘puro’ o
suficiente para ocupar uma função tão importante em Aladar.
A tensão carregada na última frase fez com que todos segurassem o ar dentro dos
pulmões. Zakkar estava perplexo. Contemplou o rosto ruborizado de seu pai, de
125
soslaio. As faces rechonchudas de Bartel tornavam-se tão rubras quanto o vinho
que consumiram.
— COMO OUSA FALAR ASSIM DO MEU FILHO? — Lorde Bartel se pôs
de pé num arroubo, deixando a cadeira cair sobre o chão com estrépito. O berro
inesperado pegou a todos de surpresa.
Os membros do conselho se colocaram de pé por instinto, quase que ao mesmo
tempo e encararam Bartel. Bernat afastou a cadeira e saiu de seu lugar; agarrou o
irmão, tentando acalmá-lo e se esforçando para apaziguar a situação. Os demais
permaneciam com um esgar atarantado ante a reação inesperada do rei de Miliat.
Mesmo Golmir e Belbert, ainda sentados e extremamente pasmados, vislumbravam
o rosto purpúreo de Bartel e seus punhos cerrados. Zakkar também se levantou da
cadeira e permaneceu ao lado do pai, de frente para Zanotchka que se erguera junto
aos outros conselheiros. Encarava o vice-líder do Conselho com a mesma
petulância com que ele o observava.
— O seu filho é um mestiço, Vossa Alteza — prosseguiu Lorde Kaint, alteando
a voz. — Deveria ter considerado isto antes de se casar com uma impura
alquimestre, manchando a perpetuação de seu precioso sangue guardião.
Lady Elma se colocou de pé em um extremo da mesa e encarou Kaint com uma
expressão colérica.
— Você não irá me insultar na frente de minha família. — A voz da rainha soou
firme e indiferente. Batendo a taça de vinho contra a mesa, ela girou nos calcanhares
e se retirou pela porta principal.
Aparvalhadas com a situação constrangedora, Lady Prisca, a rainha de Neergúria,
e as damas de companhia da realeza correram para acudir a rainha de Miliat de
imediato, também cruzando as enormes portas de carvalho.
O rei Belbert se colocou de pé, atônito, preocupado com os ânimos exaltados.
Franzia as sobrancelhas e parecia não compreender porque tudo aquilo estava
acontecendo. Golmir, espantado de mais com a situação vexatória que se instaurou
sobre o lugar, levantou-se em seguida, observando a tensão no rosto de cada um.
— Senhores, o que é que está acontecendo? — inquiriu Golmir. — Onde está
vossa decência? Este é um jantar da nobreza, lembrem-se do motivo de estarmos
aqui hoje.
— O seu sobrinho não prova o mesmo respeito pelo Conselho dos Guardiões
que você tem demonstrado todos esses ciclos, Lorde Golmir — inferiu Zanotchka,
insolente — E tampouco pelas leis que regem nosso mundo, considerando colocar
o filho mestiço como o protetor de Aladar.
— A decisão sobre o futuro Guardião cabe a mim, segundo as leis de meu reino
e como soberano de Miliat, já tomei a minha decisão. Você não pode afirmar que
não considero nossa legislação, desde minha tenra idade a tenho observado e
cumprido em sua totalidade!
126
— Bartel, por favor. Já chega... — Bernat segurava os ombros do irmão, tentando
fazê-lo ficar mais calmo.
— O seu filho não pode ser Guardião! — berrou Kurkov; uma veia saltava de
suas têmporas.
— Ele será Guardião, nem que seja a última coisa que eu faça. — Bartel deu um
soco sobre a mesa e dessa vez foi Zakkar quem segurou os ombros do pai.
Selena e Guilloch também estavam de pé. Acompanhavam a cena emudecidos,
mas de olhos bem arregalados.
— É o Conselho quem delibera sobre isto. Nós não o reconheceremos como a
melhor opção para Aladar. Ele não é um puro guardião. Sua linhagem foi manchada
quando você decidiu se misturar com uma alquimestre!
— Senhores, por favor...
— Você não vai insultar minha família dessa forma, na minha presença!
— A sua decisão não tem um pingo de sabedoria, Bartel.
— Quem delibera sobre isto sou eu e, como rei, digo que Zakkar será o Guardião!
— Senhores, por favor...
— O seu filho não passa de um reles mestiço, tão fraco como é o pai.
Um sopro ensurdecedor ribombou e sacudiu as paredes com um forte estampido.
Os guardas ao redor se ouriçaram e levantaram as espadas e escudos, temerosos.
Uma série de quadros e candelabros despencou das paredes e as cortinas se agitaram
com força. A discussão generalizada cessou de imediato e todas as cabeças
apuraram os ouvidos e arregalaram os olhos, atemorizados. Uma gigantesca língua
de fogo surgiu sobre o Salão, emanando das mãos de Zakkar, fazendo as janelas e
a mobília estremecerem. Serpeando pelos quatro cantos do recinto, ela sobrevoou
as cabeças de todos, coruscando por entre as colunas, percorrendo o perímetro ao
redor assustadoramente. Tão rápida quanto surgiu, a labareda sinuosa explodiu e
desapareceu.
— Eu não sou poderoso o suficiente? — crocitou Zakkar, exasperado.
Ao redor, todos estavam boquiabertos e embasbacados. Miravam para o ponto
onde o fogo sumira, próximo às vidraças do topo do teto do Salão. Contudo, o
semblante de Zanotchka permanecia imutável. Os olhos comprimidos na direção
de Zakkar não pareciam impressionados com sua demonstração inesperada de
poder. No silêncio que ainda persistia, o vice-líder do Conselho dos Guardiões
tomou seu manto escarlate e o vestiu; calçou as luvas de couro e amarrou o laço de
seu capuz. Contornou o próprio assento, repousando as mãos na cadeira e ajeitoua
sobre a mesa.
— Senhores, com licença. — E virando-se, Zanotchka irrompeu pelas portas do
Salão em direção aos jardins sem pronunciar mais uma única palavra. Os demais
membros do Conselho repetiram o gesto e saíram, emudecidos, no encalço do vicelíder.
127
O ruído das brasas na lareira a crepitar e a oscilação provocada pela respiração
dos que permaneceram no Salão Principal cortavam o silêncio instaurado após a
saída dos conselheiros. As carruagens rangeram nos jardins enquanto os membros
do Conselho subiam sobre elas e em seguida o som das ferraduras dos cavalos
atritando contra a sinuosa estrada de lajotas da entrada do palácio ecoou, galopando
para fora da cidade. Os olhares abismados de todos ao redor ainda se concentravam
sobre o filho de Bartel.
Um braço rechonchudo deslizou pelos ombros de Zakkar, abraçando-o com
força. Envolveu-o de uma forma tão acolhedora que seus maiores medos e o
sentimento de impotência se esvaíram por completo.
— Não se preocupe, meu filho — crocitou Lorde Bartel, com a voz um tanto
embargada. — Você será Guardião, nem que para isso eu comece uma guerra
contra o Conselho.
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Capítulo Nove
O último adeus
Os dedos estavam doloridos e dormentes quando Heidlich finalmente largou as
rédeas do cavalo. Ardiam e tremulavam por causa da violência com que segurava
as tiras de couro atreladas ao cabresto. Pisava, enfim, no lugar em que sua mente
relutava em não querer pensar. Nuvens carregadas e de nuances tenebrosas de um
cinza-chumbo pairavam sobre a imensidão e arrebanhavam não somente os céus,
mas ocultavam parte das florestas e cadeias de montanhas no horizonte. A
abóbada-celeste externava tristeza; lúgubre e mórbida, tanto quanto todo o cenário
que se desenhava ao redor, que não poderia ser mais melancólico.
Às margens do enregelante rio Mulbe com suas águas negras e serenas, uma
aglomeração de pessoas de variadas raças vindas de todas as partes do reino se
avolumava. Elfos dos condados de Tranitor e castas de duendes de Amarzariv se
concentravam e se acotovelavam a um extremo, ansiando por poderem se
aproximar do caixão e expressar suas condolências. Os anões de Ingave, Lenchain,
Faniv também estavam presentes e esses, como sempre, sem o menor pudor em
demonstrar sentimentos, derramando-se em lágrimas, encharcando as longas
barbas cheias de tranças e badulaques. Ninfas das florestas, faunos e centauros se
misturavam à imensa multidão enlutada dos homens, mulheres e crianças de
Badorian, também cabisbaixos e arrasados.
Uma tribuna fora montada próxima à orla central do rio. Seus tios e tias se
postavam sobre ela, bem como as demais famílias de guardiões aliadas do reino: os
Moronov, Lohntrak e Borovit; cada um despedia-se como podia. Uma figura
envolta em um longo sobretudo negro drapejado de botões reluzentes se postava
em um ponto próximo à tribuna real. Com uma expressão longe de qualquer
empatia e os trejeitos sempre rígidos, Salazar Stanhorne também se fazia presente.
Ele não era do tipo que chorava, mas demonstrava afeto de sua forma, estando
junto nesses momentos tão delicados. De uma forma geral, todos os presentes
expressavam o luto e a tristeza que sentiam e buscavam um lugar, o mais próximo
possível, do suntuoso caixão branco que fora depositado, incólume, bem no centro
de um pitoresco pátio de pedras entalhadas, na margem central do rio.
129
Um vazio tonitruante atingia o estômago de Heidlich. Uma sensação de
abandono e impotência o consumia. A mesma sensação de tantos ciclos antes, de
quando perdera seu avô, a quem fora muito apegado na infância. À época, sua mãe
afagara seus cabelos loiros e o abraçara tão forte, que a inoportuna sensação se
esvaíra por completo. Naquele dia, o vazio não passaria com um simples abraço. O
vazio em seu estômago ia se tornando, pouco a pouco, uma dor contundente e
excruciante.
O herdeiro do trono de Badorian notou que não apenas Stanhorne estava
presente no enterro. Outros membros do Conselho se espalhavam ao redor da
tribuna e dos demais nobres. Contudo, Heidlich ainda não havia encontrado a
figura corpulenta e escorregadia de seu tio August.
Ao derredor da imensa multidão enlutada, Heidlich permanecia encostado em
seu cavalo branco. Torcia, com todas as forças que ainda possuía, que sua presença
passasse despercebida. A única vontade era estar só. Não queria pensar em
monstros, bestas ou feras, guerras ou o que quer que envolvesse sua rotina de
Guardião. Heidlich só queria poder chorar a morte do pai e acreditar que tudo ali
não passava de um tenebroso pesadelo e que, logo, logo, seu pai o acordaria, com
os longos cabelos e barba branca e seu sorriso acalentador que tinha o poder de
encorajá-lo.
Uma lufada de vento agitou as copas das árvores da floresta atrás dele e golpeoulhe
as maçãs do rosto, provocando-lhe um tênue arrepio de frio. Uma lágrima
escorreu de seus olhos e não conseguiu evitar o choro. Cench Heinhardt, o homem
mais justo, bondoso e amável que conhecera e o maior rei que governara a Suntuosa
Badorian falecera. Jamais veria outra vez o sorriso sincero e marcante nos lábios de
seu pai, que formava duas pequenas linhas verticais nos extremos dos lábios toda
vez que exibia seus dentes; tampouco teria novamente os abraços afáveis ou seus
sábios conselhos. O que restava então eram as lembranças que habitavam as
profundezas de sua mente, as memórias dos dias em que esteve com ele.
A mais marcante, de todas as melhores lembranças que poderia trazer à tona,
ainda era a de uma guerra. Uma guerra que seu pai venceu sem precisar levantar
armas.
A paz nem sempre reinou sobre Badorian como nos últimos tempos, sobretudo
nos primeiros ciclos do reinado de Lorde Cench. Tudo ocorreu quando Heidlich
era apenas uma criança e muito das motivações do que se sucedera, ele pôde
compreender quando se tornou adulto. Mas ainda recordava de alguns detalhes, da
tensão e do medo dos povos dos condados toda vez que ouviam falar sobre os
conflitos entre nassarianos e vorazilis.
Na calada de uma noite de primavera, dizia-se, à época, que os centauros das
Colinas de Nassar invadiram as florestas do Vale de Vorázia e fizeram uma
verdadeira carnificina em um dos vilarejos. Com um forte desejo de vingança por
130
uma disputa muito antiga pelo domínio de territórios entre os dois clãs, muitos
centauros foram pegos de surpresa, executados e decapitados. As casas da vila
foram queimadas após o banho de sangue e uma mensagem deixada sobre as
cabeças penduradas nos galhos das árvores: que a conquista de Vorázia pelos clãs
de Nassar estava apenas começando.
Os centauros que conseguiram fugir do extermínio em massa avisaram aos
demais vilarejos e uma investida militar impiedosa dos centauros vorazilis se
arremeteu sobre Nassar. Uma série de conflitos devastadores entre nassarianos e
vorazilis se desenrolou a partir daí e apavorou não somente os moradores das duas
regiões do reino, mas também todos os outros sete condados que ficavam no meio
dessa batalha por territórios. Milhares de pessoas abandonavam suas casas com
medo da guerra e buscavam refúgio no extremo-norte de Badorian ou nas terras de
Mistral. Os palcos dos embates começavam a abandonar o interior das florestas e
alcançavam as ruas dos condados e as estradas que cruzavam o reino. Centenas de
inocentes, centauros, humanos, elfos ou anões, foram mortos enquanto
simplesmente tentavam fugir dos horrores dessa guerra e Belrar, a capital de
Badorian, logo estava apinhada de refugiados temerosos, que clamavam por abrigo
e por uma solução imediata.
Era um dia como este, Heidlich lembrava bem. Nuvens cinzentas se espalhavam
no céu que parecia chorar pelos que morriam nas batalhas sem sentido. O Conselho
dos Guardiões se reunia no palácio e a população gritava às portas de entrada pelo
seu Guardião, Anturc Lohtrak, para que resolvesse o problema. A única saída
apresentada por Anturc, comboios de soldados de Badorian acampados em pontos
estratégicos e barricadas constituídas de grossos troncos de árvores enterrados no
chão com pontas afiadas em ângulos de quarenta e cinco graus nas vias de acesso
dos centauros de Nassar e Vorázia, não estava mais surtindo efeito.
Havia muitas vozes alteradas naquele dia. Algumas discutiam acaloradamente,
outras gritavam de forma histérica, mas todas com ânimos exaltados, buscando
soluções que não comprometessem vidas inocentes. Um vozerio era abafado pelos
portões de carvalho e a marcha dos soldados, correndo de um lado a outro, batendo
suas botinas de couro e sacudindo as armaduras de aço, enchia os ares do palácio,
acirrando ainda mais a exacerbada tensão no lado externo.
E havia a voz serena de Cench.
Heidlich lembrava de seu pai tomando-o no colo. Os lábios dele beijaram suas
bochechas. A barba loira e espessa lhe fez cócegas e ele inclinou o rosto, rindo sem
parar. Cench abriu um largo sorriso animador para o menino e, a despeito da crise
que se abatia sobre o reino, Heidlich se sentia completamente seguro nos braços
do pai.
Cench e o filho se esgueiraram pelos corredores do palácio sem que ninguém
notasse, até alcançarem o estábulo. Dois guardas reais o esperavam, com expressões
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temerosas em suas faces. Um deles segurava as rédeas de um Campolimpo
mistralense de pelagem negra e outro, uma longa capa escura de veludo.
— Não é muito arriscado, milorde? — perguntou um dos guardas, fazendo um
gesto com a cabeça para as vozes e lamúrias nos portões externos.
— Sim, mas é nossa última esperança para evitar que mais vidas se percam —
respondeu Cench, sorrindo de forma afável ao soldado.
O soldado balançou a cabeça, ainda temeroso.
Cobrindo-se com o manto, Cench colocou Heidlich sobre o cavalo, entre ele e as
rédeas, e pressionando os flancos de sua montaria, pôs-se a correr por entre os
pinheiros centenários das florestas fechadas de Badorian, em uma saída secreta do
palácio.
Heidlich se recordava das árvores de tom verde musgo e das folhas agitadas pelo
vento. A finíssima cerração permeava cada centímetro da floresta, deixando-a com
um aspecto cinzento e lúgubre. Agarrado a uma das rédeas, contemplava o olhar
obstinado do pai e seu esgar que expressava a severidade da situação, que ele só
entenderia tantos ciclos depois. Cench reparou que o filho o observava, em dado
momento, e abriu um sorriso, afagando seus cabelos com carinho.
— Já contou por quantos pinheiros nós passamos? — perguntou seu pai,
conduzindo a montaria por entre caminhos sinuosos.
— Ah, um montão. Eles passam muito rápido, pai. Parece até que estão voando!
Cench sorriu e instigou seu cavalo a correr mais rápido.
Centenas de pinheiros e uma infinidade de curvas depois, Heidlich viu as mãos
retesadas do pai puxarem as rédeas com veemência. A montaria diminuiu a
velocidade até quase parar. A expressão de Cench era soturna, carregada de
preocupação e ele vislumbrava o perímetro ao redor com um receio incontido. Em
momento algum, ele sentiu a tensão e o medo que o pai carregava.
O rei desceu do cavalo e, em seguida, tomou Heidlich nos braços, segurando-o
no colo. Esfregou a crina do cavalo com uma das mãos e virou-se, encarando a
floresta. A mata densa daquele trecho tornara-se fantasmagórica. A espessa neblina
dominava o entorno e era quase palpável. Ao olhar para cima, era impossível ver as
copas dos pinheiros. Tudo ao redor estava coberto de uma massa cinzenta e gelada.
Rei e filho seguiram a pé por um caminho floresta adentro. Heidlich só sabia que
estavam na direção certa porque seus olhos vislumbravam uma trilha de folhas
avermelhadas enfileiradas sobre o chão, como se alguém tivesse passado por ali
antes e as organizasse daquela forma, para que ninguém se perdesse em meio à
cerração.
Alguns segundos depois, quando Heidlich acompanhava, hipnotizado, as folhas
que descansavam sobre a terra e percorriam um interminável ziguezague sobre a
trilha, os dois pararam bruscamente. O menino notara que a sequência de folhas
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coloridas acabava logo adiante e então, quando levantou os olhos, percebeu onde
haviam parado.
Doze grandes barracas revestidas com folhagens vermelhas e alaranjadas
descreviam um semicírculo sobre uma clareira. Ao redor delas, barricadas de
troncos de pinheiros cruzados e amarrados com cordas de cânhamo protegiam o
perímetro contra qualquer tipo de invasor. Uma fogueira crepitava fracamente bem
ao centro. Somente algumas poucas brasas sustentavam pequenas chamas que
quase se esvaíam. Dezenas de arcos e flechas de madeira repousavam em um
console, feito provavelmente também com galhos e troncos dos pinheiros da
floresta. Espadas curvas forjadas em ferro, grandes e pequenas, se espalhavam
sobre a grama e escudos redondos de madeira, com grossos cardos circundandoos,
estavam pendurados em uma série de suportes na entrada das barracas. Um
estandarte vermelho e amarelo com a figura de um centauro empunhando duas
espadas cruzadas se erguia ao lado da maior barraca. Era o acampamento militar
dos centauros nassarianos.
Dezenas de pares de olhos se viraram abruptamente para Cench com o filho no
colo, assim que ele saiu da mata fechada. Patas robustas de cavalo pisotearam folhas
secas e galhos retorcidos em um frenesi inesperado. Espadas de ferro tilintaram
vorazmente e o choque do ferro com a madeira dos escudos encheu os ares gélidos
da clareira. Parte dos centauros formou rapidamente uma barreira à frente das
fracas chamas, agarrados às suas armas. Outra parte se posicionara nos extremos
do acampamento, nos flancos das barracas, esticando as cordas de seus arcos,
apontando as flechas para o exato ponto onde um homem de capa negra carregava
o filho nos braços.
— O que quer aqui? — ribombou uma voz sobre o silêncio da clareira,
sobrepondo-se ao barulho do vento que começava a assoprar sobre a floresta.
— Vim para falar com Sauba-Khami — respondeu Cench, o timbre de voz
inabalável, com a mesma calmaria de quando saiu do palácio.
As cortinas de uma das barracas se moveram e um centauro emergiu do negrume
interior. Ligeiramente mais alto do que os demais, ele possuía uma pelagem
acinzentada como aço e reluzente, como se seu corpo fosse feito de um metal
forjado. Os longos cabelos negros estavam amarrados para trás, exceto por três
tranças enroladas em miçangas vermelhas que caíam sobre sua testa. O rosto
quadrado de queixo afilado externava expressões ameaçadoras e uma cicatriz
cruzava sua face, começando na têmpora esquerda e morrendo no maxilar direito.
Entretanto, era o olhar daquele temível centauro se assomando à sua frente que
impressionou Heidlich. Como mínimas fendas, semelhantes aos de uma cobra, as
irises de seus olhos eram rubras como sangue e brilhantes como um rubi. Encarava
os dois como se ambos fossem inimigos mortais e presas prontas para o abate.
Nesse instante, Heidlich teve medo e escondeu o rosto sobre os ombros do pai.
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— Cench Heinhardt! — trovejou a voz grave de Sauba-Khami. — Esta guerra
não é sua. Sugiro que retome seu caminho e não se meta em assuntos que não
entende.
Cench sorriu e meneou a cabeça.
— Sauba, eu não vim me meter na sua guerra e muito menos em assuntos que,
segundo diz, eu não compreendo. Vim até aqui, pois gostaria que você conhecesse
meu filho.
Os centauros soldados com as espadas em riste franziram o cenho e
entreolharam-se, confusos. Os arqueiros enterraram os dedos em seus arcos e
esticaram ainda mais as cordas. Sauba-Khami ergueu o queixo e vislumbrou Cench
e Heidlich do alto, como se estudasse as intenções do rei de Badorian.
Cench puxou o filho para frente, de modo a ficar face a face com ele. Os olhos
de Heidlich estavam fechados e ele pressionava as pálpebras com tamanha força,
que uma veia em sua testa se dilatava.
— Heidlich, meu filho, abra os olhos.
— Não.
— Você confia em mim?
— Eu tenho medo dele, papai. — A voz do menino estava embargada.
— Heidlich, vai ficar tudo bem. Nem tudo é o que parece. Abra os olhos.
Sauba-Khami trotava lentamente até onde Cench estava, ainda sustentando uma
faceta desconfiada, agarrando-se à sua espada curva como se aguardasse uma
emboscada a qualquer momento. Os soldados ao redor não descansavam das armas
um minuto sequer, suspeitos da situação controversa. O rei de Badorian saiu de seu
lugar e caminhou lentamente até o local em que centauro estacou. Quando estavam
frente a frente, Cench estendeu os braços para que o centauro tomasse seu filho
nos braços.
— O que está aprontando, Cench? — questionou Sauba-Khami, inflexível e
Heidlich voltou a fechar os olhos com veemência.
— Este é Heidlich Heinhardt, meu filho. Meu único filho — falou o rei de
Badorian, abrindo um sorriso simpático.
Sauba-Khami ergueu o garoto e o sustentou nos braços, mas Heidlich não abriu
os olhos.
O silêncio instaurou-se sobre a clareira e a respiração ofegante dos soldados
prontos para atacar e das últimas brasas que ardiam pressionava nos ouvidos do
garoto. O centauro de pelos da cor do metal continuou um bom tempo impassível,
sustentando o herdeiro do trono da Suntuosa Badorian em seu braço direito com
o rei logo a sua frente.
— Heidlich, abra os olhos.
A voz de seu pai soou quase como um sussurro afável em seu ouvido e, quando
Heidlich finalmente criou coragem para abrir os olhos, a expressão assassina de
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Sauba-Khami desapareceu. Onde antes havia duras feições, um sorriso brotara e,
de todas as feições que o menino poderia esperar, uma reação tenra era a última
que ele imaginava. Lágrimas escorriam daqueles olhos que antes pareciam tão
ameaçadores e o centauro o abraçou. Heidlich estava surpreso. Sauba-Khami não
era o monstro que imaginava. Havia profundos sentimentos nele.
— Que futuro daremos para nossos filhos, Sauba? — falou Cench e sua voz
tornara-se mais austera. — Um futuro de guerras, uma terra devastada, dor e
sofrimento?
— Você não compreende... — falou Sauba-Khami e sua voz falhara de um jeito
inesperado.
— É claro que compreendo, nobre amigo. Entendo a dor de vocês, entendo o
luto que experimentam. Mas será que não derramamos sangue demais? A terra
clama pelas vidas dos que se foram. Quantas guerras mais teremos, quantas vidas
mais serão perdidas até que os centauros de Nassar e de Vorázia compreendam que
esta não é a solução? Badorian é um reino abastado. Há terras para todos, há espaço
para que vivam em harmonia, para que desfrutem de paz, possam plantar e colher
como também vejam seus filhos crescendo e prosperando em nosso reino.
Outra vez, o silêncio.
Uma crescente expectativa se seguiu pela resposta de Sauba-Khami. Os soldados
ao redor pareciam não compreender o que estava acontecendo e aguardavam uma
resposta de seu líder. Contrariando a todos, em vez de respostas, choro e mais
lágrimas rolavam dos olhos do grandioso centauro.
— Que futuro haverá para Brennan, se esta guerra continuar?
Sauba-Khami devolveu o menino para Cench.
— Não há futuro se não houver vida... — balbuciou o centauro.
O líder dos centauros enxugou as lágrimas e se recompôs. Estufando o peito,
virou-se para seus soldados e ergueu a cabeça.
— Soldados, abaixem suas armas e recolham o acampamento. Esta guerra acaba
aqui.
Pouco tempo após esta conversa, Heidlich recordava, a guerra finalmente chegara
ao fim. Os acampamentos de nassarianos foram recolhidos. Cench não permitiu
que os centauros das Colinas de Nassar voltassem para as montanhas e ofereceu as
terras frutíferas de Armentur para que eles estabelecessem seus vilarejos e
pudessem habitar e cuidar das florestas do condado. Heidlich não sabia quando
ambos foram ao acampamento do líder do clã de Nassar, mas descobriria ciclos
depois que seu pai conquistou a paz primeiro junto aos vorazilis. Sem barganhas.
Sem promessas. Trouxe a eles a luz da razão. Restabeleceu suas terras e selou um
acordo entre os dois clãs que perdurava até os dias atuais.
A sabedoria de seu pai sempre fora mais eficaz do que qualquer espada afiada e
mais forte e letal do que uma legião de homens fortemente armados. Mas suas
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sábias palavras e os conselhos precisos não existiriam mais dali em diante e o
choque dessa dura realidade, da realidade de que jamais o veria, abatia-se a cada
instante sobre Heidlich.
Muitos rostos ao redor viravam as cabeças em sua direção e um burburinho
inquietante reboava sobre os ares taciturnos das margens do Mulbe. Havia alguns
ciclos que Heidlich não pisava em Badorian. As responsabilidades como Guardião
tomavam todo seu tempo e ele se odiava por não ter passado os últimos momentos
de seu pai ao lado dele. Sabia que a tentativa de não ser notado ia por água a baixo,
mesmo tentando se esconder sob o longo capuz preto. O que restava, então, era
erguer a cabeça e seguir em frente. Enxugando os olhos com a manga da camisa,
avançou por entre a multidão. Era inútil tentar ocultar-se sobre um manto de
veludo quando a maioria ao redor o identificava.
As pessoas iam abrindo passagem para o filho mais velho de Cench e herdeiro
do trono de Badorian conforme seguia, lentamente, para onde repousava o caixão
de seu pai. Heidlich vislumbrava cada rosto, cada expressão de tristeza e cada
lágrima que escorria nas muitas faces ao redor. Fazia questão de encarar nos olhos
os homens e mulheres, elfos, duendes e centauros que, assim como ele, sentiam
uma dor infindável no fundo do peito pela morte daquele que foi o maior rei de
Badorian. Assim como aprendera na Academia dos Guardiões, queria poder
inspirar coragem e ser a chama da esperança de que todos precisavam num
momento tão adverso, mesmo que sua coragem fosse ínfima e quase irrisória e a
esperança uma mísera fagulha que se esvaía.
Deixando uma dezena de lamentações e soluços tímidos das pessoas em volta
para trás, finalmente se aproximava da borda do caixão de seu pai. A tampa já havia
sido colocada sobre ele. Um dos soldados fez um gesto, como se quisesse abrir
novamente o caixão para Heidlich, mas o guardião retribuiu com um sinal discreto
para não remover a tampa. Queria manter na memória as lembranças felizes, dos
ciclos de saúde e vigor de seu pai e não uma última e mórbida imagem dele,
repousando sem vida e coberto por flores.
Heidlich postou-se muito próximo do caixão. Inspirou fundo e seus braços
engolfaram duas mulheres cobertas por longos véus de renda negra. Mesmo
tentando se esconder, era possível vislumbrar o estado aflitivo e o choro
inconsolável de ambas.
A mais velha delas era Falla, sua mãe, que lhe retribuiu o abraço. Um abraço
muito diferente dos que costumava receber nas vezes em que regressava à Badorian.
Era um abraço sem entusiasmo, sem vida, desolador. Neste fatídico dia, sua mãe
estava longe daquela figura de vigor e ânimo que costumava ser. As linhas de
expressão em seu rosto e os longos cabelos grisalhos presos em um coque lhe
conferiam uma aparência de cansaço, como se fosse muitos ciclos mais velha do
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que realmente era. Nem mesmo os grandes e penetrantes olhos azuis eram mais os
mesmos. Profundas olheiras tomavam conta deles e o brilho natural de suas irises
parecia ter sido roubado pela aflição da morte do homem que amou e com quem
conviveu por quase cinquenta ciclos.
O segundo abraço foi forte de um modo inesperado, pegando-o de surpresa. Era
um abraço desesperado, como uma súplica por esperança. Ivyna apertava seu tórax
com veemência, engolfada por uma dor lancinante que também o consumia. A irmã
mais nova chorava sem cessar, em um murmúrio baixinho. Heidlich não a
reconhecia mais. A última vez que a vira, era uma menina entrando na adolescência.
Os cabelos ruivos, vermelhos como uma chama viva a crepitar, estavam soltos e
cobriam parte do rosto da bela mulher que havia se tornado. Teria de lidar em breve
com a presença de um nobre, de alguma terra distante ou mesmo de Badorian,
cortejando-a, mas decidiu que não era o momento para pensar em tal coisa.
Um silvo eclodiu sobre os céus, fazendo muitos ao redor voltar à tona de seu
estupor e aflição, ao passo que os prantos pareceram se intensificar. Ivyna abraçou
o irmão com desespero e seus soluços ficaram ligeiramente mais altos. O abraço de
Falla também se acirrou e Heidlich envolveu ainda mais a mãe e a irmã, tentando
ser o mais acolhedor possível naquele instante. Seis soldados, três de um lado e três
do outro, suspenderam o caixão do rei a meio metro de altura e seguiram
caminhando, lentamente, em direção à margem do rio.
Heidlich acompanhava cada detalhe e as lágrimas escorriam tímidas dos seus
olhos. A cerimônia de despedida havia iniciado. A partir daquele momento, nunca
mais veria o pai novamente. Nunca mais o abraçaria, nem o beijaria na testa, jamais
poderia contar-lhe as muitas histórias que vivenciou, tampouco poderia dizer-lhe
que derrotou um kraken e exterminou bandos de assassinos nos confins de
Eurodian.
Os soldados chapinharam sobre as águas calmas e ondulantes da orla do Mulbe
e depositaram o caixão branco em um barquinho simples de madeira. Uma
alquimestre do ar agitou as mãos e o barquinho iniciou sua jornada pelas águas,
rumando vagarosamente em direção ao horizonte.
As lamentações se tornaram mais intensas à medida que o barquinho se
distanciava da margem do rio. Um braço se ergueu alto e uma fagulha coruscou
sobre os dedos em riste. Um arco de fogo mágico surgiu e uma flecha em chamas
foi esticada sobre ele. Outros braços se levantaram em uma sequência cadenciada
e novos arcos e flechas em rubras chamas surgiram sobre muitas mãos. Os
membros da Academia dos Guardiões, ainda que com rostos inchados e olhos
marcados por lágrimas, se uniram aos soldados alquimestres do reino e conjuraram
arcos e flechas mágicos, iluminando a clareira ao redor do rio Mulbe, como uma
única tocha acesa na extensão do vale lúgubre.
137
Descrevendo um círculo perfeito de nuances vermelhas e vivas sobre um céu
mórbido e acinzentado, a chama elemental das flechas dos soldados e guardiões da
Academia coloriu os ares e atingiu, uma a uma, o caixão sobre o barquinho, que
quase não se via lá no horizonte. O fogo logo começaria a arder sobre a madeira e
consumiria aos poucos caixão e barco, até que suas cinzas subissem aos céus e
desaparecessem sobre as águas enregelantes e revoltas do rio.
Correndo a mão direita e afagando os cabelos de sua mãe, Heidlich beijou-a na
testa. Em seguida, ergueu a mão direita e fez brotar uma chama vermelha como a
dos demais guardiões da ponta dos dedos. A pequena chama se lançou sobre a
abóbada celeste coberta pela cerração e reboou pelos ares, deixando um rastro
incandescente como as demais e atingiu a tranquilidade do barquinho em sua
viagem rumo ao infinito, ardendo em chamas no horizonte.
Heidlich voltou a abraçar a mãe e a irmã, mais forte do que antes, consumido
pelo medo e pela angústia. Os seus vinte ciclos como Guardião de Eurodian jamais
o ensinaram a lidar com isto.
Uma mão firme repousou sobre seu ombro direito.
O sol, em algum lugar além das nuvens cinzas que permeavam o reino, se punha
no horizonte. Era muito tarde. A cerração da noite se assomava sobre a orla do rio
e uma penumbra melancólica avançava sobre as florestas ao redor de forma
avassaladora e aterrorizante. O barquinho com o caixão desaparecera. As chamas
o consumiram e suas cinzas vagavam ao léu, misturando-se ao tom sem vida dos
céus. Todos haviam ido embora. Somente Heidlich permanecia, solitário e
pensativo. Contemplava o horizonte, esperando por alguma coisa. Algo que
preenchesse o vazio que o abatia. Uma coisa que ele sabia que nunca mais viria.
— Minhas mais sinceras condolências, Lorde Heidlich.
Girando o queixo, Heidlich vislumbrou quem o interceptava.
— Brennan? — Heidlich o cumprimentou. A voz ainda um tanto embargada.
Alto e de cabelos negros e espetados, Brennan era uma autêntica cópia do pai.
No alto de quatro vigorosas patas de cavalo e de crina reluzente e prateada muito
bem escovada, ele exalava imponência. O tronco humano de porte pujante e
músculos definidos era quase o dobro do tamanho de um centauro comum. O
rosto era caricato, largo como o do pai, mas o queixo fino e com um pequeno
furinho na ponta. Não havia as tranças tão distintas e cobertas de adornos como as
de Sauba-Khami. Ao contrário, Brennan era mais adepto de um corte de cabelo
curto e livre de longas madeixas. Sobre as narinas largas de seu nariz pontudo, duas
pequenas argolas douradas cintilavam.
— Há quanto tempo não o vejo? — questionou Heidlich, espantado.
— Deixe-me ver. Acredito que há oito ciclos, pelo menos. Não me lembro de
você tão forte assim da última vez que te vi.
138
Heidlich fitou novamente o amigo centauro no topo de seus mais de dois metros
altura.
— Eu digo o mesmo. Andou malhando com os troncos das árvores de
Armentur? E quanto a seu pai? Como está Sauba?
— O mesmo de sempre, você sabe. — Brennan sorriu, acanhado. — Velho e
cheio de histórias para contar.
— Mande um abraço para ele. Meu coração sempre estará com o clã dos Khami,
assim como esteve o do meu pai.
Brennan deu um meio sorriso, desajeitado. Estava visivelmente desconcertado e
sem saber muito bem o que falar nesse momento.
O vento soprou sobre as árvores e fez um chiado estridente quando serpeou por
entre os pinheiros mais antigos. O silêncio preencheu a quietude que se assentou
entre guardião e centauro, avançando sobre o vazio que outra vez assolava o
coração de Heidlich, que voltava a fitar o longínquo horizonte coberto pela densa
neblina.
A mão pesada de Brennan outra vez apoiou-se sobre o ombro de Heidlich.
— Uma tempestade se assoma, Lorde Heidlich.
O guardião virou o rosto intrigado, contorcendo o cenho para a frase do amigo
centauro. Observava outra vez o horizonte, no exato ponto em que rio e céus se
tocavam. Era o típico inverno de Eurodian: densas cerrações, ventos enregelantes,
algumas vezes a neve cobrindo casas, florestas e estradas, mas nunca tempestades.
Tempestades eram fenômenos característicos do verão. E então, Heidlich entendeu
quando seus olhos se voltaram outra vez para o rosto de Brennan. O centauro
parecia extasiado e o encarava como se conseguisse observar o mais profundo
recôndito de sua alma. Ele sabia que os centauros, assim como os elfos
sacramentadores, eram sensitivos quanto ao tempo e os mistérios da predição do
futuro.
— O que você quer dizer, Brennan?
— Uma tempestade se aproxima, Heidlich. — E o guardião nunca ouvira a voz
de Brennan tão grave e tensa como naquele instante. — Uma que não vem das
montanhas, mas que insurge do mar e arremete de forma ameaçadora sobre a terra.
Prepara a tua casa e fortifica os seus alicerces. Não deixe nenhuma brecha aberta.
Calafeta todas elas enquanto você pode, pois esta tempestade sacudirá Eurodian
como nunca antes aconteceu em toda sua história e abalará as estruturas de Eirin
para sempre.
139
Capítulo Dez
Tempos Caóticos
Sobre o pináculo da mais alta torre do Oráculo do Tempo, o templo ancestral
dos Sacramentadores, olhos carregados de apreensão vislumbravam o longínquo
horizonte. Nos confins de Eirin, no ponto exato em que céus e mar se fundem em
um beijo estonteante, em uma explosão de nuances esplendorosas e encantadoras,
o sol iniciava seu ocaso. O lusco-fusco pintava nuvens, a abóbada celeste e as águas
revoltas de Argúrius com seus tons laranja, quentes e vibrantes. Insólito, como um
pequeno borrãozinho insignificante e negro na imensidão do mar, um barquinho
cortava as ondas, navegando com tranquilidade. Logo, ele aportaria no cais de
Purysia.
Reverberando os sapatos sobre o piso de mármore, Arturo Menfesis caminhava
de um lado a outro, inquieto. As primeiras sombras da noite avançavam sem pedir
licença para dentro do cômodo. Invadindo as sinuosas vidraças da torre, a escuridão
crescente lançava-o sobre a penumbra do entardecer, juntamente com suas
preocupações e angústias. Mãos para trás, a direita acariciando repetida e
exaustivamente a esquerda até o ponto de sentir um pequeno calombo formar-se
entre o dedo anelar e o médio, o Primeiro-Líder da Ordem dos Sacramentadores
não conseguia evitar lançar olhares inquietantes para o objeto mágico mais valioso
— e perturbador — da ilha: a Bússola do Caos.
Parado de frente para os ponteiros dourados e estáticos, devaneava em como fora
tolo e inocente a ponto de deixar esta situação tomar proporções tão catastróficas.
Como não percebera os sinais?
Havia o quê? Vinte ciclos?
Vinte e cinco, se não estava enganado, desde que as primeiras perturbações na
harmonia do tempo e espaço começaram a mover os ponteiros da Bússola de
maneira irremediável. Então, acompanhava de perto e com uma sensação crescente
de impotência, sua era como Supremo-Chanceler de Purysia desmoronar como as
ruínas de um velho palácio castigadas por uma maré avassaladora denominada de
caos.
140
O Caos Absoluto. A soma de todos os medos de qualquer sacramentador e o
maior e mais antigo infortúnio a ser combatido desde as mais remotas eras, pela
Sacramentação do Tempo.
Desde tempos mais primitivos, quando nem se sonhava com o advento da
Grande Era das Trevas, que revelou a glória da Sacramentação e trouxe à luz a
ciência e magia dos elfos quanto ao tempo e espaço, uma antiga profecia fora
entoada na forma de um soneto. Uma canção maldita que nasceu no coração das
florestas de Aladar e, como uma chama incessante, se alastrou pelas densas matas
de Eurodian, Anlevor, Turmis e Elstoen. Ao longo do tempo, ecoava pelas eras em
direção à eternidade. Uma profecia entoava que o dia chegaria, sem que Eirin
percebesse, em que os continentes vibrariam em frequências infernais cuja
sabedoria existente não poderia decifrar. Oscilaria até o ponto em que a magia se
extinguiria e o tempo-espaço seria totalmente despedaçado. Neste dia, então, viria
o fim. O prelúdio de uma era de tremores, fenômenos climáticos indomáveis,
guerras virulentas e atrocidades inimagináveis. Uma era em que harmonia e
equilíbrio virariam pó. A Era do Caos.
Centenas de Sacramentadores nasceram e viveram para que este pesadelo em
forma de canção jamais se tornasse realidade. Com afinco, se esmeraram para
manter a ordem sobre a magia do tempo. Ao longo das eras, fizeram incríveis
descobertas. Desvendaram padrões sobre a malha do tempo e espaço e como ela
se entrelaçava através de infinitesimais octaedros interligados numa dimensão
mágica que transcendia a compreensão humana, cobrindo cada ser vivo, cada
pedaço de terra, o céu, as estrelas e toda Eirin como uma colmeia de minúsculos
polígonos. Descobriram que esta malha era como uma rede neural e que vibrava.
Cada oscilação afetava o espaço-tempo de uma forma diferente e com o passar dos
ciclos, padrões de vibração surgiram de acordo com o impacto que produziam. Isso
ocorria em todas as regiões da malha e, por mais que fossem minúsculas e irrisórias,
cada trepidação poderia provocar eventos variados, fossem insignificantes ou
catastróficos; estudaram formas de combater as perturbações que comprometiam
a harmonia da natureza e, ao longo dos ciclos, descobriram os impactos que cada
ser vivo impele sobre o curso natural do tempo, compreendendo as consequências
e reações desde o bater das asas de uma borboleta e da respiração ofegante de um
filhote de hipocampo até aos intentos malignos de um rei tirano ao arquitetar uma
guerra.
Uma infinidade de livros sobre a magia do tempo foi escrita, o conhecimento
disseminado para uma classe de elfos fascinados pela erudição do espaço-tempo e
dessa magia incompreensível que tinha a capacidade de entender a malha e até
prever o futuro, o poder dos Sacramentadores se disseminava e era cultivado.
Contudo, o medo e o terror provocado por um soneto maldito jamais deixou de
habitar a mente e os corações daqueles que o conheciam.
141
Forjado em quitiat, o elemento mágico mais puro das escarpas íngremes das
Minas Elborgen em Vaelfar e banhado sobre ouro-pérola, a Bússola do Caos foi
criada como uma resposta ao medo crescente dos sacramentadores por uma
perturbação generalizada que levasse o mundo a uma Era do Caos. Um artefato
poderoso intimamente ligado à dimensão mágica do tempo. Mediria as diferentes
vibrações e perturbações da malha. Cada vez que o ponteiro estivesse próximo dos
noventa graus, Eirin e seus Cinco Continentes estariam mais perto do Caos
Absoluto.
Pouco mais de quatro meses se passara desde que o ponteiro descrevera seu
maior raio.
Superando até mesmo a marcação no ápice da Grande Era das Trevas, estava
naquele momento a cinco graus de atingir o Caos Absoluto.
Pouco mais de quatro meses... quando uma notícia se arremeteu contra a redoma
de sua zona segura.
Um pergaminho esgarçado sobre as bordas e carregado de manchas e marcas das
mais variadas intempéries seguia atado às patas de uma harpia oceânica. A ave
cruzava as Águas de Argúrius em um voo solitário e incomum para a época do
ciclo, rumando em direção a Anlevor. No limiar das fronteiras com a ilha, o
Protetorado de Purysia, a guarda real da Ordem dos Sacramentadores, formada
pelos mais exímios alquimestres que Eirin poderia fornecer e testados pessoalmente
pelo próprio Conselho dos Guardiões, interceptou o estranho pássaro.
O alquimestre que a interpelou correu por entre as galerias e salões do Oráculo
do Tempo, os dedos agarrados ao pergaminho e o fez chegar imediatamente às
mãos de Menfesis, exatamente como ele ordenara toda vez que uma mensagem
suspeita ou preocupante atingisse a ilha ou seu entorno.
O texto não poderia ser mais aterrador.
As letras curvas e desleixadas e as palavras que quase se atropelavam umas nas
outras, expressavam o caráter de urgência do conteúdo da carta. Uma informação
que não deveria chegar ao conhecimento dos Sacramentadores, em hipótese
alguma. Mas, por infortúnio do destino, caíra justamente nas mãos de seu líder.
O ocaso das Eras desperta sem pudor;
Esvoaçando como a penugem funesta de um velho Condor.
Ele destrói esperanças,
Embaralha a confiança.
Assomando-se como gralha em campos de sal,
Ele profana o bem, adora o mal.
142
Vilipendia o Sacramentado;
Exalta o Amaldiçoado;
Estabelece seu Caos.
Quando os badalos do tempo unirem os dois vetores,
A ordem e a harmonia enfrentarão seus dissabores.
Água, terra, ar e magia, como pó, sucumbirão,
Reinos e povos, tal qual palha, queimarão.
O tempo estará perdido, indefinido até esvair,
Sua malha se desfia, não há quem possa impedir.
Quando os Oito se alinharem e o Profano emergir,
A Era do Caos insurgirá e Eirin irá sucumbir.
Menfesis reuniu uma pequena comitiva de sua guarda pessoal imediatamente e
partiu antes do sol se pôr. Montando em grifos que partiram do porto de Purysia,
Menfesis e seus escudeiros cruzaram os mares, tendo sobre o topo de suas cabeças
um lúgubre entardecer que dominava os céus a um extremo e o pontilhado das
estrelas em uma imensidão enegrecida do outro lado. As águas negras de Argúrius
em alto mar se agitavam de uma forma diferente. A paisagem melancólica que se
desenhava sobre a imensidão do céu denotava que esta seria uma longa noite.
Não era a primeira vez que ouvira os boatos. Frases esporádicas eram de seu
conhecimento. Mas, por muito tempo, preferira tapar os olhos e os ouvidos.
Ignorava os burburinhos que vez ou outra surgiam. Não considerava nada daquilo
uma ameaça real, ainda que essas mensagens proféticas o incomodassem bastante.
A caligrafia sinuosa, a escrita de forma apressada. Era a marca registrada de
desafetos que há muito ousavam colocar em xeque sua liderança quanto às questões
do tempo. E, desde que a situação fugira a seu controle, compreendeu que mesmo
a menor das oscilações poderia provocar flagelos atroadores.
A noite reinava esplendorosa e a lua cheia imperava sobre um céu sem nuvens,
quando os grifos pousaram suavemente sobre o Vale D’Além-Prata, no sudeste de
Mistral. O ar estava carregado por uma fina e quase imperceptível cerração. Esta
era uma daquelas noites agradáveis do outono em Eurodian: uma leve brisa amena
enchia os vales, mas ainda não demonstrava o poder do frio congelante do inverno.
O cheiro de carne de bode assada e cervejas com caramelo impregnava a atmosfera
irrequieta. O som de uma música alegre, cordas dedilhadas que reverberavam em
um ritmo acelerado e vozes cantando aos berros preenchia o perímetro do vale. A
Aldeia dos Druidas estava em festa. Uma celebração que não duraria muito tempo.
143
A presença de Menfesis e seu protetorado não foi notada em meio aos festejos e
à bagunça. Pessoas dançavam de um lado a outro, notavelmente embriagadas e
erguiam taças e canecas de bebidas contra os céus a todo instante; outras se
lambuzavam com enormes espetos de carne ou se acomodavam em mesas e
banquetas de madeira para saborear guisados em potes redondos de bambu
enquanto observavam as danças e comemorações.
O Supremo-chanceler de Purysia caminhou sem pressa. A multidão não parecia
notar a presença de um elegante elfo de roupas finas avançando pelo vale, seguido
por uma comitiva enfurnada em longos capões verdes, sustentando lanças e
espadas, observando a todos com olhares ameaçadores.
Passo a passo, Arturo Menfesis embrenhava-se pela multidão rumo ao centro da
festa.
Esquadrinhava com desprezo os velhos barbudos e bêbados ao redor. Arrogavam
para si o título de homens mais sábios de Eirin. Por eras, foram considerados os
maiores profetas do mundo e suas mensagens eram transmitidas como lei. Mas
Menfesis sabia o que eles eram. Parasitas inescrupulosos, movidos pela ganância;
pilantras da pior espécie e que viviam em função do ouro e da prata, aproveitandose
dos anseios dos povos em descobrir o que o futuro reservava a todos. A
aparência era tenebrosa. Os longos cabelos e barbas grisalhas eram desgrenhados,
com aspecto de sujeira impregnada. Os corpos exibiam tatuagens que ilustravam
grandes momentos da história de Eirin, principalmente da época em que os druidas
possuíam algum respeito das nações. Adoravam se envolver com prostitutas e em
eras passadas, quando os reinos menos abastados não podiam ofertar ouro ou
pedras preciosas, pagavam por suas pífias previsões com jovens virgens que se
tornavam suas escravas sexuais. Para um sacramentador, esta era a pior das
profanações. A sacramentação exigia pureza. Somente um corpo livre dos desejos
sexuais, celibatário, era digno para purificar e tratar das questões do tempo. O
sacrilégio de homens que se autointitulavam profetas legítimos, com os corpos nus
enroscados entre as pernas de prostitutas por todo lado, era uma transgressão
vexatória para aqueles que realmente se dedicavam em compreender as intempéries
que o futuro reservava ao mundo.
O Sacramentador avançava. A terra fofa e macia, de tom vermelho-sangue,
característica do longínquo Vale D’Além-Prata, exalava um odor desagradável. Vez
ou outra, os sapatos chafurdavam sobre poças de cerveja e melaço ou afundavam
pedaços de osso de carneiro e bode que alguém descartara por ali. O pergaminho
seguia firme na mão direita; os dedos pressionando-o com fúria. O vale logo estaria
exalando um odor pútrido e não seria dos restos de comida lançados ao chão.
Olhares espantados se aperceberam da sombra provocada por Menfesis ao
postar-se próximo às brasas da fogueira principal da festa. A presença do elfo fora
144
notada afinal e as cabeças dos druidas entrelaçadas com as prostitutas viravam-se
para contemplar a cena.
A cantoria cessou. As danças, os instrumentos de corda, as comemorações e os
gritos eufóricos calaram-se. As respirações ficaram menos ofegantes e oscilavam.
A presença do líder da Ordem dos Sacramentadores inspirava temor. As atenções
eram exclusivas para o centro do vale, onde antes estava o ponto mais agitado da
festa.
— Procuro por um druida de caligrafia sinuosa — proferiu Menfesis,
calmamente. — Com exorbitante pressa em perturbar a harmonia do tempoespaço.
As expressões iniciais eram de confusão, mas logo tornaram-se aterradoras. Um
burburinho confuso alastrou-se sobre o vale. O medo era tangível entre os que
cochichavam, tanto quanto o aroma da carne assada e da cerveja derramada aos
tonéis sobre a terra rubra. Todos sabiam do que o elfo falava. Nenhuma viva alma
ousou se pronunciar.
— Pois bem. — Menfesis alteou a voz, sobrepondo-se aos murmúrios que se
tornavam ensurdecedores — Se o culpado por tamanha insolência é deveras
covarde para se apresentar e expor seus pecados, exijo que seja feito um pagamento
equivalente ao desatino que tal profecia poderia provocar sobre a vastidão das terras
de Eirin. Protetores, queimem este vale até que não sobre nem mesmo cinzas para
a posteridade.
Um coro de gemidos retumbou.
Um estalo tonitruante se ouviu.
Uma chama azulada irrompeu das mãos dos alquimestres e serpeou pelo
perímetro do vale. Uma onda crepitante se alastrou por entre as barracas e cabanas,
consumindo tudo o que encontrava pela frente: druidas emaranhados com suas
prostitutas, rodas de pessoas que interromperam as danças coletivas, carneiros e
cavalos que repousavam nos currais. Gritos de terror e uivos de sofrimento
ecoaram sobre o acampamento de diversos pontos e lugares. Ao redor, druidas
queimavam e suas carnes derretiam enquanto corriam para onde não houvesse fogo
mágico. Mas a chama elemental estava por toda parte.
Menfesis permanecia estático. Observava a aldeia sucumbir sem um pingo de
misericórdia.
Uma das maiores cabanas do acampamento estalava com as fortes labaredas perto
dos currais. Clarões azuis do fogo mágico coruscavam contra os céus, atingindo
proporções aterrorizantes e, enquanto o líder da Ordem dos Sacramentadores
observava corpos sendo consumidos diante dele, impassível, dois homens
arrastaram um terceiro por entre as chamas e pessoas incendiadas e o arremessaram
aos pés do elfo pretensioso.
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— É este o remetente da carta — gritou um druida que atirou o homem sobre a
terra, ajoelhando-se e pressionando o rosto contra o chão. — Pelas sacras estrelas,
poupe esta aldeia e a vida desses homens e mulheres.
Menfesis encarou os velhos a sua frente com desprezo. Nojo seria a palavra mais
coerente. A real essência dos humanos demonstrada aos seus pés. Ante o medo de
uma morte sofrível, os homens revelavam sua verdadeira face. Desprezíveis,
traidores. O elfo contemplou de soslaio o fogo que dobrava, triplicava em tamanho
e extensão, dizimando centenas de vidas e consumindo tudo o que estivesse a sua
frente. Ergueu o punho. Ao seu gesto, os protetores cessaram de produzir as
chamas e aguardaram por novas instruções.
O cheiro de madeira e carne humana derretendo invadiu os ares. O odor acre da
cerveja e restos de carneiro assado no chão era substituído pelo cheiro da morte
espalhado na atmosfera. Fumaça e cerração se fundiam: tornavam-se uma única
sombra cinzenta e fantasmagórica que dominava as entranhas do Vale D’Além-
Prata. Menfesis continuava imóvel, observando os druidas diante dele.
— Levantem-no.
Pressurosos e atrapalhados, os dois druidas das extremidades levantaram o
terceiro homem, que insistia em manter o rosto escondido sobre a lama cor de
sangue. Puxando o velho por seus longos cabelos brancos sujos de barro, o rosto
embaçado apareceu. Atrás da terra molhada que impregnava a face lívida e a barba
grisalha coberta de lama, olhos verdes e assustados surgiram. Arregalados, eles
vidraram no rosto sereno e indiferente de Arturo Menfesis.
— Grão-Mago C’Niha — balbuciou o elfo, mantendo a serenidade em seu tom
de voz. — Optou por deixar tantas vidas serem dizimadas pelo fogo a ter de me
enfrentar. És um homem afortunado por ter esses dois fiéis sacerdotes. Preferiram
sua vida no lugar das demais. É pena terem tomado tal decisão tardiamente.
C’Niha arfava desesperado. A respiração ofegante era o termômetro que
escancarava os níveis astronômicos do medo que o Grão-Mago dos druidas possuía
naquele instante.
— Pro inferno com sua moralidade ignóbil — grunhiu C’Niha, cuspindo sobre
o pé do elfo. Reunira o pouco de coragem que ainda lhe restara. — Impostor
desprezível. Usurpador repugnante.
— C’Niha, eu quero o nome. — Menfesis controlava o instinto, mantendo a voz
serena; os braços firmes atrás das costas. — O nome do arauto do caos que tenta
me afrontar mais uma vez, pois eu sei que esta mensagem jamais seria obra da fajuta
sabedoria atribuída a vocês.
— IMPOSTOR! USURPADOR! — berrava C’Niha, enlouquecido, cuspindo sua
cólera.
Um lampejo ofuscante coruscou à esquerda de C’Niha e em seguida, à direita do
Grão-Mago, como um raio cintilante que corta os céus de forma inesperada. No
146
instante seguinte, a mão de Menfesis sufocava o pomo-de-adão do druida que antes
o insultava sem que ninguém notasse seus movimentos. Os dois homens que o
entregaram desapareceram do nada, sem deixar vestígios.
— Como ousas afrontar a Ordem dos Sacramentadores com tamanha petulância?
Perguntar-te-ei pela última vez e caso não queiras ter o mesmo destino dos
sacerdotes que o entregaram a mim, sugiro-te que pense bem as próximas palavras:
anseio pelo nome do maldito centauro que prefere esconder-se de minha presença
e espalhar suas sórdidas e levianas profecias aos quatro cantos de Eirin.
A crença de Menfesis não deixava dúvidas. O elfo sabia que os druidas não
tinham capacidade intelectual para prever as incertezas do futuro. Viviam em
função da barganha, vendiam falsas predições por um punhado de ouro. Havia
muito tempo, as reais previsões eram mensagens replicadas de outros profetas. Os
profetas a quem temia eram uma raça que compartilhava do mesmo dom dos elfos
sacramentadores e que por muito tempo foram grandes aliados seus, embora eles
jamais fossem considerados dignos da pureza da sacramentação pelo seu amor
incondicional à guerra. Era a esses usurpadores do real poder do tempo a quem
Menfesis temia. Os principais protagonistas da ameaça que insurgia e batia à porta
de sua era à frente da Ordem.
Os olhos esbugalhados de C’Niha miravam a expressão fleumática de Menfesis
que aguardava a resposta. O rosto do druida deixava aos poucos o tom pálido e
sem vida e ia se tornando avermelhado com os dedos do elfo pressionando sua
garganta. Nos segundos que se seguiram, os lábios do homem balbuciaram alguma
coisa inaudível.
— Como, C’Niha?
Menfesis comprimiu os olhos; não compreendia as palavras do homem.
Afrouxou um pouco os dedos da jugular do druida e aproximou o ouvido esquerdo
de seus lábios arroxeados.
— Eu ainda verei a Ordem dos Sacramentadores cair e, neste dia, quem queimará
sob as estrelas será você!
C’Niha se desvencilhou das mãos do sacramentador e, puxando o ar com força,
caiu de joelhos e pôs-se a rir, histérico. Menfesis se encheu de fúria e em um giro
rápido que pegou a todos de surpresa, desembainhou um punhal dourado e o
cravou sobre o peito do druida. Um filete de sangue jorrou, manchando as vestes
de seda marfim do elfo com um longo e sinuoso rastro vermelho e brilhante. O
druida cessou as risadas e acompanhou com o olhar agonizante o elfo a sua frente
arrastar a faca cravada em seu coração na diagonal, rasgando seu tórax até embaixo.
O Grão-Mago despencou sobre a terra molhada com um baque oco, irrigando com
sangue a poça de lama e cinzas sobre a qual jazia.
Menfesis limpou a adaga com o pergaminho que continha a profecia e guardou
ambas sobre as vestes.
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— Nossa partida é iminente — proferiu o elfo, observando os arredores; o timbre
de voz inabalável e sereno. — Queimem tudo que ainda tenha vida e possuam o
que desejarem. A leviana erudição dos druidas de Além-Prata se encerra aqui.
Emergindo do devaneio, Menfesis contemplou a embarcação atracar no porto de
Purysia.
A brisa marítima agitou a longa capa azul do guardião.
Um gosto de água salgada invadiu seus lábios e um aroma causticante de peixes
pútridos irradiou para as narinas do homem assim que os pés se firmaram sobre as
pedras lisas do cais do porto de Purysia. Gaivotas grasnavam em timbres
esganiçados no céu. Esperavam por algum peixe dando sopa ao longo da orla para
que lhes servisse de jantar e o sol desaparecia, preguiçoso, em um ocaso que
terminava de ocultar os últimos raios alaranjados, bem atrás de onde seu navio
atracara.
August Moronov aprumou-se.
Ordenou à sua guarda particular que esperasse no navio. O assunto era restrito e
ele não queria outros ouvidos conhecendo o que precisava tratar. Não pretendia
também se demorar muito tempo. Precisava amarrar algumas pontas soltas e umas
poucas explicações estariam de bom tamanho. Observou com atenção se alguma
viva alma surgiria de um canto qualquer para recebê-lo. Aguardou por alguns
segundos, afinal, não era um completo estranho àquela ilha. Recordava-se da
primeira vez que colocou os pés sobre o Oráculo do Tempo, Purysia. Havia
acabado de ser nomeado Terceiro Líder do Conselho dos Guardiões e, embora
poucos dessem importância à sua função — e muitas vezes até esquecessem que
havia um terceiro na linha de sucessão na cúpula do Conselho, Moronov preferia o
título que recebera de Salazar Stanhorne: Chanceler dos Guardiões. O que deixava
mais do que claro a toda Eirin qual era seu real papel. Diplomacia entre as nações.
Representava a instituição máxima da magia, pela qual vivia e que tanto venerava.
À época, a ilha estava em festa.
O líder da Ordem dos Sacramentadores, um elfo tão esnobe e altivo quanto os
demais, Arturo Menfesis, abrira as portas de Purysia pela primeira vez para receber
o Conselho dos Guardiões em uma conferência histórica, reunindo lideranças
proeminentes de Eirin, reis e rainhas, os oito elfos que ocupavam os pilares da
Sacramentação, bem como o Círculo dos Cinco Guardiões. Esbelto e de longos
cabelos negros e lisos que iam até a cintura, encarou a comitiva de guardiões com
seus olhos cinzentos e penetrantes como os de uma víbora na iminência de dar o
bote. Embora o queixo fosse duro e as expressões um tanto ameaçadoras, ele
sorriu, exibindo dentes tão brancos que pareciam ter brilho próprio. Moronov
repetia para si mesmo, à época, que aquele elfo era alguém com quem não se deveria
discordar.
148
Era notório a todos que Menfesis não estava à vontade com o tanto de gente
ocupando a ilha, ainda que o motivo de tal incursão fosse o mais nobre de todos.
Durante a conferência, em um amplo anfiteatro no suntuoso palácio dos elfos,
onde muitas lideranças discursaram, o líder dos Sacramentadores foi enfático e não
se demorou. Não perdeu tempo em explicar como a magia da sacramentação
funcionava, o que para todos era uma ardente expectativa, pois ninguém nunca
compreendeu, de fato, como os elfos conseguiam antever situações climáticas
perigosas ou outras catástrofes e cataclismas. Palavras como “malha”, “tempoespaço”
e “vibrações” eram repetidas à exaustão, sem que o público ao redor
compreendesse o que significava. Ao término da conferência, o semblante do elfo
denotava certo alívio. Para Moronov, estava claro que Menfesis era um elfo avesso
ao convívio social com outros que não fossem de sua raça e religião. Isso poderia
gerar problemas diplomáticos no futuro, se a delicada relação de parceria com os
elfos fosse afetada.
Esvaindo-se de seus devaneios, Moronov continuava postado no cais, imóvel.
Ponderava o quanto a relação entre sacramentadores e guardiões tornava-se
fragilizada a cada dia. O distanciamento de Menfesis tornava tudo ainda pior.
Aguardando algum elfo sacramentador ou mesmo um dos protetores da ilha vir
recebê-lo, a situação atual não era festiva e Purysia não lembrava mais, nem de
longe, o suntuoso paraíso do qual o Chanceler do Conselho recordava. O aspecto
era de descaso, abandono total, como se exaurida do esplendor de tantos ciclos
antes. Algo não estava bem na Ordem dos Sacramentadores e ele precisava
descobrir o quê.
Sob a luz dos archotes que iluminavam o cais, antes que as gaivotas acima de sua
cabeça o confundissem com alguma espécie exótica de peixe e o atacassem,
Moronov percebeu que era inútil aguardar ali e seguiu seu caminho pelo porto,
solitário, rumo aos portões da sede da Ordem.
Dois extraordinários portais de ouro maciço semiabertos se assomaram quando
o guardião alcançou o fim da escadaria. Adornados com belíssimos vitrais azuis que
se assemelhavam às águas de uma cascata a jorrar, os portões principais do palácio
surgiram no fim da trilha de lajotas que se apresentava para ele. O templo dos
Sacramentadores surgia em seu campo de visão, quando Moronov foi interceptado
por dois alquimestres.
— Desejo falar com Arturo Menfesis imediatamente — se antecipou Moronov,
empertigando-se o máximo que pôde. Os dedos se apressaram em agitar uma
pequena insígnia em seu peito com o brasão do Conselho dos Guardiões.
Os alquimestres permaneceram impassíveis.
— O Primeiro-Líder da Ordem dos Sacramentadores e Supremo-Chanceler de
Purysia, Arturo Menfesis, não poderá recebê-lo. O decreto Meditatem está em vigor
e ficará assim até segunda ordem.
149
“Ora, quanto ultraje”, pensou Moronov, embasbacado.
— Acho que vocês não entenderam. — O guardião puxou o brasão do Conselho
com ferocidade e o chacoalhou como quem brande uma joia rara para um público
cético. — Eu sou August Moronov, Chanceler do Conselho dos Guardiões, e eu
peço... Peço, não. Exijo ser recepcionado pelo...
— Basta!
Uma voz trovejou e as demais emudeceram.
Depois de três meses recluso na torre da Grande Bússola, Arturo Menfesis
atravessava os portões do castelo. Determinado, as feições rígidas exalavam
impaciência. Atraindo os olhares de diversos elfos e protetores da ilha, rumou a
passos largos em direção ao calor da discussão que se iniciava.
— Eu sou...
— Sei quem és, August Moronov, Chanceler do Conselho dos Guardiões. —
Menfesis interrompera, impaciente. Fez um gesto para que os protetores da ilha os
deixassem a sós. — Diga-me, o que queres?
— Quero respostas, Menfesis — disse Moronov, titubeando. — O que é que está
acontecendo?
Menfesis permanecia imóvel. Esquadrinhava o Chanceler dos Guardiões com
uma calma intransigente.
— Os Sacramentadores estão distantes do Conselho dos Guardiões, a ausência
de informações sobre o equilíbrio na magia do tempo é quase palpável. Por três
meses, um kraken se arremeteu contra os condados pacíficos de Aralyart e
simplesmente deixou o lugar em ruínas e nós não tivemos sequer uma predição
sobre a aproximação desta catástrofe. Não temos mais ciência sobre perturbações
na malha do tempo-espaço, nem sobre fenômenos da natureza há muitos meses e,
você com certeza deve saber, — Moronov aproximou-se mais do elfo, cheio de
dedos como se não soubesse a melhor forma de dizer suas próximas palavras —
boatos têm circulado nos confins de alguns reinos... sobre uma suposta... profecia
e...
— O Conselho dos Guardiões não tem que se meter em nossos assuntos —
proferiu Arturo Menfesis, o esgar austero e sereno imutável — Nossa magia está
muito além das eras e da pequenez de sua pífia inteligência. A sabedoria da
Sacramentação do tempo transcende os rasos conceitos e entendimentos que
tendes a respeito do tempo-espaço.
— Menfesis, não ouse...
— O seu discurso me enfada. — Menfesis interrompeu, sem alterar o timbre de
voz. — Nós não nos amoldaremos aos grilhões que os guardiões pretendem impor.
A Ordem dos Sacramentadores está acima de sua vã filosofia. Sabemos como
manter o equilíbrio e a harmonia do tempo.
150
Menfesis deu as costas para o guardião e deslizou calmamente pela estrada de
lajotas, retomando seu caminho em direção aos portões de entrada do castelo.
Moronov permaneceu estático onde estava, atarantado e sem reação.
151
Capítulo Onze
O Dilema do Rei
O clima não era nada agradável à mesa de jantar no Salão Real da Virtuosa
Candorn.
E, acreditem, seria fácil pôr a culpa no cardápio e dizer que ele não estava à altura
ou pelo clima abafado da noite candorniana que fazia todos suarem por baixo das
vestes elegantes. Contudo, naquela noite, o jantar estava impecável. Três leitões
assados em brasa e temperados com cerveja para tornar a carne ainda mais macia e
suculenta decoravam a elegante mesa de carvalho, exalando uma fragrância
arrebatadora de dar água na boca. A crosta crocante e de lamber os beiços, o
torresmo, fervilhava, soltando leves fumaças espiraladas em direção ao requintado
teto do salão. Não obstante, travessas recheadas de grão de bico cozido, manjericão
e tomilho e bandejas com salada de manga e alho tostado, e ainda pães frescos,
abacaxis grelhados, bolos de carne assada com bacon e carpas em postas ao molho
de laranja se espalhavam pela mesa. Ao redor do apetitoso jantar, assentados sobre
as cadeiras, os clãs dos Wullith, Campwell e Drunírio compareciam quase em
totalidade — os ausentes remeteram justificativas plausíveis e desfiaram exagerados
pedidos de desculpas. Ninguém sonhava perder um evento tão aguardado e quem
não estava presente era realmente pelo infortúnio de alguma força maior e
impeditiva.
O belo Salão Real coruscava em muitas luzes. Candelabros e lustres dourados
irradiavam o brilho incandescente de uma centena de velas. As cortinas de veludo
verde harmonizavam com as telas de linho prata que cobriam as janelas. As cores
da bandeira da Virtuosa Candorn se espalhavam por todo o recinto. O enorme
brasão com o Corcel Alado fora polido exaustivamente a tarde inteira para que
estivesse impecável à hora do jantar. Mordomos e copeiros reais estavam
devidamente alinhados e sorridentes nos extremos do salão, a postos e solícitos em
um evento importante, reunindo as famílias de guardiões do reino.
Um cenário preparado e impecável para uma festa que, infelizmente, não estava
acontecendo.
Não pensem vocês que era por acanhamento ou contrariedade em estar ali. Lady
Deelya colocara o mais belo vestido de seu armário e, ainda que seu aspecto
152
lembrasse o de uma palhaça mal arrumada, era notório que nem mesmo uma gripe
mortal faria com que ela perdesse esse jantar. Callina e Feizar denotavam um
fascínio descomedido com a quantidade de comida e arrazoavam vez ou outra
sobre o que seria a sobremesa após a refeição. Mastenion e Airis se somaram aos
demais visivelmente entusiasmados, trazendo os filhos a tiracolo (que não estavam
tão empolgados assim); Derrick, Betine e os filhos se espalhavam ao redor da mesa
com um sorriso de orelha a orelha. O maior dos problemas que perdurava era uma
discussão maçante e infindável, derrubando o clima de comemoração.
O grande homenageado da noite, sentado na ponta da mesa sobre a mais
suntuosa cadeira, ansiava por poder terminar a própria refeição e ir direto para
cama, para que aquele caos no Salão Real finalmente terminasse.
O estômago roncava, mas a vontade de comer passava longe de Saldivar.
O antigo Guardião de Elstoen tamborilava os dedos sobre a mesa e mexia os
talheres em seu pedaço de carne sem um pingo de animação. Brincava com o bife,
revirando-o de um lado a outro do prato, como uma criança entediada, de vez em
quando mastigando um pedaço de carne para acalmar a fome que lutava contra seu
desânimo. Lançava olhares contrariados para a cena a sua frente que se repetia,
interminável, com pequenos, quase imperceptíveis, momentos de trégua — em sua
maioria, quando Lady Deelya suplicava para que os sobrinhos sentassem e se
acalmassem ou quando Mastenion dava um ou outro berro mais forte: Vegor e
Rudi em pé, brandiam seus garfos como se fossem espadas, apontando um para o
outro, trovejando as diversas razões pelo qual mereciam ser o novo protetor do
continente.
— Você é que é um grande idiota — cuspia Rudi, exasperado. O indicador em
riste apontando para o irmão mais velho. — Nunca ligou para o futuro de Elstoen,
nunca se importou em se preparar para o retorno de nosso pai. Sua única
preocupação eram as festas, as prostitutas do porto e os tonéis de rum e cerveja das
tavernas e bordeis de Erthorgen.
— Meça essas suas palavras comigo, moleque mimado! — crocitou Vegor;
agitava um garfo como se sua vontade fosse voar por sobre a mesa e cravar o talher
no coração do irmão mais novo. — Você é um arrogante e exibido, que ignora
todas as leis de Candorn e ainda envergonha nosso pai na frente de todos nesse
salão...
— EU SALVEI A SUA VIDA, SEU INGRATO — berrou Rudi, cravando o
próprio garfo na mesa numa explosão de raiva. — AQUELE TROLL IA FAZER
PICADINHO DE VOCÊ!
— Ai, ai, ai, meninos. Por favor. — Lady Deelya levantou-se, tentando acalmar
os dois pela quinta vez.
153
— NOSSA CONSTITUIÇÃO É CLARA. — Vegor levantou a voz até o volume
dos gritos do irmão; nenhum dos dois prestava atenção nas súplicas da tia — O
PRÓXIMO NA SUCESSÃO DE CANDORN COMO GUARDIÃO SOU EU!
— Não me venha com papinho de constituição. Você nunca nem estudou nada
a respeito de nossas leis. Fica repetindo isso como um papagaio de pirata. Você é
um imbecil que...
— ... e eu não vou tolerar sua insubordinação como...
— ... a sua irresponsabilidade em não se preparar...
Os gritos desvairados dos dois reverberavam pelas paredes do salão. Os copeiros
observavam a cena com espanto, de olhos arregalados. Nos demais cômodos dos
andares superiores, as camareiras interrompiam a arrumação das mantas e lençóis
para poderem ouvir. Apuravam os ouvidos para a discussão no primeiro patamar.
Até quem estivesse passando pela Ágora do Princípio poderia escutar os gritos e
insultos de Vegor e Rudi. Mastenion, Airis e Lolleene colocaram-se de pé e fizeram
coro à Deelya em uma tentativa inútil de apaziguar os ânimos dos dois jovens pela
enésima vez.
Saldivar, no entanto, embarcara em um completo estupor.
Absorto, o olhar do rei vidrava na maçã vermelha e cozida abaixo do enorme
focinho assado do leitão à sua frente.
Os pensamentos? Esses estavam distantes dali.
O alarido do povo alvoroçado ecoava pelas ruas. Aglutinados aos montes,
aclamavam um acanhado Rudi, erguendo-o acima das cabeças e lançando-o para o
alto ao coro de vivas de uma forma irrefreável e ensandecida. A imagem era
estarrecedora. Nunca, em toda a carreira como Guardião, uma situação tão
inusitada quanto essa, ao ponto de deixá-lo sem ação, havia acontecido. Arrazoava
se o teste que dera ao filho mais velho fora assim tão difícil. O poder dos guardiões
sempre se destacou por sua grandiosidade. Pelo menos para alguém que tivesse um
mínimo de preparo e domínio sobre a própria magia. Mas a atuação de Vegor fora
desastrosa. Uma vergonha total. Um tiro que saiu pela culatra e que o deixava num
beco sem saída.
Saldivar acompanhava a imensa multidão carregando Rudi e o jogando para o
alto, como se ele acabasse de ser coroado o novo herói do continente. Fitas de
várias cores e papel picado esvoaçavam pelos ares eufóricos da principal praça da
cidade. Fogos de artifício ribombavam nos céus. As cores da bandeira do reino
chispavam de forma majestosa. O povo de Candorn e até os povos de outros reinos
pulsavam, alvoroçados porque o filho mais novo de Saldivar acabara de salvar a
pele de todos.
O rei estava perdido. Boquiaberto, não sabia o que dizer ou fazer.
154
Inclinando a cabeça para o chafariz, Saldivar recordava da imagem do filho mais
velho estirado dentro da fonte. Desacordado com a primeira investida do monstro,
a cabeça pendia para um lado e o corpo para outro. Sorte a dele que despertara
antes de um segundo golpe do troll e arrumou um abrigo distante do cenário da
batalha, nos jardins do palácio real. Ninguém mais ao redor parecia interessado em
saber como, ou onde, Vegor estava. Os olhos que não estavam embasbacados de
mais com o que viram, ou pululavam junto à multidão festeira ou vislumbravam a
multidão festeira de longe, desejando estar junto.
O rei virou a cabeça para o outro lado, ainda sem ação. Os olhos descrentes de
Saldivar encontraram as feições igualmente apalermadas de Mastenion, Hallzer e
Derrick. Descompassadamente, seus amigos de longa data olharam-no como se
questionassem o que diabos estava acontecendo. Não sabia se pela surpresa em
trazer um troll sem avisar a ninguém ou se pela reação inesperada do povo em atirar
Rudi pelos ares, celebrando sua bravura. Essa era, infelizmente, uma resposta difícil
de ser encontrada.
A um gesto de Saldivar, Mastenion e Hallzer assentiram e esgueiraram-se por
entre os demais guardiões no palanque, caminhando em direção aos jardins. Os
dois guardiões embrenharam-se pelos arbustos e encontraram Vegor caído no meio
do mato. Levantaram-no pelos braços e pernas com alguma dificuldade. Apesar do
corpo atlético, o filho mais velho do rei também era deveras pesado. Caminhando
atarantados, levaram discretamente o jovem para dentro do palácio. Derrick veio
logo depois, no encalço dos três. Com um pano, esforçava-se para manter a cena
em secreto. Não queria que ninguém percebesse o que faziam e como faziam. O
rei saiu de fininho, se aproveitando da histeria das multidões. Seguiu com cautela
para que ninguém notasse pela entrada das cozinhas do palácio. A ausência dos
quatro guardiões e de Vegor desmaiado não foi percebida. A festa para Rudi ainda
agitava a praça.
— O que foi que passou pela sua cabeça, pai?
Vegor repousava sobre uma pilha de travesseiros, sentado em sua própria cama.
Tinham-no colocado lá. A cabeça fora enfaixada. Um enorme galo, parecendo um
chifre cortado, surgira no cocuruto do rapaz e hematomas brotaram em pontos
distintos de seu rosto. Despertador por infusões potentes para que recobrasse os
sentidos, o filho mais velho de Saldivar acordou afinal, observando tudo ao seu
redor. Reclamou de uma forte dor de cabeça — e não tinha como ser diferente: se
vocês estivessem lá para ver como o soco do poderoso troll acertara o crânio do
rapaz, teriam imaginado que ele havia perdido a cabeça. Ofereceram-lhe um chá de
camomila para tranquilizá-lo e depois um para dores musculares. Bebericava muito
lentamente; contorcia os músculos da face para o sabor intragável da bebida e
reclamava de dores nas articulações e nos maxilares.
Uma pequena comitiva circundava o dossel da cama.
155
Curandeiros e serviçais seguravam caldeirões e canecas fumegantes.
Contemplavam o rapaz com redobrada atenção. Investigavam se não havia mais
calombos e hematomas espalhados pelo corpo em função da queda. Mastenion
cruzava e descruzava os braços ininterruptamente. Caminhava de um lado a outro
e balançava a cabeça, expressando uma curiosa e incontida contrariedade. Saldivar
questionava-se mentalmente se por sua própria atitude um tanto irresponsável de
soltar um troll em uma praça pública apinhada de gente ou pela incapacidade de
Vegor em derrotar um troll em uma praça pública apinhada de gente. Derrick, mais
próximo da cabeceira, observava o jovem com aflita curiosidade. A maior
preocupação era a saúde do sobrinho. Os olhos com seu esgar paterno denotavam
claramente a angústia carregada em função do estado do rapaz. De todos das
famílias de guardiões mais próximas de Saldivar, era ele quem possuía um maior
apreço por Vegor e Rudi, como se ambos também fossem seus filhos. Hallzer, ao
contrário, era o mais distante. Parado junto à porta, não queria que mais ninguém
perturbasse a paz momentânea daquela reunião extraordinária às ocultas.
O rei permanecia taciturno. Até aquele instante.
— Pela minha cabeça? — pronunciou o rei, embasbacado — Moleque
irresponsável! Durante vários ciclos, fui Guardião de Elstoen, passando a maior
parte do tempo longe de casa. Só lhe dei um único e maldito conselho: prepare-se.
E o que você faz? Se entrega às festas, glutonarias e bebedeiras? Você não consegue
abater um mísero troll das montanhas e quer jogar a culpa para cima de mim?
Vegor arregalou os olhos para o pai. O rosto machucado externava um misto de
assombro e furor. Mexia os lábios sem emitir som algum, buscando as palavras
certas para poder se defender.
— Mí-mísero? — Vegor queria poder se justificar, mas a voz vacilou em um
momento inapropriado. — Era um troll monstruoso. Ele quase me matou. O
senhor poderia ter perdido um filho esta tarde. Tem noção disto?
Saldivar avançou na direção do filho e agarrou uma de suas orelhas. Somando-se
às dores no corpo e na cabeça, Vegor uivou de dor com o beliscão forte. Derrick
se contorceu, tentando acalmar o rei, Mastenion e Hallzer se sobressaltaram. Os
demais ao redor emitiram um grunhido de espanto.
— Não venha com essas chantagens emocionais para cima de mim, Vegor! —
Saldivar bufava, torcendo a orelha do filho. — Lembre-se que eu sou seu pai. Eu
te conheço muito bem. Você falhou terrivelmente comigo, envergonhou o clã dos
Wullith e a mim e ainda me colocou em uma situação vexatória, quando tudo o que
eu ordenei foi se preparar para assumir meu lugar. Um alquimestre mal treinado
teria conseguido abater a criatura sem muito esforço. Agora, o povo aclama seu
irmão lá fora. O que eu vou fazer, hein? O que farei se meu filho mais velho é
inconsequente, irresponsável e fraco de mais para derrotar um mísero troll?
Alguém bateu na porta e Hallzer averigou por uma fresta.
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Rudi forçou a entrada e irrompeu pelo portal, mesmo com Hallzer tentar impedir.
As roupas empapadas de suor, uma expressão arreganhada de felicidade estampava
seu rosto. Os olhos brilhavam de alegria contemplando o pai a um canto.
— Desgraçado! — crocitou Vegor e fez um esforço para se levantar da cama e
esganar o irmão, mas uma dor lancinante nas costelas o impediu de atacar e uivou,
aflito, despencando sobre os travesseiros.
— Rudi, talvez não seja o momento de...
— Pai, eu derrotei o troll. — Rudi interrompeu Mastenion, arreganhando ainda
mais o sorriso.
— Eu sei, meu filho — falou Saldivar, esfregando a testa, disfarçando a tensão e
caminhando em direção a Rudi. A situação seria diferente em outras circunstâncias.
Comemoraria alegremente com o caçula. Mas a crise que se instaurava no cômodo
impedia o rei de poder se alegrar com uma vitória tão espetacular do filho mais
novo.
— Veio aqui se gabar enquanto eu convalesço? — vociferou Vegor. O maxilar
latejava.
Rudi esquadrinhou o irmão debilitado sobre a cama e o ignorou. Observou
apreensivo a notória preocupação do pai. Contudo, se havia um momento para
dizer o que tinha de dizer, este era o momento e não poderia deixá-lo escapar. Era
a oportunidade de ouro da sua vida.
— Pai, eu mereço ser o Protetor de Elstoen — Rudi engrolou a sentença de uma
vez só, com a coragem que conseguiu reunir.
Hallzer, Derrick, Mastenion, os curandeiros e os empregados do palácio
seguraram a respiração. Olhos se arregalaram e queixos despencaram com a frase
do filho mais novo do rei. Não se tratava de um pedido ou de uma ponderação de
Saldivar, era uma afirmação contundente e categórica. Um silêncio mortificante e
constrangedor instaurou-se sobre o quarto em que os presentes se entreolhavam,
prendendo a respiração. Só o ruído do vento fustigando as janelas de madeiras
interrompia a quietude gritante do momento.
— Filho, eu...
— INSOLENTE! ABUSADO! COMO OUSA? VOCÊ QUER A FAMA E A
GLÓRIA, USURPANDO MEU CARGO POR DIREITO?
— EU LIVREI VOCÊ DA MORTE, SEU IDIOTA INGRATO!
— Me livrou? EU PODERIA TER ABATIDO AQUELE TROLL.
— Poderia se não estivesse DESMAIADO FEITO UMA MULA COM SEDE
DENTRO DA FONTE!
— EU VOU TE MATAR, SEU MOLEQUE DESGRAÇADO!
— TENTA A SORTE E...
— CHEGA.
Saldivar retumbou sobre o quarto e a gritaria dos filhos cessou.
157
Os olhares ao redor se voltaram para o rei, cuja veia no pescoço dilatava. A
impaciência dominava seu rosto, evidente pelas sobrancelhas arqueadas em uma
expressão ameaçadora e pelos lábios crispados. Isto, aliado à estafa pela exaustiva
viagem de Vervaz até Candorn, tendo de resolver um problema que ele mesmo
arranjara.
— Rudi, — A mão do rei repousou sobre o ombro do filho caçula, pensando na
melhor forma de responder ao que afirmara — eu não posso permitir que você
assuma como Guardião.
Uma risadinha emergiu do topo da cama e Saldivar fuzilou Vegor com os olhos.
— Você sabe que nossas leis são muito transparentes nesse sentido, meu filho.
Eu não posso ir contra elas. O primogênito da linha sucessória real é quem herda
este posto. A não ser que ele abdique desta...
— Nunca — crocitou Vegor, com os olhos comprimidos.
— Para tal, — Saldivar retomou sua fala como se não tivesse sido interrompido
— ele deve se PRE-PA-RAR. — E o rei fuzilou o filho mais velho com um olhar
autoritário. Vegor encarou o pai, assustado.
— Mas, pai, você sabe que...
— Rudi, basta. — Derrick abraçou o sobrinho, esfregando o braço esquerdo do
rapaz para que ele encerrasse a discussão.
— Quanto a você — Saldivar girou nos calcanhares, mirando Vegor. A voz mais
grave e contundente. — Trate de se preparar imediatamente. Não posso trair a
confiança dos reinos amigos. Minha missão é eleger um guardião capacitado e
dignamente preparado para proteger o continente, conforme nossos mais antigos
estatutos.
A realidade trouxe Saldivar à tona das memórias que tentava apagar para a
milésima vez em que ouvia os filhos discutindo pelo palácio. Derrick se metia no
meio da briga e abaixava o dedo em riste de Vegor com Lady Janesse esbravejando
com ambos, perdendo as estribeiras. Bills ria sem parar, assim como Kevan a um
canto da mesa. Lady Betine ralhava com os garotos que gargalhavam e tentava
também conter os ânimos dos sobrinhos brigões. Trawlin meneava a cabeça e
acenava para as filhas se apressarem e terminarem suas refeições para que pudessem
sair logo dali. Afastando a cadeira sem fazer barulho, o rei de Candorn saiu pela
tangente e deslizou até o pátio externo suplicando que ninguém tivesse reparado
sua ausência.
Uma leve brisa corria, mas a noite era abafada.
Caminhou até os jardins externos e contemplou a vastidão de pinheiros
mergulhados na escuridão da noite, iluminados por alguns postes de chamas
mágicas e pelo brilho da lua. O misto de distintos sons vespertinos era muito
audível, porém reconfortante, visto o inferno instaurado à mesa de jantar. Grilos e
158
cigarras cantavam alto, um corvo piava num tom agudo e desesperado e o farfalhar
das árvores se agitando de forma preguiçosa era como música para os ouvidos.
Saldivar caminhou até um dos cavalos repousando à beira do pátio e montou sobre
ele, seguindo pelo meio das árvores. O vento golpeava-lhe a face, trazendo algum
alento e uma paz, mesmo que momentânea. Torcia para que ninguém o tivesse
seguido e interrompesse a calmaria que o invadia. Queria ao menos uns minutos de
silêncio e tranquilidade, contemplando o céu tomado de estrelas cintilantes. Longe
de confusão, longe dos filhos, dos demais parentes, dos Campwell, dos Drunírio,
dos Wullith. O silêncio fora seu grande amigo por muitos ciclos. Nas missões mais
ardilosas de sua carreira, acostumou-se à quietude de savanas, aos vastos campos
abertos de Legur, às regiões desérticas de Nogaza, aos campos brancos do extremo-
Sul de Anvor-Elíada e às florestas densas de Sincar e Turvoreio. Breves momentos
de paz e conforto em meio ao caos que muitas vezes precisava enfrentar.
Questionava-se então se sua decisão perante o Conselho fora correta. Se era o
momento de passar o posto de Guardião. Recordava-se do momento em que esteve
diante dos conselheiros em Gradia, de Stanhorne, Zanotchka e Moronov, após um
longo período nas Montanhas Geladas de Gelor-Torine em sua última e árdua
missão: a de encontrar um velho amigo guardião, um dos maiores líderes que o
Círculo dos Cinco conheceu, perdido entre as traiçoeiras geleiras, mas sem obter
sucesso. Os vestígios da última incursão de Elliotr dos Bravior da Serena Snartria
haviam sido apagados pelas causticantes camadas de gelo. Não havia chance de seu
grande amigo ter sobrevivido ao frio extremo. As intensas nevascas que atingiam o
norte do continente nesse inverno tão rigoroso soterraram-no, assim com as
esperanças de encontrá-lo com vida. Mesmo para sua força e destreza, ele não teria
como sobreviver em um território tão hostil e traiçoeiro. O relatório foi anunciado,
diante das cadeiras vermelhas do anfiteatro circular do palacete do Conselho, e
então apresentou seu pedido de Sucessão Honrosa em um discurso de gratidão à
confiança pelos ciclos em que lhe foi confiada a segurança de Elstoen. Entendia
que este era o momento. O cansaço batia à porta e já não era mais o mesmo. O
vigor dos ciclos iniciais se esvaía, a dor da perda de um amigo do Círculo fora um
golpe inesperado que enterrou seus ânimos de uma vez. A decisão parecia coerente.
Entretanto, naquele instante, não estava tão certo.
— Refletindo ou querendo ficar longe da confusão lá dentro? — trovejou uma
voz grave que interrompeu de súbito os devaneios de Saldivar.
Perdido nos pensamentos e memórias, não notou que um segundo cavalo
percorria os campos dos jardins e emparelhou com sua montaria. Moreno e
robusto, longos cabelos negros repartidos ao meio que quase alcançavam os
ombros e um ar corriqueiro de soberba que Saldivar aprendeu a se habituar, mas
de coração nobre e justo, Mastenion juntou-se ao amigo, galopando ao seu lado
com um sorriso no rosto.
159
— Um pouco dos dois, velho amigo. — Saldivar sorriu, mas havia um quê de
cansaço em sua voz. Mastenion parecia ter captado a estafa do rei e balançou a
cabeça.
— Sei que deve estar exausto de sua última missão, da viagem, da longa jornada
até aqui... dessas brigas.
Os dois riram.
— Principalmente, dessas brigas... — falou Saldivar, virando-se para o amigo.
Mastenion era dono de uma notória expressão de presunção. Podia-se inferir a
seu respeito que se tratava de um homem arrogante e prepotente, do tipo que gosta
de se gabar e que se acha superior a todo mundo em um primeiro momento.
Quando mais jovem, sua altivez beirava o insuportável. Era quase impossível
manter uma conversa sadia sem que ele tentasse demonstrar o quanto era melhor
em tudo. Gabava-se a todo instante. Sempre era o mais habilidoso nos desportos,
o melhor no conhecimento cultural e histórico, o mais poderoso guardião, o
esgrimista mais talentoso. Não fosse o porte atlético e as belas feições, dificilmente
encontraria uma mulher que o aturasse. Sorte que sua esposa era um poço sem fim
de paciência e amabilidade. A experiência dos ciclos o moldou e, felizmente, para
melhor e da prepotência do passado, somente os trejeitos sobraram. O irmão do
meio de Derrick tornou-se um homem de bem, de bom coração e sempre disposto
a aconselhá-lo ou ajudá-lo de alguma forma. Nos longos períodos em que precisou
se ausentar de Candorn, foi a figura paterna que Vegor e Rudi precisaram na
infância, educando-os como a seus filhos. Teria sido um ótimo cunhado. Sâmia fora
a grande paixão de sua juventude, mas o infortúnio que a atingira mudou o destino
de todos drasticamente e Mastenion acabou casando-se com uma das irmãs de
August Moronov, Airis, uma mulher estonteante, que lhe deu três belos filhos.
— Eu não sei o que fazer, Mastenion — falou Saldivar, contorcendo o cenho.
Uma intensa preocupação e desgosto estampava sua face. — Achei que chegara o
momento de prosseguir à Sucessão. Estou velho, enfadado e farto de dias. Pensei
que ao pisar em Candorn para ficar de vez, encontraria um sucessor pronto, com
sede e disposição para encarar os desatinos dessa carreira espinhosa. Um jovem
adulto com vigor e destreza. Vejo que errei. Se ao menos minha esposa estivesse
viva, as coisas teriam sido diferentes.
— Saldivar, meu amigo, não arrogue para si esta culpa. Você não errou...
— Errei em acreditar que meu filho mais velho estava pronto. Vegor é um
inconsequente. A fascinação dele está nos prazeres da vida. O maior dos meus
temores na juventude está materializado em meu primogênito. Não há altruísmo
nele, nem dedicação, nem força, nem nada.
— Mas há em Rudi — inferiu uma terceira voz. Diferente de Mastenion, essa era
mansa e suave.
160
Um terceiro cavalo juntou-se aos demais, trotando a um lado do rei pelos jardins.
Callan Campwell seguia entre Saldivar e Mastenion.
Não era somente na voz que se notava a diferença entre Callan e Mastenion. Os
dois eram completamente diferentes. Callan não tinha o porte arrojado e nem era
tão alto, mas tinha músculos definidos por sua rotina exaustiva como militar. A pele
possuía um tom avermelhado por causa do sol, mas nunca morena. Os Campwell
eram brancos como leite. Os únicos que não se acostumavam ao clima árido de
Elstoen. A cútis esbranquiçada tornava-se levemente amarronzada pelos longos
períodos de intenso calor no verão. O tom queimado de sol desaparecia por
completo no inverno e dava lugar a uma palidez quase fantasmagórica. Ele também
não tinha longos cabelos. Curtos e ralos, eram suavemente castanhos. A calvície
avassaladora começava a atingi-lo. Algo típico em sua família. Mas, pelo que
Saldivar lembrava, achava que esta hereditariedade seria interrompida no amigo
general. Callan sustentava longos cabelos encaracolados na juventude, nos quais sua
mãe jamais permitiu que uma navalha tocasse. Diferente da pomposidade de
Mastenion, Callan era um homem reservado e taciturno. Um ardor profundo pelas
estratégias militares queimava em seu peito. Vibrava nos treinamentos dos exércitos
do reino e tornou-se um especialista no combate corpo a corpo. Ascender ao cargo
de general foi uma consequência natural. Mas havia uma coisa que tornava ambos
parecidos: Callan também fora apaixonado pela irmã mais nova de Saldivar. O que
corria entre os diversos boatos em Erthorgen e outros condados do reino era que
ele fora tão perdidamente encantado por Sâmia que jamais quis se envolver com
outra mulher desde que ela desapareceu sem deixar vestígios. Seguia solitário desde
então, sempre com ar desolado, ainda que dezenas de pretendentes de outras
famílias de guardiões se interessassem por ele. A tristeza que sentia pela paixão não
correspondida suplantava o desejo por outras mulheres e por outras paixões. Optou
por amar a guerra e dedicar-se aos anseios militares de seu reino.
— Callan, meu general. — Saldivar balançou a cabeça, mirando os olhos
carregados de uma tristeza crônica no amigo a sua frente. — Por mais que eu
quisesse e que estivesse balançado por isto, seria trair nossas próprias leis, nossos
costumes ancestrais.
— Leis podem ser revogadas, meu rei — disse Callan, lacônico. — Costumes
podem mudar. A exigência do Conselho é uma escolha sábia, por alguém que seja
realmente capaz e não por costumes ou leis. Enviar o mais poderoso guardião é a
prioridade.
— Meus amigos, — Saldivar estava visivelmente contrariado. A mente insistia
em repetir que o correto era seguir as antigas tradições, mas o coração vacilava.
Pendia para tomar uma decisão contrária e inédita, contudo tinha medo de trair as
tradições — o que faria sem o alento de vocês e o conforto que me traz a presença
de ambos. Porém, eu não sei como resolver esse impasse.
161
— Proponho um teste — falou Mastenion. — Não é de agora, nós sabemos, que
a situação em Poyares, Turvoreio e Anvor-Elíada é aterradora e que essa diplomacia
do Conselho, embora coerente com nossas Leis Primazes, cria um impasse e
aterroriza os reinos-irmãos de Elstoen. Os povos bárbaros saqueiam vilarejos
remotos, fincam suas bandeiras nas terras de nossos amigos e fazem escravos nos
confins do continente. Em Poyares, onde a situação está mais aterradora,
recebemos a informação de que os povos bárbaros acamparam nos arredores do
condado de Avaleon. É possível que façam uma investida de dominação. Lorde
Brenrar posicionou um pequeno exército sobre os campos de Baetrafid como
forma de intimidação. Mas se a ofensiva se confirmar, seus guerreiros estão prontos
para conter o inimigo do jeito que for necessário. Vamos enviar Vegor e Rudi, cada
um à frente de uma legião, apenas como um teste de liderança. Terão de comandar
tropas em suas rondas, fiscalizar territórios e nada mais. Aquele que melhor liderar,
segundo a opinião dos próprios soldados de Lorde Brenrar, provará para todo o
povo e para os reinos-irmãos que é merecedor de se tornar o novo Guardião de
Elstoen. Como o Conselho nos impede de obliterar os bárbaros invasores, até que
uma solução diplomática seja encontrada, vamos ao menos marcar presença no
único intuito de conter seu avanço.
162
Capítulo Doze
Uma Jornada Congelante
O suntuoso trono dourado de Gelor-Torine era uma obra magnífica.
De encher os olhos, os que o viam pela primeira vez ficavam arrebatados com a
beleza de tal artefato. Fabricado de ouro maciço e estofado em couro nobre de
dragão, cada detalhe fora meticulosamente pensado e trabalhado com esmero por
seus artífices. Cravejado de rubis que refletiam o brilho dourado de seus dois apoios
para o braço, era uma autêntica obra de arte daqueles que eram considerados os
maiores artistas de Eirin: os duendes pernitrulienses. Embora houvesse uma grande
parcela da população que considerava os elfos de Vaelfar melhores artesãos, uma
coisa era inegável até para os que torciam o nariz para as artes dos duendes —
geralmente, elfos com uma boa dose de inveja: o trono que ocupava o salão
opulento do palácio de Gelor-Torine era uma das mais belas esculturas produzidas
no mundo e carregava a essência da arte detalhista e inspiradora de Pernítrulis.
Infelizmente, e isso era um senso comum em toda Anlevor, era uma lástima tal
obra-prima tão esplendorosa ser utilizada para acomodar o traseiro gordo e abissal
de um dos reis mais preguiçosos e acovardados do continente.
Ao pé do belíssimo trono de ouro, Lorde Marvan meneava a cabeça com
aguerrido desgosto. Os cabelos negros e encaracolados mal saíam do lugar. O boato
recorrente no palácio era de que o rei de Gelor-Torine levantava antes do sol
acordar entre as geleiras e, antes mesmo de tomar seu farto café da manhã,
enfrentava uma longa sessão de cuidados com os cachos negros, aplicando um sebo
animal que impedia as madeixas de se desfazerem do penteado que tanto amava.
Dizia-se que era muito chato com esse ritual e que gostava de finalizar à sua
maneira: apertando dois cachinhos que pendiam de sua testa. Consequentemente,
com tanta gordura nos fios, não saíam do lugar nem se ele desse uma cambalhota.
O rosto rechonchudo comprimia os olhos. Negras e redondas, as irises lembravam
duas grandes jabuticabas. Escondendo parte de suas gorduras que sobejavam pelos
flancos, uma longa capa vermelha descansava sobre os ombros. Uma veia saltava
de uma das têmporas; Petr observava a pulsação frenética do rei, temendo que a
artéria se movendo no pescoço pulasse para fora. As orelhas minúsculas tornavamse
rubras, quase roxas. Lorde Marvan estava irritado.
163
— Eu não posso permitir isto, menino — falou o rei; a cabeça balançava incisiva
e com tamanha vontade que Petr temeu de o rei quebrar o pescoço. Os cabelos, no
entanto, não se moviam de forma alguma. — É suicídio! E sabe por quê? Vou lhe
dizer...
Petr não estava a fim de ouvir as razões idiotas do rei. Enfurnado em um pesado
casaco de pele de lobo e exausto de uma viagem de dois dias e duas noites
ininterruptas até a capital de Gelor-Torine, a única coisa que queria era encontrar
vestígios sobre o paradeiro de seu pai. O único pedido feito a ele era uma pequena
comitiva para acompanhá-lo. Dois, no máximo três, guerreiros que conhecessem
bem as Montanhas Geladas ao norte do reino. Por ele, teriam ido sozinhos, sem
pedir autorização ou comunicar a ninguém. Mas Chermont insistira que somente
os dois embarcarem em uma rota tão perigosa e desconhecida era arriscado demais;
era prudente pedir ajuda, refinar a relação com Lorde Marvan e que seu avô teria
agido assim, se estivesse vivo. Não era porque o avô morreu que precisava
complicar as coisas com o rei do Norte.
O rei de Gelor-Torine ralhava sem cessar. Desfiava as razões intermináveis em
um discurso enfadonho dos inúmeros motivos que embasavam o porquê de estar
certo sobre Petr estar errado. Mas o garoto viajava em seus pensamentos. Petr fitava
com curioso interesse o cenário a sua volta. Qualquer coisa era mais interessante
do que a voz nasalizada e ofegante do rei de Gelor-Torine, até mesmo o barulho
do vento uivando do lado de fora e fustigando os enormes janelões do castelo.
O salão do trono era amplo. O teto era profuso; tinha um formato peculiar e até
engraçado para quem olhava do ponto onde estava, como um cone abaulado. À
primeira vista, era exagerado; principalmente para um salão onde a única mobília
de destaque era um trono de ouro. Fazia sentido o que se dizia sobre Lorde Marvan
ser um nobre exótico, com um fanatismo inveterado pelo luxo e manias esdrúxulas
de grandeza: as paredes ao redor eram cobertas de grossas folhas de mogno com
muitos entalhes sinuosos e dourados, que lembravam tulipas de caules longos e
serpeantes. As cortinas pesadas sobre as janelas de tom azul-marinho contrastavam
bem com as variadas colunas de marfim disposta pelo recinto. A exuberante
decoração do salão fez Petr relembrar-se de imediato do Salão Principal do castelo
em Snartria. O rei de Gelor-Torine copiara cada detalhe, mas com modificações
sutis: tulipas no lugar de rosas, colunas âmbar em vez de douradas, entre outros
pormenores. Isso tudo aplicado a um exorbitante e exagerado aposento para abrigar
seu trono real.
Lorde Marvan, que ainda falava sem parar, era uma figura carimbada em Snartria,
muito conhecida de Petr. Durante algum tempo, fora muito aconselhado por seu
avô, Maximo. O garoto nunca teve real interesse em entender o porquê do rei de
Gelor-Torine hospedar-se por longos períodos no Palácio de Ônix. Questionavase
por que raios seu avô tinha tanta paciência com esse homem excêntrico e
164
medroso. Marvan era o filho rico e mimado do clã Nozrav, uma família de
alquimestres do gelo, bastante patéticos por sinal. Ignoraram as próprias habilidades
com a magia para dar lugar ao luxo, riqueza e o requinte de majestosos palácios. A
real nobreza, os interesses do povo e um governo marcado pela equidade, era
deixada de lado. Petr era muito novo, mas recordava-se das diversas vezes em que
vira um Marvan, ligeiramente mais magro e jovem, mas sempre com longos cabelos
negros encaracolados e sebentos, acompanhado do pai, um senhor atarracado e de
idade avançada, nariz bulboso, com uma risada trovejante, em longas e animadas
conversas com seu avô no palácio de Snartria.
Houve um período em que as visitas de Marvan passaram a ser mais frequentes.
Fora a época em que se lembrava dele mais abatido (e consequentemente bem mais
magro). Um tempo em que tudo que ele menos queria era ficar em Gelor-Torine:
o ciclo em que seu pai falecera. Maximo o acolheu neste período, aconselhando-o
com o carinho e a atenção de um pai. Nos dias atuais, Petr compreendia essa dor.
A dor da perda. A sensação de estar sozinho no mundo, mesmo rodeado de pessoas
era uma constante que se assomava em sua vida. Essa ausência, do pai e do avô, o
afligia de uma forma causticante.
Maximo fora o mentor de Marvan; o conselheiro de que precisava em momentos
tão difíceis. Quando Marvan regressou para Gelor-Torine, temeroso e assustado
com as responsabilidades que teria, nunca mais voltou. Assumira o trono em
definitivo, ainda que a ausência do pai machucasse seu coração.
Uma pintura peculiar e em uma posição de destaque a um canto interrompeu os
devaneios de Petr e ele se perguntava como não havia notado o quadro antes.
Circundado por uma colossal moldura dourada carregada de floreios, a imagem
ilustrava os reis e rainhas dos quatro reinos de Anlevor devidamente caracterizados
com suas mais luxuosas vestes reais, nas poses típicas dos retratos da nobreza. Lady
Marini, a esbelta rainha de Dothansa, apoiava as mãos sobre um cetro prata
drapejado de grandes safiras reluzentes. Os longos cabelos loiros, platinados,
pendiam para a frente de seu ombro esquerdo e cobriam parcialmente uma echarpe
dourada. Lorde Trev, o Lobo de Anlevor, a quem Petr ainda se questionava o
porquê de seu título, se pela personalidade forte ou pelos cabelos negros e revoltos
que mais pareciam os pelos de um lobo das montanhas, estava do lado oposto. O
petulante imperador de Aamiz parecia rugir para o público que observava o quadro;
segurava com vontade um grande tridente translúcido, ou o “Garfo Transparente”,
como seu avô costumava dizer. Maximo também estava na pintura. A aparência era
mais suave que a dos demais. Os cabelos e barba volumosos eram alvos como a
neve. A expressão era de paz, bem como Petr gostava de lembrar. Trajava seu
manto real e segurava uma espada, Fúria das Eras. A lâmina sinuosa de dois gumes
que fora um dos primeiros artefatos que combinava ouro com minérios mágicos.
Uma das primeiras forjas élficas de Vaelfar ofertada como um presente e símbolo
165
de gratidão aos guardiões. Uma lâmina que nunca perdeu seu fio. Mas o que fazia
Petr segurar o riso diante da bizarra pintura era a figura de Lorde Marvan. Retratado
bem ao centro da imagem, ligeiramente maior e destacado, o rei de Gelor-Torine
não parecia em nada com sua versão da vida real. O rosto era a única coisa mais
próxima da realidade. O cabelo encaracolado e reluzente descia em longos cachos
até os ombros. O rosto redondo e as bochechas colossais foram reduzidos
drasticamente e cobriam os dentes que rilhavam, numa expressão que tinha a
intenção de parecer ameaçadora. Mas o corpo, esse fora completamente alterado.
Os ombros eram largos, o peito e abdômen definidos com gomos cuidadosamente
detalhados, pernas torneadas e uma pose ridícula de salvador da pátria. Petr estava
prestes a soltar uma sonora gargalhada, mas uma frase de Lorde Marvan o fez voltar
à tona.
— ... dos poucos soldados que tenho. E você tem o quê? Dez, onze ciclos de
idade? É inexperiente e diria inconsequente por me fazer um pedido desses.
Qualquer ventinho gelado mais forte e você vira picolé nessas geleiras. Eu tinha
muito apreço por seu pai e ainda mais por seu avô. Mas, moleque, minha resposta
definitivamente é não.
— Talvez esse seja um bom momento para refrescar sua memória, Lorde Marvan
— falou Petr, uma nota de presunção na voz. — Meu avô foi Guardião em Anlevor,
na época em que seu pai era um jovem rei e você um reles espermatozoide no saco
do seu pai. Ele defendeu esse continente por muitos ciclos, livrando Gelor-Torine
de toda sorte de bestas e males que se possa imaginar. Espero que não se esqueça
dos saqueadores e anarquistas da Costa de Aerlan. Quando Sua Majestade perdeu
o pai, as portas de Snartria sempre estiveram abertas para que pudesse chorar as
suas tristezas. Não pense que por você me considerar um moleque, que eu não vou
me lembrar. Meu avô está morto e meu pai desapareceu nessas montanhas. Se há
um pingo de gratidão nesse seu coração altivo e soberbo, saia do seu poço de
arrogância e disponibilize três dos seus melhores guerreiros para me acompanhar
nessa busca, em nome de tudo o que deves ao Trono de Ônix.
Lorde Marvan migrou de uma contrariedade trivial para uma expressão
embasbacada. Assim como os soldados do reino ao redor e os conselheiros reais,
não sabia o que dizer. Até Chermont arregalava os olhos para a petulância e
coragem do garoto a seu lado.
Marvan e Petr se encararam por preguiçosos segundos. O garoto empinava o
nariz, mantendo a pose altiva, sem titubear. O rei de Gelor-Torine continuava
estarrecido.
— Ok — pronunciou Marvan, relutante. — Vou lhe conceder três dos meus
melhores guerreiros. Única e exclusivamente pelo apreço à memória de seu nobre
avô, meu padrinho. Os torineanos de todas as partes devem suas vidas e o que têm
para o que seu avô fez por essas terras enquanto vivo. Mas eu lhe digo, menino
166
insolente, na menor sombra de perigo nessa jornada, eles terão a minha total
permissão para fugirem. Não perderei mais ninguém para o que quer que haja
naquelas geleiras ardilosas.
Petr inclinou-se num gesto de reverência. O braço esquerdo apoiou-se sobre um
dos joelhos flexionados e o punho direito fechado deu três pequenas batidas contra
o peito.
— Juro pela minha própria vida que nada acontecerá a seus soldados e os trarei
de volta em segurança.
O estábulo real não era exatamente como Petr imaginara.
Caminhando lentamente pela área externa do castelo, o garoto devaneava com o
que encontraria quando chegasse lá. Pelos delírios de grandeza de Lorde Marvan,
imaginava se deparar com um vasto campo aberto, repleto de uma centena de
galerias de madeira onde estariam os cavalos e grifos, carruagens reais e outras
montarias esdrúxulas de variados tamanhos conforme o gosto do vaidoso rei.
Pensou que haveria uma pista para os animais circularem, um abastado nicho de
rações e feno e não menos do que uma dezena de criados tomando conta das
montarias de Sua Majestade. Ao contrário disso, deparou-se com um pequeno
espaço semicircular com algumas baias minúsculas para alguns animais repousarem.
Uma carruagem modesta estacionada a um canto. E, ainda que esquadrinhasse o
perímetro, não encontrou um único cocheiro ou empregado trabalhando por ali.
Com um rei acostumado ao requinte do palácio e ao conforto de seus aposentos,
fora um ledo engano achar que encontraria uma estrebaria de grande porte.
— Este é o estábulo real? — perguntou Chermont, cético. Parecia lhe ocorrer o
mesmo pensamento que Petr.
— Por quê? — indagou um dos guerreiros, com curiosidade — Não parece um
estábulo?
O olhar de desdém de Chermont para o lugar e outra vez para o soldado
respondia à pergunta.
A pequena comitiva se aproximava das montarias. Petr e Chermont seguiam a
frente do grupo. Os outros três soldados cedidos por Lorde Marvan caminhavam
taciturnos e descontentes logo atrás. O mais alto deles, Bursel, era um sujeito
parrudo, mas com um esgar irritantemente medroso. Abaixo do bigodão grisalho
que fazia curva nos cantos da boca, os lábios não paravam de reclamar um minuto
sequer, desde o instante em que Marvan explicou a tarefa para eles, amaldiçoando
Petr e Chermont a todo momento por aquela missão suicida. O outro, Cartem, era
atarracado e roliço, com uma presunção no olhar que dava nos nervos. Tudo ele
sabia, em tudo era o melhor e passou grande parte do caminho entre o salão do
trono até ali cantando aos quatro cantos o quanto a ideia de ir até as geleiras era
uma loucura e que o rei perdera a sanidade em aceitar colaborar com Petr. Por fim,
167
Turti, o escudeiro, esgalgado e com trejeitos ébrios e desleixados. Caminhava sem
falar uma única palavra, mas ria sem parar das canções enfadonhas de Cartem. As
espadas e escudos do trio também sobraram para ele carregar.
— Ok. — Petr apressou-se, esgotado das lamúrias de sua pífia comitiva. Parou e
encarou os três soldados logo atrás. — Eu sei que isto parece uma missão suicida
e...
— Parece? — Cartem interrompeu, debochado. Bursel soltou uma risadinha
abafada, mas Turti se escangalhou de rir.
O garoto fechou a cara; Chermont enfezou-se com os guerreiros de Gelor-
Torine.
— Eu não vim até aqui para colocar as vidas de vocês em risco. — Petr retomou
o discurso, a voz mais grave do que o habitual. — Mas eu perdi meu pai nessas
geleiras. Um sentimento queima no fundo do meu coração e insiste que ele está lá,
em algum lugar, aguardando que alguém o encontre. Em nome da honra do nome
dele e dos Bravior da Serena Snartria, eu preciso encontrá-lo ou ao menos entender
o que foi que aconteceu.
— Olha, menino, eu vou dizer o que aconteceu — falou Bursel, avançando em
direção a Petr. Chermont emparelhou com o garoto, encarando o soldado.
O guerreiro hesitou, observando os dois.
— Eu entendo a dor da sua perda — falou Bursel, franzindo o lábio para a cara
amarrada de Chermont. — Nós todos perdemos alguém importante nessas
montanhas. Veja o Cartem aqui. O pai dele era meu compadre e também morreu
numa nevasca. Uma avalanche o soterrou, para ser mais preciso. O inverno em
Gelor-Torine é mais cruel do que uma guerra e apavora até mesmo os homens mais
experientes. Essas geleiras são traiçoeiras.
— Eu diria que são malditas! — inferiu Cartem, cuspindo no chão em seguida.
— Eu concordo com o Cartem. — Bursel prosseguiu: — Nós sempre evitamos
chegar perto de mais das Montanhas Congeladas por todas as histórias sinistras que
já passamos ou conhecemos. Eu me lembro do seu pai. Ele investigava alguma
coisa aqui em Gelor-Torine havia semanas, mas nunca dizia o quê. Fazia um
mistério danado. Nem nosso rei sabia o que era. Na última vez em que uma
comitiva o acompanhou, um quarto de nossos soldados não retornou, inclusive ele.
Alguns camponeses e outros concidadãos do reino optaram por fugir, receosos e
temerosos com os relatos que ouviram. Se quer um conselho, chore a morte de seu
pai o quanto quiser, faça uma estátua dele lá nas suas terras e o homenageie todos
os dias. Cria um feriado para ele. Mas, por tudo que há de mais sagrado, não se
aproxime daquele lugar. Desista dessa ideia, garoto. Essas montanhas são
amaldiçoadas.
— Por tudo o que Elliotr fez por nós, Bursel, você não deveria estar arrumando
desculpa. Ou será que já esqueceu de quantas vezes ele salvou sua vida?
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Uma voz rouca e cansada ecoou no estábulo atraindo a atenção de todos. Petr
sobressaltou-se, pois não havia visto ninguém entre as montarias e carruagens.
Caminhando até onde o grupo conversava, um homem de barba grisalha e
desalinhada, enfurnado em um pesado casaco de pele de urso surgiu. Longos dreds
cinzentos se prolongavam do topo da cabeça até a cintura; minúsculas esferas
prateadas estavam amarradas sobre eles, balançando a cada passo pesaroso na
direção da pequena comitiva. Vinha brandindo um cajado negro de madeira com
uma espécie de esfera translúcida na ponta. Não apoiava o peso do corpo sobre o
objeto, marcando a neve com delicadeza ao avançar até eles. Lembrava um monarca
caminhando com seu cetro e não um velho debilitado sustentando-se em sua
bengala. A pele negra parecia possuir um brilho próprio e algumas poucas rugas
eram marcantes sobre as laterais dos olhos e na testa. As bochechas exibiam
pequenas manchas, que eram estranhamente azuladas.
— Conrod, lá vem esse velho de novo... — sussurrou Cartem, com desdém.
— Meu jovem, sou Conrod Baash e cuido deste estábulo.
O velho fez uma longa reverência a Petr e estendeu a mão para cumprimentá-lo.
O garoto o cumprimentou e, por sua vez, mirou do velho e depois para o estábulo
e novamente para o velho; realmente não tinha notado a presença dele ali.
— Você conheceu meu pai?
— Sim, milorde. Não apenas o conheci, como tive o enorme prazer de ser
aconselhado por ele durante o tempo em que esteve por essas terras. Espero que
compreenda que não pude deixar de ouvir a conversa e que perdoes minha
intromissão. Ao contrário destes covardes, que se auto intitulam guerreiros, digo
que o senhor tem todo o meu apoio em querer buscar respostas sobre o paradeiro
de seu pai. E, claro, se o senhor não se importar, gostaria de acompanhá-lo nesta
jornada. Estou em Gelor-Torine há alguns ciclos. Não muitos, eu sei. Bursel e
Cartem são naturais dessas terras insólitas. Mas, assim como o senhor e seu pai,
também sou bastante curioso. Conheço todos os caminhos para ir e vir às
Montanhas Congeladas, seja pelas estradas nevadas ou pelas densas florestas de
pinheiros. Posso lhe ser muito útil nesta empreitada.
Petr sorriu para o velho e assentiu. Havia uma confiança nele que não existia nos
demais. Olhando os soldados logo atrás, questionava se precisava realmente dos
três covardes enviados por Marvan.
Cavalgando sobre o lombo de um artiro branco, a espécie nativa de ursos brancos
montáveis do extremo norte de Anlevor, muito usada para expedições aos lugares
mais remotos e congelados do continente por sua habilidade de percorrer longas
distâncias sobre volumosas camadas de neve, Petr apertava ainda mais as cordas de
seu pesado capuz felpudo. O frio atroador refletido através do intenso vento gélido
golpeava-lhe a face como se minúsculos cacos de vidro perfurassem cada
169
centímetro do que sobrara de seu rosto para fora do casaco. Vez ou outra, enfiava
a mão numa aljava a tiracolo e bebericava de um cantil. Conrod preparara para eles
uma mistura de rum e ginseng fumegante. Afirmara que isso os manteria aquecidos
e revigorados quando o frio se tornasse mais intenso e tonitruante próximos de seu
destino. A bebida era forte e o garoto estremecia a cada golada, mas o velho tinha
razão: sentia-se renovado ante os desatinos da viagem.
Correndo velozes pelas florestas de pinheiros congelados, os seis artiros viajavam
em fila única. As enormes patas dos animais afundavam sobre o manto intenso de
neve esbranquiçada e deixavam um rastro das marcas de dedos dos ursos ao longo
do caminho.
Há muito haviam deixado para trás os resquícios das nuances de um verde pálido
dos campos e colinas de Ental, a capital do reino. Pincelado apenas por uma tenra
geada que criava uma espécie de espelho gelado em pontos isolados, os picos e
vales de Gelor-Torine transitavam para um inóspito deserto branco de pinheiros
cinzentos, profundas camadas de gelo fofo e uma aturada cerração cinzaesbranquiçada
que atrapalhava a visão do caminho a frente.
Liderando a comitiva, o velho Conrod seguia obstinado. Na mão direita em riste,
uma tocha iluminava o caminho, ainda que os fortes ventos fustigassem a chama,
tentando apagá-la. A mão esquerda continuava arraigada ao cajado negro, sem
largar as rédeas da montaria. Mesmo em meio à densa neblina que por vezes
impedia Petr de entender a estrada a frente, o homem de longos dreds demonstrava
conhecer muito bem o caminho para o lugar onde viram Elliotr pela última vez.
Confiando no sábio cuidador do estábulo real, agarrando-se com força às rédeas e
ao pelo felpudo de seu artiro, as lembranças dos últimos acontecimentos em
Snartria emergiram com ímpeto à sua mente.
Após o enterro do avô, Petr ainda se sentia perdido. De um lado, a pressão do
Conselho dos Guardiões para suceder seu pai em honra, Elliotr; de outro, a
insistência do conselho real de Snartria em ascender ao trono, que unira o apoio de
lideranças militares e comerciantes dos condados; tudo na esperança de obliterar as
chances de sua avó, Asturias, tornar-se a soberana do reino. No fundo de seu
coração, ele sabia o que queria. Mas isto era apenas parte de uma difícil decisão.
Não poderia simplesmente assumir o posto que tanto desejava e fechar os olhos
para o outro. Precisava de alguém leal. Um homem honesto, íntegro e que não
trairia sua confiança em um momento tão conturbado.
Num dia bem cedo, antes que os primeiros raios solares invadissem as janelas do
palácio e despertassem a todos para mais um dia que ia nascendo, Petr esgueirouse
de fininho pelos corredores do castelo e encarrapitou-se sobre o dorso de um
grifo e alçou voo. Tomou todo cuidado possível para que ninguém o visse em sua
viagem secreta. Deixou uma carta sobre a mesa de jantar. Não queria informar seu
170
paradeiro para evitar perguntas desnecessárias de sua avó. A mensagem era
subjetiva. Dizia sem especificar que estava indo visitar alguns distritos, o que não
deixava de ser verdade. Só não queria revelar seu real destino. E, como a viagem
levaria mais do que um dia, ao menos sua avó, Chermont e os demais conselheiros
do reino não ficariam preocupados achando que ele havia sido sequestrado,
desaparecido ou coisa parecida.
Lá pelo fim da tarde, depois de sobrevoar boa parte dos condados de Snartria e
vislumbrar as densas florestas, as cadeias de montanhas, belas cachoeiras, amplos
vales e todas as belezas naturais que o reino possuía, Petr decidiu que era hora de
descansar quando vislumbrou o pôr do sol no horizonte. Acariciando o dorso de
sua montaria, o poderoso grifo descreveu longos círculos no ar até finalmente
pousar em uma gruta na maior montanha de Snartria. O garoto acendeu uma
fogueira e assou alguns esquilos que carregava na aljava. Repousando próximo às
chamas, o animal devorou a carne suculenta em segundos e logo adormeceu,
cansado da viagem. Petr comeu uns pedaços de charque com lentilhas cozidas e
bebeu um suco de manga que trouxera. Com dores nas pernas e nos dedos
retesados, dormiu tão rápido quanto o grifo ao seu lado.
Na manhã seguinte, alçaram voo ao nascer do sol e, depois de atravessarem os
demais condados, finalmente chegaram à Graenham, o longínquo distrito onde se
encontraria com uma pessoa especial. Escolhera o melhor meio de transporte para
esse encontro às escondidas. Os grifos-de-cauda-escarlate eram a espécie mais
indicada para uma viagem rápida e razoavelmente estável. As longas asas douradas
eram o dobro do tamanho da dos grifos-aprumados e quase três vezes a dos
hipogrifos, o que lhes dava muito mais velocidade para rasgar os céus em seus voos
e diminuir o tempo nos trajetos. Rodopiando em círculos, quando o grifo se
preparava para pousar, vislumbrou o mar de telhados oblíquos e as centenas de
pontos luminescentes das lamparinas que se acendiam depressa em função do
ocaso. A um extremo, as Águas Solídiras eram banhadas pelo brilho bruxuleante
do sol poente em mais um dia que se encerrava.
O garoto nunca compreendeu as razões que motivaram o primo a ir morar em
um lugar tão distante e ainda mais para viver como um fazendeiro. Graenham era
no extremo oposto de Snartria, longe da corte e dos demais Bravior, Wallensig e
Zanotchka, que optaram por fixar suas residências nos distritos mais próximos do
Palácio de Ônix. Mas tinha lá suas belezas. O condado era um grande balneário,
banhado pelas Águas Solídiras, com uma extensa cordilheira que fazia fronteira
com o reino de Aamiz. Era um reduto de habilidosos e dedicados pescadores que
possuíam negócios sólidos com os mercadores do reino vizinho. Havia também
algumas plantações de milho, trigo e cevada e três forjas simples que abasteciam
tanto a marinha de Snartria quanto a do rei Trev. Há muito não se ouvia dizer de
problemas com piratas ou bárbaros e tampouco com ataques de monstros nas
171
redondezas. Com isso fazia jus ao título do reino, sendo um dos lugares mais
serenos e pacatos de Anlevor.
A penumbra intensa dos últimos raios solares dominava os campos de milho da
fazenda. Sobre o topo dos postes ao longo do caminho, a chama dos archotes
iluminava pontualmente a sinuosa trilha de terra fofa que desembocava num
modesto palacete âmbar. Petr desceu de cima do grifo e afagou sua cabeça. Tirou
três coelhos remanescentes que carregava na bolsa a tiracolo e deu ao animal. Fora
uma longa viagem, merecia a recompensa. Deixou-o repousando na entrada da
fazenda e seguiu trilha a dentro.
Acendendo uma pequena chama na palma da mão para iluminar seu caminho,
inspirava profundamente os odores reconfortantes das plantações ao redor. O que
mais gostava em Graenham era a calmaria, a sensação de paz, a tranquilidade que
não existia mais na capital. Talvez era esta a razão pela qual seu primo preferia
morar tão distante do palácio real. Os sons mais audíveis não eram os gritos de uma
velha tresloucada com seus súditos, ou discussões intermináveis sobre leis e
tradições reais, mas dos grilos e cigarras a cantar, uma ave ou outra que passava
piando, as rebentações do mar ao longe. Viver distante de todo o caos da família
real não parecia tão ruim assim.
Às portas do palacete, Petr o avistou. Roben Louis Zanotchka III era seu nome.
Os ombros largos, peito estufado e cabelos ruivos sempre bem aparados em seu
costumeiro corte militar, vinha caminhando com um sorriso no rosto. Era filho
único da irmã de seu avô, Eilene Bravior e de Roben Louis Zanotchka II, o irmão
de seu avô materno, Hamm. Desde que se lembrava, Roben sempre foi um homem
de guerra. Era fascinado por estratégias de batalha, táticas de guerra e pelos
treinamentos militares dos exércitos reais. Fora criado junto com Elliotr nesse meio,
sempre disputando quem era o mais forte, o mais rápido ou o mais esperto. Quando
o primo e amigo de infância tornou-se Guardião, Roben foi condecorado general.
Nos últimos cinco ciclos, porém, afastou-se da família real e do convívio com seus
parentes. Especulava-se que perdera aquela paixão fervorosa pela guerra desde que
Elliotr, o irmão que nunca teve, tornara-se uma figura rara em Snartria. Abdicou
do cargo, casou-se com Zaira, a bela prima rejeitada dos Wallensig e isolou-se de
vez em Graenham.
O sorriso de Roben era acolhedor.
Petr sorriu de volta para o primo parado a poucos metros da singela escadaria de
acesso ao casarão. Das poucas vezes em que o vira na capital, a sensação era a
mesma; era como estar diante de seu pai. Roben tinha todo aquele jeitão austero de
um militar: postura rígida e voz grave, como se estivesse sempre pronto para dar
uma ordem. O coração, no entanto, era puro e o olhar, dócil e carinhoso.
Entrementes, Petr tinha a impressão de estar diante de uma fusão de Maximo e
Elliotr, mas com as feições de seu avô ausente, Hamm Zanotchka.
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— Recebeu minha carta?
— Como não teria recebido? — falou Roben, em tom afável — Eu só me
perguntava como você escaparia das garras daquela velha megera para vir até aqui.
Petr desembestou a rir.
Na sala de jantar, a mesa estava posta. Zaira e o pequeno Robbes, o filho do casal,
assim como Roben e Petr, sentaram-se à mesa para comer. Tiveram uma conversa
agradável enquanto jantavam, colocando os assuntos em dia e relembrando
momentos engraçados do passado. Ainda que a morte de Maximo e o sumiço
inexplicável de Eliotr fossem recentes, Roben preferia comentar sobre a infância
ao lado do pai de Petr, arrancando boas risadas de todos à mesa sobre as peripécias
que ambos aprontavam juntos. Contou como o primo se apaixonou por Hanna e
como ele mesmo fora o pivô do relacionamento dos dois. As partes tristes da
história, como a morte prematura da mãe de Petr, Roben optava por não relembrar.
Fora uma noite muito alegre, que Petr não tinha havia dias.
A lua cheia atingiu seu ponto máximo sobre um céu azul e sem nuvens. Era tarde
da noite e Zaira colocou Robbes para dormir. Petr e Roben ficaram a sós na
penumbra da sala de estar. Ao pé da lareira, os dois curtiam o silêncio sentados nas
poltronas. Bebericavam de canecas com chá de erva-doce fumegante enquanto
observavam as brasas estalando. A luz fraca das chamas irradiando para a sala de
estar tornava o cenário sonolento e melancólico. O cansaço se apoderava de Petr e
os olhos iam ficando pesados. A mente, no entanto, insistia em tentar mantê-lo
acordado. Martelava em sua cabeça o que precisava dizer ao primo, o maior
problema era como começaria a falar o que tinha de falar.
— Petr, nós podemos ficar ao pé dessa lareira o resto da madrugada enquanto
você briga contra o sono ou você pode me dizer o que o aflige, que com certeza
está ligado ao motivo de você estar aqui.
Petr despertou de súbito e sentiu a sonolência o abandonando de vez. Era como
se Roben fosse capaz de ler seus pensamentos.
— Digamos que eu preciso tomar uma decisão difícil e eu não sei como.
Roben encarou o garoto. Empertigou-se sobre o assento, apoiando um dos
braços na perna direita. Os ouvidos e olhos apurados. Balançou a cabeça como se
o dissesse para prosseguir com o que queria dizer.
— Snartria precisa de um novo rei e Anlevor de um Guardião. Os conselheiros
do reino me pressionam todos os dias para que eu assuma logo o trono e evite um
caos generalizado com...
— Asturias ascendendo ao trono — completou Roben, levando a mão ao rosto
e deixando a estafa escapar pela boca. Bebericou do chá e balançou a cabeça,
revelando um sorriso contrariado.
173
— Exato — balbuciou Petr, relembrando o quanto sua avó o sufocava por essa
decisão. Ela o instigava a aceitar o cargo de Guardião e insistia que ela merecia ser
a soberana do reino. Fazia isso aos gritos e berros pelo palácio.
— Aquela velha maldita — inferiu Roben, olhando para o teto. — Sei que é sua
avó, mas, sinceramente, não sei porque meu tio foi se meter com aquela bruxa
Wallensig. Meu pai sempre o alertou. Nunca fui com a cara dela e muito menos
com o crápula do Wayne.
— Ela enlouqueceu depois da morte do meu avô...
— Não, Petr. — A expressão de Roben tornava-se soturna. — Ela sempre foi
uma megera. Você é muito novo para entender, mas eu lhe afirmo: nunca confie
nela. Sei que é sua avó e tal, mas...
— Eu não confio, primo — disse Petr, apoiando a caneca sobre uma mesinha de
madeira.
Roben bebericou da própria caneca outra vez. O crepitar das chamas estalando
nas brasas pressionou os ouvidos de ambos.
— Se você não confia, assuma logo o trono. Evite que uma era de trevas domine
Snartria.
— Eu não posso, Roben — falou Petr, consternado — O Conselho dos
Guardiões me chamou. Stanhorne quer que eu assuma o posto que fora do meu
pai. Mas o reino precisa de alguém da minha confiança tomando as decisões, alguém
que não vai impor um regime totalitário. Pressinto um perigo maior sobre Anlevor
que exige minha dedicação e...
— Não há perigo maior do que Asturias no trono de Snartria, Petr.
— ...é por isso que quero que você assuma o trono!
Petr engrolou a última frase com a coragem que reuniu para falar e os olhos de
Roben se arregalaram e o queixo despencou assim que o garoto terminou sua
sentença. O silêncio novamente se instaurou e perdurou por longos segundos
enquanto ambos se encaravam, petrificados: Petr prendia a respiração, pensando
que não fora bem assim que imaginara esse momento. Roben ainda absorvia um
convite tão inesperado.
— Petr, sinto-me lisonjeado e infinitamente honrado por este reconhecimento,
por achar que sou confiável o suficiente para assumir o trono de Snartria. Mesmo
não sendo tão próximos quanto deveríamos, eu agradeço. Mas eu não posso
assumir o reino.
As palavras do primo acertaram Petr como um soco na boca do estômago. A
sensação de impotência o consumia outra vez. Um vazio interior que liquidava sua
esperança.
— Eu sou um homem de guerra, Petr — continuou Roben, sorrindo encabulado.
— Não nasci para a vida na corte. Não me habituei ao que essa vida exige e, para
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falar a verdade, tenho aversão a isso. Nasci para o confronto, os duelos de espada,
os campos de batalha. É por isto que meu coração pulsa.
— Mas você não é mais general — balbuciou Petr, contrariado — Você abdicou
dessa vida...
— Abdiquei de viver essa vida na capital. Sei que você deve ter ouvido muita
coisa a meu respeito quando deixei o posto de general. Contudo, há muito mais do
que você imagina por trás da minha motivação, àquela época. O que mais desejo
hoje é ficar longe do palácio, da capital e da ganância que permeia o clã dos
Wallensig, Bravior e Zanotchka. Além do que, assumi recentemente o comando
dos batalhões portuários de Graenham. O pelotão não é grande e os soldados são
inexperientes, carecem da minha ajuda e de treinamento.
Petr esmoreceu.
O olhar estava fixo no interior da caneca. O chá esfriara, bem como suas
esperanças se esvaíram. Mais uma vez, sentia-se perdido e sozinho. Ao lado do
primo, Roben não sabia o que dizer. Aproximou-se do garoto, passou o braço ao
redor dos ombros e sacudiu seu braço esquerdo.
— Eu sinto muito, Petr. Sinto por tê-lo decepcionado. Imagino que sua vontade
era sair daqui com um novo rei para Snartria. Mas sinto lhe dizer que este novo rei
não serei eu.
— Não há mais ninguém em quem eu confie, primo — falou Petr, a voz num
tom embargado. — Estou sozinho nesse mundo.
— Petr, você nunca estará só. Você tem o sangue de seu pai, um exímio guerreiro
e de sua mãe, uma valente guardiã. Ascender ao Círculo dos Cinco foi uma decisão
acertada. Não há ninguém mais forte e merecedor em toda Anlevor do que você.
Mas, quanto ao trono, eu não sou o indicado. Não nasci para isso. Contudo,
acredito que a Serena Snartria não trairá suas esperanças. Ao retornar amanhã ao
Palácio de Ônix, tenho certeza de que um nome de confiança surgirá para você.
Petr abriu um meio sorriso, desapontado. Numa tentativa de animar o primo,
Roben recorreu à outras histórias de traquinagens que aprontava junto com o pai
de Petr quando ambos tinham a idade dele. Ainda que arrancasse boas risadas, nem
mesmo esses contos fizeram o resto de noite do garoto ficar melhor.
O Salão Real do Palácio de Ônix estava mergulhado em um silêncio mortificante
quando regressou à capital. A hora do jantar costumava ser um evento intenso e
animado nos dias de glória. Ainda que não fossem datas comemorativas, vocês
ficariam impressionados com o incrível número de pessoas que a extensa mesa do
Salão comportava para o jantar real. À época dos Festivais de Verão, o castelo ficava
apinhado de gente. Os Bravior, Wallensig e Zanotchka, o conselho real, além de
amigos e outros convidados. Eram centenas de perus, javalis e carneiros assados,
toneladas de saladas de batata com alho poró, uma infinidade de tortas e pudins e
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tonéis de vinho e rum. Risos e conversas a fio enchiam os ares do palácio, a
orquestra entoava suas músicas e o baile real pontuava as festas no Salão Principal.
Mesmo com a mesa recheada de comida, naquela noite não havia festa e nem
convidados. Das sessenta cadeiras dispostas, somente duas estavam ocupadas: Petr
em uma ponta da mesa e Asturias no extremo oposto. Chermont e outros
empregados do palácio estavam alinhados ao redor. Observavam, incomodados, à
margem da mesa, neto e avó jantarem em um incômodo silêncio.
— E então — falou Asturias, displicente. A voz esganiçada e irritadiça reverberou
pelo recinto, interrompendo a quietude mórbida. Não tirava os olhos de sua
refeição como se falasse consigo mesma. — Não vai me dizer onde esteve? Porque
você esteve ausente do palácio por quatro dias inteiros...
Longos segundos de silêncio perduraram. Chermont esquadrinhava, temeroso,
da expressão impaciente de Asturias para o esgar presunçoso de Petr.
— Ah, estava por aí... — respondeu Petr; não moveu um milímetro de seu rosto
na direção da avó.
— Por aí... — Asturias crispou os lábios e soltou um muxoxo.
Silêncio, outra vez. O tilintar dos garfos e facas nunca fora tão ensurdecedor
naquele salão.
— E como está seu primo Roben? — soltou Asturias, sempre com os olhos fixos
na refeição. — Graenham é tão distante que nem sempre podemos visitá-lo e viajar
nas costas de um grifo é demasiado cansativo, não acha?
Petr sentiu o coração palpitar. Alguém o havia traído. Tinha tanta certeza de que
fora cuidadoso o suficiente ao ponto de não levantar suspeitas. Bem que Roben o
havia avisado. Ao romper da manhã, quando trepou sobre o dorso do grifo para
retornar ao palácio, o primo o alertou para ser prudente na capital e ter muita
cautela. Nem todo mundo era digno de confiança; se Asturias queria o trono, ela
tentaria de tudo para manipular o garoto, até mesmo colocar um espião em sua
cola. A vontade de se tornar a soberana de Snartria e colocar em prática suas
maiores loucuras era tanta que por vezes acreditava que ela até seria capaz de matálo
para chegar ao poder.
Chermont e Petr se entreolharam rapidamente. O mordomo do castelo
estampava uma expressão desesperada no rosto, balançando a cabeça como se
insistisse em justificar que não fora ele quem denunciara por onde o garoto andou.
— Roben está ótimo. Nunca o vi melhor, para falar a verdade, e Graenham nunca
esteve tão radiante! — exclamou Petr, encarando sua avó com um sorriso atrevido.
Para Chermont, a frase do garoto soara como um ardiloso deboche.
— JÁ CHEGA! — berrou Asturias, batendo o garfo de prata com força na mesa,
pegando a todos de surpresa. — Está mais do que na hora de você assumir como
Guardião, seu moleque, e assinar a sentença que me dá plenos poderes para assentar
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sobre o trono que é MEU POR DIREITO. Se não fosse essa merda de lei que dá
plenos poderes somente ao herdeiro direto, eu já SERIA A SOBERANA.
Petr enfezou-se, chapando garfo e faca sobre a mesa. Chermont recuou,
encolhendo-se entre a fileira de empregados a um canto.
— Eu espero que você se recorde que seu MARIDO E FILHO MORRERAM
HÁ POUCOS DIAS! — berrava o garoto, consumido por uma raiva que nunca
havia sentido.
Avó e neto ficaram emudeceram, fuzilando um ao outro com os olhares
semicerrados.
— Mais vinho! — Asturias brandiu a taça de prata na direção de Chermont. Os
longos fios encaracolados com algumas mechas grisalhas descaíam-lhe a frente dos
olhos. A expressão era de fúria mortal.
Chermont tremeu e os demais empregados se entreolhavam, com medo. O
mordomo do palácio ergueu a jarra de vinho e caminhou em direção à mulher em
silêncio. Odiava-se por não conseguir parar de fazer os dedos e os joelhos
tremerem. Neto e avó estavam em pé e retomaram a discussão aos berros. Ela
cuspia as razões pelo qual era a herdeira legítima do trono e que era a única pessoa
sensata que poderia governar Snartria nesse momento. Ele, contrapondo-se, a fazia
lembrar das leis de Snartria e também do quanto estava tresloucada com esse
assunto, que desde a morte de Maximo, seu mais novo amor era o poder a qualquer
custo.
Mantendo o máximo de cuidado que podia, Chermont inclinou a jarra até a taça
de Asturias. A mão direita, no entanto, falhou miseravelmente. O vinho tinto
escapou pelas bordas do cálice, molhando a mesa e resvalando para o vestido da
rainha.
A discussão interrompeu-se na hora. O rosto pálido e macilento de Asturias
assumiu um tom púrpura como a bebida que sujava suas roupas e as rugas se
acentuaram quando ela comprimiu o rosto numa expressão possuída de uma cólera
demoníaca.
— SEU IMBECIL! VOCÊ NÃO ESTÁ ME VENDO AQUI? OLHA O QUE
VOCÊ FEZ COM MEU VESTIDO, SEU BURRO. É SEDA PURA DE
GASTELA DE AMISTELAR!
Asturias se assomou, erguendo-se da cadeira com a taça em uma mão e uma faca
na outra. Chermont foi minguando, assustado. Petr interviu, voando de onde estava
e colocando-se entre os dois, bem a tempo de impedir sua avó de cometer uma
atrocidade. Num giro de sua mão, uma torrente de ar golpeou a mão armada da
rainha, fazendo a faca voar para longe.
— Era isso? — arguiu Petr, comprimindo os olhos — Ia matá-lo porque
derrubou vinho em você?
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Asturias não respondeu nada. Ofegante, arregalava os olhos para o neto,
impressionada com a velocidade com que se assomou do outro lado do salão até
ali.
— Eu não a reconheço mais — falou Petr, exasperado. — A senhora se tornou
uma velha obsessiva e compulsiva com essa ideia de usurpar o trono. Parece que
não há um pingo de dor ou remorso ou qualquer merda no seu coração pela morte
do seu marido e filho. Você só quer o poder. A senhora me ouça bem agora, porque
será a última vez que digo: nossas leis são categóricas e outorgam a mim decidir
sobre quem será o próximo rei de Snartria. Se cenas como estas acontecerem outra
vez, não hesitarei em tomar as medidas necessárias para cercear o avanço da sua
insanidade. Considere este o meu último ato de misericórdia.
E Petr saiu do salão real sem olhar para trás.
— Chegamos ao pé da montanha.
A voz do velho Conrod berrando à frente da comitiva despertou Petr de seus
devaneios. Os artiros diminuíram gradativamente a velocidade até finalmente
pararem e se aninharem sobre as quatro patas, para se aquecerem.
A tundra predominava sobre a paisagem. Em vários pontos, a vegetação esguia e
de cor alaranjada contrastava com o tapete branco e de relevo irregular formado
pela neve fofa. A gigantesca montanha se assomava diante do comboio, coberta
por uma alva e incólume neve. Uma leve cerração esbranquiçada abraçava o
entorno, pintando o cenário com tons brancos e empalidecidos, ofertando ao lugar
um clima lúgubre. Minúsculos flocos de neve se precipitavam dos céus; associados
ao nevoeiro, eles impediam de enxergar muito além de onde haviam parado e isso
incluía até mesmo o cume do monte, escondido atrás de uma densa camada de
névoa acima de suas cabeças.
Petr afundou as botas sobre a neve assim que pulou de seu artiro. O frio
avassalador começava a invadir seu grosso casaco de pele de alguma forma.
Tentando impedir o vento enregelante de penetrar o aconchego de seu robusto
agasalho, ele apertou bem as mangas e colarinho e acendeu uma tocha.
O fogo tremulou com a força do vento carregado de floco de neves. Isto era um
mau sinal. Uma tempestade poderia estar se aproximando e o que Petr menos
queria nesse momento era uma nevasca ou coisa pior. Mas a crescente esperança
em encontrar seu pai ou ao menos o corpo moribundo dele nesse lugar inóspito
era o que o motivava a prosseguir.
— Foi nesta montanha que seu pai foi visto pela última vez — falou Conrod,
erguendo também sua tocha acesa e tomando uma grande golada de rum e ginseng.
— Alguns corpos de pessoas que o acompanhavam foram encontrados em um
platô intermediário logo acima. Podemos iniciar as buscas por lá.
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— Certo. — Petr assentiu, forçando os olhares para o caminho a frente. —
Então, vamos.
A visibilidade era péssima. O vento tornou-se veemente e agitava os casacos com
intensidade. Conrod seguia obstinado na ponta da fileira, segurando o colarinho de
sua pesada capa e capuz. Os soldados de Marvan estavam atarantados, rumando
pela neve agarrados às suas tochas de fogo mágico e espadas e a todo instante
meneando a cabeça, inconformados. Petr era o último: queria garantir a segurança
da comitiva e da posição em que seguia, era possível vislumbrar a silhueta distorcida
pela ventania enregelante de cada um. O único temor era se alguma criatura o
surpreendesse em sua retaguarda. Contudo, permanecia atento ao menor dos
ruídos, que nesse momento se resumia aos retumbantes uivos do vento em alguma
escarpa da montanha. À sua frente, Chermont seguia com a mão puxando os
cordões do capuz e um cachecol enrolado, cobrindo a boca e nariz. Sabia que o
mordomo do palácio e fiel amigo morria de medo desse tipo de aventura. Fora
criado nas entranhas do castelo para servir e cuidar e, ainda que fosse um excelente
alquimestre, sempre fora um sujeito pacato e que preferia o conforto das
acomodações que permeavam a realeza, ainda que suas atribuições fossem um tanto
desgastantes e exaustivas. A única motivação de Chermont ali era exclusivamente a
lealdade e fidelidade aos Bravior.
Caminhando com dificuldade, pois além da superfície íngreme da montanha a
profundidade da neve atrapalhava o grupo de prosseguir mais depressa, a comitiva
chegou ao platô. Igualmente coberto de neve, Petr sentiu a diferença somente pela
inclinação de seu pé, que naquele momento pisava em solo plano.
— Foi aqui, Petr. — Conrod aproximou-se do garoto, apontando o cajado para
a plataforma no meio da montanha. — Este foi o último lugar que afirmam o terem
visto. Sei que não dá para discernir muita coisa, mas este platô é grande. No inverno,
ele fica assim, coberto pela neve e é realmente difícil vislumbrar qualquer coisa.
Não sabemos exatamente o que ou quem seu pai procurava. Ele não disse a
ninguém. Mas sabemos que ele estava em uma missão...
— Estão ouvindo isso?
Chermont proferiu e, antes que pudessem escutar o ruído retumbante que se
misturava à ventania, eles contemplaram. Irrompendo da massa esbranquiçada
provocada pela tempestade, uma imensa cabeça felpuda de lobo surgiu. Os olhos
vermelhos semicerrados em uma expressão assassina, arreganhava os dentes e
vociferava assustadoramente na direção do grupo. Um monstro demoníaco que
Petr jamais vira e que somente habitava as inúmeras histórias de terror contadas
repetidas vezes no Palácio de Ônix e que por muitas vezes surgia em seus piores
pesadelos.
Aquilo, no entanto, era real e estava diante deles.
179
A besta uivou estrondosamente, erguendo a cabeçorra em direção aos céus. Uma
baba espessa escorria por entre seus dentes afiados como lanças mortais e caía sobre
o platô se confundindo com a neve quando encarou suas presas novamente.
Atarantados, o grupo permanecia imóvel onde estava.
A pata monstruosa do animal atingiu Turti, arremessando-o para algum ponto
entre a escarpa da montanha e a pilha de neve da plataforma.
O pânico instaurou-se sobre o platô.
O animal se assomou na direção do restante da comitiva e todos desviaram como
puderam. Cartem gritou, desesperado e disparou em direção ao pé da montanha,
refazendo o caminho até ali. Obedientemente, seguiu a recomendação de seu rei.
Ao primeiro indício de perigo, desembestou a correr de volta para o castelo,
largando espada e tocha pelo chão. Conrod se esquivou e mergulhou sobre a neve.
Bursel se jogou como pôde fora da rota de impacto da besta e ergueu-se
desembainhando sua espada. Chermont também se lançou para um canto e Petr
deu uma cambalhota para o lado, atafulhando-se na neve.
— Chermont, vá atrás de Cartem! — gritou Petr, colocando-se em pé, atônito.
— Não podemos perder ninguém nessa jornada. Jurei isto a Marvan.
Chermont não titubeou e correu atarantado na direção do soldado fujão.
Desvencilhando-se do casaco, Petr fez surgir duas esferas de fogo em suas mãos.
O lobo branco abissal derrapava no extremo do platô e, virando o longo focinho,
preparava uma nova investida contra as três presas que sobraram.
— Bursel, encontre Turti — crocitou Petr, observando o soldado assustado
empunhando a espada para o lobo bestial que rangia os dentes na iminência de seu
ataque. — Ele pode estar ferido.
— Não posso deixá-los com esta criatura, eu...
— Confie em mim, Bursel!
O olhar vacilante do soldado deparou-se com a confiança estampada no rosto de
Petr. Hesitante, ele embainhou novamente a espada e embrenhou-se na intensa
cerração branca para onde seu amigo fora lançado.
O lobo pôs-se de pé sobre as patas traseiras, erguendo as enormes garras
dianteiras para o velho e o garoto, as derradeiras presas que ainda o encaravam.
— Wargs invernais. Achei que estivessem extintos nessa região.
Conrod alcançara o lugar onde Petr encarava a criatura. O extenso cajado
iluminado na ponta firme sobre as duas mãos do velho.
— Wargs? — arguiu Petr, aumentando a labareda que ardia em suas mãos.
— Sim. São lobos gigantes que habitam lugares remotos e gelados. Não se tem
relatos dessas bestas em Gelor-Torine há pelo menos cinquenta ciclos.
Acreditávamos que morreram de fome. A fauna é limitada em um território tão
hostil e suas presas teriam sumido muitos ciclos antes deles desaparecerem. Mas
não é isto que me assusta...
180
Petr encarou o velho.
— Não te assusta?
— Não — respondeu Conrod, apreensivo. Observava o animal encarando-os
com o olhar assassino, na iminência de atacá-los. — O meu medo é que eles sempre
andam em bando.
A criatura pôs-se a correr novamente, depois de um salto poderoso sobre o gelo.
Galgava posições em alta velocidade, correndo pela neve do platô como um cavalo
disparando em terreno plano. Os dentes à mostra. O olhar assassino vidrado no
ponto em que Petr e Conrod aguardavam a investida.
O warg invernal escancarou novamente as mandíbulas e abriu as duas patas de
garras afiadas, pronto para abocanhar e trucidar suas presas.
Petr juntou punho com punho e esticou os braços. As chamas mágicas se
concentraram e formaram uma imensa esfera vermelha. A luz do cajado de Conrod
tornou-se mais intensa e ele levantou o bastão acima da cabeça. Duas esferas
chamuscantes, uma azul vibrante e outra rubra como sangue, diminuíram a
distância entre eles e a criatura e acertaram precisas a cabeça do warg. Um uivo de
dor ecoou alto. A fera tombou de lado sobre o gelo, o topo peludo da cabeça
ardendo em chamas.
— Ele está... apagando o fogo...
Enfiando a cabeçorra sobre o gelo, as chamas elementais desapareceram e o warg
invernal estava em pé outra vez, ainda atordoado, ganindo de dor.
— Fogo elemental não vai matá-lo aqui. A não ser que consigamos acertar o
único ponto vital sensível dessas aberrações: a veia jugular abaixo da mandíbula —
falou Conrod, apurando a vista. A nevasca se intensificava, dificultando a visão. A
silhueta abissal da criatura erguia-se contra o céu. Um novo ataque estava por vir.
— Você consegue erguer esse monstro? — perguntou Petr. Uma fumaça
enregelante subia das mãos do garoto e se mesclava à nevasca atordoante.
Conrod mirou o garoto, compreendendo de imediato sua ideia.
— Acredito que sim...
— No três, então...
— Um...
O terrível monstro corria novamente sobre a neve, tornando-se de um vislumbre
cinzento a uma imagem ameaçadora de longas presas e olhar assassino. Vinha a
todo vapor para sua derradeira investida.
— Dois...
O warg invernal pulou sobre os ares da nevasca. As imensas patas abriam-se
aterradoras. O bote era iminente e devastador.
— Três!
O cajado de Conrod lampejou. Mais intenso e vivo do que das outras vezes.
Movendo o bastão com as duas mãos, o velho de longos cabelos rastafari rilhou os
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dentes e entrecruzou os dedos ao redor do cajado, fincando-o sobre o gelo do platô.
Luzes azuis eletrizantes, como raios cortando os céus em uma noite de tempestade
serpearam pela neve e o lobo gigante pairou no ar. O silêncio imperou. Os flocos
de neve, o barulho e a força do vento, os rugidos da fera. Tudo ao redor parou
onde estava. Uma estaca de gelo brotou das mãos de Petr. Ela disparou em direção
aos céus e acertou a jugular da fera estacada no ar, no exato ponto onde Conrod
dissera. Com o pescoço e mandíbula dilacerados, o warg invernal descreveu um
arco acima das cabeças de Petr e Conrod no instante seguinte e caiu derrapando do
outro lado, moribundo.
— Corram! — gritava uma voz, desesperada — Há mais três deles vindo aí.
Conrod e Petr se viraram.
Bursel surgiu entre a nevasca. O rosto transtornado, ele rumou em direção à
entrada do platô. Turti balançava, desacordado, sobre seus ombros.
— Preciso que você faça isso de novo! — gritou Petr e Conrod assentiu.
Três silhuetas monstruosas surgiram no extremo oposto do platô.
A ponta do cajado brilhou outra vez. A neve que se precipitava dos céus
interrompeu sua queda e a magia de Conrod silenciou tudo ao redor novamente.
Petr fez uma rajada de gelo elemental irromper de seus dedos, dilacerando os lobos
monstruosos, estacados no ar, a poucos metros acima de onde estava. Isso daria a
eles algum tempo para fugir, se outros wargs aparecessem. O cansaço por usar seus
poderes repetidas vezes começava o abater. Não podia arriscar a própria segurança
e a dos demais.
E no infinitésimo de segundo em que o tempo parecia ter parado, uma luz
misteriosa brilhou em um ponto escuso da plataforma. Esmeralda e radiante, os
olhos de Petr vidraram sobre o lampejo esdrúxulo. Mas, antes que pudesse dizer
ou fazer qualquer coisa, o tempo voltou ao normal, os wargs despedaçados caíram
sobre a neve. Novos uivos estridentes e ameaçadores se ouviram e Petr juntamente
a Conrod puseram-se a correr, fugindo dali.
182
Capítulo Treze
Passado, Presente e Futuro
A pesada cortina azul-marinho despencou lá do alto.
Foi um deus-nos-acuda, um corre-corre e um vozerio desesperado quando
alguém gritou que ela havia escapado por entre os dedos. Caiu de forma audível.
Estatelou-se com um baque ululante sobre o piso já lustrado do Salão Principal no
palácio real da Suntuosa Badorian. Uma camada tênue de pó acumulado pairou
sobre o ar por longos segundos e uma sequência cadenciada de espirros e rinites
atacadas nos mais diversos timbres ecoou. Uma voz trovejou reclamando que era a
terceira vez que encerava o piso de pedra polida azulada somente aquele dia. Outra
reboou um cordel de reclamações que o peso da cortina poderia ter matado alguém.
As reclamações, por fim, não levaram a nada e logo foram substituídas por uma
profusa algazarra generalizada. Tudo voltou ao normal outra vez.
Novas cortinas se estendiam ao longo dos doze janelões imponentes no salão. O
azul dera lugar a um tom dourado suntuoso. Uma tradição nesse tipo de evento.
Dizia-se que o mais importante era exaltar a glória de um momento histórico tão
proeminente. O ouro era o símbolo máximo da grandeza, da honra e da beleza. Um
metal nobre, cintilante e maciço: a alegoria perfeita para a ardente expectativa criada
no entorno da coroação iminente. A nobreza de Badorian se reuniria, aclamaria seu
novo rei em um evento magnífico para a perpetuação e conservação de um reinado
sólido como o mineral tão desejado.
O palácio estava uma loucura.
Os Heinhardt, Borovit, Moronov e Lohntrak respiravam os preparativos da Festa
da Coroação Real, atolados de afazeres e envolvidos com cada detalhe dos festejos
que pareciam suas próprias festas. Impecável era a palavra que mais circulava entre
as bocas dos nobres presentes. Isto era algo a se elogiar em boa parte dos demais
clãs de Badorian: a cooperação mútua. A união entre eles era notória. Fosse nos
momentos de alegria ou nos de tristeza, estavam sempre dispostos a colaborar. Nos
Bailes de Primavera, trabalhavam como um time para deixar o palácio perfeito e
receber as visitas de outros reis, condes e marqueses e comemorar a chegada da
estação das flores. Mas nos Ilíaltes, se superavam. Os trezes dias de comemoração
tinham o poder de juntar o que havia de melhor dos quatro clãs principais: as
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habilidades artísticas dos Borovit, a organização dos Heinhardt, as opiniões e
críticas — nem sempre construtivas — dos Moronov e o capricho dos Lohntrak.
Heidlich conhecia as particularidades de cada família. Ainda que tivesse saído de
casa aos vinte ciclos de idade para incursionar pelos demais reinos como o protetor
deles, conhecia o melhor e o pior de cada clã.
Os Lohntrak eram uma das três principais famílias que lutaram na Grande Era
das Trevas e que, desde então, galgaram posições estratosféricas nas alianças que
fizeram com outras famílias. Diferente dos Gundorf que rumaram para Turmis e
dos Drunírio que preferiram Elstoen, os Lohntrak mantiveram suas raízes em
Eurodian. Atuaram fortemente na legislação em favor da proteção de Eirin e
combateram as últimas legiões de ogros, trolls e drows que restavam no continente.
Contribuíram para a expansão de Badorian, a fundação de Gradia e a consolidação
e preservação dos Pilares da Magia — Cruisand e Paragon.
Mantiveram-se por muitos ciclos no poder, fossem assentados sobre o trono ou
como os protetores do continente. Eram nobres e muito valentes. Os mais valentes
e obstinados que Eirin já conheceu. Mas o que tinham de nobreza e valentia,
possuíam o dobro em teimosia. O maior exemplo para Heidlich era sua própria
mãe. Quando metia algo na cabeça, era mais difícil de se tirar do que domesticar
um dragão selvagem. O mesmo valia para os dois irmãos mais novos de sua mãe,
Silla e Armie, tão turrões e cabeças-duras que às vezes era preferível deixá-los
falando sozinhos do que levar qualquer discussão com ambos a diante.
A marca registrada dos Borovit era a sabedoria. Não à toa, seu pai sempre dizia:
“está confuso sobre a vida? Peça um conselho a um Borovit”. E por essa razão, os
Borovit integravam a maioria das cadeiras do conselho real. Nas épocas mais
tenebrosas que Badorian atravessou, a sabedoria dos Borovit se destacou. Agiam
sempre com justiça e buscavam julgar com equidade as mais difíceis questões. As
melhores e mais arquitetadas soluções eram as deles. Possuíam também outros
dons, sendo exímios artistas. Compunham, cantavam, tocavam. Amavam a forja e
as esculturas em mármore. Contudo, por amarem o saber e as artes manuais,
distanciaram-se consideravelmente de uma arte que os Heinhardt ainda eram
grandes amantes: a guerra.
Se os Lohntrak eram valentes, os Heinhardt eram guerreiros natos. Ávidos pelas
batalhas, apaixonados pela guerra, possuíam uma qualidade que os mantinham
sobre o trono de Badorian por tantas gerações: liderança. Os contos mais famosos
atribuíam aos Heinhardt o comando da Guerra dos Treze, a maior revolução que
Eurodian presenciara.
Ah, se vocês pudessem ter assistido essas sangrentas batalhas!
A Guerra dos Treze durou exatos treze meses e quatro dias, quando os Heihardt,
aliados a alguns poucos Lohntrak e hordas de guerreiros anões valorosos, bem
como de centauros arqueiros, incursionaram até as fronteiras de Badorian para
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impedir um grupo de bárbaros separatistas que vinham conquistando desde
Sombroceano. Fora difícil convencer, no início, os anões, que não iam com a cara
dos humanos mágicos, à época. O auge das batalhas teve seu ápice onde atualmente
está Lenchain, quando, finalmente, o clã dos Grondar, o mais populoso e truculento
entre os anões do continente, se uniram aos guardiões naquela batalha épica que
entrou para história de Badorian, com os Heinhardt ascendendo ao trono desde
então.
Os Moronov, por sua vez, nunca tiveram grande expressão em Badorian, à
exceção de August, o terceiro na liderança do Conselho dos Guardiões, alguém de
quem Heidlich preferia manter distância. A mera menção a seu nome lhe causava
enorme repulsa. Assim como August, os outros Moronov eram soberbos,
presunçosos e, em sua maioria, desinteressados na política ou em qualquer assunto
que envolvesse os condados ou os anseios do povo. Entretanto, eram amantes
incondicionais das festas, não perdiam a oportunidade de se embebedarem, o que
por sua vez resultava em situações vexatórias para a imagem da corte. Heidlich se
pegava pensando com seus botões, por que cargas d’água os Heinhardt se aliaram
a eles e não aos Wullith, os Bravior ou os Ayarza de Miliat? Esses, sim, leais e nem
um pouco mesquinhos ou esnobes.
A tradicional decoração azul e branca, as cores oficiais da bandeira da Suntuosa
Badorian, era pouco a pouco substituída por nuances douradas. Cortinas, toalhas,
louças, talheres, lençóis e até algumas mobílias iam assumindo tons cintilantes. Um
verdadeiro batalhão de empregados se espalhava pelos salões e corredores.
Esbaforidos, corriam de um lado a outro com baldes e esfregões nas mãos.
Limpavam tudo, arrumavam tudo, drapejavam os ambientes, cuidavam de cada
detalhe. Lady Ianora acompanhava a arrumação de perto. Nada escapava a seus
colossais e impetrantes olhos de águia. Tudo precisava estar perfeito. Os copeiros
substituíam as louças e talheres e os organizava sobre a mesa de jantar de forma
ordenada. As empregadas e alguns mordomos trocavam toalhas e guardanapos com
uma velocidade assustadora. Jardineiros aparavam a grama e esculpiam sobre as
árvores dos jardins externos o grande Grifo Inquietante. Dois duendes artífices
foram convocados para esculpirem o busto daquele que em breve estaria recebendo
a coroa e o cetro real na cerimônia mais aguardada dos últimos ciclos, cheia de
requinte e carregada de uma liturgia ancestral.
No meio do fuzuê instaurado em cada canto do castelo, Heidlich permanecia
estático. Os olhos do guardião fixaram-se em um único ponto, absorto e taciturno.
Alheio ao caos ao seu redor, a mente viajou para longe. Só o coração, contudo, se
agarrara àquela visão. Uma aflição comoveu seu âmago de chofre, agitando-o no
fundo do peito. Quis ceder a uma lágrima teimosa, forçando para escapar. O Trono
Branco estava vazio. Cench não estava mais ali.
185
Certa vez, Heidlich gostava de relembrar, foi obrigado a isolar-se por completo.
Precisava ser mais astuto do que um Lobo-das-Cinzas. A experiência em
emboscadas era quase nenhuma. Mesmo tendo estudado tudo que era possível
sobre as artimanhas para surpreender o inimigo, na prática a coisa era diferente. O
inverno era rigoroso, daquele em que as fortes nevascas assopravam veementes,
cobrindo florestas e montanhas inteiras com uma massa branca enregelante,
ocultando qualquer coisa a um palmo de distância do rosto. O entorno era um
fúnebre deserto branco. Enfurnara-se em uma pequena cabana improvisada com
couro de boi durante uma tempestade. Isolado e distante de qualquer viva alma, na
iminência de um ataque que poderia até ceifar sua vida, ele não se sentia sozinho.
Ainda que estivesse embrenhado nas profundezas enregelantes próximas às
florestas de Boralioch, ele sabia que existia um quarto aconchegante, com uma
lareira alta a crepitar e uma cama quentinha esperando por ele. Lá, havia chocolate
quente e bolinhos de nozes. E, quando decidisse voltar, sabia que retornaria para o
conforto dos abraços de seu pai e do carinho de sua família.
Era tudo estranho desde então.
Estranho como se algo lhe tivesse sido arrancado, como um braço ou uma perna.
A ausência pesarosa e gritante debilitava seus movimentos, limitava suas ações.
Uma sensação de impotência. Um vazio sem fim arrasador que o fazia querer
desistir. O porto seguro para o qual sempre retornava não existia mais. Mirando de
onde estava para o Trono Branco, não se sentia capaz. Não se sentia digno de
ocupar o lugar do grande homem que fora Cench Heinhardt.
— Esta noite será você...
Heidlich despertou da confusão de seus pensamentos. A dona da voz gentil que
o abordara encarava-o com um sorriso singelo.
Falla Lohntrak Heinhardt atravessava o salão. Lenços decorativos de renda
balançavam em seus braços a cada passo pesado que dava sobre o piso. Atarracada,
de longos cabelos grisalhos que um dia foram loiros e brilhantes, vinha a passos
largos e pressurosos. Ainda que esse tipo de atividade não fosse de seu real
interesse, estava visivelmente atarefada. Heidlich não lembrava de ver a mãe tão
dedicada assim em eventos grandiosos, nos tempos em que viveu no palácio. Era
mais reservada e recatada. Preferia o silêncio, a calmaria de uma leitura e ambientes
onde reinasse a paz. Deixava tarefas como as desse dia para a irmã mais velha,
Menzira, cujas pernas curtas corriam de um lado a outro para garantir que as coisas
estivessem saindo de forma imaculável ou mesmo para a cunhada Susan, que
adorava passar horas a fio escolhendo tipos de toalhas e cortinas bem como cada
item, por menor que fosse, da decoração dos eventos. Desde tecidos às joias que
adornariam os pescoços das amigas do reino, Susan não perdia a oportunidade de
meter o bedelho para opinar e ter a oportunidade de mandar que atendesse às suas
vontades.
186
Vislumbrar sua mãe tão envolvida nos preparativos para a decoração trazia
dúvidas. Era possível que preferisse, em um momento conturbado, se atolar de
trabalhos e afazeres para que pudesse amenizar a dor da perda do marido.
Envolver-se no maior número de atividades não dava espaço para que pudesse
relembrar. Trazer à memória que o homem com quem fora casada por tantos ciclos
não estava mais ali. O peso da sua ausência não seria sentido e a dor que lhe
perturbava desapareceria, mesmo que por algumas horas.
Com todo esse trauma repentino e inesperado, Heidlich abriu um tenro sorriso
enquanto a mãe se aproximava. Imaginava o quanto ela devia estar tentando ser
forte para que sua tristeza e luto não afetassem o restante do palácio e muito menos
os filhos.
E se havia alguém que Heidlich raramente via, era sua irmã, o que estava
deixando-o profundamente preocupado. Nas poucas vezes em que se cruzaram
desde o funeral, Ivyna estava sempre cabisbaixa. Denotava uma tristeza profunda,
uma infelicidade sem precedentes. Taciturna, ela transitava por entre os corredores
sem pronunciar uma palavra. Acolhia o silêncio durante os jantares e ele nunca
sabia o que dizer para melhorar o clima à mesa. Vivia trancafiada em seu dormitório
e não parecia propensa a mudar tão cedo. Passava dias e horas a fio por lá, sem
falar com ninguém.
A rainha avançou. Desviou de uma série de criados que atravessavam pressurosos
de um lado a outro, empilhando dezenas de louças de porcelana fina. Aguardou um
pequeno batalhão terminar sua rota, com espanadores e vassouras em mãos,
rumando para limpar as esculturas de mármore.
Heidlich deu um beijo na testa da mãe.
— Oi, mãe. A grande noite chegou, afinal.
Heidlich observava o rosto da mãe ofertando um sorriso afetuoso. As rugas de
expressão eram mais intensas e marcadas desde a última vez que estivera em
Badorian, assim como os cabelos perderam um pouco do brilho e da vida que
tinham. O rosto estava pálido, abatido. Envelhecera mais nos últimos três dias,
desde o funeral de seu pai, do que em todo tempo que esteve fora. Mas os olhos
azuis rutilavam. A felicidade em vê-lo por perto outra vez era notória. Contudo, o
luto era tangível, tanto no longo vestido negro que usava quanto no semblante
infeliz que se esforçava para esconder nas expressões de uma mulher atarefada.
— Tudo tem que estar perfeito, meu amor — proferiu Falla, apontando para as
últimas cortinas erguidas no extremo do salão. — Os tons dourados são magníficos.
Exaltam o poder de nossa família. Mostra que nosso elo continua forte como
sempre. A união, a cumplicidade, a aliança entre nossos clãs. Era o que seu pai...
O silêncio se fez abruptamente quando Falla interrompeu-se. O vozerio ao redor
era contundente, mas os segundos de quietude perturbadora entre mãe e filho
foram terrivelmente dolorosos. Heidlich não sabia o que fazer. A importância em
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manter a união entre as famílias, fortalecendo os elos em eventos como os desse
dia era o tipo de frase que seu pai certamente diria. Com seu jeito simples e sereno,
ele provavelmente estaria inspirando a todos ao redor, ajudando os demais na
arrumação, contando piadas ou histórias engraçadas sobre sua juventude e
brincando com algum dos seus cunhados e cunhadas.
Heidlich preferiu não dizer nada. Abraçou a mãe e o gesto falou por ele. Sabia
como tudo estava sendo difícil. Para ambos.
— Sinto a falta dele.
— Eu também, mãe — balbuciou Heidlich. Fechou os olhos com tamanha
violência que não havia chance de uma lágrima vencer a batalha e escorrer por seu
rosto. — Que saudade tenho do meu pai.
— Aquele velho safado me prometeu. — Falla abraçou o filho, enterrando o
rosto em suas vestes. — Prometeu que não morreria primeiro.
Lágrimas desprenderam-se dos olhos de Heidlich. Percorreram sua face e
morreram sobre os cabelos da mãe. Falla soluçava baixinho para que ninguém
notasse seu choro. No abraço dos dois, a saudade era externada pelo pranto
silencioso.
— Se ele estivesse aqui, estaria contando aquela velha história...
— Do tigre sobre a mesa?
Heidlich e a mãe sorriram.
— Na verdade, — falou a rainha, a voz menos embargada — pensei naquela em
que ele e seu tio perderam as calças no vilarejo de Thongan. Eu não aguentava mais
essa...
Heidlich riu outra vez. A velha história de como seu pai e o irmão, Anturc, ainda
adolescentes, se meteram em uma confusão com um grupo de bêbados no vilarejo
mais remoto de Badorian e no final, ao tentarem escapar pelos telhados, perderam
as calças na fuga, era a fábula mais narrada no palácio. Mais até do que as antigas
histórias da Era de Ouro dos Guardiões.
Heidlich observou o sorriso estampar o rosto da mãe. Queria vê-la assim: alegre,
feliz, ainda que, até para ele, isto fosse tão difícil de se conseguir.
— Você terá orgulho de mim, mãe. Esta será uma grande noite!
— Eu já tenho, meu filho. Você sempre foi e sempre será meu orgulho. Tenho
certeza de que será um grande rei, assim como foi seu pai.
O vento que vinha do Norte balançava suas vestes. Suave, brando como a brisa
tinha de ser àquela época do ano, porém era também gélido. Golpeava as maçãs do
rosto como finas agulhas congeladas e faziam-no estremecer, arrepiando os cabelos
do pescoço.
Sabe quando o inverno chega e instaura uma aura enregelante, que não é atroz
como a de uma nevasca se assomando, mas ainda não é constante, impregnando o
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ar, com a plenitude da estação? Era desta forma que o frio perambulava sobre a
cidade nos arredores do palácio. Era um indício do que estava por vir. O inverno
logo reinaria absoluto na capital e nos demais condados. Os ventos congelantes
soprariam e os finos cristais de neve despencariam dos céus com maior frequência
e cobririam o palácio, a cidade e os demais condados com uma singular camada
branca e fofa. Os agasalhos simples seriam substituídos por grossos casacões
felpudos. O inverno em Eurodian costumava ser bastante rigoroso.
Heidlich puxou um pouco mais o capuz. Com duas voltas de pano ao redor da
cabeça, cobria não só a boca: um tufo de tecido azul fazia uma curva que
atravancava sua visão. Não pelo frio, pois, sinceramente, a camada de tecido que
tapava o rosto fazia-o suar. Atrapalhava para enxergar o caminho a sua frente, mas
mantinha a discrição que tanto queria. Passeava pelas ruas da cidade, ansiando por
um breve momento de paz sem ser reconhecido.
A cidade estava apinhada de gente.
Centenas de pessoas ignoravam o frio nas ruas do mercado e transitavam de um
lado a outro. Alvoroçadas, se aglomeravam aos montes, falavam alto, algumas aos
berros vendendo seus produtos. Não havia uma barraca sequer que não tivesse pelo
menos um grupo de dez ou mais pessoas comprando e vendendo alguma coisa.
Sacos de cereais, trigo, arroz, milho, aveia e grão de bico. Barracas exibiam belos
vestidos de algodão e linho em cores extravagantes. Outras tinham gaiolas e uma
penca de pássaros exóticos cantarolando alto. Frutas, legumes e verduras eram
molhados para manter seu frescor em uma fileira do mercado. Carnes carregadas
de sal pendiam de outras barracas. Os vendedores tentavam chamar a atenção como
podiam. Berravam a esmo, exibiam placas, cutucavam pessoas aleatórias, mesmo
não tendo espaço para atender mais clientes em suas tendas abarrotadas.
Heidlich não lembrava de ver o mercado tão lotado assim.
Parou ao lado de uma barraca de frutas, arremessou uma moeda para o vendedor
e abocanhou um pêssego. Um grupo conversava acaloradamente. Aguçou os
ouvidos para prestar atenção com os olhos contemplando os transeuntes ao redor.
— Dizem que ele é a cara do pai, é verdade? — questionou uma velha apoiada
em um gigantesco saco de batatas.
— Para falar a verdade, eu não sei — crocitou um homem esgalgado, ligeiramente
calvo e com um cavanhaque ralo. Afastava umas moscas de seus peixes em
exibição. — Raramente o víamos aqui. Virou Guardião e sumiu.
— Mas ele deve estar sofrendo demais, coitadinho — dizia uma mulher loira e
esbaforida dizia. — Principalmente com a morte do pai...
— A verdade é que eu acho que ele não se dava bem com o pai — inferiu um
velho barbudo, terminando de arrumar melões em um cesto. — Sabe como é,
existem filhos desnaturados...
— Você nem sabe o que está dizendo, Dimeus.
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— Alguém conseguiu vê-lo no funeral? Disseram que ele estava por lá...
— Eu não.
— Nem eu.
— Eu tampouco.
— Também não o vi.
— Acho que ele não foi.
— Foi sim, menina. Ele estava lá. Madame Bartila quem me contou. Mas ele
chegou para o enterro. Pelo menos foi o que ela disse...
— Que falta de consideração com o próprio pai.
— Outra vez, Dimeus, pare de falar besteiras.
— A única coisa que eu espero, de fato, é que ele seja um bom rei. Assim como
foi Lorde Cench. Aquele homem, sim, era bom.
— E sábio.
— Sim, deveras sábio.
— Diferente da maioria dos outros intitulados nobres, os Borovit, Lohntrak e
aqueles Moronov...
— Malditos Moronov!
— Como é mesmo o nome dele?
— É um nome estranho, até hoje não aprendi a pronunciar.
— É Havich.
— Não, Lontimas, é Hardrir.
— Acho que é Heidlich.
Atraindo a atenção para sua figura oculta, o guardião seguiu adiante, deixando os
restos do pêssego para trás. Os olhares curiosos acompanharam seu trajeto, calados
e curiosos. Tentavam decifrar quem era a pessoa encapuzada bisbilhotando a
conversa.
Puxando para baixo ainda mais o capuz, transitando entre o povo, colidia os
ombros vez ou outra com alguém ou pedia licença, esgueirando-se em meio a
grupos de pessoas comprando ou conversando aos berros, atravancando o
caminho. Estava obstinado a alcançar duas coisas: não ser reconhecido e chegar à
Academia dos Guardiões.
A única coisa que eu espero, de fato, é que ele seja um bom rei. Assim como foi Lorde Cench...
A frase martelava na cabeça de Heidlich desde que recebera o comunicado em
Aralyart. Pensar sobre isso provocava um medo sem precedentes. Um medo que
nunca sentiu. O povo depositava as esperanças nele. Mas ninguém nem sabia como
ele era. E se não conseguisse atender às expectativas de ser um bom rei como foi o
pai?
As coisas estavam muito diferentes em Badorian. O mercado, as ruas da capital,
as pessoas. Heidlich não sabia explicar o que mudara. Mas, ao redor, tudo era
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diferente. Diferente e estranho. Sentia-se um estrangeiro vagando por uma cidade
desconhecida. Ainda que aquele fosse seu lar, ainda que se habituasse a correr por
aquelas ruas e vielas, se esgueirasse pelas barracas apinhadas na infância, o
sentimento de estranheza era algo perturbador.
Nunca pertenceu à sua terra natal e isto era um fato estarrecedor. Viveu na corte
real, criado com os primos e tios, os empregados do palácio e com os demais
Borovit, Lohntrak e Moronov. Mas sua alma nunca se moldou às fronteiras do
reino. O maior anseio de sua vida, desde criança, era conhecer o mundo. As
histórias e as culturas de outros povos o fascinavam. Encantava-se com o mapa dos
treze reinos de Eurodian. A curiosidade sobre o desconhecido além das Águas de
Argúrius ou de Crispoles agitava sua alma e o impelia a querer descobrir essas terras
de além. Quando chegou o tempo de estudar, ignorou as dezenas de escolas
renomadas da alta nobreza do reino e ingressou na Academia dos Guardiões.
Mesmo tão novo, estava convicto do que queria. A aspiração que o enlevava era a
de se tornar Guardião. Depois de formado e disputar a vaga com outros quinze
candidatos, não queria continuar em Badorian. Nasceu para aquilo. O próprio
destino estava entrelaçado com o desconhecido.
Vinte ciclos se passaram. Conhecia cada um dos treze reinos como a palma de
sua mão. Lutou uma centena de batalhas, derrotou monstros e criaturas fantásticas
das mais variadas, legiões de mercenários e facínoras nos lugares mais adversos.
Aprendeu sobre outras culturas, novas línguas, povos diversos. Colocou o próprio
poder à prova uma infinidade de vezes. O coração pulsava por esse estilo
conturbado de se viver: sem luxo, sem riquezas, no cerne dos conflitos, cercado de
perigos. Nas oportunidades, regressava à Badorian. Retornava para as festas, em
alguns poucos eventos, às vezes em épocas de rigoroso inverno. Nunca ficava
muito tempo. Eurodian era seu verdadeiro lar e o reino de seus pais, o lugar onde
costumava passar férias. Sua família eram as pessoas que necessitavam de sua ajuda.
A morte de seu pai era um choque sem precedentes. Um baque inesperado que
colocava em xeque tudo o que foi durante vinte ciclos. Arrependia-se de não ter
passado mais tempo com ele. De não ter tido a chance de ao menos se despedir e
dizer a ele o quanto o amava uma última vez.
Uma lágrima escorreu de seus olhos e morreu no capuz.
Badorian tornou-se um lugar de solidão e amargura. Um reino esquecido por sua
própria opção. Pelas leis reais, era o próximo na linha sucessória. Assentaria sobre
o Trono Branco e abdicaria da posição para um novo Protetor. O medo era um
tormento crescente. Uma seara desconhecida se apresentava, aprisionando-o em
grilhões que o amarravam à realeza até o fim de seus dias, numa terra ao qual ele se
tornara o maior desconhecido. Vinte ciclos como Guardião não o ensinaram a ser
rei. Pela primeira vez em muito tempo, o medo do futuro o perturbava.
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Sobre o cume de uma montanha, o majestoso palácio imperava. Às margens do
encontro de dois rios de Badorian, o grande rio Mulbe, de águas negras e revoltas
que nascia ao norte do reino e desembocava no extremo-leste de Cruisand e o rio
Alente, que seguia seu rumo serpeando pelas terras badorianas até alcançar Fahur,
o castelo fora por muitos ciclos a sede do reino, abrigando as primeiras alianças
entre guardiões de Eirin. Por sua posição privilegiada no topo de uma vultosa
montanha e cercado de água por todos os lados, foi uma das mais importantes
construções durante eras e uma das nove maravilhas do mundo. Uma das primeiras
e raríssimas em que duendes, elfos, anões e artesãos humanos esqueceram suas
vaidades e melindres para atuarem juntos. A intenção era que o grandioso palácio
fosse um farol de esperança e suntuosidade que inspiraria toda Eurodian. A obra
levou sete ciclos para ser construída e apresentada ao mundo; porém, não mais do
que trinta para ficar completamente esquecida e se tornar o quadragésimo maior
castelo do mundo.
Em suas ameias construídas em citrino e topázio imperial, os mais de vinte salões
e salas comunitárias, dezenove torres e os variados pátios e saguões abrigavam uma
das mais renomadas instituições de ensino do reino: a Academia Badoriana dos
Guardiões. Há mais de duzentos ciclos, instruía jovens mágicos para exercerem
importantes papéis de liderança, além de educar no conhecimento básico e
avançado para a vida. Os nascidos guardiões tinham a oportunidade de estudar
sobre a profissão mais destacada do mundo. Aprender com antigos Protetores,
aprimorar os conhecimentos e habilidades com a magia, noções de estratégia
militar, idiomas e liderança. Quando de uma Sucessão Honrosa, podiam colocar os
poderes à prova em um torneio que escolhia o futuro Guardião de Eurodian. O
modo encontrado pela Casa dos Heinhardt visava não ser injusto com as demais
famílias aliadas e apresentar o melhor protetor para o continente. O mais poderoso
na competição era coroado com o cargo e recebia todas as honrarias e deveres da
função. Quando não havia uma vaga na tão sonhada carreira, outras funções eram
disputadas como o posto de General ou Almirante.
O palco dessa acirrada competição era a majestosa arena da Academia dos
Guardiões. Entrementes, permanecia idêntica ao que ele se lembrava: uma extensão
retangular coberta com um longo tapete de grama esmeralda e fofa. As
arquibancadas em mármore abrigavam tranquilamente mais de dez mil
espectadores. A tribuna real, levemente mais alta, ainda flamulava em tons de azul
e branco, o Grifo Inquietante de Badorian. Não somente para as lutas, os campos
eram palco para uma infinidade de modalidades esportivas, desafios mágicos,
torneios e campeonatos.
Passo a passo, Heidlich adentrou o gramado verdejante da arena. As lembranças
das centenas de vezes em que pisou naquele lugar atulhavam sua mente com
ímpeto. Uma nostalgia gostosa. Memórias de tempos tão distantes e que colocavam
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em seus lábios um sorriso abobalhado. Sobre o gramado cuidadosamente aparado
e admirável, venceu a disputa com outros quinze guardiões e se tornou o grande
protetor de Eurodian.
Os espectadores abarrotavam as arquibancadas ao redor, alvoroçados com as
batalhas espetaculares que viam. Fogos de artifício estouravam nos céus. Alunos da
Academia, professores, os Heinhardt, Borovit, Lohntrak e Moronov, grande parte
do Conselho, uma penca de sacramentadores, reis e rainhas de Mistral, Achmat e
Boralioch, centauros de Vorázia, Nassar e Bein-Hall, anões de Alfadelores e outras
centenas de convidados e curiosos. Uma multidão extasiada gritava de forma
enlouquecida, assistindo um dos momentos mais marcantes e históricos da
Suntuosa Badorian. O momento em que ele derrotara o último oponente no
torneio.
Exausto depois de derrubar o derradeiro rival, Heidlich erguia as mãos para cima
com o resquício das últimas forças que ainda tinha. Os braços doíam e as pernas
começavam a vacilar. Cada músculo tremulava, mas a felicidade de conquistar o
torneio estampava seu rosto machucado. Lorde Cench aplaudia de pé com uma
animação incontida. Ao lado da rainha, grávida de Ivyna, o sorriso de alegria pela
conquista do filho estava escancarado. Malnenn e Anturc, seus tios, também
vibravam da tribuna de honra, comemorando a vitória invicta do sobrinho.
— Basta!
Uma voz forte ribombou pelo gramado ao pé das arquibancadas, trovejando no
limiar do campo. As multidões ao redor emudeceram e apuraram a visão para o que
acontecia no centro da arena. Lorde Cench e Lady Falla contorceram o cenho para
o que seguia. Armie Lohntrak vinha a passos largos até o ponto exato em que
Heidlich, esgotado, acabara de derrotar seu último oponente. Mediano, de cabelos
loiros e curtos penteados para trás, mas com as laterais da cabeça sempre raspadas,
ele atravessava o campo obstinado, com seus passos fortes e trejeitos militares
exagerados. A armadura de ferro recém forjada tilintava a cada passo; o brasão do
reino em alto relevo sobre a couraça reluzia à luz do sol.
Armie era o irmão mais novo de Falla. Extremamente truculento e turrão, era o
oposto do poço sem fim de paciência e sabedoria que era a irmã. Adorava exibir
seus poderes para as damas de companhia e outras donzelas do reino. Havia
acabado de ser nomeado Marquês nos limites entre Cabernant e Nassar, uma
posição militar de respeito para sua pouca idade e ausência de maturidade.
Ele aproximou-se de um exaurido Heidlich. Avaliou o sobrinho por alguns
segundos com ar de desconfiança. O filho de Lorde Cench retribuiu com um olhar
petulante.
— Eu o desafio! — crocitou Armie para que todos pudessem ouvir.
As vozes ao redor suspiraram. Um coro audível e descompassado externava a
surpresa com um pedido de desafio tão inesperado. Heidlich lançou olhares
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nervosos para os pais no alto da tribuna e para os professores nos limites da arena.
Eles pareciam céticos diante de uma reviravolta tão imprevista.
— Armie, o que é que você está fazendo? — questionou o rei, embasbacado.
— O regulamento da Academia é enfático, meu rei. — Depois de uma longa
reverência na direção da tribuna, Armie voltou a berrar, criando uma cena para as
multidões. — Se um oponente, que pode ser qualquer um de vocês, amados
cidadãos presente nessas arquibancadas, desde que nascido guardião, julgar o
campeão do torneio inapto para assumir a posição de Protetor, independente de
quem for, ele pode requisitar um desafio.
Uma onda de questionamentos inundou as arquibancadas. Rismim e Cormes
trocaram olhares intrigados. Caesen Moronov abriu um longo livro de capa dura e
folheou com ferocidade procurando tal sentença. Autran Borovit balançava a
cabeça e sussurrava algo para Anturc. Heidlich continuava estático e estupefato de
frente para o tio.
Amus Borovit veio balançando pela tribuna e parou ao lado do rei. Cochichou
algo em seu ouvido. Heidlich observava a expressão do pai mudar de uma
contrariedade caricata para um assombro súbito.
— Parece que Arm...
— Lorde Armie, meu rei.
Rei Cench pigarreou, tentando não transparecer o descontentamento notório.
— Lorde Armie, parece que você tem razão. O regulamento do torneio permite
o desafio.
Armie abriu um sorriso acintoso. Os espectadores da arena eclodiram em um
vozerio ensurdecedor.
— Contudo, — o rei voltou a falar alteando a voz e calando as multidões — o
regulamento também deixa muito claro que o desafiador tem apenas uma chance.
Caso ganhe, o desafiador se torna o campeão e assume o posto. Caso perca, ele
coroará o vencedor e viverá a vergonha da derrota, rememorada a cada mês ao
longo de um ciclo.
Armie espantou-se. Os olhos do marquês vislumbraram o sobrinho de soslaio e
seu cansaço exacerbado e então assentiu, confiante.
— Assumo as consequências, — berrou Armie, seguido de outra reverência
exagerada — quaisquer que elas sejam.
Recuperando as energias pouco a pouco, Heidlich ainda não conseguia acreditar
que aquilo era verdade. Contemplando Armie Lohntrak girar nos calcanhares para
ficarem frente a frente, ele ergueu os punhos cansados e apertou bem os dedos
levemente dormentes contra as palmas das mãos. Ainda haveria um novo
oponente. Justamente, o tio mais cínico e metido da família de sua mãe. A raiva que
sentia pela audácia do tio fez esquecer do cansaço e o vigor da adrenalina o invadia
outra vez.
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Armie Lohntrak desferiu uma sequência de golpes rápidos com os punhos
fechados. Heidlich não sabia se era pela exaustão das últimas batalhas, mas sentiu
o corpo deslizar repetidas vezes quase que por instinto, esquivando-se dos
múltiplos socos do tio.
A plateia vibrava. Rei Cench, Anturc e Autran se acotovelavam sobre a tribuna,
disputando o melhor lugar para poderem apreciar a luta. Os olhos arregalados e as
bocas escancaradas de surpresa. Lady Falla alisava o barrigão de seis meses em pé,
vidrada na batalha entre o filho e o irmão no centro da arena. Balançava a cabeça
em sinal de desaprovação. As damas de companhia da rainha, assim como Lady
Silla e Luzena Lohntrak, afagavam seus ombros e esforçavam-se para fazê-la
assentar.
A luta entre tio e sobrinho perdurava. Heidlich era rápido e furtivo. Mesmo
limitado pela fadiga, conseguia desviar dos intentos de Armie, que ia cansando por
causa do peso da armadura.
O irmão mais novo de Falla jogou o capacete para longe e conjurou um chicote
de fogo. Ele ergueu o braço e girou seu laço acima da cabeça, enquanto corria na
direção do sobrinho, prestes a atacá-lo mais uma vez. No instante em que a chibata
coruscante cortou os ares, emitindo um longo silvo agudo, uma torrente
enregelante emanou das palmas das mãos de Heidlich. Fogo e água se encontraram.
A multidão berrava sobre as arquibancadas nos arredores no que era, até então, a
melhor luta do torneio de guardiões. Até um impassível Salazar Stanhorne estava
atônito com a batalha e o sempre sereno Poledores Früg, o sacramentador do
octaedro de Badorian, se agitava, andando de um lado a outro.
O chicote de fogo se foi tão rápido quanto surgiu. A força incontrolável das águas
elementais não só obliteraram a magia de Armie como o arremessou pelos ares,
lançando-o na direção da tribuna. Caindo com um baque ensurdecedor de lataria
amassando e ossos se quebrando, Armie quicou sobre uma mesa e tombou
desmaiado aos pés do rei.
O público foi ao delírio. Uma parte dos espectadores invadiu o campo. Os
Heinhardt respiraram aliviados ao passo que os Lohntrak balançavam a cabeça,
envergonhados. Os Moronov e o Borovit contorciam o cenho. Alguns ainda sem
saber o que pensar sobre o que acabaram de ver. Lady Falla torcia o nariz para o
irmão inconsequente desmaiado no chão a seu lado, mas suspirava de
contentamento com o filho. Uma coisa, no entanto, ficou clara: Heidlich Heinhardt
provara para todos, mais uma vez, que era o merecedor do título de campeão.
Caminhando a passos lentos, Heidlich rumava para o centro da arena. O sorriso
nostálgico continuava lá. Questionava-se por onde andava seu tio irresponsável.
Nos últimos ciclos em Badorian, nunca tivera um interesse real em saber como ele
estava ou o que fazia. Não sabia se ainda era Marquês ou fora promovido — ou
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rebaixado do cargo. Embora, seria interessante saber de seu paradeiro:
principalmente para perguntar como foi lidar com a vergonha da derrota para o
sobrinho, todo mês, ao longo de um ciclo.
Um grupo de jovens treinava sozinho. Não passavam de sete franzinos
adolescentes. As bolsas de couro ficaram esquecidas pelo chão e os pesados casacos
negros com o brasão da Academia se embolavam pelo campo. Três deles criavam
pequenas esferas reluzentes de magia em alta velocidade e com grande perspicácia.
Corriam em zigue-zague, se esquivavam com destreza das investidas e atacavam
com vontade enquanto os outros quatro conjuravam suas magias, defendendo e
atacando em sequência. Não havia professores por perto. Deviam estar
aproveitando o tempo vago para ver quem era o mais poderoso.
Heidlich queria colocar esse poder à prova. Ver se o nível dos estudantes ainda
era tão bom quanto em sua época.
Os sete demoraram para perceber o homem que se assomava lentamente em
direção ao local em que treinavam. Pouco a pouco, eles interromperam seus golpes
luminosos e as rajadas de magia e apuraram a visão. Tentavam decifrar a quem
pertencia a silhueta escusa se aproximando em meio à neblina fina que infestava o
campo.
Heidlich soltou o lenço que escondia o rosto. Os cabelos longos e loiros
esvoaçaram com a brisa gelada. Os sete pares de olhos se sobressaltaram quando a
figura do guardião se postou bem em frente a eles, encarando-os. Embasbacados,
o queixo despencara e olhares saltaram das órbitas. Nenhum deles esperava por
uma tão ilustre e inesperada visita àquela hora do dia.
No silêncio estarrecedor que se seguiu, eles se entreolhavam. Heidlich fitava os
sete jovens de estaturas variadas. Dois atarracados, três esgalgados e dois medianos.
Quatro deles tinham feições que lembravam e muito a dos Borovit: nariz levemente
adunco, pintas escuras sobre a bochecha, algumas poucas sardas abaixo dos olhos.
Os demais, ele não sabia dizer com precisão. Poderiam ser tanto da miscigenação
dos Moronov quanto dos Lohntrak ou mesmo guardiões de outros continentes,
alquimestres ou mestres. Mas uma coisa era característica: eram todos inexperientes
mágicos embasbacados com sua presença ali.
— Bom, — falou Heidlich, mirando da expressão apalermada dos garotos para
as bolsas e uniforme jogados sobre a grama — ouvi dizer que era aqui o lugar onde
eu teria um desafio... Estou certo?
Ninguém respondeu. O queixo dos garotos ainda caído. Despencou ainda mais
quando Heidlich tirou o próprio gibão e o jogou sobre a grama verdinha.
— Muito bem, gostaria de saber: quem de vocês é o mais forte?
Os sete se encararam e recuaram, assustados. Heidlich flexionou as pernas e
ergueu os punhos. Uma aura tenra e azulada crescia do seu corpo como uma chama
coruscante.
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— Eu sou o mais forte!
Uma voz surgiu de algum lugar e não foi do meio do grupo que o encarava com
espanto. Heidlich balançou a cabeça procurando quem era o oponente que aceitara
seu desafio.
Do extremo das arquibancadas, um oitavo garoto apareceu. Os cabelos negros e
encaracolados eram revoltos e repartidos ao meio, sambavam sobre seus ombros a
cada novo passo. Vinha caminhando com determinação e confiança. Os olhos cor
de mel rutilavam; havia nele uma coragem louvável, diferente da dos demais
adolescentes. Debaixo do nariz pontudo, ele exibia seu sorriso debochado. Não
havia o corriqueiro espanto das pessoas quando Heidlich aparecia. O que aquele
menino sustentava era algo que o guardião adorava: a oportunidade de encarar um
desafio.
O garoto parou em frente à Heidlich e o encarou com ousada petulância. Com
uma perna a frente da outra, também pôs os punhos em riste, dispondo-se para a
luta iminente.
— Fascinante — falou Heidlich, abrindo um sorriso tão desbocado ou mais do
que de seu rival. — E como devo chamar meu oponente?
— Diria para me chamar de seu pior pesadelo — disse o garoto, balançando a
cabeça. Como a aura azulada de Heidlich, ele também emanava uma chama
esmeralda ao redor do corpo.
Um grunhido abafado de espanto ressoou. Os outros sete estudantes
circundaram os dois oponentes, espantados e animados com a luta que estava por
acontecer. Heidlich fez uma careta e riu. A audácia do jovem guardião era
estratosférica. Ele amava isso em seus adversários.
— Pelos cabelos negros e essa arrogância do tamanho do mundo, eu diria que
você é um Lohntrak.
O garoto se sobressaltou.
— Muito bom, velhote — disse o garoto, um sarcasmo irritante carregado na
voz. — Cem pontos para seu exímio saber. Quer adivinhar minha idade agora ou
vamos partir para o mano a mano? Adorarei ter o prazer de poder divulgar aos
quatro cantos que eu derrotei o poderoso Heidlich Heinhardt, a Lenda de
Eurodian!
Um novo uivo de espanto ressoou. Heidlich agitou os punhos com vigor, estava
curtindo o momento de provocação.
— Velhote? Ok, Sr. Altivo — inferiu Heidlich, animado. — Contudo, proponho
uma aposta. Se você ganhar, te pago mil dorens e você leva a fama de ter derrotado
o rei de Badorian...
— A Lenda de Eurodian...
— O rei de Badorian. A Lenda de Eurodian não existe mais. Mas, se você perder,
você me diz o seu nome.
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O garoto ponderou, rindo pelo canto da boca. Achou a oferta mais do que
favorável e por fim, assentiu.
— Ok. Parece-me razoável. Prepare-se para uma humilhação histórica, das mãos
do oponente mais poderoso que já enfrentou.
— Desejo-lhe o mesmo. Em dobro.
O garoto voou de onde estava, sem titubear. As chamas esverdeadas o
envolveram por completo e ele disparou como um balaço na direção de seu
oponente com os punhos em riste, cortando os ares. Heidlich aguardou. Os ciclos
de experiência o ensinaram a ter paciência e esperar. Moveu um pé para trás
lentamente e, no momento exato, esquivou-se do golpe que passou a centímetros
de seu rosto, levantando alguns poucos cabelos loiros. Sorriu e fez um muxoxo em
seguida. Um erro crasso que atingia noventa e nove por cento dos arrogantes que
enfrentava: partir para o ataque sem estratégia alguma. Jamais precisou lutar com
esse tipo de adversário. Deixava que suas próprias arrogâncias os derrotassem. Não
parecia que desta vez seria diferente. O garoto derrapou sobre a grama. Grandes
tufos de terra voaram do chão quando os pés se esforçaram para frear o corpo do
golpe frustrado. Arreganhou os dentes para o oponente que continuava sereno e
inexpressivo do outro lado. Girando o corpo, ele se preparava para atacar
novamente.
— Vai demorar muito? — arguiu Heidlich, irônico. — Não querendo te apressar,
mas há uma cerimônia de coroação me aguardando e eu queria tomar um café
antes...
O garoto o encarou, furioso. Correndo pela grama, descabelado e possesso de
raiva, o jovem estudante alcançou Heidlich. Desferiu uma série de socos e chutes
em alta velocidade, com um ímpeto irracional em uma sede desenfreada por ganhar
aquela luta e provar que vencera a famosa Lenda de Eurodian.
Um, dois, três, quatro, cinco, seis.
Um na direção do rosto, outro no estômago, depois um no peito e no rosto outra
vez, um gancho de baixo para cima e por fim um bem no queixo. Heidlich
esquivou-se de todos eles com paciência e precisão. Anteveu cada golpe
instintivamente, algo que seus ciclos de experiência como Guardião o ensinaram.
Entrementes, oponentes inexperientes e presunçosos sempre desferiam ataques
extremamente ingênuos e previsíveis. Havia um padrão nesse tipo de rival. Eram
ávidos por acertar qualquer parte do corpo mais exposta, a esmo. Avançavam sem
um método preciso ou sem estudar os movimentos do adversário.
O garoto rodopiou em seu próprio eixo quando o último soco acertou o ar a
centímetros do queixo de Heidlich. Trocando os passos, o pé direito se enroscou
com a perna esquerda e ele cambaleou três vezes. Heidlich deu um único golpe,
com uma paciência inabalável. O tapa de quatro dedos marcou o pescoço abaixo
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da nuca do jovem guardião. Perdendo o equilíbrio, ele girou algumas vezes até
estatelar-se de cara na grama.
Os outros sete garotos ao redor caíram na gargalhada. Os olhares se arregalavam
para a trágica e cômica batalha no centro da arena. Aplaudiram com vontade a
vitória espetacular de Heidlich, que não precisou mover muitos músculos e
tampouco suar para ganhar a luta. Heidlich abaixou-se, próximo ao buraco na
grama onde a cabeça de seu rival estava enterrada.
— Pelos meus cálculos, conforme combinado, acredito que você me deve seu
primeiro nome.
— É Aron. Aron Lohntrak. — A voz do garoto soou como um sussurro abafado,
carregado de resignação. A coragem e petulância para encarar o algoz de sua
humilhante derrota haviam desaparecido.
Heidlich riu. No fundo, apesar das boas risadas que conseguiu arrancar, estava
decepcionado. Imaginara que encontraria um oponente à altura, com disposição e
técnica, na Academia dos Guardiões. Ledo engano. Pegando seu gibão largado
sobre o campo, partiu tranquilamente rumo aos portões de saída, sob um coro de
risadas estridentes dos sete rapazes ao redor do perdedor.
O céu assumia tons mais escuros e o sol sumia no horizonte: a noite logo cairia
sem pudor. O encontro entre tons laranjas e azuis se misturavam na abóbada celeste
e criavam nuances convidativas para o aconchego de uma cama quente ou de um
bom cordeiro assado com batatas. A temperatura caía progressivamente. O
anoitecer trazia consigo um frio insuportável. As lareiras das casas logo estariam
acesas e as fogueiras crepitando pelas ruas mais gélidas. A cerração que despontara
desde o início da tarde impedia de afirmar com precisão que horas do dia deviam
ser. A névoa pálida cobria os arredores do castelo e até as altas torres e edifícios da
Academia eram mergulhados em densas nuvens cinza-chumbo. Os carvalhos
próximos assumiam tons fantasmagóricos e a brisa chiava ao assoprar pelas
esquinas da cidade. Heidlich recordava de um dia assim. Um dia em que desviou
sua rota dos campos de treinamento e foi encontrar-se com uma garota atrás do
grande salgueiro próximo à ponte baixa. O local preferido para suas conquistas. O
dia também era cinzento, de névoa quase palpável sobre as ruas e com o sol
terminando de se pôr. Graças a uma trilha de folhas avermelhadas, colocadas
estrategicamente, conseguiu chegar ao local indicado. O suor escorria frio. Pensava
em como seu nervosismo era notório. Será que isso assustaria a garota? Era a
primeira vez que saía com uma menina. Não obstante, a mais bonita da Academia
e também a mais cobiçada. Quatro ciclos mais velha do que ele. Os medos de sua
adolescência eram tão bobos e infantis. Ínfimas preocupações se comparadas aos
perigos e desventuras que teria de enfrentar ciclos mais tarde.
Como nossas preocupações são tão idiotas quando somos jovens.
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Heidlich se escorava sobre o tronco do antigo carvalho, forçando os olhos para
enxergar além da cerração. As folhas o guiaram até o local combinado. Será que ela
já havia chegado? Ou tinha se perdido no caminho? Teria ele chegado tarde de
mais?
Uma mão macia o puxou de relance e seus lábios foram pressionados pelos lábios
quentes e molhados dela. Eram suaves e delicados. As línguas de ambos se
enroscaram, de uma forma tão natural que nem ele mesmo imaginava que
aconteceria. Os amigos o perturbaram tanto com inúmeros papos sobre beijos de
língua: qual era a forma certa, como deveria fazer, quais cuidados deveria tomar, o
que não poderia fazer em hipótese alguma, que ele nem sabia por onde começar.
Colocara na cabeça que não arriscaria em seu primeiro beijo. As paranoias que o
perturbaram ficaram instantaneamente irrisórias diante dos beijos ardentes e
molhados que experimentava embaixo da árvore.
Ela era experiente. Dezesseis ciclos de idade. Ruiva e de cabelos encaracolados.
Popular. Dona de pernas grossas e seios grandes e firmes. Dizia-se na escola que
era uma menina inalcançável. O tipo de garota que seleciona quem serão seus
amigos e amigas, com quem deseja ficar. Devia ter beijado outras bocas. Beijava de
forma intensa. Saboreava o gosto do beijo de um modo lascivo. Sabia o que fazer
e como fazer. Onde pôr a língua e com que intensidade. Heidlich, na inexperiência
de seus doze ciclos de idade, seguia os movimentos dela, imitando tudo o que ela
fazia. Colocava as mãos onde ela o guiasse. Era como se dançassem uma valsa. Ela
era a ilustre bailarina, a estrela do espetáculo. Ele apenas deixava-se conduzir pelos
seus passos. Ficou ali por vários minutos, que para ele pareceram horas, apreciando
o delicioso gosto dos lábios da menina mais atraente da Academia.
Como estaria Mel Leantar?
Depois daquela noite, a garota marcante de seu primeiro beijo nunca mais o
procurou. Virou as costas e retornou para o castelo da Academia em meio ao
negrume dominante da noite. Enlevado, ele sentia-se completamente aparvalhado.
Os pensamentos focavam em cada segundo dos beijos arrebatadores, de suas mãos
apalpando os grandes seios e esfregando-se em direção à bunda empinada. A partir
de então, Heidlich criara um padrão: adotou o velho salgueiro próximo à ponte
baixa como o palco de suas conquistas posteriores. Seduzia belas ruivas de cabelos
encaracolados e seios fartos depois dos treinos e se atracava com elas em seu lugar
secreto.
As palmas das mãos repousavam sobre o mármore gelado da ponte. De chofre,
pegou-se sorrindo para o nada. O barulho das águas correndo abaixo dos seus pés
alinhava-se aos costumeiros sons da noite na floresta nos arredores do palácio.
Como de praxe, alguma ave grasnava alto, morcegos voavam baixo em breves
rasantes fugindo de qualquer indício de luz e ecoavam o barulho de suas asas
agitando-se em alta velocidade, um grilo emitia um ruído intermitente.
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Um burburinho quase inaudível ressoou em algum ponto. A nostalgia e as
lembranças ficaram de lado e Heidlich apurou os ouvidos. Curioso, tentava
entender de onde vinham os cochichos misteriosos. As vozes eram tímidas, mas
sussurravam em grande velocidade. Pressurosas, aparentavam não querer que
ouvissem o que fofocavam. Esforçavam-se para não serem notadas de onde quer
que estivessem. Heidlich esticou o pescoço. Não conseguia decifrar a fala engrolada
e confusa. Vinha de algum lugar do rio. O timbre era suave. Lembrava a correnteza
dos rios ou a queda das águas de uma cachoeira. O burburinho, porém, soava como
uma canção entoada às pressas, como se o tempo fosse escasso para poder entoar
aquela melodia.
Contornou a ponte e os pés chapinharam sobre o rio; as pedrinhas no fundo
rolaram de suas posições incólumes. A densa névoa e as sombras da noite o
impediam de ver muito a frente. Enxergava apenas a terra enegrecida da margem
onde seus pés estacaram e as raízes retorcidas dos carvalhos no entorno que se
lançavam em direção às águas doces e serenas. Com água na altura dos tornozelos,
as vozes ficaram mais próximas. Heidlich pressionou o indicador sobre um dos
ouvidos para tentar compreender. Cantada de forma dócil, a estrofe passou a fazer
algum sentido em seus tímpanos.
Não há felicidade onde ela está. Contra os ventos lança a sua dor sem par.
Heidlich aprumou-se.
Não há felicidade? Dor sem par?
Outra voz reverberou pelas águas e uma nova canção se ouviu. A melodia era
sorumbática, aflitiva até mesmo para quem estava acostumado à solidão, como ele.
Mesmo tapando um dos ouvidos, não conseguiu compreender a letra. Conjurando
uma lanterna de fogo azulado, o guardião seguiu a lúgubre canção.
Evoca a magia. Que brilho e beleza! Não há, entretanto, quem dê jeito em sua tristeza.
Correu pela margem do rio. Movido pela curiosidade e temor pelo que acabara
de ouvir, seguiu contra a correnteza, tomando cuidado redobrado com as raízes
protuberantes e galhos quebrados ao longo do caminho. A curiosidade aumentava
à medida que as vozes como som de águas agitadas iam ficando mais nítidas. A
triste canção aglutinava-se aos versos que começavam a fazer sentido.
As lágrimas rolam, ela se sente só. Oh, pobre donzela. Que dó! Que dó!
Outra voz surgiu. Essa, porém, não cantava. Reclamava com ferocidade ainda
que seu timbre estivesse um tanto embargado.
Um estrondo ribombou.
O barulho de pedras explodindo e rolando, afundando em sequência sobre as
águas do rio ecoaram próximo a onde Heidlich estava. Ele estacou.
— Eu não consigo entender. — A voz chorosa ressoou abafada. Destilava uma
raiva incontida em cada palavra. — Por que ela quer que eu case com um homem
desconhecido?
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Heidlich sabia que conhecia aquela voz, mas não conseguia lembrar de onde.
Outro estouro estrugiu. Mais pedras despencaram e emitiram aquele “ploft-ploft”
quando imergiram nas águas.
As florestas que ladeavam o rio foram desaparecendo à medida que avançava em
direção às canções e ao barulho de pedras explodindo. Heidlich se viu embaixo de
um gigantesco portal: um arco de tijolinhos rudimentares, com duas colunas
pitorescas de pedra em cada uma das laterais: as antigas galerias subterrâneas do
palácio real. Era o lugar mais profundo e inóspito do castelo. Abrigou um poderoso
calabouço, em tempos remotos, onde centenas de trolls e elfos sombrios foram
encarcerados até terem suas sentenças proferidas. Atualmente, não havia mais do
que algumas celas corroídas pela ferrugem, pútridas e esquecidas e a captação de
água para as dependências do palácio nos níveis mais profundos.
Quem estaria explodindo pedras no lugar mais abandonado e esquecido de
Badorian?
Embrenhando-se pelas galerias, Heidlich finalmente descobriu a quem
pertenciam as vozes que perseguia. Próximo a uma velha coluna, com grandes
buracos na alvenaria e uma pilha de pedras destruídas ao redor, uma esfera de magia
vermelha surgiu. O círculo flamejante arremeteu-se com fúria sobre uma parede e
explodiu dezenas de tijolos e blocos de cimento em um estrondo que reverberou
nas paredes da galeria subterrânea. No lado oposto aos escombros que desabavam
e rolavam em direção ao rio, Ivyna observava os gigantescos rombos provocados
na parede, mas sem necessariamente prestar muita atenção neles. A expressão era
de imenso desgosto. A mente se concentrava em algo que perturbava sua paz e
transformava as extensas galerias no alvo de sua raiva.
As maçãs do rosto tão avermelhadas quanto seus longos cabelos ruivos presos
num coque, Heidlich achava engraçado sua expressão enfezada e o quanto ela
puxara os traços da mãe e quase nada do pai. O rosto lembrava um pêssego maduro,
mais pelo formato arredondado. As bochechas se avolumavam e destacavam o
queixo redondo toda vez que ela sorria. O nariz era pequeno, levemente arrebitado,
assim como o de Falla. Entrementes, o destaque real era para seus intensos olhos
verdes. Nas poucas vezes em que Heidlich esteve em Badorian, nos intensos
invernos, recordava-se do brilho encantador daquelas irises hipnotizantes. Tinham
o poder de fazê-lo esquecer as preocupações e intempéries da vida para dar plena
atenção à irmã caçula. Nesse dia, o olhar dela estava marejado, carregado de uma
angústia inquietante; os lábios balbuciavam um lamento quase inaudível, como se
praguejasse baixinho. Novas esferas de magia voaram das mãos de Ivyna,
arrancando mais tijolos e ribombando as explosões pelas galerias.
Em meio às sombras da noite, Heidlich subiu pela margem do rio e adentrou a
caverna. Escorou-se sobre uma das colunas da galeria e cruzou os braços.
Observava com curiosidade a demonstração de poder e raiva da irmã. Duas ninfas
202
das águas brincavam perto do alvo da guardiã, dançando entre os escombros e
cantando com deboche sobre sua tristeza. Essas criaturas podiam ser terríveis
quando queriam. As ninfas tinham uma habilidade peculiar: cantar melodias e
estrofes encantadoras, ao ponto de arrebatar os corações dos ouvintes e de até
hipnotizá-los com suas fascinantes notas guturais; mas quando queriam, eram
capazes de infernizar a alma mais serena com versos demoníacos, carregados de
sarcasmo e deboche, como acontecia naquele momento. Atiçada pelas provocações
musicais, Ivyna conjurava novos balaços escarlates, tentando acertá-las.
— Eu odeio ela!
— Odeia quem?
Os olhos assustados de Ivyna encontraram o esgar intrigado de Heidlich parado
na entrada da caverna. Com a escuridão da noite, ele não passava de um vulto sem
rosto próximo às colunas; um halo de luz de algumas poucas algas luminescentes
projetado em suas costas destacava sua silhueta escusa.
Uma rajada rubra voou dos dedos ágeis da guardiã por instinto, com o susto que
tomou. Como uma esfera de raios vermelhos, ela iluminou o interior obscuro em
disparada até a entrada da galeria. O som era como de uma lâmina cortando o ar.
Heidlich só teve tempo de conjurar um escudo e se encolher atrás dele. O balaço
eletrizante explodiu contra o escudo. As magias azul e vermelha emitiram longos
silvos agudos; faíscas multicoloridas se dispersaram em variadas direções no choque
estridente. Mais forte do que ele, Heidlich sentiu o corpo desprender-se do chão e
ser arremessado para trás com violência.
Ivyna se sobressaltou. A jovem correu até a entrada da caverna, desesperada. As
ninfas das águas deslizaram pelo rio em seu encalço soltando risadinhas abafadas.
Heidlich estava estirado dentro do rio, de braços e pernas abertas. A água gelada
empapava suas vestes. As botas se encharcaram e molharam as meias de algodão.
Cada milímetro de seus músculos doía com o golpe inesperado. Uma pontada
aguda nas costas indicava que certamente havia quebrado alguma coisa. Uma ou
duas costelas, talvez? Sentira essa dor uma vez: na época, fora arremessado por um
ataque de um ogro-de-musgo que o pegou desprevenido; ficou quase dois meses
deitado na cama até que as cinco costelas quebradas voltassem para o lugar. As
pernas ainda tinham algum movimento. Só estavam encharcadas. Uma dor
lancinante no cocuruto deixava sua vista um tanto turva ou talvez fosse apenas a
água mesmo que invadira seus olhos. O golpe poderoso o pegou desprevenido. O
ímpeto da magia fez seu corpo voar pelos ares até encontrar as águas geladas do rio
e o fundo de pedras cobertas de musgo. O olhar aflito de Ivyna a poucos metros
de seu rosto foi a primeira coisa que vislumbrou quando a visão voltou ao normal.
— Você está bem, irmão? Eu não tive intenção, é que você disse aquilo, eu não
consegui te identificar na escuridão e vi que você...
203
— Tudo... bem... — Heidlich interrompeu, esforçando-se para se sentar, ainda
um pouco zonzo e ensopado.
— Eu não sabia que você estava ali... Geralmente, venho aqui sozinha para...
Ivyna emudeceu.
Heidlich esgueirou-se para uma pedra seca com alguma dificuldade. Ainda
recobrando as forças e massageando o topo da cabeça, observou a expressão de
tristeza no rosto da irmã.
— Essa foi a maior expressão de poder que vi desde que retornei a Badorian.
Ivyna ergueu a cabeça; os olhos arregalaram-se para o irmão.
— É verdade.
— Mas eu te peguei desprevenido e...
— Eu conjurei um escudo na hora e perdi para seu balaço.
Ivyna arregalou ainda mais os olhos, se é que era possível. Um sorriso tímido ia
surgindo em seus lábios, como o de uma criança que ganha um presente surpresa.
— Mas eu não entendi... — falou Heidlich, secando os cabelos molhados com
fogo mágico e amarrando-os em um rabo de cavalo. — Você gritava de ódio por
alguém. Quem é que você odeia?
Ivyna fez um muxoxo. Tão rápido quanto surgia, o sorriso desapareceu. As
sobrancelhas se contraíram e as orelhas ficaram avermelhadas. A alegria repentina
em seu rosto deu lugar à raiva.
— Não quero falar sobre isso.
— Você sabe que se você não falar, as ninfas vão cantar para mim o que eu quiser
saber. Basta eu pedir que entoem essa canção irônica que me atraiu até aqui.
A garota comprimiu os olhos na direção de Heidlich e cruzou os braços.
— Ok, ok — disse Ivyna, contrariada — Mamãe quer que eu me case com um
tal de Lorde Ropher. Um casamento arranjado por ela com um guardião qualquer
e que eu mal conheço de Amistelar. Parece até que é ela quem está casando. Nunca
vi tanta afobação e pressa. E ela não entende que não é isso o que eu quero e...
Heidlich balançou a cabeça.
— E o que você quer?
— Você quer mesmo saber? — inquiriu Ivyna, o sorriso tímido tomando espaço
em seu rosto outra vez. — Meu sonho era ser... Guardiã... como você.
Heidlich arqueou as sobrancelhas.
— Isso é simples: basta você participar das audições da Academia dos Guardiões
— falou Heidlich em tom simplório. — Com meu retorno, a vaga está aberta e o
ciclo de audições começará em breve. Mas o desafio não será fácil. A Academia
sempre teve bons candidatos.
Ivyna murchou.
204
— Eu já falei com a mamãe, mas ela não quer. Diz que não nasci para isso. Que
este não é meu futuro. Que meu destino é casar com um nobre, me tornar condessa
ou duquesa e apoiar meu marido.
— Falarei com ela, minha irmã — disse Heidlich, pondo-se de pé. — Afinal,
dentro de algumas horas, serei coroado rei. Acredito que a palavra do rei tem algum
peso nas decisões em Badorian.
Ivyna ergueu os olhos. Arregalados de alegria, eles se abriram em gratidão para
Heidlich.
— Agora, quero você me faça um favor. — Heidlich fez surgir um novo escudo
de magia, dessa vez cercando-o por todos os lados. — Atire seu melhor balaço
contra mim. Vamos ver se você é digna de se tornar a Protetora de Eurodian.
Ivyna não se conteve de alegria. As ninfas ao seu redor davam risadinhas
histéricas e se afastaram do caminho dos dois irmãos. Movendo os dedos para
conjurar a magia, pequenos raios avermelhados e brilhantes se aninharam,
formando uma nova bola de poder. De suas mãos, a esfera mágica se avolumou.
Dessa vez, era o dobro do tamanho da primeira. Disparando como uma flecha em
alta velocidade, a esfera de energia deu um rasante tocando a superfície do rio.
Filetes de água gelada se ergueram e a magia chocou-se estrondosa contra a redoma
azul-celeste que envolvia Heidlich.
O guardião suportou por alguns segundos. Aumentou a intensidade da magia um
pouco mais. Os pés começaram a se levantar do chão. O corpo ia perdendo as
forças diante da esfera potente de magia que o atingira. Então, ele foi arremessado
pelos ares novamente.
205
Capítulo Quatorze
Pacto Oculto
À luz bruxuleante dos candelabros daquela pequena alcova em um dos pontos
mais obscuros e inóspitos de Cruisand, a Cidade dos Luminares, Gavir Onobka se
divertia com o minúsculo e finíssimo pedaço de carvão que usava como lápis,
sambando em seus dedos magricelos.
O barulho do carvão arrastando sobre o pedaço de papel diante dele só não era
mais alto do que o crepitar das chamas das inúmeras velas espalhadas ao redor, que
só tornavam o ambiente em que estava ainda mais soturno e tristonho.
Entrementes, ponderava sobre qual a necessidade de estarem em um lugar escuso
e tão distante de tudo e todos. Um buraco em Vandir-Lepit, uma cidade às margens
de Cruisand e que carregava o legado sombrio dos maiores piratas que já existiram
durante a Era de Bronze não era ideal para figuras como ele. O condado pacato
abrigava poucos pobres homens do campo e um sem fim de sujeitos mal-encarados
dos mais variados trejeitos, entre os quais, anões de aspecto pútrido, homens
truculentos e uma legião de duendes avarentos. Contudo, aquela reunião na calada
da noite no antro mais profundo e secreto de um lugar tão tenebroso tinha sido
uma ideia de Sisno.
Sisno Sannfrye.
Aquém ao silêncio mortal e incômodo do aposento mal iluminado, Gavir encarou
os rostos dos seis amigos elfos ao redor da mesa redonda com uma profunda
expressão tediosa estampada em sua face.
Malik Mavrio tamborilava os dedos sobre a mesa. Vez ou outra, a cabeça pendia
para trás observando com curiosidade a penumbra das chamas vacilantes sob o teto
baixo. A sonolência era notória no sacramentador. A expressão curiosa por vezes
dava lugar a um cansaço refletido através dos grandes olhos alaranjados que se
fechavam de estupor. Mavrio fora o sacramentador de Infortúnio, até que Menfesis
decidiu por destituí-lo. A razão, expressa de forma muito clara na presença de toda
a conferência em Purysia era, nas palavras do próprio Primeiro-Líder da Ordem, “a
notória incapacidade e incompetência em manter a ordem temporal em Elstoen e
nas ilhas das Águas Solídiras, seu octaedro”.
206
Do marasmo de Malik, Gavir observou uma conversa em cochichos suspeitos e
pressurosos entre Soobo Yanui e Rodris Rannidge. Por vezes, Yanui jogava os
longos cabelos castanho-claros por sobre o rosto. Parecia não querer que ninguém
conseguisse ler seus lábios. No mínimo, suspeito. Não tinha muita certeza se podia
confiar nela. Mesmo com a imponência de seu sobrenome, as constantes falhas em
previsões colocavam em dúvida sua sabedoria. Talvez Arturo não estivesse tão
errado assim em depor Yanui. Rodris arregalava os olhos a cada nova expressão da
amiga elfo ao seu lado e suas caretas denotavam um espanto cavalar com o que
quer que Soobo estivesse lhe contando. Ambos eram amigos de longa data e
possuíam uma confiança mútua. Diziam que Rodris só chegou onde chegou pela
alta influência de Yanui e por se aliar às pessoas certas no momento oportuno. Uma
série de fatos coincidentes e premeditados o fizeram ser nomeado o sacramentador
do octaedro de Solidão. Mas sua era também fora interrompida sem rodeios. Para
ele, Menfesis sequer fez questão de elencar um motivo. Decretou o fim de sua era
perpetatem sem justificativas.
Soobo, no entanto, era esperta. A malícia que ela tinha para analisar o todo e fazer
os movimentos corretos faziam-na ter certo destaque. Possuía uma sagacidade
ímpar: a postura era impecável, sabia se posicionar, sabia o que dizer no momento
certo e até direcionar palavras e pessoas para que tudo saísse conforme sua vontade.
Não obstante, fora a sacramentadora de Perspicácia. Infelizmente, não conseguira
ser perspicaz para reverter sua deposição.
Nelis Naziv era o sacramentador mais pacato e menos interessado em estar ali.
Claro, havia nele o mesmo sentimento dos demais e um forte desejo de justiça.
Dele, talvez ainda mais. Mas Nelis fora o grande puxa-saco de Menfesis por muitos
ciclos e seu jeito devagar de ser para lidar com os adventos da malha do tempo não
condiziam com o impacto que o octaedro de Fúria provocava. Menfesis fora
categórico: “Fúria está se auto-destruindo e Nelis Naziv acompanha, com ardente
marasmo, as vibrações incomuns como um recém-nascido que aprecia seu leite
materno”. Duras palavras para alguém nodoso e versado em adulações como o
velho e lento Naziv.
O maior medroso dos Oito, logo ao lado, movia com intensa rapidez os olhos
verdes para cada canto execrável da pocilga em que estavam enfurnados. Gavir
conjecturava se Poledores Früg estudava alguma forma de fugir dali. De todos,
Poledores era o mais controverso sacramentador do grupo. Os conhecimentos
sobre a sacramentação eram pífios, sua postura incoerente e as previsões as mais
desastrosas e errôneas possíveis. Entretanto, fora o primeiro dos Oito nomeado
por Menfesis para assumir Serenidade. Teria sido ele, pensava Gavir, o potencial
motivo da decisão inesperada e contraditória de Menfesis. Mas somente um poderia
dizer se sim ou se não. Um que ainda não se fazia presente.
207
Escondido na penumbra de um candelabro, estava o mais soturno dos
sacramentadores: Nikolai Nodovra. Impassível, o elfo do octaedro de Trevas
sustentava a mesma expressão de contragosto desde que adentraram o recinto.
Recostara-se em uma das cadeiras, apoiou os cotovelos sobre a mesa e pressionou
as pontas dos dedos da mão direita com os da mão esquerda. Desde então,
aguardou. Sobre ele, Gavir arriscava dizer, Menfesis cometera uma tremenda
injustiça. Nodovra, apesar do jeitão obscuro e da seriedade de sempre, era o mais
assertivo em todas as previsões e o mais aplicado em conhecer as muitas formas de
vibração da malha do tempo. Contudo, o Supremo-Chanceler de Purysia limitouse
a dizer que seu tempo se esgotara. Nikolai sequer teve o trabalho de questionar
Menfesis como os demais fizeram. Balançou a cabeça, taciturno, girou nos
calcanhares e sumiu do Oráculo do Tempo tão impassível quanto estava naquele
momento.
Ao redor da mesa, duas cadeiras estavam vazias.
Notoriamente, uma era de Sisno Sannfrye. O ex-sacramentador de Hegemonia
era o mais articulado dos Oito e o grande anfitrião a convocar esta reunião de última
hora. Possuía um tino assombroso para a política com os humanos. Sabia destacar
as qualidades de seus aliados na dose certa, sem jamais parecer adulador e
conseguia, através de suas preleções, convencer até os mais céticos na multidão que
parava para ouvir suas palavras. Nas conversas mais íntimas, era versado em
qualquer tipo de assunto, ainda que se abstivesse de temas que confrontassem as
próprias crenças. Era excepcional em sua habilidade de manter diálogos curiosos e
interessantes mesmo nos contextos mais enfadonhos. A sabedoria profunda era
inquestionável, ao ponto de todos tratarem-no, carinhosamente, pela alcunha de
maedor. Na língua élfica, maedor significava algo muito próximo do conceito de
professor, porém com mais adjetivos implícitos, como um mestre que orienta seu
aluno até que se torne um mestre também. Era um sujeito dotado de uma vasta
sabedoria, humildade e desenvoltura. Que tinha a capacidade de não apenas ensinar,
como também envolver-se com a evolução de seus alunos para um aprendizado
completo. Sobre Sannfrye, sim, todos concordavam que a atitude de Menfesis fora
precipitada, desonesta, acintosa e ausente de qualquer sabedoria. Sisno e Menfesis
eram muito próximos e Sannfrye fora o maedor do Primeiro-Líder da Ordem por
muitos ciclos, antes deste ascender ao posto atual.
A segunda cadeira vazia era um mistério. Quem seria o nono convidado para esta
reunião peculiar? Havia uma coisa silenciosa, incômoda, que unia a todos naquele
ambiente inapropriado para sacramentadores e que agitava o âmago de cada um.
Algo que magoava, suscitava ódio, rancor, tristeza, mas acima de tudo uma
confusão sem precedentes: todos foram depostos por Menfesis antes de
completarem suas eras como sacramentadores. Uma profanação, um sacrilégio na
cultura dos elfos sacramentadores. Sentiam-se traídos, desolados, como se algo lhe
208
tivesse sido arrancado sem pudor e de uma forma beligerante. Então, se haveria
um nono convidado, ele certamente chegaria acompanhado de Sisno. Gavir só
torcia para que esta nona pessoa não fosse o Primeiro-Líder da Ordem ou mesmo
Alezeia, de quem ele não tinha muito certeza sobre a lealdade. O antigo pacto de
não violência dos elfos sacramentadores poderia ser quebrado ali, naquele
momento, se Sannfrye adentrasse o recinto acompanhado de Arturo Menfesis.
Dado os ânimos exaltados e o sentimento de revolta, estava convicto de que algum
deles partiria para uma agressão física se isto acontecesse.
As dobradiças tomadas pela ferrugem da pesada porta de carvalho do aposento
mal iluminado rangeram tão alto que fizeram Gavir e Poledores pularem de suas
cadeiras. Soobo e Rodris interromperam o papo misterioso e Malik Mavrio
despertou de imediato da letargia que o dominava. Os olhares sobressaltados
miraram o corredor de entrada com intensa expectativa.
Da penumbra das grandes velas derretendo lentamente, um elfo de nariz aquilino
e queixo protuberante surgiu. Os cabelos prateados, arrumados em uma imensa
trança que descia até o meio de suas costas, refletiam o brilho das chamas
tremeluzentes. Sisno Sannfrye carregava uma marcante expressão de confiança,
como se trouxesse uma saída simples e eficaz para os problemas que abatiam os
demais sacramentadores ao redor. E, de fato, eles descobririam que o elfo trazia
muito mais do que uma solução.
— Boa noite, estimados amigos — cumprimentou Sisno, sem tomar assento. —
A sabedoria das eras vos acompanhe.
— A ti também! — responderam todos, quase em uníssono, como mandava a
tradição.
— Fico muito feliz e imensamente grato que tenham atendido meu chamado para
esta reunião, de bom grado — falou Sisno. A Gavir incomodava o fato de o velho
sacramentador de Hegemonia falar do extremo canto do aposento, ainda em pé.
Nas antigas tradições, alguém que não se assenta a uma mesa rodeada de amigos
era tido como mal educado. — Peço mil desculpas pelo fato de nossa reunião
precisar acontecer em um ambiente tão...
— Medonho?
— Inóspito?
— Repugnante?
— Eu diria, inapropriado mesmo — concluiu Sisno, sorrindo sem graça. —
Contudo, infelizmente, não podemos arriscar a descoberta do motivo de nossa
reunião e acho deveras prudente que sejamos cautelosos quanto a esse encontro.
Dadas as circunstâncias, necessitamos estar acima de qualquer suspeita.
— Que quer dizer com isso, Sannfrye? — questionou Malik.
209
— Nobre Mavrio, pilar maestral de Infortúnio, cuja erudição ecoa através dos
tempos, — prosseguiu Sisno, tecendo seus elogios ao colega sacramentador,
mirando-o com intransponível calmaria, mas ainda em pé — creio que seja notório
que há um denominador comum para nossa estadia nessa abominável alcova,
mesmo que com brevidade. Um fator que nos une e que de modo contrário não
nos traria a tal lugar.
— Arturo Menfesis — sibilou Nikolai.
— O Primeiro-Líder da Ordem dos Sacramentadores cometeu uma heresia
abominável e condenável. Numa decisão livre de sabedoria, intempestiva e
inescrutável, abreviou nossas eras a frente dos Oito Octaedros, lançando sobre
nosso governo do tempo uma vergonha execrável e que está refletida em cada rosto
aqui presente, externada das mais variadas formas.
As expressões dos elfos ao redor se contorceram. Alguns com profunda
consternação, outros tomados por uma cólera irrefreável.
— O que quero dizer, inestimáveis colegas, — prosseguia Sisno, falando tão
convicto e tão assertivo no uso das palavras que era impossível não se envolver
com seu discurso — e não pouparei palavras em afirmar, ainda que me doa
profundamente ter de compartilhar isto, é que: Arturo Menfesis está deixando sua
era ser dominada pela falta de governança.
— A sabedoria de Menfesis foi suplantada por algo pior do que a ignorância —
inferiu a bela Soobo; em sua voz sempre mansa e suave carregava uma nota de
desgosto.
— Ouso dizer que há mais sabedoria nos humanos e mágicos do que em Menfesis
— acrescentou Rodris, observando as expressões reflexivas dos demais colegas.
— E nos substituir por sacramentadores mais jovens, inexperientes, antes
mesmos de completarem sua era preparatorem é ultrajante e vergonhoso para nossas
eras perpetatem! — exclamou Poledores Früg, menos irrequieto e assustado do que
antes.
— Muito pior, eu diria, é substituir vossa sabedoria e presença, nobre Sisno. Se
Menfesis nos considerava o escalabro de sua liderança, que nos revogasse a
atribuição antes do fim de nossas eras, como o fez, mesmo a contragosto de nossas
vontades. Mas outorgar a mudança de uma figura tão prestigiada como a sua, por
uma jovem elfo que ainda não terminou a própria preparação como
sacramentadora, é o ápice de débil ignorância.
— Como era mesmo o nome dela?
— Dhara — exclamou Sisno, visivelmente desgostoso. — Dhara Lovrens, da
Pacífica Tulich.
O maior erro de Menfesis, e isto era um senso comum entre os exsacramentadores
presentes ali, além da herética e inédita decisão de interromper
suas eras perpetatem, fora a traição cometida pelo Primeiro-Líder ao seu grande
210
apoiador, Sisno. Sannfrye jamais traíra a confiança de Arturo e, por vezes, envolveuse
em calorosas discussões sobre questões do tempo, ao ponto de perder amizades
de longa data, pelas inveteradas conjecturas de seu aconselhado. A resposta para
tantos ciclos de cumplicidade e aconselhamento veio em forma de indiferença,
destituindo e lançando em um poço sem fim de vergonha o elfo mais sábio e
proeminente entre os Oito.
Nikolai se moveu na cadeira e fez um esgar esquisito. Gavir seria capaz de afirmar
que o ex-sacramentador de Trevas estava contrariado. Então, Nodrova comprimiu
os olhos e mirou Sisno como se o fosse acusar de um crime hediondo.
— Não acredito que estamos aqui unicamente para você afirmar o óbvio,
Sannfrye — proferiu Nikolai; cuspia as palavras como uma cobra que destilava seu
ardiloso veneno. — Há algo que perturba Menfesis há muito tempo, mas que seu
gênio controlador e autoritário não nos permite descobrir. Agora, destituídos de
nossas posições e com as atitudes intempestivas de Arturo, jamais estaremos cientes
do que o abate. Então, se há um motivo plausível para esta pífia reunião no pior
lugar do mundo, compartilhe conosco imediatamente.
Sisno aguardou o elfo terminar sua fala com austera paciência. Nodovra era um
dos que nutria um desafeto por Sannfrye por causa de Menfesis.
— Nobre Nikolai, — falou Sisno — é notório que esta reunião não serve como
palco para que possamos chorar nossas lamúrias diante do ocorrido há seis meses
e que ainda permeia o íntimo de cada um com um cordel de dúvidas e
questionamentos. Tempos tenebrosos como esses carecem de medidas urgentes.
Vim para lhes apresentar a solução e rogar para que, com sabedoria, deliberem
sobre esta resoluta jornada.
Na expectativa da fala do ex-sacramentador de Hegemonia, os elfos ao redor da
mesa arregalaram os olhos para a porta de entrada. Afinal, Gavir e seus demais
companheiros descobririam porque Sisno ainda permanecia em pé e a quem
pertencia a nona cadeira vazia.
Os passos abafados ecoaram para dentro do recinto, estalando sobre o chão de
madeira apodrecida. A escuridão para além de onde as velas iluminavam impediam
de vislumbrar quem era o último convidado desta reunião secreta. À luz da chama
oscilante, Gavir vislumbrou os contornos de um homem de estatura mediana,
envolvido em um longo capão. Quando irrompeu pela tênue faixa de luz, sete
sacramentadores emitiram um grunhido invariável de surpresa.
August Moronov abaixou o longo capuz e revelou seu rosto nodoso, marcado
por rugas. Cumprimentou os elfos com um breve aceno e rapidamente se sentou
na derradeira cadeira vazia. Acompanhando o Chanceler dos Guardiões, Sisno
finalmente tomou assento ao redor da mesa.
— Pois bem, — Sisno quebrou o silêncio provocado pela surpresa e o leve tom
de asco que se desenhava nos rostos dos demais elfos com a presença de Moronov
211
— todos concordamos que a ausência de governabilidade de Menfesis está
provocando sérias consequências à ordem e harmonia da malha do tempo.
Continuarmos de mãos atadas enquanto Arturo desencadeia catástrofes piores do
que as que ele já causou, está fora de cogitação. Fiz questão de trazer a figura
imponente de Lorde Moronov até nossa reunião, pois ele tem informações
importantes a compartilhar.
Os elfos miraram a expressão soturna de Moronov ao lado de Sannfrye, ainda
que estivessem estupefatos com a presença do conhecido guardião naquela reunião
secreta.
— Nem todos vocês sabem, acredito, mas estive em Purysia há poucos dias —
falava Moronov, cruzando as mãos e apoiando-as sobre a mesa. O tom de voz era
sombrio, como se estivesse prestes a compartilhar algo aterrador. — Como bem
sabem, o Conselho dos Guardiões e a Ordem dos Sacramentadores sempre foram
grandes aliados para a perpetuação e cumprimento das Três Leis Primazes. Nós,
protetores da vida e da magia dos povos e nações, e vocês, elfos sacramentadores,
os responsáveis pela harmonia da malha do tempo e espaço. Antigos aliados desde
tempos remotos. Em épocas de crise, unimos forças para mitigação de quaisquer
perigos. Lutamos, aguerridos, por uma harmoniosa vida em sociedade; pela
perpetuação de uma paz plena entre as raças. Contudo, em minha última visita, me
foi negado comparecer ante a presença de Menfesis...
— Sim — interrompeu Mavrio — Arturo decretou a Lei Meditatem. Estamos há
meses, desde que fomos destituídos, tentando nos reunir com ele. Inicialmente, ele
não queria nos receber. Depois, decretou um período indeterminado para
meditação.
— Espero que vossas iminências não estejam esquecendo de que ele também
selou o Acervo Sacramental por uma era — pontuou Rodris, meneando a cabeça.
— E que agora vive enfurnado em seu reduto secreto, o lugar mais alto e
inalcançável de Purysia, a Torre da Bússola... — inferiu Nikolai; os olhos
comprimidos no esgar mais descontente entre os presentes.
— Não é para compartilhar informações das quais todos nós conhecemos e que
balançam com profundo desgosto nosso interior, que convidei Lorde Moronov
para esta reunião secreta — interrompeu Sisno, alteando a voz ante ao burburinho
crescente que se espalhou ao redor da mesa. — Nosso convidado tem dados
relevantes a compartilhar.
O silêncio instaurou-se e os olhares curiosos, ainda que alguns desconfiados, se
concentraram na cadeira em que August Moronov repousava, aguardando sua
oportunidade de dar continuidade à mensagem que tanto queria transmitir.
— Depois que o protetorado me informou da lei Meditatem, Menfesis irrompeu
pelas portas do Oráculo do Tempo. Reparei que algo não estava correto no mesmo
instante. A surpresa com a presença do Primeiro-Líder da Ordem em público era
212
notória. Tanto para a guarda de Purysia, quanto para os sacramentadores da ilha.
Se, como disseram, Arturo estava na torre mais alta do Oráculo, possivelmente,
avistou a aproximação de minha embarcação.
Moronov pigarreou e tossiu alto e seco duas vezes. Alcançou uma garrafa de
vinho, encheu uma caneca de madeira e virou em um gole só.
— A maior surpresa de todas, no entanto, — prosseguiu o guardião, as atenções
dos elfos vidradas em seu discurso — e que agora, com grande pesar, compartilho
com vossas iminências, é que o Supremo-Chanceler da Ordem dos
Sacramentadores rompeu com o Conselho, ignorando nossa tentativa de
aproximação.
Grunhidos horrorizados ecoaram em uma sequência quase perfeita. Os
sacramentadores ao redor levaram a mão à boca, espantados com a declaração do
guardião. Moronov fez uma breve pausa, balançando a cabeça para cima e para
baixo, confirmando o senso comum generalizado sobre o recinto: Arturo Menfesis
não estava em seu juízo perfeito.
— Acredito eu, nobres amigos, que todos concordamos com uma coisa. — Sisno
estava de pé; agitou as mãos para baixo como um maestro a conduzir sua orquestra
em uma canção sobre uma drástica tragédia, arrogando a atenção de todos. —
Menfesis não tem condições morais e éticas de permanecer à frente da Ordem.
Nosso líder, infelizmente, como dizem os humanos e mágicos, ‘perdeu a cabeça’.
— E o que é que você sugere, Sisno? — questionou Gavir; diante de uma situação
tão desesperada, que ameaçava abalar as estruturas da mais ancestral religião élfica
de Eirin, não conseguia vislumbrar uma luz no fim do túnel.
— É. — Nodovra inferiu: — Invadir Purysia e tentar depor Menfesis é suicídio.
O protetorado está juramentado a ele e fortemente armado para protegê-lo.
— Buscar ajuda é preciso — pontuou Sisno, misterioso.
A confusão estampou os rostos dos elfos de imediato. Moronov se pôs de pé e
encarou Sannfrye. Ambos balançaram o rosto, como se prestes a contar o que
tinham combinado antes de adentrar a alcova em que se reuniam.
— O Conselho dos Guardiões não pode intervir nessa briga. O Tratado de
Paragon delimita as fronteiras de atuação de guardiões e elfos fiéis à sacramentação.
O tempo está nas mãos dos sacramentadores. Mas sabemos que existe um elfo
capaz de subjugar o protetorado e de conduzir o Oráculo do Tempo para a
harmonia e o equilíbrio novamente.
— O único a quem Menfesis, um dia, realmente temeu. O único capaz de
restabelecer nossas posições e a ordem na malha do tempo — continuou Sisno.
As expressões de confusão e desconfiança eram notórias. Gavir possuía um
lampejo em sua memória sobre uma pessoa com as características descritas por
Sisno, mas preferia não acreditar que era sobre essa pessoa a quem Sannfrye se
referia. Embora fosse enfático em afirmar que havia alguém com a capacidade de
213
devolver a glória da sacramentação aos presentes ali, o esgar denotando um
contragosto incontido do ex-sacrametador de Hegemonia evidenciava que ele não
estava completamente certo quanto à opção que sugeria. Pouco a pouco, o esgar
de dúvida generalizado se converteu em descontentamento.
— Vocês não podem estar falando de...
— É a nossa única opção, Nodovra!
— Por céus! Onde está vossa sabedoria? Perderam a razão?
— É justamente pela nossa ausência de opções diante desta crise, Rannidge, que
estamos considerando o tal.
A discussão generalizada instaurou-se. Era o elfo a quem todos temiam. Gavir
meneava a cabeça, observando Moronov tentar argumentar com Nikolai e Soobo
que levantavam a voz de forma veemente. Rodris, Malik e Naziv debatiam
acaloradamente. Poledores se agitava no próprio assento; por vezes, seu olhar
mirava o negrume do teto como se considerasse a opção um verdadeiro desastre.
— Senhores, — trovejou Sisno e as demais vozes emudeceram. Todos os olhares
se concentraram no sacramentador — se vossas iminências consideram o desatino
do estabelecimento de uma nova Era das Trevas ou ainda pior, valha-me a
segurança do tempo, uma Era do Caos, Adryan Varnor das Terras Distantes é nossa
única salvação diante da desordem provocada por Arturo Menfesis.
— Isto considerando que ele sobreviveu após a dura condenação que lhe
infligimos.
— Acredito que deva ser do conhecimento de todos as histórias e boatos a
respeito dele?
— Algumas...
— Não todas...
— Os contos mais relevantes afirmam que Adryan Varnor não apenas sobreviveu
ao banimento, como... se tornou rei.
O silêncio mortificante dominou o vestíbulo mal iluminado. Excetuando a
confusão do guardião, além da aparência assustada dos oito elfos ao redor da mesa
redonda, um medo inigualável estampou suas faces. Embrenhar-se por uma
solução com tantos reveses era um caminho tortuoso e permeado por infindáveis
incertezas e ninguém parecia convicto se tal sugestão era uma solução sábia para o
problema que lidavam.
— Espero que vossa iminência rememore, Sisno, — Nikolai encarou Sannfrye
de forma petulante — de que Adryan Varnor foi acusado de profanação ao tentar
alterar o curso da malha do tempo e que todos os presentes neste lugar foram
cúmplices da investida de Menfesis ao condenar Varnor, quando o mesmo era o
Primeiro-Líder da Ordem dos Sacramentadores.
— Não se esqueça, nobre Nodovra — falou Sisno; a paciência do elfo havia se
esvaído de vez ainda que a educação não fugisse de seu tom de voz — de que
214
ascendemos aos Oito Octaedros devido ao apoio dado a Menfesis. Não apenas nós,
mas boa parte dos demais sacramentadores espalhados sobre Eirin e em Purysia
concordamos que o crime de Varnor, à época, era condenável ao exílio por tamanha
profanação, visto nossas leis ancestrais. O próprio Adryan se resignou diante de sua
sentença.
— Faremos um acordo! — exclamou Moronov; o guardião percebera a tensão
entre Sisno e Nodovra a seu lado aumentando — Ofereceremos o perdão a Adryan
Varnor e a chance de ter sua redenção. Com uma oferta tão generosa, não há chance
de ele recusar.
— Mas como o encontraremos? Não sabemos nem ao menos se ele está vivo...
— Teremos de ir até às Terras Distantes.
Outra discussão permeou entre o grupo.
— Não há outra saída, nobres amigos. — Sannfrye se impôs novamente. — O
que não podemos é continuar inertes diante da situação que corrói a sacramentação
e tudo pelo que prezamos até hoje. Iremos até as Terras Distantes e buscaremos
Adryan Varnor para que se torne nosso aliado nesta luta pelo que é sadio e correto
para a harmonia do tempo. É por isto que Lorde August Moronov está aqui. O
Conselho dos Guardiões está do nosso lado e nos suportará no que for preciso.
— Uma comitiva os acompanhará — inferiu Moronov. — Estarei reunindo uma
comitiva com os melhores alquimestres da Confraria de Zavir. Eles os
acompanharão desde as Florestas Abundantes de Frandar até as Terras Distantes
de Turmis. Nos encontraremos novamente dentro de vinte dias. Partiremos logo
após o Baile do governador Bovir, em Cruisand.
Ninguém se arriscava a falar nada. O terror e as incertezas que abarcavam os
rostos dos elfos ao redor, à penumbra da fraca luz das velas, dizia por si só o que
todos estavam pensando.
— Senhores, — Sisno quebrou o silêncio; compreendia a mensagem estampada
sobre cada face ao seu redor — uma nova era se aproxima. A glória da
sacramentação exigiu muito de nós em tempos passados. Mais uma vez, exige
sacrifício. Se é pela ordem do tempo, eu me prontifico e acredito que os senhores
estarão comigo nesta jornada rumo à esperança pela qual ansiamos. Alegrem-se,
pois estamos juntos mais uma vez para deixar nossos nomes marcados na história.
215
Capítulo Quinze
Madrugada de Sangue e Cinzas
Um estampido repentino ressoou. O barulho foi tão intenso e ensurdecedor que
as estruturas do castelo balançaram com a força do que provocou o estrondo.
Saltando da cama, Zakkar se pôs de pé, alarmado. O suor que descia em bicas
empapava o pijama de algodão e a camisa teimava em não querer se descolar do
peito e das costas. O coração a mil balançava dentro do peito e ele cambaleou pelo
quarto, afetado pelos resquícios do sono. Aturdido com os fragores intermitentes
que sacudiam as paredes e faziam a poeira do teto alto cair, rapidamente se livrou
da parte de cima do pijama e lançou-o em qualquer lugar do dormitório, a perder
de vista.
Um novo estouro arremeteu-se. Seguido de um vozerio acalorado nos andares
inferiores do palácio, um ruído enigmático de metal tilintando, como violentos
duelos de espadas, se espalhava pelos demais cômodos do primeiro piso.
Zakkar hesitou.
A mente deixou de lado o estupor do sono. Atarantado e mais acordado que
nunca, dirigiu-se às pressas até a janela para entender o que estava acontecendo. A
lua imperava em um céu enegrecido e sem nuvens, completamente pontilhado de
estrelas. A Floresta Demoníaca estava em paz. Mergulhada em completa escuridão,
as folhas das árvores não se moviam. O vento costumeiro que agitava os galhos
dos olmos, carvalhos e faias desaparecera. A imensidão de folhas, galhos e troncos
assustadores era envolvida por uma desconfiada tranquilidade naquela noite.
Próximo às muralhas do castelo, no ponto mais distante da entrada principal da
fortaleza, Zakkar viu fogo. Uma tórrida camada de fuligem subia em densas espirais,
pairando sobre o ar em variados pontos distintos. Mas, de onde estava, não
conseguia ver a origem das chamas. Labaredas aleatórias e uma fumaça misteriosa
era tudo o que conseguia vislumbrar de onde estava, como se estivessem dando
uma festa pirotécnica no principal acesso ao castelo. Os corredores que ladeavam
os pátios externos logo abaixo, estavam mergulhados pela serenidade do negrume
da madrugada.
Destravou o ferrolho da janela e escancarou-a. O cheiro de mata orvalhada
invadiu suas narinas. Como amava aquele aroma suave, que era a única coisa que o
216
livrava da inquietação pelo vislumbre diário e tenebroso da Floresta Demoníaca. A
sensação agradável do odor da vegetação desapareceu quase que instantaneamente.
A atmosfera da noite era pesada. O ar quente esbofeteou-lhe as faces e fez os olhos
lacrimejaram quando o vento mudou a direção. Em seus ouvidos, vozes explodiam
em súplicas e gritos de horror ecoavam de vários pontos. O ressoar de espadas, o
entroncamento de escudos e lanças e o barulho de flechas que zuniam pelos ares
em algum lugar também repercutia por ali. Entortando-se para fora, Zakkar
segurou-se como pôde sobre os umbrais da janela para vislumbrar a frente do
palácio. Os olhos arregalaram-se. Acreditava que suas vistas o traíam. Beliscou-se
duas vezes para ter certeza de que aquilo não era um sonho.
A cidade estava em chamas.
Uma voz trovejante bradou alguns andares abaixo. Passos em marcha eclodiram
de um jeito ameaçador. Zakkar estremeceu. Agitado, irrompeu pela porta do
quarto, atravessou desabalado os corredores enegrecidos e vazios do terceiro andar
e arremeteu-se de costas contra uma pilastra. Respirando ruidosamente, não
conseguia conter o tremor pelo medo que o consumia. O corpo pulsava as batidas
frenéticas de seu coração e ele se agarrava à pilastra, ouvindo muitas vozes alteradas
e engroladas que ecoavam lá de baixo. O suor escorreu frio ainda que esta fosse
uma madrugada quente. Correu por sua espinha morrendo sobre as calças do
pijama. Passos fortes, metálicos, estalavam no térreo. Escorado onde estava, Zakkar
espreitou de esguelha o hall de entrada do palácio.
Homens encapuzados dominavam o lugar. Demônios mascarados e cobertos dos
pés à cabeça de vestes e armaduras negras, brandiam suas lâminas e cravavam as
espadas sobre os guardas reais sem a menor hesitação. Abandonavam corpos
moribundos no meio do caminho, banhando o mármore do salão com o sangue de
seus inimigos. Avançavam pelas escadarias com rapidez. Gritavam alvoroçados em
um dialeto desconhecido. Intrépidos e ávidos guerreiros, arrombavam portas,
assassinavam mais soldados, arrastavam homens e mulheres para o centro do hall,
colocando-os em fileira. Zakkar reconheceu rostos desesperados, conduzidos até
os pés de seus algozes. Tordund Greenham e o filho Arold estavam ajoelhados e
de cabeça baixa. Choravam de soluçar, sem entender o que estava acontecendo.
Olotiel e Ansell Ayarza também se viam reféns na fileira, vestindo pijamas, prontos
para encararem um destino cruel. Tia Prisca e tia Tressilda também estavam lá,
tremendo de medo, forçadas a ficar de joelhos e com as mãos para trás.
Os reféns enfileirados, enrolados em seus robes e roupas de dormir, gritaram e
choraram alto de repente. À frente dos demais, dois deles seguraram um homem
calvo e de porte avantajado pelos braços com alguma dificuldade. Os pulsos e
pernas estavam amarrados com cordas grossas. Colocaram-no de joelho e ergueram
seu rosto com ferocidade.
— Isso é uma traição! Bastardo maldito!
217
Zakkar estremeceu. Reconheceu a voz grave e trovejante de imediato.
Uma quarta figura surgiu. Andando cambaleante, trajava vestes negras e uma
armadura reluzente como os demais. Um capuz encobria seu rosto e uma coroa
drapejada de chifres o diferenciava dos outros soldados mascarados.
Desembainhou sua espada com a serenidade de quem está prestes a afiar uma
lâmina e fincou-a no coração de Lorde Bartel em um golpe cirúrgico. O rei gemeu
em um grunhido inaudível com o baque. Sangue jorrou de seu peito e os olhos
arregalados encararam ponto algum. Os outros dois soldados ao redor largaram os
braços do rei e repetiram o gesto do homem coroado com chifres curtos. Enfiaram
suas lâminas sobre a jugular e as costas do soberano de Miliat. Manchas vibrantes
de tom escarlate inundaram o piso. O brilho no olhar do rei desapareceu e o sopro
de vida abandonou seu corpo dilacerado.
Um lamento doloroso irradiou de repente. Um coro inquietante de súplica e
agonia ecoou sobre o hall acompanhado de copiosas lágrimas. Gritos de lamúria,
soluços inconsoláveis dos Greenham, Ayarza e Vycard ajoelhados poucos metros
atrás do rei que jazia inerte naquele momento sobre uma poça de sangue que
aumentava de tamanho a cada instante.
Dominado por um ceticismo caótico que o paralisou contemplando a cena
inacreditável no primeiro andar, Zakkar acompanhou os homens puxando as
espadas do corpo do próprio pai. Os olhos escancarados de Lorde Bartel e a boca
aberta com sangue a jorrar como rubras cascatas eram uma visão aterradora, como
advinda de um terrível pesadelo. Não queria acreditar que a cena que vira era
verdade. O mundo ao seu redor desmoronava e enterrava com ele seus
sentimentos, suas emoções, a esperança. Lágrimas escorreram sem que as impedisse
de seguir seu curso e marcaram o chão frio como manchas cinzentas. Queria se
derramar em prantos e lamentar a morte dolorosa de seu amado pai. O coração
estava em pedaços. O vazio no fundo do peito era contumaz e perturbador como
se a lâmina do desespero atravessasse seu peito e o ferisse de morte. Uma aflição
lancinante, intransponível e crescente. Conforme se avolumava, a angústia
aterradora se convertia em uma fúria incontrolável. A ponta dos dedos queimava.
Chamas elementais emanavam nas palmas de suas mãos e ardiam com intensidade
irrefreável.
De chofre, tombou.
Um soco atingiu suas costelas. Não conseguiu sorver o ar. Uma mão tapou sua
boca com tamanha violência que ele não pôde reagir. Outro braço meteu-se por
debaixo de suas axilas e envolveu seu tórax. Arrastaram-no pelo corredor. Uma
porta rangeu e escancarou-se. Com a mesma brutalidade com que foi aberta, ela se
trancou em um baque surdo e repentino. Zakkar foi jogado ao chão de qualquer
maneira.
218
Respirou fundo, puxando o ar com tanta força que os pulmões doeram. O
mundo girou ao seu redor. Borrões confusos e disformes sambavam em suas vistas.
Engatinhou sobre o piso gelado, de olhos fechados. Desorientado, tentava
recuperar o fôlego. Apoiando-se de lado sobre o dossel da cama, esquadrinhou o
perímetro ao redor para tentar entender onde fora arremessado. Granito cinzento
e polido do chão ao teto, uma lareira crepitando as últimas chamas da madrugada,
pequenos quadros de florestas e cachoeiras drapejando as paredes e outro maior e
mais imponente dele próprio, com um longo capão vermelho, apoiando o peso do
corpo sobre Vingança de Aladar, a antiga espada de seu avô. Aos poucos, as
imagens iam tomando forma e começava a reconhecer o lugar. Era seu dormitório.
Dois cliques secos ecoaram. O ruído metálico da chave sendo girada duas vezes
não passou despercebido em meio ao coro de súplicas e os estampidos atroadores
nos andares inferiores do palácio. Alguém trancara a porta com rapidez. Iam matálo
ali mesmo e naquele instante. Cerraram o aposento para que ninguém soubesse.
Não lhe dariam sequer a oportunidade de poder se recuperar e encarar seu algoz.
Zakkar virou-se, disposto a lutar pela vida da maneira que pudesse. Os olhos
ainda turvos miravam a entrada do quarto. No peito, a dor contundente fazia seu
tórax vibrar. As costelas ardiam e as pernas teimavam em não obedecer aos seus
esforços para se levantar e lutar.
— Rápido! Levante-se!
A voz pressurosa sibilou no extremo do aposento. Engrolou as palavras em alta
velocidade. A frase não passava de um chiado trêmulo e carregado de inquietação.
Quando a visão voltou ao normal, o queixo de Zakkar despencou.
O mesmo braço que o arrastou até ali assomou-se para a beira da cama, onde
tentava se erguer e apressou-se para servir de apoio.
— Deixa de ser molenga, Zakkar. Fica de pé. Estamos sem tempo...
— Sem... tempo? — Zakkar respirava com dificuldade.
Selena o encarava com uma tensão acirrada nos intensos olhos castanhos.
Lançava olhares preocupados para a porta a todo instante e dali para o amigo
guardião tentando se recuperar do golpe inesperado. Enfurnada em uma camisola,
com um longo robe turquesa cobrindo tudo, os cabelos castanho-claro estavam
bagunçados e a ardente agonia estampada em seu rosto o assombrava de modo
perturbador.
— Selena, o que está... — Zakkar ainda tinha dificuldade para respirar direito. A
dor era aguda nas costas, na altura dos pulmões. O soco da amiga guardiã fora forte
o suficiente para deixá-lo desconjuntado. — O que está... acontecendo?
— Há uma conspiração em Miliat, Zakkar. Uma força vultosa dominou a cidade
com imenso poder militar — falava Selena, correndo tanto com as palavras que se
atrapalhava em fazer o amigo atarantado entender o que dizia. — A capital foi
sitiada por um assombroso exército desconhecido. Eles não carregam bandeiras,
219
mas possuem armas terríveis e uma legião devastadora e implacável. Uma guerra
acabou de estourar. Nossos exércitos e o povo foram pegos de surpresa. Estão
sendo massacrados nas ruas lá fora. Casas, mercados, bancos, ruas e praças, tudo
está sendo queimado e pilhado. Agora, eles invadiram o castelo!
Zakkar encarava a amiga com espanto. A cabeça voltava a latejar. O peito ardia
como brasa viva. Não acreditava no que estava ouvindo. Como isso aconteceu de
uma hora para outra? O choque de realidade o atingia com um impacto violento.
Queria crer que tudo aquilo não passava de um terrível pesadelo.
— Eles... assassinaram...
Selena murchou. Lágrimas caíram de seus olhos.
— Tio Bartel está morto, Zakkar! — A voz embargada de Selena sobrepujou a
quietude repentina do quarto. — Eu sinto muito.
O jovem guardião balançou a cabeça. No silêncio constrangedor que se instaurou,
era impossível conceber a verdade causticante que então abatia os dois.
— Fomos traídos, Zakkar! — exclamou Selena. Apressada, correu até a janela e
escancarou as vidraças. O ar cálido da noite invadiu a atmosfera abafada provocada
pela lareira do quarto.
— Como... como você sabe?
— Tenho minhas suspeitas... — disse Selena, misteriosa.
A garota meteu a cara para fora do janelão e observou os arredores do terceiro
andar.
— Você precisa fugir e agora!
— Mas... eu... — balbuciava Zakkar, desnorteado.
— Esse exército mascarado é poderoso e não veio com o único objetivo de tomar
a cidade. — Selena engrolou. — Vieram obliterar sua família.
— Mas... como... e quanto a você, Selena?
— Não é a mim que eles querem. Estão arrombando portas, invadindo
dormitórios, gritam pelo seu nome lá fora. Eu tenho um plano — falou Selena.
Agarrou as mãos do amigo e sorriu, confiante, para ele. Apesar do medo que o
envolvia, Zakkar sentiu uma ponta de esperança nascendo em seu coração. As
palavras da amiga lhe passaram confiança. Era a única perspectiva que possuía
naquele momento.
Selena puxou alguns lençóis e cobertores e, com a ajuda de Zakkar, amarrou uns
nos outros fazendo uma corda.
— Espero que isso aguente... — falou Selena, amarrando uma ponta da corda no
dossel da cama e jogando o restante janela a fora.
— Mas... Selena... eu posso usar meu poder e voar daqui para...
— Não! — exclamou a garota, encarando o amigo no fundo dos olhos — Você
não pode, aliás, você não deve manifestar a sua magia. Isso entregaria sua posição
e eles chegariam rapidamente até você.
220
Zakkar arregalou os olhos. Fitou a seriedade no olhar da guardiã sem esboçar
nenhuma reação.
Brados ameaçadores ficaram mais intensos nos corredores contíguos ao
dormitório. Alguém gritava por Zakkar. As portas de carvalho dos demais
dormitórios se agitavam enquanto eram escancaradas pelo exército inimigo. Vozes
agonizantes ecoavam pelo castelo, sucumbindo nas mãos de seus algozes. Novas
explosões estremeceram as paredes do palácio.
Selena e Zakkar se entreolharam, assustados.
— Vá, agora! — ordenou a guardiã e Zakkar agarrou a corda para descer de rapel.
— Venha comigo — falou Zakkar, lançando olhares preocupados para a porta
trancada.
— Não posso... Não agora — disse Selena, vacilante. — Preciso cobrir seus
rastros. Não posso permitir que descubram que você fugiu. Forjarei sua morte e,
então, poderei fugir também.
Zakkar agarrou a mão de Selena; os olhos se enchendo de lágrimas.
— Fuja. Corra para longe daqui! — falou Selena; os olhos marejavam e a voz
ficava embargada outra vez. — Mas, em hipótese alguma, manifeste sua magia. Eles
não podem descobrir que você está vivo.
Zakkar mirou outra vez os olhos da amiga como se suplicasse para que ela o
acompanhasse em sua fuga. Balançou a cabeça, afirmando que seguiria seus
conselhos.
— Eu ficarei bem — pronunciou Selena como se lesse os pensamentos do amigo.
— Agora vá e fique vivo!
Deslizando pela corda de lençóis e cobertores amarrados às pressas, mas com nós
apertados e firmes, os pés descalços de Zakkar tocavam os tijolos frios e ásperos
da torre de seu quarto enquanto descia o mais rápido que conseguia, sem deixar de
lado uma exacerbada cautela. Temia que as mantas entrelaçadas não aguentassem
seu peso e rasgassem de alto a baixo a qualquer momento. O dormitório ficava no
terceiro andar. Acima de sua cabeça, as janelas dos demais aposentos no quarto e
quinto patamar permaneciam trancadas; mergulhadas em um denso negrume,
imergiam em profundo silêncio, incólumes, enquanto o castelo reverberava o
assalto traiçoeiro que o invadia, violentado por uma horda militar sombria e
desconhecida; aliados de uma conspiração silenciosa que tomara a cidade e o
palácio na calada da noite. Os pátios laterais externos abaixo eram abraçados pelo
breu da madrugada. Os archotes ao longo da extensão estavam apagados. Os
conspiradores não tinham ocupado aquele caminho. Haviam conseguido o que
queriam: adentraram o castelo pela porta da frente e sem muita resistência, o que
fazia aumentar o turbilhão de pensamentos que ocupava sua mente de que alguém
de dentro os traíra, facilitando a entrada do inimigo. A escuridão da noite abarcava
221
os flancos do palácio. A única esperança de Zakkar era a ausência de luz e a
expectativa de que ninguém o visse fugindo.
Era impossível enxergar onde as batalhas estavam mais acirradas da posição em
que estava, mas a orquestra macabra da guerra e seus variados sons perturbadores
ribombavam sobre os ouvidos do jovem guardião. As lutas entre as legiões de
soldados, as explosões cada vez mais próximas, madeira estalando ruidosamente
com as chamas que consumiam tudo na cidade: ouvia cada detalhe assolador, cada
gemido angustiante de dor e sofrimento, agitando-se em seu íntimo, sem poder
enxergar ou fazer nada.
Contemplou a distância até o chão na metade da descida. Ainda faltava um
bocado e ele, sem camisa, com os cabelos revoltosos e bagunçados, usando
somente a parte de baixo de sua roupa de dormir, teve uma pequena vertigem;
ansiava que o emaranhado de lençóis e cobertores enrolados não vacilasse e
suportasse seu peso mais um pouco, até que os pés tocassem terra firme outra vez.
Não queria nem imaginar o que aconteceria se caísse daquela altura. Na certa,
morreria. Ou no mínimo, quebraria todos os ossos das pernas, costelas e braços e
possivelmente o crânio e a ideia mirabolante de Selena teria sido em vão.
Estacou, de chofre e segurou a respiração. O coração acelerava e o desespero de
não conseguir vislumbrar o que acontecia ao redor o engolfava. Uma sensação de
desespero parecia tentar se apossar de seu corpo e dominar sua mente acelerada.
Novas explosões retumbaram; as paredes sacudiram com tanto vigor que Zakkar
acreditou que elas desabariam sobre sua cabeça nos minutos que seguiram. Mirou
outra vez a janela de seu quarto tomado por uma aflição sem precedentes. As
vidraças permaneciam escancaradas. Lá em cima, entreviu o brilho fraquíssimo do
que ainda restava das brasas da lareira de seu quarto. Algum ponto do castelo fora
atingido por novas explosões, mas nada que ainda afetasse aquele lado da fortaleza.
As palavras de Selena martelavam em sua cabeça e um cordel infindável de
dúvidas pipocava: como ela sabia o que estava acontecendo? Se ela forjaria sua
morte, como escaparia? Novas lágrimas marejavam seus olhos, mas ele se negava a
voltar a chorar. Vivia a soma de seus piores e mais aterradores pesadelos em uma
única noite. Nem mesmo os velhos medos infantis dos dragões e das criaturas
temíveis que habitavam a floresta se aproximavam dos temores que o alcançavam
naquele momento. Vira o pai ser assassinado a sangue frio por um algoz cujo rosto
ele sequer conseguiu ver. Jamais poderia clamar vingança contra o homem que
ceifara a vida de seu pai sem nenhum pudor. Os demais Ayarza e Greenham
ajoelhados, aguardavam para serem executados ao fio da espada. E quanto à sua
mãe? E o tio Bernat? Logo, arrancariam eles de seus dormitórios para sofrerem o
mesmo desatino que alcançou seu pai.
Como Selena escaparia de uma morte iminente?
Então, o inesperado aconteceu.
222
A corda de lençóis oscilou. Vozes exaltadas ecoaram do terceiro andar. Uma
porta de madeira se escancarou de forma violenta. Quatro, cinco, talvez seis timbres
diferentes gritavam, ameaçadores: brados masculinos exaltados, nenhum de Selena.
Pequenas explosões em sequência ribombaram e o ruído de pedras estourando
retiniram metros acima. As vozes emudeceram.
Outra explosão. Causticante, ensurdecedora.
Selena colocara seu plano em prática.
As estruturas do castelo balançaram como nunca. Tijolos e escombros voaram
de seu dormitório. As janelas de vidro se estilhaçaram em milhares de pedaços.
Chamas intensas lamberam o terceiro andar, queimando as janelas do quarto e se
assomando para os andares superiores. Os lençóis e cobertores amarrados
incendiaram no mesmo instante e Zakkar despencou de onde estava antes que as
labaredas pudessem alcançá-lo.
A dor que sentiu ao cair sobre o chão frio do pátio externo era indescritível.
A perna direita latejava de forma pungente. Um gosto acre de sangue invadiu sua
boca. Cada parte do corpo estremecia. A certeza era de que algum osso se quebrara.
Despencara de mais de três metros. A vontade de gritar, clamar por socorro, ficou
entalada na garganta. Emitir qualquer som em tais circunstâncias era assinar a
própria condenação. Rilhou os dentes, evitando que os gemidos de dor escapassem.
Apalpou as pernas no escuro à procura de uma fratura exposta. Felizmente, estava
tudo intacto.
Os dedos deslizaram, irrequietos, pelos braços e cabeça. Pela forma como o
cocuruto latejava, temeu por hemorragias ou uma lesão mais grave. Usando o brilho
intenso das chamas no terceiro andar como lanterna, avistou a sombra de algumas
poucas escoriações no antebraço direito e cortes que ardiam nas palmas das mãos.
Precisava agir rápido. Estava em uma corrida desenfreada contra o tempo. A
explosão em seu quarto, ainda ardendo em chamas, logo chamaria a atenção do
exército negro. Soldados inimigos marchariam pelos corredores do pátio à procura
de fugitivos. Se o encontrassem ali, agonizando de dor, seria um triunfo dessa
conspiração contra sua família. Um troféu para a horda dos conspiradores que
matavam sua família sem pestanejar.
Alcançar a Floresta Demoníaca era seu único objetivo e refúgio. Uma grande
ironia do destino. Justo o lugar que mais temeu em sua vida tornara-se a melhor
saída contra o infortúnio que se abatera sobre o clã dos Ayarza. Sabia que poucos
se arriscariam a adentrar a densa mata fechada na calada da noite, conhecendo a
fama das lendas e monstros que habitavam aquele lugar. O maior medo que o
devorava era se ele próprio conseguiria sobreviver se encontrasse uma dessas
criaturas infernais.
Esgueirando-se lentamente nas trevas dominantes, Zakkar seguiu pelo pátio se
arrastando. A noite era abafada. A ausência dos ventos marinhos ou da brisa gélida
223
que soprava do interior das florestas era uma constante perturbadora, na
madrugada mais quente e sangrenta que já presenciara. A tensão e o medo pelo que
poderia encontrar no caminho faziam-no pingar de suor. Segurando o braço
dolorido com uma das mãos, seguiu em frente o mais rápido que seu corpo
machucado permitia, escorando-se à muralha do palácio.
Havia uma saída.
Embora fosse arriscado e possivelmente a mais perigosa possibilidade de fuga,
era a única alternativa provável de que se lembrava: o portão noroeste. Era uma das
quatro principais entradas de soldados para o interior das muralhas. Forjado em
ferro fundido, era tão resistente e maciço quanto o paredão em que estavam
inseridas e ficava logo abaixo dos quatro maiores fortes de vigia. Era um acesso
estratégico, muito utilizado em eras anteriores para abastecer o castelo em tempos
de guerra; também era o caminho ideal para a necessidade de fugas da família real,
no advento de invasões como as que aconteceram durante a Era das Trevas,
estando interconectado com as passagens secretas do palácio. Seriam de grande
utilidade se tivessem escapado a tempo. A vantagem de Zakkar era estar a poucos
metros depois do pátio por onde seguia. Uma das preocupações que o assolava era
a probabilidade de encontrar o portão trancado. A outra, ainda pior e assustadora,
deparar-se com o exército inimigo no meio do caminho.
As sombras da noite bailavam sob à penumbra da luz do luar. As silhuetas dos
pinheiros, arcos e pontes que adornavam o pátio dançavam diante de seus olhos
como vultos fantasmagóricos. Titubeou inúmeras vezes, temeroso se tal decisão era
a mais correta. O coração acelerado, os espectros informes se agitando na escuridão
se confundiam com algum inimigo perambulando por ali à sua procura. A batalha
para além das muralhas do castelo reverberava em seus ouvidos. Espadas e escudos
se atracavam com evidente ferocidade, em tantos pontos distintos que era
impossível precisar onde as lutas não aconteciam. Gritos de terror e brados de
guerra ecoavam contra os céus e invadiam seus tímpanos como suplícios de almas
perdidas enfrentando demônios ameaçadores. Flechas e lanças zuniam pelos ares e
estacavam nos mais diversos alvos que cruzassem suas rotas. Cinzas e fagulhas
coruscantes pairavam sobre os céus de chumbo da noite.
Deslizando em silêncio, castigado pelas dores e escoriações da queda, Zakkar
alcançou um balaústre no meio do caminho. Tateou com cuidado na escuridão e
seus dedos tocaram a superfície lisa e enregelante do mármore. Tentava puxar pela
memória se seguia pelo caminho correto. A fraca luz do luar indicava a escadaria
de acesso ao forte noroeste e dali até o portão e, se não estava enganado, aquele era
o caminho que garantiria sua liberdade.
Correu pelos degraus com o coração dando cambalhotas no peito. O suor
escorria das têmporas e morria em seus olhos, ardendo com veemência. Apoiava-
224
se nas paredes e no corrimão, na expectativa de alcançar o portão. Um barulho o
fez hesitar de repente.
Brados impetuosos ecoaram. Vozes impacientes articulavam entre si no mesmo
idioma engrolado e confuso que ouvira dentro palácio; apesar de escutá-los em alto
e bom som, Zakkar não conseguia entender uma única palavra e sobre o que
conversavam; se perguntava se já não tinha ouvido aquele dialeto abissal em algum
lugar, pois não se parecia em nada com os idiomas falados em Aladar. Passos
apressados correram de um lado a outro e tornaram-se cada vez mais próximos; de
imediato, prendeu a respiração e aguardou. Por sorte, ninguém apareceu para
descobri-lo escondido atrás da pilastra.
O barulho de espadas retinindo se intensificou. Os embates eram arrasadores,
para além de onde espreitava. Gemidos agonizantes dos que morriam reboavam de
vários lugares. Apoiado sobre a pilastra de mármore no fim da escadaria, Zakkar
respirou fundo e, reunindo o pouco de coragem que lhe restava, espionou o
perímetro.
Um mar de tochas incandescente se espalhava pelos jardins. A legião de homens
encapuzados obliterava os poucos soldados de Miliat ainda resistindo. Alguns,
poucos, lutavam com bravura. Empunhando suas espadas e escudos com coragem,
eram massacrados pela destreza e perícia das hordas inimigas.
Zakkar se embasbacava.
Matavam sem titubear. Cravavam as espadas nos guardas reais sem reservas. As
súplicas por clemência e os choros por misericórdia em nada influenciava o instinto
assassino do inimigo. Ceifavam vidas como se de nada valessem. Largavam corpos
no meio do caminho e seguiam adiante em sua sede por sangue. Avançavam pelos
jardins, marchando sobre as escadarias de acesso do castelo. Não eram meros
soldados de uma rebelião. Eram exímios assassinos. Imbatíveis. Implacáveis.
Correndo pela escuridão, Zakkar não ousou olhar para onde as lutas aconteciam.
Os olhos relutavam, insistindo em fazê-lo derramar-se em lágrimas. Torceu para
que ninguém o visse correndo pela tangente e para não ser identificado em meio
ao banho de sangue que acontecia nos jardins, até alcançar o portão noroeste.
Dois soldados de Miliat jaziam mortos aos pés da entrada do forte. Com o peito
e pescoços dilacerados, tiveram uma morte violenta pelo fio de espadas inimigas.
Pelas marcas dos golpes e cortes, resistiram bravamente, mas sucumbiram às
lâminas afiadas dos invasores misteriosos.
Puxando os corpos que atravancavam o caminho para um lado, Zakkar
esquadrinhou o entorno com redobrada atenção. O pavor crescente insistia em
querer dominá-lo mais uma vez. Mas, diante de seus olhos, só havia escuridão. O
som das espadas e das lutas impetuosas tornava-se cada vez mais distante. A força
assombrosa ignorava por completo os pátios externos e os jardins; corriam
determinados para o interior do palácio.
225
Forçando o portão de ferro maciço que se abriu para ele com facilidade, Zakkar
atravessou o portal em direção às ruas da cidade.
A cidade queimava lá fora.
Edifícios, casebres e palacetes eram abraçados por chamas volumosas como piras
colossais crepitando ao ar livre. Barricadas com troncos afiados, amarrados entre si
como estacas mortais foram montadas e ocupavam dezenas de ruas e acessos ao
castelo. A insígnia da Fênix Indomável de Miliat refletia o brilho do fogo ardoroso
sobre o peito das centenas de soldados reais mortos pelas ruas. Pilhas de corpos de
guerreiros do reino, cravados por flechas ou dilacerados por espadas e lanças,
jaziam depois de enfrentarem um destino tão sórdido e cruel. Camponeses,
mercadores, artesãos. Humanos, elfos, anões. Almas inocentes. Um número
infindável de outros miliatenses mortos com requintes de crueldade se espalhava
pelas calçadas e ruas atulhadas de sangue e cinzas.
O exército negro conseguira o que queria: embrenhara-se no cerne da capital e
devastara tudo o que estava à sua frente.
Entre chamas, corpos e barricadas, poucos bravos guerreiros resistiam pelas ruas
e vielas. A guerra era ainda mais sediciosa e ardente. Centenas de inocentes
expiravam. Soldados de ambos os lados se atracavam. Espadas e escudos
chocavam-se com estrépito. Metal contra metal reverberava em diversos pontos.
Relutando contra a vontade de defender os remanescentes em combate, Zakkar
lembrou-se do último pedido de Selena e resolveu não manifestar seu poder.
Atravessou as ruas banhadas de sangue, correndo entre corpos empilhados,
escudos e espadas, barris e tonéis em chamas, movendo-se furtivamente por entre
casebres e palacetes, correndo pelas sombras em direção ao limiar da Floresta
Demoníaca.
Parou no meio do caminho, vislumbrando o palácio e a cidade em chamas pela
última vez. As lágrimas escorreram de seus olhos. Batendo contra o peito, ignorou
a intensa dor que abarcava seu interior e engoliu a vontade de chorar. Abaixou-se,
pegou um punhado de terra apertando-o com vigor e fez um juramento: não
descansaria enquanto não descobrisse quem eram os traidores do Trono dos Ayarza
e vingaria as mortes de cada um de seus familiares e amigos, não importando o
tempo que isso poderia levar.
Penetrou o negrume sombrio da floresta, sumindo na mata sem olhar para trás.
226
Capítulo Dezesseis
Sentimentos Proibidos
Quando a tiara de cristal se acomodou em sua cabeça, Dhara sorriu aliviada.
Imóvel no extremo canto de um dos mais luxuosos aposentos do palacete, a
sacramentadora observava o próprio reflexo. Deslumbrante, seria a palavra ideal.
O longo vestido dourado reluzia como se tivesse luz própria e era simplesmente
maravilhoso. Confeccionado em seda finíssima, transmitia uma leveza ímpar, sem
deixar de ser belo e requintado, como exigia o evento. Era como se usasse um
vestido de fios de ouro. O que se dizia a respeito dos tecidos produzidos em
Achmat era que a seda e o algodão do reino vizinho a Vaelfar possuíam um brilho
diferenciado, como se pedras preciosas se transformassem em rolos de linhas e
consequentemente em valiosos tecidos. Se Vaelfar podia se gabar de sua estimada
forja, Achmat tinha com que se vangloriar: a Grande Tecelagem era mundialmente
conhecida.
Os longos cabelos castanhos e naturalmente encaracolados de Dhara eram ainda
mais enrolados e tratados de forma suave para que sua aparência fosse impecável,
deslumbrante. A maquiagem acentuava a beleza natural da elfo. Cores radiantes e
pedrinhas reluzentes realçavam o encanto de seu rosto esculpido. Um trabalho
realizado com muita paciência e delicadeza, o que exigia infindáveis horas semiestática
no vestíbulo, acompanhando as mãos habilidosas de suas arcanas.
Não se podia deixar de mencionar que este era um dia mais que especial. Uma
data importante no exaustivo calendário de visitas que precisava cumprir ao longo
do ciclo. Ainda faltavam alguns mais, como três grandes eventos do Conselho dos
Guardiões e uma convenção em Vaelfar. Mesmo que ainda não fosse o grande dia
de sua Consagração, o baile do governador de Cruisand era uma das principais datas
destacadas em sua fatigante programação. Um evento que sua mentora insistia
como sendo o mais importante de Hegemonia.
Borana Mankic era exigente. Acompanhava de perto cada evento e fiscalizava os
horários da programação anual. Marcava as datas mais importantes e aconselhava
Dhara sobre os mínimos detalhes: desde os principais lugares dos reinos visitados
até costumes e detalhes da cultura dos humanos mágicos e não mágicos e do
comportamento adequado para um sacramentador em cada tipo de situação.
227
Havia três eras, fora sacramentadora de Serenidade. Destacara-se em sua posição
durante os ciclos à frente do pilar e era uma das maiores referências da
Sacramentação Puritana. Na cultura élfica, era proeminente. Fora conselheira de
dezenas de outros sacramentadores. Dizia-se que Alezeia e o próprio Menfesis
foram aprendizes de seus preceitos. Como sua orientadora pessoal, então, fornecia
valiosos conselhos sobre comportamentos e atitudes em sociedade. Era
responsável também por proporcionar um refúgio de paz e calmaria diante do
universo tão assustador que era o convívio com os humanos, principalmente nas
festas e bailes da alta sociedade.
Ao redor e espalhadas pelo quarto, quinze elfos mais jovens e esbaforidas,
deslizando de um lado a outro, terminavam de arrumá-la com o maior cuidado
possível, trabalhando incansáveis em cada detalhe. Eram dedicadas como qualquer
arcana tinha de ser. Drapejavam com minuciosa atenção as muitas caudas douradas
do vestido, preenchendo-as com trilhas de gemas variadas: das pedras preciosas
mais comuns, como diamantes e rubis, aos metais mágicos, como turqts e nomuds
cintilantes. Retocavam a maquiagem, escovavam seu cabelo, adornando-o com
brilhos e pedrinhas de ouro. Mas também ajudavam na limpeza do quarto,
separavam as roupas que precisavam ser lavadas por tamanhos e cores e auxiliavam
no extenso roteiro do programa de reuniões e visitas da sacramentadora. Um
arcano ou arcana era primordial na religião dos elfos. Aqueles que inspiravam uma
vida dedicada à sacramentação e almejavam um futuro na hierarquia da Ordem
iniciavam seu ministério por ali. Esmeravam-se em todos os afazeres que recebiam,
ainda que suas tarefas não estivessem intimamente ligadas à magia do tempo e
espaço. Aprender a servir e estar disposto a aprender, mesmo que as atribuições
não tivessem tanto destaque, era extremamente relevante na cultura sacramental.
Se alguém não se predispunha a servir, jamais poderia estar apto a comandar.
E esta era uma função que Dhara conhecia muito bem.
Durante muitos ciclos, dos quais sempre recordava com grande carinho, fora uma
arcana. Uma época que contribuiu com intensidade para o aprimoramento de seu
saber. Se atualmente vivia na iminência de assumir um dos mais importantes
Octaedros, devia tudo à sabedoria adquirida durante os ciclos em que serviu e
aprendeu a servir como arcana. Olhando a dedicação em ajudar em uma tarefa
simples, como arrumar alguém para uma festa, de suas arcanas, recordava de como
tudo começou até culminar em sua recente nomeação.
Crescera numa família de habilidosos elfos ourives de Tulich. Os mais conhecidos
e destacados no reduto de artes élficas de Eurodian: Os Lovrens. Desde criança,
acompanhara por centenas de vezes os dedos habilidosos de seu pai no refino e
trabalho com ouro. Era um talentoso artesão. Dedicado e obstinado, era tão
envolvido com o trabalho e modelagem de ouro e pedras preciosas que ela perdera
a conta de quantas vezes o vira adentrar a madrugada, absorto e entranhado com o
228
desenvolvimento de sua arte. As pepitas e pedras brutas tomavam forma. Esticadas,
cortadas, delineadas, polidas. Produzia belíssimas joias, esculturas suntuosas e
detalhistas, obras magníficas sempre carregadas de uma paixão e esmero intensos
que o colocava no mais alto patamar dos maiores artistas élficos.
Ainda que admirasse esse amor pelas artes manuais de sua família, Dhara sempre
foi sensitiva ao tempo. A magia se manifestou muito cedo. A primeira lembrança
que tinha era de um berço. Na janela aberta com um céu pontilhado de estrelas,
vislumbrava as mãos pequeninas se agitando, como se tentasse agarrar o longínquo
espaço. O sono não vinha, mas ela não chorava. Talvez, fosse o encanto da noite
lá fora. Queria agarrar a abóbada celeste, ter aquele fulgor só para ela. Foi aí que
um brilho verde-fluorescente surgiu. Arrebatador. Hipnotizara de imediato. A luz
encantadora foi ficando maior. Irradiava como inúmeras linhas e cordas que
cobriam tudo, como uma gigantesca teia de aranha brilhante que se assomava para
cada centímetro do berço e dali para o quarto, a janela, paredes e o que mais
estivesse ao redor.
O olhar confuso da menina vidrava na claridade esverdeada. O céu ficara em
segundo plano. Tentava observar até onde aquelas linhas reluzentes iam. Moveu os
dedos gordinhos e pequeninos de um lado a outro. Ansiava por agarrar aquelas
cordas cristalinas da “teia de aranha mágica”
E as cordas vibraram.
Oscilaram de variadas formas.
Por vezes pareciam ondular, como quando você agita uma corda de pular para
cima e para baixo repetidas vezes. Algumas vezes elas tremiam, como as cordas de
um violão sendo dedilhadas. Dhara gargalhava com vontade em sua inocência
infantil. Fora seu primeiro contato com a magia do tempo.
Mas esta não era sua memória mais marcante.
Ainda muito nova, porém não mais um bebê repousando no berço, Dhara
aprendia o ofício do pai, trabalhando o ouro e as pedras preciosas. Construir
grandes artefatos tão maravilhosos quanto os dele era seu maior desejo, mas as
mãos não eram tão habilidosas para a arte. À época, acostumara-se à magia. Sempre
que queria, visualizava a intrincada malha do tempo de Brelint, a maior província
do reino de Tulich, cobrindo tudo e acompanhava com muita atenção as complexas
agitações do emaranhado de linhas e cordões que reluziam num tom verdefluorescente.
A mente se acostumara aos padrões de tanto que observava e se envolvia com
aquilo. As cordas e linhas cintilantes se entrelaçavam em diversos pontos.
Amarravam-se magicamente como uma peça de tricô perfeita, apresentando-se
como formas geométricas características: sempre com oito lados. Os octaedros
tinham comportamentos distintos, como se possuíssem vida própria. Manifestavam
vibrações e oscilações variadas e ligavam-se a outras centenas de octaedros, cada
229
um agindo de uma forma diferente. Com o tempo, descobriu que a malha não
parecia exatamente com uma teia, mas com uma colmeia de intrincadas figuras
geométricas de oito lados conectadas.
Num dia cálido de verão, sentou-se à beira do rio Gugid para descansar. Enfiou
os pés na torrente branda e sentiu a água gelada tocar sua pele. Estremeceu de
repente com o toque gélido e logo se habituou à leve correnteza que massageava
seus tornozelos. Amarrou os cabelos castanhos em um rabo de cavalo. Do pescoço,
cachoeiras de suor escorriam depois de tanto correr e brincar. Polina e Mariens,
suas primas, mergulharam de cabeça no rio, nadando de um lado a outro.
— Vem, prima — crocitava Polina. — A água está uma delícia!
— Eu já vou — respondeu Dhara, curtindo o momento de descanso depois de
tantas sessões de pega-pega pelos campos às margens do Gugid.
Movendo as mãos com destreza, viu o brilho da própria magia exibir a malha do
tempo e seus delicados octaedros interligados permeando todas as coisas como uma
inescrutável rede ramificada. Adorava contemplar aquela beleza resplandecente
sempre que podia. Decorara cada oscilação distinta a essa altura e por diversas vezes
se pegava repetindo os nomes das vibrações e suas consequências.
O coração pulsou mais rápido de um jeito inesperado. A respiração ficou
ofegante. O ar abafado da manhã pareceu ficar rarefeito e sorvê-lo estava
estranhamente difícil, como se o oxigênio estivesse pesado. Olhou para as primas
que nadavam tranquilamente.
A cabeça girou de súbito.
O que estava acontecendo?
Como se uma resplandecente mão invisível guiasse seus movimentos, Dhara se
pôs de pé. A malha do tempo continuava reluzindo nas palmas das mãos abertas.
Algo não estava certo. Sentiu isso em seu íntimo. Havia alguma coisa fora do
normal. Os olhos corriam por cada octaedro emaranhado, agitando-se de variadas
formas, repetindo silenciosamente o nome de cada um. Nenhuma diferente das que
já conhecia. Sempre em ondas curtas ou como se vibrassem ao som de uma música
estridente.
Polina e Mariens pareciam indiferentes ao desespero súbito que perturbava a
prima. Nadavam às braçadas pelas águas tranquilas do Gugid, disputavam quem
chegava primeiro de uma borda à outra do rio e competiam para ver quem
aguentava mais tempo debaixo d’água.
Dhara não conseguia ficar parada. Algo dizia, no fundo de sua mente, que havia
uma coisa errada com o tempo.
Sem se dar conta, correu.
Disparando pelos campos abertos, a magia em suas mãos exibia a cada instante
os novos octaedros que entravam em seu campo de visão, os olhos permaneciam
atentos à pulsação costumeira da malha. À medida que corria desabalada e
230
irrequieta, a dor em seu interior aumentava. Um medo atroador a assolava, como
se um grande perigo se assomasse e ao redor tudo estivesse ameaçado.
Assim como desatou a correr, estacou.
Um irrisório octaedro apareceu. Mínimo, insignificante na malha, passaria
despercebido por seus olhos, não fosse por uma coisa: vibrava diferente. Dhara
nunca havia visto aquele padrão de vibração antes. Conhecia uma infinidade de
formas de vibrar da malha do tempo, tudo isto descrito nas centenas de livros e
enciclopédias que seu pai guardava na biblioteca. Além de ourives, era também
fascinado pela religião dos elfos e suas descobertas. Mas, de todos os modos que
vira a malha oscilar no condado, aquele era fora do comum. Tremia de forma
perturbadora como se estivesse prestes a pular do emaranhado de octaedros ao
redor.
Usou seus poderes para replicar o formato da vibração e, sem perder tempo,
correu para mostrar aos pais. Curioso como era, os olhos de seu pai brilharam com
o que viu. Empilhou cinco ou seis livros diferentes sobre a escrivaninha da
biblioteca de imediato. Cerrou as cortinas e embrenhou-se entre as páginas a
procurar aquele modelo de vibração. Dhara repetiu os mesmos gestos. Puxou uma
enciclopédia velha e pesada, com as letras douradas da capa descascando e algumas
páginas puindo de tão antigas.
Não havia nada parecido nos livros.
Procuraram por horas até o pai cansar e dormir sobre as páginas de um livro
escrito em runas élficas e nas muitas folhas de anotações que fizera. Nenhum
padrão era igual ao que ela encontrara e isso só fazia crescer ainda mais o anseio
por respostas para uma tão intrigante pergunta. A curiosidade dos Lovrens não se
limitou ao reduto de sua casa e logo se espalhou. Os Brencotres, os Gonjandes e
os Moldenes foram contagiados pela curiosidade e as indagações se alastraram por
toda Brelint. Até que chamou a atenção do rei e de alguém muito importante.
Num dia como outro qualquer do fim do verão, Dhara finalmente os conheceu.
O entardecer se intensificava e o lusco-fusco inseria o condado sob a penumbra de
um ocaso suntuoso de tons alaranjados. As sombras das árvores se estendiam pelos
campos e pelas ruas da cidade e tão rápido quanto o avanço da noite, as lamparinas
crepitavam variados tons de chamas naturais ou mágicas.
Dhara irrompeu pela porta de casa, aberta com o entusiasmo e carinho de sempre
de seu pai e a estranha expressão arrebatada de sua mãe. Ao se deparar com as duas
pessoas assentadas nas maiores poltronas da sala de estar, ficou imediatamente
embasbacada e inerte e entendeu o porquê do curioso esgar da mãe. Uma delas
havia tido a oportunidade de conhecer, mesmo que na ocasião não tivesse a chance
de falar com ele. Era um dos principais clientes da loja de seu pai, quiçá o maior
comprador de artigos do reino. Na calvície irrefreável e no assustador, porém
inexplicavelmente afável olhar caído, era impossível não reconhecer o rei Linus, o
231
majestoso mestre que governava Tulich havia quase duas décadas, tão sorridente
por trás de sua barba rala acaju quase extinta por causa dos pelos grisalhos e que
preenchia um terço de seu rosto macilento.
Não era nele, porém, em que Dhara vidrara os olhos.
Mesmo que jamais tivesse tido a oportunidade de conhecê-la, o simples fato de
vislumbrar tanta imponência em uma única pessoa seria suficiente para que ficasse
deslumbrada.
Com as pernas cruzadas e as mãos repousando sobre os joelhos, uma bela elfo
esguia e de olhos levemente puxados que transmitiam uma confiança ímpar e ao
mesmo tempo serenidade, postava-se de um jeito elegante em sua sala de estar. O
olhar hipnotizador logo fez o coração de Dhara agitar-se de curiosidade por aquela
pessoa desconhecida à sua frente. No rosto fino e de queixo afilado, a expressão
dela era dura, polida, um misto de cordialidade e rigidez que poderia passar por
displicência. As vestes encantadoras refletiam à luz das velas e lamparinas da casa;
um cetim especial que transmitia uma leveza etérea. Drapejadas de pequenos cristais
e intensos floreios reluzentes, criavam um contraste interessante com os cabelos
castanho-claros enrolados em uma longa trança apertada.
Soobo era o nome dela. Viria a descobrir mais tarde que pertencia à casa dos
Yanui, uma família muito tradicional de pensadores e filósofos sensitivos de Fahur.
Descendentes diretos dos fundadores de Purysia, tornaram-se reconhecidos como
os grandes nomes da literatura élfica espalhada pelo mundo. Compunham um dos
seis clãs mais influentes da política e religião élfica, mais conhecido como os
Etéreos. Desempenhava a função que passou a cobiçar no mesmo instante em que
a conheceu.
— Boa noite, minha pequena.
Incontido e espalhafatoso como era, o rei afagou a cabeça de Dhara com vontade,
despenteando seu cabelo, e lhe deu um beijo na testa. Nunca deixava de externar
um sorriso acolhedor e a simpatia cativante que o tornava tão adorado e respeitado
em Tulich.
— Boa noite, Majestade! — exclamou Dhara, tímida.
Ainda que tentasse reverenciar a realeza de Lorde Linus, a obsessão com a elfo
fascinante postada ao lado do rei era gritante. Os olhos permaneciam vidrados em
sua imponência e na postura impecável, algo que o próprio rei não deixou de notar.
Ria-se com tal fascínio.
— Claro, — O rei abria-se em um largo sorriso, mirando da pequena Dhara para
Soobo ao seu lado — não poderia deixar de apresentar a você nossa Protetora do
Tempo...
Os pais de Dhara sorriam sem jeito. A pequeno elfo jamais imaginaria, em toda
sua admiração, o quanto eles estavam tensos e apreensivos com aquela visita
inesperada no romper da noite.
232
Soobo abaixou-se. Para Dhara pareceu que a elfo deslizou suavemente alguns
centímetros do topo de sua magnitude até que seu rosto iluminado e radiante, de
nariz arrebitado, olhos impetrantes e lábios que pareciam estar sempre prontos para
liberar um gostoso sorriso, ficou no mesmo nível que o seu.
— Sabe quem sou?
A pergunta de Soobo soou como um breve e quase inaudível sussurro, mas sua
voz era exatamente do jeito que Dhara imaginava: suave e cristalina como as águas
tranquilas da nascente de um riacho.
Dhara assentiu.
— Imagina por que estou aqui?
Dhara meneou a cabeça.
— Parece que você fez uma grande descoberta, doce criança. Apresentamo-nos
aqui como seus humildes servos. Nossa expectativa é de podermos contemplar o
que seus olhos vislumbraram e ouvir o que tem a nos dizer. Se por virtude desejar,
aventarmos em contribuir para compreender o que o tempo tem a nos revelar sobre
suas oscilações.
Durante quase uma hora inteira, quatro pares de olhos miraram suas atenções em
tudo o que mostrou sobre as vibrações do pequeno trecho de malha que replicou
das margens do Gugid. Os ouvidos estavam atentos a cada palavra que dizia e aos
detalhes que narrava de quando e como descobriu aquela estranha e atípica
oscilação.
Para o rei, tudo aquilo não passava de uma grande baboseira. Os olhos se
arregalavam e balançava a cabeça com tanta efusividade que Dhara por diversas
vezes achou que ela ia pular do pescoço e rolar pelo chão da sala. As palavras ditas
entravam por um ouvido e saíam pelo outro. A mente havia voado para longe dali
desde o instante em que se sentaram para ouvir o relato. O rei só queria parecer
interessado e agradar as nações élficas, que eram a grande maioria em seu reino.
Demonstrar respeito e dar alguma importância àquela religião maluca da qual jamais
entendeu ou quis entender era preciso.
Soobo se limitava a pontuar cada parte da história com um breve aceno de cabeça.
Os olhos se comprimiam por diversas vezes e se perdiam em ponto algum como
se quisesse relembrar de alguma nota mental que não poderia esquecer. Puxou um
minúsculo bloco de anotações e uma caneta tinteiro de prata. Posicionou o pequeno
recipiente de tinta sobre a mesa de centro da sala e pôs-se a escrever em ritmo
frenético, repassando mentalmente o que quer que estivesse concluindo. Nesse
momento, já não prestava tanta atenção aos relatos de Dhara.
— Fale para ela, filha. O que você acha que é.
A pequena elfo arregalou os olhos para o pai. A história interrompeu-se
imediatamente. Os olhares de todos miraram da expressão tímida da filha para seu
pai e de novo para Dhara no centro da sala de estar. Soobo interrompeu as
233
anotações e postou-se para ouvir. No rosto animado do pai, a expectativa e a
animação irradiavam de uma forma caricata. Sempre que ficava ansioso ou animado
de mais, seu rosto se abria em um largo sorriso cheio de dentes e os olhos só
faltavam saltar para fora das órbitas.
Dhara enrubesceu. Notou que todas as atenções se voltaram para ela. Reparou a
expressão singela de curiosidade de Soobo Yanui que repousou a caneta tinteiro
sobre o ínfimo tanque, sustentando o bloquinho de anotações em uma das mãos.
Cruzando as pernas com exorbitante elegância, atentou-se para a teoria que estava
prestes a ouvir.
Rei Linus arreganhou ainda mais o olhar e, embora Dhara soubesse que ele não
entenderia qualquer palavra sua, tomou coragem para revelar suas teses.
— Eu... analisei os padrões junto com meu pai por alguns dias — pronunciou
Dhara. A frase, no entanto, saiu como palavras engroladas e balbuciadas em uma
nota mínima de som produzida por suas cordas vocais. O silêncio na sala de estar
era teimoso. Os ouvidos de todos estavam aguçados e captaram perfeitamente o
que dissera — Mas como ele tinha que fabricar cordões, brincos e colares, eu
continuei estudando os padrões. Embora eu tenha dito que não se pareça com nada
que consta nos catálogos e enciclopédias, notei que a vibração se assemelha a uma
combinação de dois eventos: ciclone extratropical de alto grau, por causa das ondas
curtas vibrantes em espiral, e maremoto de magnitude iniciante em virtude das
agitações tremulantes e espaçadas dos octaedros.
A sacramentadora desviou o olhar para a figura da malha reproduzida por Dhara.
Contemplou por alguns instantes o pequeno emaranhado de octaedros se agitando
de formas diferentes, até que se pôs de pé e chegou muito próximo do arquétipo
da malha, inclinando a cabeça e observando de vários ângulos.
— Um vórtice marinho de magnitude mediana.
— Um vórti-o-quê? — inquiriu o rei, alienado e arregalando os olhos para a
expressão absorta de Soobo como se estivesse falando em um dialeto
desconhecido.
Os pais de Dhara se entreolharam, admirados. Fitavam a sacramentadora
assombrados, como se tivesse revelado algo sobre o futuro deles.
— Fascinante! — respondeu o pai, postando-se ao lado de Soobo, imitando-a,
tentando observar cada detalhe da mesma posição que ela.
— Brilhante dedução! — crocitou o rei, sem um pingo de noção.
— Eu... eu... não diria que é um vórtice...
As atenções se voltaram de imediato para o sussurro tímido de Dhara.
— Não? — questionou Soobo, comprimindo os olhos.
— Não? — perguntaram seus pais em uníssono, assim como o rei, encucado.
— Eu também cogitei essa opção. Mas, se você observar mais de perto, — E
Dhara postou-se ao lado da sacramentadora, apontando para um lado em particular
234
da reprodução da malha — as ondas em espiral aqui giram em sentido horário e
seguem em velocidade alta. Um vórtice marinho mediano não giraria neste sentido
e muito menos com essa velocidade e com o...
— Um pequeno detalhe de interpretação, minha criança. — Soobo interrompeu,
ofertando um sorriso que pareceu afável a todos, mas que não soou nada simpático
a Dhara. — Vórtices marinhos de magnitude mediana não possuem clareza de
agitação definida nos primeiros estágios de formação, o que pode levar de sete a
doze semanas para se formarem e estabilizarem suas oscilações nos padrões que
conhecemos. É preciso analisar o percurso da agitação até o ponto de origem. Pode
ser que esta oscilação fora do comum esteja estabilizada no marco zero de
formação, sendo esta apenas um reflexo da primeira.
Soobo Yanui recolheu seus pertences com paciência e se aprontou para partir.
— Estarei comunicando à Ordem. — Soobo dirigiu-se aos pais de Dhara e ao
rei, pronunciando cada palavra com serenidade ímpar — Não há com o que se
preocupar. Trata-se de um vórtice corriqueiro que será evitado sem maiores
problemas. Dentro de sete semanas, emitiremos o alerta e...
— Sete semanas? — arguiu Dhara, preocupada. Não estava convencida de ser
somente um vórtice trivial que logo se firmaria.
— Filha, não há com o que se preocupar e...
— Não há com o que se preocupar, doce criança — falou Soobo, aquiescendo
— A estabilidade do tempo está nas mãos dos sacramentadores. Sua preocupação
e esmero são qualidade louváveis para uma singela criança. Quem sabe, um dia, seu
futuro possa estar atrelado à sacramentação?
Lorde Linus e a sacramentadora deixaram a casa imediatamente. Despediram-se
com longas saudações e um cordel infindável de agradecimentos pela hospitalidade
com que foram recebidos. Soobo fez um último afago em Dhara e lhe sorriu antes
de sair. O rei fez questão de garantir que tudo ficaria bem.
Para Dhara, porém, nada estava bem.
Ao contrário do que a sacramentadora de Perspicácia havia dito, as oscilações da
malha ficaram perturbadoras nas semanas seguintes. As ondas curtas e vibrantes
giravam cada vez mais rápidas e o tremular dos octaedros ia ficando menos
espaçado. Em seu íntimo, Dhara estava agitada. Os pais repetiam que ela não tinha
com o que se preocupar e que ainda faltavam muitas semanas até a estabilidade,
conforme a previsão de Yanui. Mas ela não estava convencida. Meteu a cara nos
livros por horas e horas até que eles se transformassem em dias. Dias em que o
tempo passava como um breve sussurro diante de sua aflição. Estava convicta em
suas teorias e nem mesmo os conselhos dos pais para que se tranquilizasse
conseguiam fazê-la ficar em paz. Teimosa, tinha quase certeza de que Soobo
desprezara suas informações e se submeteu às crenças dos próprios conhecimentos.
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Mas e se ela estivesse errada? Sacramentadores também podiam errar, não? Se as
convicções deles tivessem lhes cegado a sabedoria?
Folheando desvairada centenas de páginas das muitas enciclopédias de padrões
da malha do tempo, em meio a uma infinidade de papéis rabiscados com suas
anotações, notou que algo passara despercebido. Um detalhe que não havia se dado
conta, mas que fazia muito sentido: as oscilações e tremores pareciam caminhar
para uma fusão nos octaedros, convergindo para um misto de reações distintas.
Não se tratava de um intenso ciclone ou de um simples maremoto, mas talvez de
uma soma. A soma de ambos.
Lera alguma coisa a respeito, embora a mente cansada não conseguisse recobrar
de onde. No meio da bagunça generalizada de livros empilhados e espalhados pela
biblioteca, um deles descrevia um fenômeno incomum, porém arrasador. Uma
equação aterradora que integrava oscilações e tremores distintos de rápida
confluência, fundindo-se em um resultado devastador. Um resultado raro que as
literaturas chamavam de tsunamis de magnitude elevada.
Não aceitou aguardar a catástrofe de mãos atadas quando teve certeza de suas
convicções. Persuadiu os pais sobre sua tese. Estavam tão surpresos quanto
aterrorizados. Partindo dos Lovrens, a informações se espalharam como um vírus
por toda Brelint. Os Gonjandes foram os primeiros a fugir para o norte, buscando
refúgio longe da orla do reino e de qualquer lugar onde houvesse água, mesmo com
Dhara explicando que o fenômeno envolvia ondas marítimas gigantes. Não
demorou para que os demais condados e províncias de Tulich tomassem
conhecimento da predição e muito menos para que os vilarejos próximos à orla
praiana do reino fossem completamente evacuados. Assustados com a previsão,
vilarejos litorâneos de Achmat também se evadiram para muito longe.
Os sinais no tempo só confirmaram que Dhara estava certa.
Um dia, o mar recuou. Tanto, mas tanto que era possível caminhar até a Ilha
Brava de Tulich sobre a extensa faixa de areia onde antes as Águas de Crispoles
dominavam. Ondas gigantes se avolumavam, formando um imenso paredão no
horizonte, prontas para uma rebentação violenta e avassaladora por toda costa do
reino. Neste mesmo dia, em que as Colinas de Bovar ficaram apinhadas de gente
na expectativa de assistir no longínquo horizonte o terrível destino da orla de
Tulich, Dhara os viu em ação.
Eram como Soobo, usavam as mesmas vestes. Trajes elegantes, reluzentes. O
mesmo aspecto etéreo os engolfava, como se uma aura de energia e luz envolvesse
seus belos rostos de orelhas pontudas e corpos esguios. Estavam encarrapitados
sobre as colinas, próximos de onde estava. Com movimentos rápidos, a magia do
tempo entrou em ação.
Um brilho ofuscante refletiu sobre os olhos aflitos dos que assistiam ao tsunami
em formação no horizonte. Muitos levaram as mãos aos rostos. A maioria não
236
entendia o que estava acontecendo. Como um raio de sol que desponta ao romper
da manhã, Dhara observou o mesmo emaranhado de pequenos octaedros que se
acostumara a manipular, naquele momento em proporções estratosféricas surgir no
mar. Uma fenda reluzente apareceu sobre as oscilações e tremores da malha no
exato ponto em que as ondas abissais se adensavam.
Então, desapareceu.
A água do mar retornou ao seu devido lugar com a calmaria trivial da enseada do
reino. A faixa territorial da encosta foi-se enchendo de água de um jeito preguiçoso,
como se alguém abrisse as comportas de uma barragem e liberasse água a contagotas.
Avançando lentamente, as marés retomavam o habitual vai-e-vem de ondas
curtas característico da orla tulichiana. Como se nunca tivesse existido, o
monstruoso tsunami desapareceu.
Uma explosão de vivas eclodiu sobre as colinas. A aflição persistente deu lugar a
um alívio esfuziante. Milhares de pessoas se abraçavam. Anões de Jilianzi fizeram
uma roda, dançando e cantando suas velhas canções em agradecimento. Famílias
se abraçavam e choravam a esmo com o conforto de poderem voltar às suas casas.
Lorde Linus e seus conselheiros vibravam em meio ao povo com a tragédia evitada.
A magia dos sacramentadores salvara o reino da devastação. No meio do frenesi
que dominou o pico da cadeia de montanhas, Dhara soube naquele instante que
não queria ser ourives: era aquilo que queria fazer.
A descoberta do tsunami pela menina elfo de Brelint não se limitou às terras do
reino e muito menos de Eurodian. Atravessou o continente e despertou a
curiosidade de Purysia. Poucos dias após as monstruosas ondas desaparecerem
diante de todos, Dhara recebeu uma nova visita em sua casa. Taciturno e muito
compenetrado, o Primeiro-Líder da Ordem dos Sacramentadores em pessoa foi lhe
fazer um convite que deixou seu coração saltitando dentro do peito. O primeiro
sentimento ao reunir-se com ele a primeira vez foi de medo. Era um elfo de duras
feições e de presença marcante. Com um arco dourado na cabeça e um envelope
pardo em uma das mãos, veio acompanhado de duas sacramentadoras. Uma, ela
conhecia, já tinha visitado sua casa. Desta vez, Soobo não estava tão radiante.
Denotava certo constrangimento, uma insatisfação mal contida em ter de voltar a
encarar a menina que provara que suas previsões estavam erradas. A outra,
belíssima e de longos cabelos negros com uma pequena tiara prata sobre a testa, era
a única sentada no sofá da sala. A observava com uma expressão materna
estampada sobre o rosto. Por mais que aquela elfo não tivesse dito nada, Dhara
definitivamente decidiu que ela era alguém em quem podia confiar.
Nos ciclos seguintes, jamais errou seu julgamento.
Ada Alezeia Turim, a Segunda-Líder da Ordem, era uma mulher sensacional.
Sensata, de vasta sabedoria, fora sua maedor durante os ciclos em que se preparou
para ser uma sacramentadora. Mais do que uma maedor, fora para ela como uma
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mãe, quando deixou seu lar em Tulich e viajou para viver em Purysia para ser uma
arcana. Mesmo que Alezeia tivesse de instruir outras tantas arcanas que a
acompanhavam, podia desfrutar de seus valiosos conselhos e ser doutrinada
diretamente por ela. Seguiu-a em dezenas de missões, aprendendo sobre a religião
dos elfos, estudando os milhares de padrões de oscilações da malha do tempo,
conhecendo outras culturas e povos, idiomas e histórias e recebendo dela todo
conhecimento e atenção de que precisava. Dhara sonhava, quando completasse sua
era de preparação, poder tornar-se uma das Oito Octaedros e ser tão extraordinária
um dia como era Alezeia.
Menfesis sempre estava por perto. Embora mais reservado, a relação com ele era
uma linha tênue entre respeito e medo. Possuía o hábito de interceptá-la no Oráculo
do Tempo para testar seu aprendizado toda vez que se cruzavam. Fazia perguntas
corriqueiras intercaladas com dúvidas complexas sobre a sacramentação. Dhara
achava tudo muito divertido em seu íntimo, até as questões mais complicadas e que
exigiam dela alguma pesquisa profunda. Amava a relação de cumplicidade entre
Menfesis e Alezeia. Não conseguia imaginar pessoas melhores ou com maior
sabedoria do que ambos à frente das difíceis decisões na ilha. Se Alezeia era como
uma mãe, poderia se dizer que Menfesis era o tipo de pai distante por causa da carga
de trabalho, mas que se preocupa com o aprendizado da filha e quer para ela tudo
de melhor.
Essas lembranças tão boas não conseguiam afugentar um fantasma recente que
assombrava seus pensamentos e que lançava tantas incertezas sobre a segurança a
que se habituara. Não gostava de pensar sobre o assunto e até queria desacreditar
em suas convicções, mas Dhara sabia que havia algo de errado em Purysia. O
motivo, ventilado por dezenas de sacramentadores que cochichavam nos bastidores
da alta cúpula, sempre envolvia o nome do Primeiro-Líder. Nos últimos meses,
Menfesis passou a agir de forma estranha. Ainda mais isolado, com expressões
duras, mas de uma forma completamente diferente. Estava visivelmente apreensivo
e nada disposto a compartilhar suas preocupações. A relação com os demais líderes
dos octaedros se fragilizara. Calorosas discussões ecoavam pelo castelo. Dhara
observou pelos corredores, por diversas vezes, os sacramentadores de Infortúnio e
Austeridade deixarem o Oráculo com ânimos exaltados. Até mesmo Soobo Yanui,
com sua aparente serenidade, perdera as estribeiras numa série de discussões com
o grande líder de Purysia.
Havia poucos meses, Menfesis a convidou para uma reunião às portas fechadas
em seu escritório. Na ocasião, dirigiu-se a ela com propriedade e barrou a
participação de Alezeia. Dhara assentiu, embora, pela expressão de aflição
disfarçada de sua mentora, notou que algo mudara entre os dois. A relação de
cumplicidade parecia se dissolver. Não existia mais a notória confiança mútua entre
ambos.
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Menfesis não estava posicionado atrás de sua grande mesa de mogno como de
costume. Duas cadeiras estavam postas, frente a frente, em seu escritório. Ele
mantinha uma expressão impassível e nada serena, visivelmente transtornado e
afoito. Nesse instante, Dhara teve certeza de que algo não estava bem. Assim que
se assentou a sua frente, ele não criou rodeios.
— Dhara, estou te indicando como uma dos Oito Octaedros. Anunciarei ainda
hoje sua nomeação.
Ela estremeceu na cadeira. O coração bateu mais forte no peito, mas uma
confusão se arremeteu instantaneamente em sua cabeça. Os Oito Octaedros atuais
ainda não haviam completado sua era à frente dos pilares e essa tradição jamais fora
quebrada.
— Sinto-me lisonjeada, nobre Menfesis, mas... — Diferente dele, Dhara rodeava.
Não sabia como tocar no assunto sem parecer querer questioná-lo. — Mas... receio
ainda não ter concluído minha era preparatorem e... Perspicácia já possui uma líder
que...
— Não serás indicada para Perspicácia — pontuou Menfesis; sua voz estava
desprovida de sentimentos, mas carregava um tom que parecia com desgosto ou
mesmo raiva.
— Não? — A confusão dominava a expressão de Dhara.
— Tu és brilhante, Dhara. A sabedoria e sagacidade que demonstraste quando
ainda eras uma criança, suplantou o pífio conhecimento externado por Yanui.
Soobo jamais demostrou tamanha destreza e erudição em todos os seus ciclos como
uma dos Oito. Considero utilizar suas habilidades e conhecimentos à frente de
outro pilar, o de Hegemonia.
Prendeu a respiração na hora e se sobressaltou. Tentava assimilar se tinha ouvido
corretamente. Hegemonia era um dos principais octaedros, envolvendo os mais
destacados territórios do mundo mágico: Cruisand, Paragon e Vervaz. Era ainda
liderado por um magnífico sacramentador, mundialmente famoso por incontáveis
prodígios ao longo dos ciclos e, principalmente, por ser o grande mentor de Arturo.
Quando ainda tentava absorver a informação, Menfesis percebera seu repentino
espanto e adiantou-se a explicar. Foi categórico em obliterar suas questões de uma
única vez.
— A atual composição dos Oito Octaedros está obsoleta e será dissolvida ao
romper da próxima manhã. Os novos Oito serão comunicados até o findar do dia
de hoje. Até a Cerimônia de Consagração, você terá seis meses para se preparar.
Nomeei uma nova mentora para acompanhá-la nessa fase final de preparação. És
a segunda a receber esta notícia. Trishnann também foi avisado: assumirá
Austeridade. Neste tempo, peço que mantenhas a discrição e concentre-se em
conservar a harmonia do tempo, aplicando sua humildade e vasta sabedoria que é
239
mais do que comprovada. — E, levantando-se, Menfesis foi até a porta do
escritório e a abriu.
A mente pipocava em infindáveis questionamentos, quando Dhara levantou-se,
estupefata. Sorriu sem jeito, não sabia se agradecia ou se interrogava porque tantas
decisões em tão pouco tempo e se havia refletido sobre cada uma delas. Caminhou
até a saída e limitou-se a acenar a cabeça para Menfesis, que se manteve impassível.
Então, se retirou.
Do lado de fora, Borana já a aguardava. A mando de Menfesis — que
aparentemente havia pensado em cada detalhe, a ex-sacramentadora de Serenidade
se apresentou de forma carinhosa, pronta para transmitir seu saber como mandava
o código da Consagração. Desde então, tornara-se sua mentora.
A última peça de turqt fora colocada delicadamente sobre o longo vestido e as
dezenas de pares de olhos admiravam a obra prima que finalizaram com louvor.
Encantadas, Borana e as arcanas ao redor suspiravam com a beleza incomparável
de Dhara, escancarando enormes sorrisos de aprovação e suspirando com a visão
deslumbrante.
Dhara contemplava o reflexo reluzente sobre o espelho, com a mente outra vez
voando alto, para longe de onde estava. Desta vez, não tinha a ver com as dúvidas
que se arremetiam sobre Purysia, mas com algo que relutava para esquecer e que
lhe provocava arrepios que jamais havia sentido. Sentimentos diferentes que nunca
experimentara, mas que tinha certeza de que não poderiam ser bons. No âmago de
seus devaneios, Dhara pensava em Louk. Especificamente, naquele beijo antes de
o guardião fugir voando pelos céus de Paragon.
Fora a sensação mais estranha e prazerosa que sentira.
Naquele momento, quando a brisa a assoprar parecia cantar em seus ouvidos, as
pernas perderam as forças de súbito. Não tombara ao chão porque dois braços
fortes a amparavam. Uma onda esdrúxula e eletrizante percorreu seu corpo por
completo. O gosto do beijo daquele petulante guardião ficara marcado em seus
lábios em um ínfimo momento de insolência em que ele a girou e a beijou com
vontade, no topo de um telhado, rodeado de guardas por todos os lados.
— Meu nome é Louk, do trono dos Savya.
Atarantada, não sabia o que dizer. Nem o que pensar. Mal tinha forças para se
manter de pé. Escorando-se sobre um muro de pedra, ainda com as pernas bambas,
o viu subir como fogos de artifício em dia de festa e desaparecer nos céus.
Jamais fora beijada. Jamais se permitiu saber o que era um relacionamento
amoroso. Qualquer sacramentador ou arcano tinha plena consciência que o
caminho da sacramentação exigia a pureza do corpo. A doutrina era enfática no que
tangia à castidade. Vocacionados desde muito jovens, os que aspiravam à erudita e
gloriosa trilha da sacramentação eram submetidos a um voto perpétuo de
240
abnegação e total abdicação dos prazeres sexuais. Sabiam que estariam eternamente
impedidos de se relacionarem com outros elfos. Ainda mais preocupante e
assustador do que a simples quebra de um voto de castidade, era uma relação
amorosa entre elfos e humanos.
Dhara estremecia só de pensar.
Havia três coisas consideradas abomináveis dentro da ancestral cultura élfica e
uma delas era o relacionamento sexual entre homens e elfos. Reinos como Vaelfar
e até mesmo Achmat, Tulich e Fahur classificavam os casos como hediondos e os
condenavam com a pena máxima: decapitação. O fruto de tais relações era tido
como aberração, perseguido até a morte. Embora jamais tivesse conhecido um
híbrido de humano e elfo, ouvira dezenas de histórias sobre. Em sua maioria, o
final era sempre trágico.
Dhara tinha plena consciência de que essa sensação nova e esquisita não poderia
ser correta. Não podia se apaixonar por um humano. Era crime. Profano.
Abominável. Contudo, os arrepios súbitos que sentira e o gosto macio dos lábios
de Louk marcaram-na de uma forma extraordinária, com uma expectativa sem
precedentes. Uma ânsia desvairada. Um desejo desenfreado por algo que ela
desconhecia.
Houve uma singela e quase imperceptível pausa, do tipo em que todos perdem o
fôlego e viram suas cabeças, quando Dhara irrompeu do segundo piso pelos
degraus da escadaria. Entrementes, a futura sacramentadora de Hegemonia estava
deslumbrante. Os olhos embasbacados dos convidados refletiam o brilho das
inúmeras joias que drapejavam seu vestido dourado. Deslizava com enorme
graciosidade, sorria e acenava como uma debutante em que todos aguardavam com
ansiosidade, acompanhada por quatro de suas arcanas pessoais e claro, Borana à
tira colo, sorrindo de forma modesta. Afinal, o centro das atenções era — e tinha
de ser — Dhara Lovrens.
Observava os olhares impressionados em sua direção a cada lance de escada.
Reconheceu muitos rostos em meio à multidão que não conseguia desviar os
olhares de seu resplendor. O governador de Cruisand interrompera um diálogo
com o rei de Mistral. Como era mesmo o nome dele? Alezeia sempre falou a seu
respeito. Era um homem charmoso e muito comedido. Argus ou Actos? Algo
assim. Anotou mentalmente que precisava relembrar seu nome. Embora não fosse
de sua região, os laços políticos eram de grande relevância. Por falar na antiga
madrinha, ela também estava lá. Ada Alezeia Turim. Como sempre, deslumbrante.
Sob um longo vestido azul-turquesa, piscou para ela em sinal de aprovação. Era
uma verdadeira lady em destaque em meio aos demais elfos e arcanos que a
rodeavam. No instante em que a viu, o polido Sisno Sannfrye a convidava para
241
dançar. Sannfrye, a quem não encontrava havia algum tempo. Por onde andava?
Como um velho amigo de Bovir, era de se esperar que também estivesse no baile.
Identificou alguns ex-sacramentadores além de Sannfrye. O misterioso Nodovra
bebericava de uma longa taça a um canto. Desde que fora para o Oráculo do
Tempo, Nikolai era um dos poucos elfos que a assustava com seu jeito carrancudo
e de poucos amigos. Gavir, Soobo e Ranidge também se espalhavam pelo salão.
Não pareciam muito animados com a festa. Externavam uma aura desconfiada,
cochichando baixinho entre si, sempre tampando a boca e observando a todos com
profundo desinteresse. O mais à vontade deles era Nelis Naziv. Conversava
acaloradamente com um homem de estatura mediana com alguns poucos cabelos
grisalhos escorridos abaixo de sua enorme calvície: August Moronov. Um homem
nodoso que adorava desfrutar do luxo dos banquetes e festas reais para tentar
impressionar os outros com seus títulos ou conhecimentos. Um ledo engano dos
humanos, que preferiam utilizar a sabedoria para se colocarem acima dos outros.
Os reis de Boralioch, Fahur e Achmat também estavam presentes, assim como
Amel, Deeze e Leilor, os gêmeos das Forjas Élficas. Não encontrara nenhum
representante de Badorian. Mas, não esperava por tal, principalmente depois da
perda de seu soberano.
Os convidados da grande festa estavam muito à vontade, de forma geral. A parte
que não se ocupava conversando, comendo ou bebendo, se embrenhava a dançar
uma valsa lenta. Uma gloriosa orquestra de cordas e sopros desfiava os acordes de
canções milenares, engolfando os presentes com deliciosas melodias.
Imaginava que sua mentora devia estar satisfeita por atrair tantos olhares em sua
direção. Com tantos adornos e joias preciosas que fora obrigada a usar, não tinha
como ser diferente. Borana sempre bateu nessa tecla.
“Uma sacramentadora precisa impressionar. O mundo dos humanos é marcado pela
complexidade; uma apresentação imponente é um trunfo deveras relevante para que se obtenha
sucesso com a sabedoria. Não há que se desprezar o conhecimento. De forma alguma. A sabedoria
possui estimada relevância, mas se não há imponência diante da sociedade, a sacramentação perde
seu devido valor aos ignorantes olhos da sociedade atual”.
Observou as reações de sua mentora de soslaio. Abaixo de algumas poucas rugas
que começavam a surgir devido a avançada idade — na iminência de completar
seus quatrocentos e cinquenta e sete ciclos — aparentava estar satisfeita. Um misto
de orgulho e exultação habitava seus grandes olhos cor de mel, como uma mãe a
conduzir a filha em um casamento ou formatura. Isso era primordial para Dhara.
Deixar sua mentora orgulhosa era tão importante quanto o maior conselho dado
por ela. E ali, no Salão de Vidro, chegara seu grande momento.
O Salão de Vidro era um dos mais badalados lugares de Eurodian. Entre todos
os palácios e bailes do qual ouvira falar nos últimos seis meses, aquele local era o
último e grande triunfo a ser conquistado. Não se podia negar que conhecera
242
dezenas de lugares estonteantes e aprendera muito sobre eles, como os Pilares da
Magia, o Grande Garbez, os Portões de Centião, a Academia dos Guardiões e as
outras cinco maravilhas de Eirin, mas, apesar de não ser considerado um
importante obelisco do mundo, aquele salão era fantástico e poderoso.
Erguido em mármore tursel e diamante, todas as paredes eram translúcidas e
permitiam uma ampla vista para os jardins externos e o pátio, daí o apelido que o
tornou tão famoso. Era o local de bailes de Bovir, o atual governador da cidade.
Aliás, um nome do qual Dhara não poderia, em hipótese alguma, esquecer. Sabia
que o sistema de nomeação dos governadores das principais cidades do mundo era
um tanto confuso. Era conduzido pelo Conselho dos Guardiões, possuía uma série
de indicações de reis e soberanos dos Cinco Continentes, testes eram realizados às
portas fechadas em Gradia. Um ritual que ela jamais se meteu a tentar entender.
Algo que era melhor ser tratado pela própria e — ambígua — sabedoria dos
humanos.
No último mês, Dhara aprendera tudo de que precisava saber sobre os bailes do
Salão de Vidro. Uma das tradições mais antigas e comemoradas era a chegada das
Quatro Estações — festejadas ali desde que a Convenção de Cruisand fora
assinada, sempre com as mais proeminentes personalidades do mundo. Segundo os
relatos minuciosos de Borana, o Baile de Primavera era o mais suntuoso. Camélias,
lírios e orquídeas ornamentavam o grande salão. Beija-flores, canários e sabiás
mágicos sobrevoavam o topo das cabeças dos convidados. Mas o grande espetáculo
se dava quando o sol do entardecer atingia seu ponto alto. Os raios irradiavam pelas
paredes de vidro e preenchiam cada centímetro do salão com uma luz dourada e
natural que tornava o ambiente um espetáculo à parte.
Esta era a noite do Baile de Inverno.
Sobre o último degrau, percebia que cada palavra de sua mentora estava muito
aquém da real beleza daquele recinto. Somente seus olhos podiam comprovar que
tudo o que ouvira sobre o Salão de Vidro e suas ornamentações eram a mais pura
verdade.
Simplesmente estonteante.
Flocos de neves mágicos pendiam do teto oblíquo como se estivessem em uma
típica noite de inverno, mas sem o frio costumeiro trazido por ele. Assim como os
mínimos floquinhos esbranquiçados, visgos esmeralda serpeavam pelo teto,
sinuosos e entrelaçados, ornamentando as paredes. Gérberas, egônias e verbenas,
típicas do inverno eurodiano, drapejavam o ambiente. No ponto mais destacado,
próximo de onde a orquestra se posicionara, enormes mesas decoradas exibiam os
mais variados tipos de comidas típicas e bebidas para uma noite de gala. Seria tolice
tentar descrever nessas páginas os detalhes apaixonantes que os olhos de Dhara
vislumbraram e mais ainda transmitir as sensações que arrebatavam seu espírito ao
pisar no lugar, pois somente quem comparece ao baile pode vivenciar.
243
Enlevada pela beleza do lugar, Dhara não evitava sorrir para tamanha
suntuosidade. Embasbacada seria a melhor palavra. Os olhos vidrados na
decoração exuberante, se policiava para não denotar impressões erradas. Mantinha
a precaução em não deixar o queixo cair. Não podia parecer inocente ou ignorante
diante de tamanho requinte. Hipnotizada com a ornamentação e com a graciosidade
do grande salão, não se deu conta que alguém segurava delicadamente sua mão
direita de repente. Com máxima cautela, era conduzida ao centro da festa, sendo
tomada para dançar uma valsa um pouco menos melancólica.
— Não vou negar que está ficando meio óbvio que você possui uma obsessão
por mim.
Esqueceu os desvaneios provocados pela admiração do lugar quando a voz
conhecida falou muito rente a seu ouvido. O coração palpitou forte no fundo do
peito. Os cabelos da nuca se ouriçaram. O tom grave daquela voz trouxe Dhara de
volta à realidade.
Cabelos ruivos caricatos. Arrumados e penteados para um lado desta vez. Olhos
azuis quase cinzas e interessantes encaravam-na. Demonstravam uma excitação
incontida em contemplar seus olhos castanho-escuros assustados. Sem se dar conta,
deixava-se conduzir em uma valsa por Louk Savya.
— O que você... o que fazes aqui?
— O que faço no Baile de Inverno mais badalado do mundo? — Louk
questionava com um sorrisinho cínico ocupando os lábios. Mantinha o compasso
da valsa a cada palavra. Demonstrava ser um dançarino razoável. — Acho que você
esqueceu quem sou e...
— Louk Savya, da Austera Amistelar — pronunciou Dhara tentando não parecer
presunçosa. Esforçava-se para disfarçar uma nota trêmula muito inesperada em seu
tom de voz. — Sei quem és. Não esperava vê-lo nesta cerimônia.
— Quem és? Ui. Que vocabulário requintado. Você não usou essas palavras
rebuscadas da última vez que nos vimos — debochou Louk. — Acho que você
subestima minhas origens. Sei que não estou coberto de joias e brilhando como
você, mas tenho alguma relevância nessa festança aqui.
Dhara franziu o cenho. Um inconveniente tremor nas pernas surgia de forma
inesperada.
— Está vendo ali? — Louk apontou com a cabeça de um modo discreto para um
homem de terno negro e feições militares — Aquele é...
— Salazar Stanhorne. O líder do Conselho dos Guardiões — respondeu Dhara,
comprimindo os olhos e mantendo a expressão impassível, mas rindo-se por
dentro. — Se subestimo suas origens, você esnoba minha inteligência.
— Você errou!
— Errei? — inquiriu Dhara, sentindo-se ofendida com a resposta inesperada de
Louk. — Como assim errei? Aquele é o atual Conselheiro-mor dos Guardiões, o
244
“Leão de Gradia”, Salazar Stanhorne, a quem por acaso não esperava ver por aqui
visto seus compromissos políticos em Anlevor e...
— Sim, sim, sim. Ele está sempre ocupado e deve viajar outra vez daqui a pouco.
Ainda assim, não desvie o assunto: você está parcialmente errada. — Louk sorriu,
petulante. — Salazar é meu tio. Casado com Laurea Savya.
— Parcialmente errada? Ou parcialmente certa?
— E isso importa? Parcialmente errada ou parcialmente certa, de qualquer forma,
é a mesma coisa. Sabe que estou certo e você está parcialmente errada...
— Depende do ponto de vista. Se te dou a informação parcial de uma verdade
absoluta que não desejas, então estou parcialmente certa, ou parcialmente errada a
seu modo de ver. Entretanto, se não me especificas e te dou a informação parcial
que contém parte de uma verdade de muitas verdades, então estou totalmente certa.
Logo, quem está errado?
Louk hesitou. Digeria as palavras com uma lentidão maior do que o esperado.
Estava incerto se deveria discorrer a respeito. Optou pelo silêncio e admiração
embasbacada pela beleza incomparável da esplendorosa elfo que conduzia ao longo
da dança.
— Você só pode ser louco de vir até aqui e ainda me tirar para dançar depois do
que aconteceu em Paragon. Sabes que ainda posso denunciá-lo pelo que fez, não
é?
— Se podes, por que ainda não o fez?
— És deveras petulante!
A música cessou. Os convidados que dançavam aos pares se afastaram
momentaneamente e prorromperam-se em palmas esfuziantes. Louk saudava a
orquestra a um extremo do salão com exagerada vontade, tentando sobrepor as
próprias palmas acima dos demais. Dhara limitava-se a acenos contidos de gratidão
com a cabeça e saudações mais comedidas.
— Petulante ou não, poderia te fazer um convite?
Uma nova música encheu os ares. Os violinos reverberavam suas cordas em uma
valsa ainda mais animada do que a anterior e os pares novamente se uniam a bailar.
— Se disser que não, sei que não deixarás de fazer o convite.
— Sim, tens razão. Poderia me dar a honra de sua presença em um lugar mais
reservado, vossa brilhanteza?
A mente de Dhara afirmava, categoricamente, que tinha de recusar o convite e
ela possuía inúmeros motivos para dizer não. Não era o momento para se ausentar
da presença de nobres convidados, ainda mais na iminência de sua nomeação.
Precisava ser conhecida e reconhecida, lembrada pelos reis e rainhas e tantas
autoridades de Eurodian e do mundo. Necessitava conversar com os líderes dos
reinos que faziam fronteira com Cruisand, Paragon e Vervaz e mostrar que o pilar
de Hegemonia estaria sob um novo comando. Mas o coração balançava. Ignorando
245
os gritos ensurdecedores da voz da razão, deixou-se guiar pelos sussurros intensos
de seus sentimentos. Acompanhou Louk pelo meio da multidão até alcançarem
uma das muitas sacadas contíguas ao Salão de Vidro.
A brisa da noite soprava fria quando ambos se debruçaram no parapeito da
sacada. A vista dos extensos jardins iluminados com dezenas de archotes
incandescentes e da calmaria do lago e de suas águas negras era fascinante, mas não
tanto quanto a beleza do salão em que estavam. A música soava abafada pelas
paredes de vidro e os sons vespertinos eram muito mais altos dali. Podiam ter mais
privacidade e menos incômodo do que num lugar tão público quanto dentro do
palacete. Ainda que insegura, incerta em querer admitir, havia algo em Louk que
atraía Dhara de um jeito incontrolável.
— Parece que tens aversão às plateias, não é mesmo?
— Não me sinto atraído por grandes públicos. A não ser, é claro, que os mesmos
estejam ali por minha causa.
— É notório. Entrementes, vide o modo como fugiste de Paragon quando uma
comitiva veio assisti-lo.
— Olha, não é que você tem humor? Achei que os elfos eram sempre sérios,
falando desse jeito rebuscado e só sorriam quando mandados.
— Há uma infinidade de coisas que não sabes sobre os elfos...
— É possível. Talvez, você devia me explicar... ou melhor, devêsseis explicar-me a
mim.
Dhara riu.
— Pois bem. Então pergunte-me.
— Por que estão sempre brilhando? Digo, estão sempre cheios de joias,
diamantes, adornos reluzentes. Você e suas... suas... como é o nome daquelas outras
elfos atrás de você e que vivem de cabeça baixa? Ajudantes?
Dhara sorriu outra vez. As maçãs do rosto aqueceram. O coração acelerava mais
do que o normal. Nem mesmo quando estava diante de Menfesis, ou dos
intermináveis testes de graduação quando ainda era uma arcana, sentira-se tão
nervosa e irrequieta. Apesar dos mais de cem ciclos de idade, sentia-se de volta à
adolescência.
— Talvez não saibas, contudo, estou em um processo para assumir um posto
avançado na Ordem dos Sacramentadores. Encerro um momento de aprendizado
muito valioso, minha era preparatorem, para consolidar minha liderança sobre o
Octaedro de Hegemonia.
— Era preparatorem? Octaedro de Hegemonia?
Dhara sorriu diante da expressão confusa de Louk.
— Todo elfo sacramentador passa por uma era de preparação para assumir um
posto na hierarquia da Ordem, seja para ser um dos Oito ou um sacramentador,
digamos, menor, auxiliando em algum octaedro. Em suma, cem ciclos de
246
preparação. Aproveitando que as dúvidas ainda não abandonaram seu esgar
confuso, o mundo de Eirin fora dividido em oito grandes regiões. O tipo de
oscilação temporal dominante define cada uma delas: Infortúnio compreende os
reinos de Elstoen e eventos sobre as Águas Solídiras; Fúria abrange toda Aladar;
Trevas envolve as Terras Distantes de Turmis; Serenidade abarca parte de
Eurodian: em suma, reinos como Badorian, Mistral e Sombroceano; Austeridade
inclui seu reino e também Frandar, Líria e Zavir; Perspicácia está ligado a Fahur,
Boralioch, Achmat, Vaelfar e os demais reinos do extremo oeste; Solidão
compreende todo continente de Anlevor. Por fim, mas não menos importante,
Hegemonia, que é a região ou, como comumente chamamos, o octaedro que
envolve Paragon, Cruisand e Vervaz. O octaedro que assumirei em breve.
— Uau. — Louk estava realmente impressionado. — Então quer dizer que você
possui mais de cem ciclos de idade?
— Cento e doze ciclos, mais precisamente.
— Às vezes esqueço quão longevos os elfos podem ser.
— Enfim, assim como um Guardião, estou para assumir muitas
responsabilidades em uma posição de alta complexidade na hierarquia da Ordem.
Por isso, necessito estar em tantos bailes e festas de pessoas importantes, visitando
cidades mágicas e outros lugares de destaque.
— Mas ainda não consigo entender...
— Por que isso não me surpreende?
— Haha — riu Louk, fuzilando a elfo com os olhos. — Enfim, tantos rituais e
mistérios e a magia de vocês está ligada a... eventos climáticos?
— Falas como se fosse algo simplista e insignificante. A magia dos Guardiões
nunca deteria furacões, maremotos, avalanches assoladoras. O poder de você seria
pífio diante de tais eventos. Há muita coisa de nossa religião que a filosofia dos
humanos jamais entenderia.
— Sacramentadores também podem... alterar... o tempo contínuo... digo, o
passado?
Dhara comprimiu os olhos para o guardião. Ponderava se aquele assunto não
estaria indo longe de mais. Imaginava há quanto tempo ele se segurava para fazer
tal pergunta.
— Jamais toque neste assunto. Nunca, sob hipótese alguma, mencione isto para
um sacramentador — respondeu Dhara, ríspida.
— Mas eu...
— Alterar o curso do tempo contínuo é profano. — Dhara cuspia as palavras
com uma tensão carregada na voz. — Um sacrilégio em nossa religião, condenado
com pena máxima. Nunca, jamais, eu repito, pergunte a um sacramentador este
tipo de coisa.
247
— Perdão, eu... — Louk enrubesceu; o constrangimento pela pergunta
equivocada fazia-o querer enfiar a cabeça no chão. — Eu não tinha ideia que este
assunto era tão... delicado.
— Como disse, há muitas coisas que vocês jamais entenderiam.
— Somos realmente muito parecidos, você e eu — crocitou Louk, sorrindo,
tentando mudar de assunto.
Dhara arqueou uma das sobrancelhas e contorceu o cenho, intrigada. Louk
assumiu um esgar contemplativo; mirava o longínquo horizonte pontilhado de
luzes de vários tons e nuances da cidade de Cruisand.
— Ambos somos ‘protetores’.
— Somos?
— Serei o próximo Guardião de Turmis. Lorde Dorner Ottonis está muito velho
e abdicou da cadeira há alguns meses. Fui o indicado por meu pai, o rei, para
assumir seu lugar. Os preparativos para a ascensão ao Círculo dos Cinco estão
sendo feitos...
Os ruídos delicados da leve brisa da noite correndo pelas ameias do castelo
assobiaram de forma assustadora alguns metros abaixo e preencheram o silêncio
mortificante que se instaurou entre ambos nos segundos seguintes. A elfo divagava
se tanta responsabilidade repentina suplantava a alegria do guardião ao seu lado.
Sua voz assumiu um tom lúgubre; a tristeza se apossara de suas feições. Não havia
felicidade em dizer que se tornaria um Guardião. Passara tantos ciclos se
preparando para o ministério, que assumir um Octaedro era como uma dádiva, um
presente recebido no momento propício. A cultura dos elfos era categórica: a
experiência advém com o passar dos ciclos e, juntamente com ela, a sabedoria. E a
sabedoria não traz confusão com as adversidades da vida, quaisquer que sejam elas.
Os olhos azuis-cinzentos de Louk surpreenderam o semblante absorto de Dhara,
que sentiu as bochechas arderem, corando violentamente. Imaginou se o guardião
não tinha reparado, pois ele sorriu novamente, mas um sorriso de encanto, de
fascínio.
— Eu desistiria de tudo por você!
O coração da elfo disparou. Tinha ouvido corretamente?
— Como?
— Me apaixonei por você no instante em que te vi. Eu poderia ter saído voando
de Paragon a hora que eu quisesse e me livrado daqueles guardas. Sou guardião,
manipular o vento é minha especialidade. Mas algo me fazia querer ficar preso a
você, correndo pelos telhados ao seu lado, segurando a sua mão. Não era minha
intenção te encontrar, muitos menos que nossos caminhos se cruzassem. Mas
nossos destinos se tocaram. Desde aquela insana aventura em Paragon, o beijo
antes de fugir, eu não consigo tirar você da minha cabeça e isto não pode ser mera
obra do acaso.
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Dhara não sabia o que dizer, mas seu olhar vidrado indicava que ele esperava uma
resposta. Não queria falar, ou talvez não pudesse, mas o que sabia era que jamais
havia estado assim. As emoções afloravam como jamais acontecera em um arroubo
de sentimentos esquisitos, cuja sabedoria de seus mais de cem ciclos não
conseguiam decifrar. O coração pulsava em um frenesi irrefreável. O desejo
inexplicável que sentira antes retornava com ímpeto. Negava com todas as forças,
contudo ela sabia pelo que ansiava. Desejava Louk. Queria seus lábios, sua
presença, seus abraços. Mas ela tinha consciência de que isto era impossível.
Impensável. Reprovável.
— Louk, nós não podemos ficar juntos. Existe um abismo entre nós e você sabe
disso e...
Um beijo repentino a impediu de prosseguir. Surpreendendo-a, interrompeu sua
frase no meio. Louk a tomou nos braços e pressionou seus lábios nos dela. Beijavaa
intensamente, com um desespero incontido pela boca da elfo. Dhara se entregava
aos beijos do guardião, esquecendo-se do mundo ao seu redor. Queria mais, muito
mais daquele gosto inesquecível. Ainda que nada disso fosse correto, ansiava para
que esse momento ínfimo e inexpressivo na imensidão da malha do tempo fosse
eternizado, para que pudesse reproduzi-lo sempre que quisesse com sua magia e
guardá-lo como recordação de uma lembrança perene de um momento magnífico
e inescrutável.
Além das portas translúcidas do grande Salão de Vidro, onde o baile perdurava
com canções animadas e uma roda de convidados dançando acaloradamente,
alguém observava com atenção os beijos secretos de Louk e Dhara na sacada
externa.
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Capítulo Dezessete
A Batalha Equivocada de Baetrafid
Uma gota de suor rolou das têmporas de Vegor. Grossa e incômoda, ela
embrenhou-se pela espessa sobrancelha e precipitou-se para dentro do olho
esquerdo. Um ardor causticante fez o filho mais velho de Saldivar pressionar os
olhos com força, piscando incansavelmente até que a dor na vista fosse embora e a
visão voltasse ao normal. A vontade era de arrancar o pesado capacete prata com
chifres dourados e curvos como os de um bode e arremessá-lo o mais longe que
conseguisse, de preferência na cabeça do maldito que tivera uma ideia tão idiota. O
desejo era de fugir. Fugir para o mais distante possível. Instigar sua montaria e
cavalgar a esmo no sentido oposto. Correr até que se esgotassem suas forças e a do
animal para um lugar distante o suficiente daquele cenário tenebroso de guerra.
A armadura pesava sobre os ombros. Pinicava terrivelmente em vários pontos e
de tantas formas que tórax, costas e braços coçavam sem parar. Era como se seu
corpo estivesse coberto de açúcar e formigas perambulassem atiçadas por seus
peitos e membros, devorando tudo que era adocicado em seus caminhos. Vegor
arquejava debaixo da couraça e ombreiras de prata. Sorver o ar com tanto peso
sobre os ombros era quase impossível. Praguejava baixinho embora soubesse que
poderia gritar de ódio. Enfurnado sob a colossal armadura e com tantas vozes
crocitando a esmo, seria impossível ouvir um pio sequer.
Maldita hora que fora aceitar esse desafio insano. Para sua própria sorte,
felizmente, não precisaria lutar. Bastava estar à frente de uma tropa, como líder do
batalhão e fazer cara de mau. Os bárbaros não seriam idiotas o suficiente para
ousarem se meter com um exército tão grande e fortemente armado do outro lado
do campo.
Sob uma fresta no capacete, Vegor vislumbrava o cenário desenhado à sua frente.
Os campos de Baetrafid, um dos lugares mais remotos e desinteressantes de
Elstoen ao sul de Poyares, se exibiam diante dele. O relevo era tortuoso e
desconjuntado. Os planaltos, planícies e depressões irregulares se sobrepunham uns
aos outros e uma dezena de rochas calcarias, altas e refletindo a luz do sol, se
amontoavam em pontos isolados. A relva fina de aspecto alaranjado balançava
debilmente de um lado a outro com a força dos ventos, o que para Vegor lhe trazia
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à memória as camisolas e calcinhas encardidas esvoaçando ao vento marítimo sobre
os varais dos bordeis do Porto.
Soltou um risinho idiota pelo canto da boca por causa da lembrança. Divagava
sobre os dias em que a única preocupação era embrenhar-se nos corpos pelados
daquelas prostitutas. O sorriso nostálgico logo desapareceu. A visão aterradora do
porquê estava ali se apresentava além da ignóbil vegetação dançante.
Como formigas amontoadas umas ao lado das outras, o exército inimigo se
posicionava do outro lado, imitando as formações militares dos batalhões de
Poyares. As ondulações provocadas pelo forte calor da manhã distorciam a imagem
da numerosa legião de bárbaros que se enfileirava como um tenebroso paredão.
Mas, afinal, o que diabos eles estavam fazendo? O que é que eles queriam com
tantos homens em pé em formação? Ninguém iria atacar o bando de invasores do
outro lado, estavam ali fazendo cena e intimidando os petulantes guerreiros
selvagens que não se moviam de suas posições.
Vegor praguejou novamente. Um pouco mais alto desta vez.
Uma onda de pavor crescente ia se apoderando dele a cada segundo que passava.
Questionava-se se deveria ter se preparado mais. Treinar era chato. Não tinha a
menor paciência. Disciplina com as matérias militares, para quê? Quem imaginaria
que seu pai abdicaria da vida como Guardião tão cedo, tão novo? Pelo menos,
Vegor pensava, aquele era o voto de confiança de que precisava. Cortara pela raiz
a ideia insana de quebrar as tradições e nomear seu irmão mais novo como
Guardião. Mais do que tudo, Vegor precisava apenas liderar os exércitos de
Poyares, intimidar o quanto pudesse, sustentar uma carranca desafiadora e sair
triunfante dessa missão imbecil que, sem sombra de dúvida, fora um conselho de
Mastenion e Callan. Não conseguia entender porque o pai dava tanto ouvido a esses
dois amigos e suas mirabolantes e geniais ideias suicidas. Havia o fato de terem sido
criados juntos e serem amigos de longa data, mas se o pai não tinha capacidade
suficiente para decidir sozinho, dificilmente conseguiria governar Candorn com
sabedoria.
Atrás de seu cavalo, a pequena legião de guerreiros de Poyares o observava com
intensa expectativa. Com armaduras tão pesadas quanto as dele, flamulavam a
bandeira de seu reino e brandiam espadas e lanças contra os céus, vibrando de
excitação na expectativa de que pudesse haver uma batalha, o que para Vegor estava
completamente fora de questão. Não estava ali para lutar. Sob hipótese alguma
queria se levantar em armas contra um exército de bárbaros, ainda mais sabendo
quão carniceiros e hostis eles eram. As histórias aterradoras de invasões e mortes
brutais no extremo-Sul permeavam os burburinhos em todas as cidades de Candorn
e Vegor estremecia só de ouvir. Girando o pescoço o máximo que o capacete
permitia, o filho mais velho de Saldivar procurava alguém que ainda não tinha
avistado: Lorde Brenrar e seu batalhão. Esperava ver o rei por perto. Queria
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cumprimentá-lo, fazer uma média. Começar a socializar com os outros soberanos
do continente e se apresentar como o novo Guardião era necessário para ganhar
prestígio e respeito com as demais nações.
Considerando a ideia de se exibir um pouco à frente das tropas, fazendo o cavalo
trotar de um lado a outro, Vegor observou outra legião de soldados se aproximar,
em um batalhão maior que o seu. Posicionaram-se numa plataforma a noroeste de
onde estava. A esperança faiscou em seu coração. O rei de Poyares e seu exército,
finalmente, chegara para reforçar as tropas e amedrontar ainda mais o inimigo.
Montados em cavalos e embalados por armaduras e capacetes, um gigantesco
estandarte adejava com a força dos ventos. Um grande Corcel Alado, verde e prata,
estampava a bandeira.
Vegor inclinou a cabeça e apurou os olhos. Outras bandeiras menores, com o
brasão da Virtuosa Candorn se agitavam contra os céus. Seu pai viera ou seria
Mastenion ou Callan? Para ajudar ou apenas observar sua performance?
Aparvalhado, esquadrinhou o cavalo negro de crina longa e escarlate e o homem
montado sobre ele, assumindo a dianteira do batalhão. Era magro e esguio de mais
para ser seu pai. Faltava-lhe a barriga proeminente e as costas arqueadas pelo peso
dos ciclos.
O líder do exército a noroeste retirou o capacete, revelando o rosto.
Embasbacado, Vegor perdeu o fôlego e quase caiu do cavalo ao ver de quem se
tratava: era Rudi.
Não conseguia, ou não queria, acreditar.
Não era um voto de confiança, um desafio para provar seu valor, a oportunidade
de conquistar a confiança de seu pai e dos demais reinos: era um teste. A prova que
decidiria quem era o melhor.
A débil descrença ia se tornando pouco a pouco uma raiva crescente no fundo
do peito, como uma chama ardorosa alimentada por novas brasas. Vegor ajustou o
capacete sobre a cabeça e empertigou-se no cavalo. Nos dedos retesados agarrados
às tiras de couro, um ódio avassalador queimava e o consumia. Estufou o peito e
solicitou a um soldado que lhe trouxesse um berrante. Aguardando a chegada do
instrumento, desembainhou a espada que exterminaria legiões de bárbaros,
obstinado. Se era guerra o que eles queriam, era guerra que teriam. Sairia dali como
o homem que obliterou os selvagens invasores de seu continente de uma vez por
todas, terminaria essa batalha reconhecido por todos como o definitivo Guardião
de Elstoen. Este dia entraria para a história.
Uma nota grave e longa ressoou pelos ares acalorados do campo, pegando a todos
de surpresa. Rédeas balançaram; estalaram de chofre com estrépito sobre o couro
dos cavalos de guerra. Centenas de patas fugazes se movimentaram; saíam da
inércia rumo a um destino incerto. Trotes pressurosos ecoaram em uma corrida
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acirrada. Marcavam o terreno irregular com ferraduras pesadas. Arrancavam relva
e levantavam poeira. O vozerio das legiões de soldados com espadas e lanças
apontadas para cima reboou pela atmosfera cálida da manhã. Hordas de guerreiros
bárbaros do outro lado ouviram o reboar do chifre e avançaram pelas terras com
avidez. Um banho de sangue estava prestes a acontecer.
Sem compreender, Rudi imitou os soldados sob seu comando que avançaram
pelos campos e instigou as rédeas de sua montaria. Saltou da plataforma rochosa
em que estava posicionado rumo às planícies tortuosas e depressões relvadas do
vale de Baetrafid. O capacete de prata com duas asas douradas e sinuosas nas
laterais chacoalhava sobre sua cabeça. Estava folgado e atrapalhava sua visão. Não
recebera instruções para lutar. Fora incumbido de liderar uma tropa para patrulhar
o limiar do vale, uma estratégia de intimidação, uma escolta dos campos de
Baetrafid como uma forma de demonstrar aos inimigos que os exércitos de Poyares
se opunham ao avanço dos bárbaros. Mas alguém tocara um berrante. Um chifre
ressoado era sinal de um ataque iminente, um embate corporal entre tropas rivais.
O sinal para a batalha fora dado. Isso não o fez recuar. Havia muito tempo, queria
provar seu valor como guerreiro. Galgava posições sobre o vale, desviando das
rochas chispantes e pedregulhos no caminho. Os muitos treinamentos nos
acampamentos de soldados de Candorn finalmente seriam colocados à prova.
Vislumbrava sua glória no horizonte. As armadas de bárbaros diminuíam a
distância, correndo como demônios sedentos de sangue, para onde o embate seria
contundente.
Vegor fustigava seu cavalo. O pai ficaria feliz quando retornasse à Candorn tendo
derrotado os inimigos que ele jamais conseguiu destruir. Era o dia de seu triunfo.
O dia de tornar-se uma lenda. Os dedos dormentes arraigados à espada, sempre
com o braço em riste, apontando a arma para frente como quem segura um dardo,
prestes a arremessá-lo. Os olhos ora vislumbrando o caminho inveterado à diante,
ora acompanhando, encolerizado, cada movimento de seu irmão mais novo.
Saltaram por novas plataformas, esquivaram-se de uma dúzia de pedras
gigantescas que atravancavam o caminho e dispararam por outras depressões e
planícies cobertas de grama alaranjada.
Uma tropa de cavaleiros emparelhou-se com Vegor. Excitados com a iminência
do combate, imitavam o gesto do guardião: erguiam a espada acima da cabeça dos
cavalos, estrondando gritos de guerra pelos ares. O filho mais velho de Saldivar
tentava observar Rudi, por entre os soldados e cavalos que corriam ao seu lado,
mas em meio à aglomeração ouriçada de sua legião, não conseguia mais identificálo.
Os dois pelotões tornaram-se um só. Rumavam, emparelhados e obstinados,
para o foco do confronto com as tropas inimigas.
— À Poyares, meu amor em vida...
— E minha honra na morte!
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Os berros tornaram-se ensurdecedores. O som incisivo das patas dos cavalos
marcando a terra relvada, aproximando-se do exato ponto em que a batalha seria
renhida misturava-se aos brados exaltados de jovens soldados sedentos por uma
boa batalha.
O chifre ressoava pelos campos mais uma vez.
Rudi não conseguia compreender. A agitação o impelia a seguir adiante e manter
a postura de oficial responsável por sua pequena tropa. Alguém dera o sinal. As
tropas inimigas iniciaram um ataque. Como líder do pelotão, viu sua montaria
acompanhar as demais em direção ao exército adversário.
Gritos ensandecidos se acirraram e os galopes perturbadores e em máxima
velocidade, pisoteando a grama, estalavam sobre as terras e pedras do vale. A
distância entre bárbaros e poyarianos diminuía mais e mais a cada segundo.
Vislumbrava os guerreiros adversários correndo ao lado de fileiras de cavaleiros
bárbaros, agarrados a lanças, espadas, machados e foices.
O epicentro do embate se apresentava.
O filho mais novo de Saldivar desembainhou a espada da aljava que carregava
sobre as costas por instinto. Um longo silvo, agudo e metálico, vibrou em seus
ouvidos. A lâmina curva chocou-se com estrépito contra um machado de dois
gumes. A violência do golpe arremessou o jovem guardião de seu cavalo. Caiu sobre
a relva do vale com um baque surdo. Rolou pelo campo uma dúzia de vezes até
conseguir fincar a espada sobre o chão e finalmente parar.
Desorientado, com uma dor pungente no cocuruto e uma infinidade de arranhões
e escoriações pelo corpo, Rudi usou sua lâmina como apoio para se pôr de pé.
Acabrunhado, a visão ainda estava turva e seus músculos doíam por causa da queda.
Figuras retorcidas de soldados se digladiavam ao redor. Sangue jorrava sobre a
grama. Cabeças, braços e pernas decepados se espalhavam pelo chão. Corpos
moribundos, encharcados por sangue, enfurnados em pesadas armaduras metálicas
jaziam à luz do sol.
Enxergando silhuetas disformes, ouvindo brados de dor e ondas de fúria, o caçula
de Saldivar brandiu a espada por instinto no exato momento em que a sombra de
um machado se assomou contra ele. A lâmina rasgou a pele de alguém e, no
segundo seguinte, ele a cravou sobre o peito de outro soldado inimigo que surgiu
ao seu lado.
Sangue espirrou contra seu capacete. Jorrou para o rosto, escorreu por seu nariz
e empapou sua cota de malha. Dois corpos tombaram sem vida com os golpes de
sua lâmina.
Uma figura colossal caminhava em sua direção.
O tilintar das espadas ao redor ressoava em seus ouvidos. A visão ficava menos
turva. Um homem de quase dois metros de altura ia crescendo para o lugar onde
254
estava. Usava um capacete largo, quase como uma redoma escarlate e cintilante,
com espaço para pelo menos mais duas cabeças. No cume do capacete, um único
chifre curvo, de ouro maciço, refletia a luz do sol. Era como a cabeça de um
rinoceronte. Um rinoceronte vermelho e dourado. Os braços musculosos do
bárbaro bem como seu tórax estavam de fora. Brancos como leite, eram cobertos
de pequenas sardas e pelos avermelhados. Pequenas cicatrizes marcavam os bíceps
e antebraços. Devia ser um experiente guerreiro: segurava o machado de dois
gumes com determinação e caminhava a passos largos, porém lentos. O olhar
frívolo e assassino estava focado. A cabeça de Rudi rolando sobre a grama era o
prêmio que desejava.
O filho mais novo de Saldivar deu uma cambalhota para trás. A lâmina do
machado zuniu alto pelos ares e fincou-se sobre a terra, onde antes Rudi estava
parado.
O bárbaro puxou o machado com ferocidade e agitou os monstruosos braços
com rapidez. Rudi arquejou. Girando nos calcanhares o mais depressa que pode, o
jovem guardião segurou a espada à frente do corpo com as duas mãos, cara a cara
com o inimigo.
O homem de braços pelados correu para o alvo. Ergueu o machado outra vez,
pronto para desferir o golpe. Rudi rolou para a direita numa fração de segundos e
logo após para a esquerda. Novamente, para a direita. O bárbaro aplicou uma
sequência de investidas rápidas. Tufos de relva cortados e porções de terra voaram
do chão. Rudi sabia que era impossível se defender para sempre. Além de forte e
grandalhão, o inimigo era rápido e astuto. A batalha acontecia ao redor. Poderia se
esquivar dos golpes daquele bárbaro por mais algum tempo, mas teria uma morte
inevitável se um segundo inimigo o golpeasse inesperadamente. Do lugar onde
estava, a impressão era de que os bárbaros estavam obtendo vantagem em cima dos
soldados sob seu comando. Aparentavam ser mais fortes, mais ágeis e experientes
em combate.
Brandindo a espada, Rudi golpeou o bárbaro com chifres de rinoceronte. O cabo
do machado interrompeu o ataque da lâmina antes que ela acertasse seu braço
direito. Agitando a arma na horizontal, o bárbaro desferiu um novo intento mortal.
Rudi pulou para trás por instinto. A ponta do machado abriu uma extensa fissura
sobre a armadura do jovem guardião que sentiu uma leve pontada sobre o peito.
Ofegante, Rudi tentava, sem sucesso, observar alguma hemorragia sobre a ferida.
Desvencilhando-se de outro ataque que passou de raspão por sua cabeça, o filho
mais novo de Saldivar agitou os dedos e uma poderosa rajada de vento elemental
derrubou o bárbaro. O homem de capacete escarlate caiu de costas sobre o campo,
desorientado. O machado zuniu pelos ares e aterrissou em algum ponto do calor
da batalha. Rudi ergueu sua espada e cravou-a sobre o peito aberto de seu inimigo.
Sangue jorrou para o alto, do peito e dos lábios do homem.
255
Rudi empurrou ainda mais a espada, até sentir a ponta da lâmina encontrar o chão
de terra. Os olhos cinzentos arregalaram-se para o jovem guardião. Num último
suspiro, o homem “rinoceronte” morreu.
O confronto acirrava-se a cada instante.
Soldados de Poyares perdiam as vidas em batalha. Sangue quente marcava a terra
como rubras cascatas inundando o vale. Rudi arrancou o capacete da cabeça e
vislumbrou o entorno. Os rostos na multidão de guerreiros eram variados.
Armaduras, capacetes e armas de variados tons e formas: nada no lado inimigo
tinha um padrão definido. Os guerreiros de Poyares, contudo, se destacavam no
campo de batalha, com as armaduras de bronze e a Serpente Astuta, símbolo do
reino, entalhada em ouro sobre as couraças e capacetes. Lutavam de forma
comedida e se esforçavam por manter a estratégia de bloquear o avanço do inimigo.
O terror era a expressão máxima e estampava o rosto da maioria. Eles vacilavam e
eram pressionados pelos exércitos inimigos.
Os bárbaros obtinham vantagem por não terem um padrão definido. Isso
confundia a mente de Rudi que já não sabia como conter a fúria implacável de seus
adversários.
Jamais havia visto um bárbaro. Durante a infância, ouvira todas as histórias
contadas pelos tios e por seu pai, a respeito dos invasores que aportaram ao sul de
Elstoen, vindo das ilhas mais remotas de Argúrius. De várias tribos e etnias,
estabeleceram alianças para se tornarem mais fortes em seus embates. Indispostos
a compartilhar, o desejo de conquistar as terras alheias era uma crescente
assustadora que há muito perturbava a paz no continente. No campo de batalha,
eram letais. Homens altos e baixos. Brancos, negros, morenos. Barbudos e carecas.
Com enormes machados, maças e espadas. Vestiam armaduras rudimentares.
Avançavam imbatíveis sobre os campos como demônios aterradores. Sem medo
da morte. Despedaçavam os exércitos poyarianos com uma destreza invencível.
Vislumbrando a iminente derrota, Rudi avistou algo que fez o coração disparar.
O combate corpo a corpo sobre os campos de Baetrafid era, na verdade, um
massacre sangrento. Centenas de homens perdiam suas vidas sob a lâmina dos
machados e espadas inimigas. Os exércitos bárbaros prosseguiam irrefreáveis. Um
rastro de corpos sem vida ficava para trás. Jaziam à luz ardente do sol sobre a relva
tingida de sangue coagulando.
Vegor se escorava atrás de uma grande rocha. O esconderijo em meio ao mar de
corpos era um refúgio para a chacina que presenciara, a poucos metros de onde
estava naquele instante. O coração palpitava em batidas aceleradas. O corpo tremia
dos pés à cabeça. O arrependimento por ter tocado aquele maldito chifre o
consumia. Uma dor pungente nas costelas o fazia arquejar, curvando-se levemente
para frente. Refazia mentalmente os últimos instantes até aquele momento.
256
Rudi sumira de seu campo de visão quando intimou um soldado a assoprar o
chifre e dar início ao chamado para a batalha. O mar de soldados cavalgando para
o cerne do confronto engolfara a última imagem do irmão mais novo: as mãos
firmes nas rédeas de sua montaria, o olhar atento ao embate próximo. Num ligeiro
movimento, os olhos de Vegor foram rápidos o suficiente para enxergar uma lança
cortando os ares, arremessada em sua direção.
Atirou-se em direção ao chão por puro instinto. Rolou várias vezes pela grama.
A cabeça e os braços batiam-se debilmente contra a grama e os pedregulhos no
caminho. O capacete protegera a cabeça de uma lesão maior, mas a armadura ficou
em frangalhos. Uma dor aguda fez Vegor prostrar-se. Uma ou duas costelas
fraturadas. No intenso cenário de guerra ao redor, não havia tempo para pensar em
ossos quebrados. Sobreviver era seu desejo mais ardente.
Ergueu-se com dificuldade, escoltado por quatro soldados poyarianos que
também temiam pela vida. Inexperientes em batalhas, brandiam suas espadas contra
os bárbaros que se assomavam de um modo débil e inocente. Davam-lhe cobertura
do jeito que podiam até que conseguisse se recuperar do golpe inesperado.
Uma flecha voou de algum lugar.
Certeira, atingiu o pescoço de um dos soldados da escolta, atravessando sua
traqueia. Uma segunda flecha cortou os ares. Cravou-se, explodindo em sangue,
sobre o olho direito de outro soldado. Vegor ficou atarantado. Ergueu a espada a
esmo, acabrunhado com a dor lancinante. Esquadrinhou ao redor quem era o
arqueiro de mira tão apurada que dizimava seu pelotão.
Novas flechas surgiram. Mais três guerreiros tombaram ao seu lado, mortos ou
uivando de dor.
Uma lâmina afiada zuniu. Estraçalhou o ombro de um soldado atrás de Vegor. O
guardião rodopiou onde estava, combalido, segurando a lateral do estômago.
Com longos cabelos dourados, um bárbaro de pele avermelhada o encarou. Os
olhos eram verdes como o oceano no verão de Candorn e o queixo quadrado, com
um fino cavanhaque loiro. Não usava armaduras. O tórax estava descoberto e
salpicado com o sangue de suas vítimas. Uma pele de lobo branco com grandes
manchas rubras e reluzentes adornava cada lado de seu pescoço. Um arco de
madeira de acácia cruzava suas costas.
O guerreiro com pele de lobo puxou a espada do ombro do soldado e o degolou.
Vegor assistiu à cena, atônito. Sangue jorrou para cima e para frente. A cabeça do
homem rolou sobre o chão.
Sem pestanejar, pôs-se a correr. A dor em seus flancos era atroadora, mas o desejo
de permanecer vivo suplantava qualquer aflição.
Agachando-se para não ser alvo de flechas, atirou-se para o primeiro abrigo que
encontrou: uma enorme rocha atravancando o campo. A última visão antes de
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desabar atrás da pedra, era do guerreiro de olhos verdes terminando de obliterar
sua escolta.
Vegor não queria olhar. O medo daqueles olhos aterradores fazia-o tremer como
uma palmeira em uma impetuosa ventania. Mas permanecer escondido ali era
suicídio. Ele logo terminaria de executar os homens de seu pelotão e viria trás dele.
Precisava encontrar um jeito de fugir ou de arrumar um novo abrigo que o
mantivesse vivo.
Uma mão apareceu de repente.
Os dedos largos agarraram seu pescoço e o ergueram no ar. Vegor estava
sufocando. A mão do bárbaro apertava sua garganta como se quisesse arrancá-la
do lugar. O oxigênio se esvaía depressa. A luz do dia ia desaparecendo e escurecia
lentamente.
De chofre, despencou.
Sorveu o ar com tanta intensidade que o peito doeu.
Um estrondo como o de um furacão retumbou nos ouvidos de Vegor. Gritos
ensurdecedores se uniram ao barulho de uma ventania poderosa.
O que estava acontecendo? Era isso que havia do outro lado da vida?
Vegor abriu os olhos.
A cabeça doía. Estirado de barriga para cima sobre o campo, a visão ainda estava
turva.
Entre as diversas silhuetas que conseguiu distinguir ao redor, havia a de um
homem. Era negro, alto e ligeiramente esgalgado. Usava uma armadura prata. A
mão direita em riste descrevia círculos contra o céu, acima de sua cabeça. Ao
derredor, um tufão retumbante continha o avanço dos bárbaros, criando uma
barreira que separava o exército de Poyares dos batalhões inimigos.
A visão de Vegor voltou a normal; a cabeça parou de doer.
O homem impedindo a ascensão dos bárbaros com seu poder era Rudi. Os
guerreiros de Poyares vibravam, comemoravam aos berros, pulavam extasiados.
Brandiam as espadas para o alto, aclamando o guardião pela vitória.
Prostrado sobre o chão, envergonhado e tentando se levantar, Vegor vislumbrou
o outro lado através de uma nesga na ventania mágica que o circundava: o bárbaro
de olhos verdes e impiedosos o observava atentamente.
258
Capítulo Dezoito
Pelo Trono de Snartria
Levantando uma das pernas para cima, empinou o nariz e se esforçou para manter
uma convincente expressão petulante ao encarar os convidados que se espalhavam
sobre o salão. Petr estava muito à vontade. Nesse dia, muito mais do que jamais
estivera. Mudando de posição, erguendo a perna esquerda, encaixou o pé sobre o
assento e apoiou o braço no joelho.
Não estava nem aí se aquela não era uma atitude formal para a ocasião. Postavase
de um modo insolente e desleixado sobre o Trono Real. Recordando o avô,
imaginava como ele reagiria se o visse assim. Ele jamais aprovaria tal
comportamento. Reclamaria de sua postura, dos modos nada cordiais, ainda mais
na frente de uma plateia tão ilustre ou diante dos reclames certeiros que viriam da
megera abominável a quem ele era obrigado a chamar de avó. Entretanto, no apagar
das luzes, quando o silêncio imperasse sobre o castelo vazio e todos fossem
embora, sem que houvesse uma viva alma para reprovar sua conduta, os dois ririam
de tudo até cansarem, até que a barriga doesse de tantas gargalhadas e dormiriam
felizes, com as bochechas retesadas de tanto rirem.
A multidão de convidados se espalhava pelo salão. Apreciavam o banquete e
admiravam a suntuosidade do Palácio de Ônix muito bem arrumado para aquele
momento ímpar. Petr encarava os convidados que transitavam de um lado a outro
com seu olhar que se esforçava para parecer presunçoso — e realmente estava
dando tudo de si para que os outros comentassem sobre sua atitude ousada no
púlpito montado para abrigar o trono no ponto de maior destaque do lugar.
Resolvera que não serviria o vinho sob hipótese alguma, até que todos os
convidados o tivessem visto sobre o trono de um modo tão desbocado.
Entrementes, havia um porquê estratégico de sua parte. Queria todos os presentes
sóbrios e em perfeito juízo mental nessa noite de gala mais que especial observando
que o trono não estava vazio. Assumindo ou não como rei, deixava bem claro a
todos quem era que mandava em Snartria. E ninguém, nem mesmo a louca de sua
avó ou qualquer outro no reino, poderia ameaçar sua liderança.
Mantendo o esgar indelicado que provocava leves fisgadas nas maçãs enrijecidas
do rosto, Petr lançou olhares de esguelha para cada uma de suas mãos e o que havia
259
nelas — o que também fazia parte de seu espetáculo premeditado. Na mão
esquerda, incólume e cintilante, repousava a coroa de ouro e incrustada de rubis
usada pelo homem mais sábio, justo e amável que as serenas terras de Snartria
jamais tornariam a ver. Um símbolo de poder tão suntuoso e frágil, mas alvo de
uma cobiça implacável. Arraigado aos dedos da mão direita, o cetro forjado em
diamante élfico e selado em puro ankur das Minas Vaelfarianas reluzia à luz dos
candelabros. Era esplêndido. Atraía olhares aos montes e a admiração daqueles que
passavam ao redor do trono. Na ponta do cetro, uma harpia translúcida estufava o
peito e empinava seu longo bico de uma forma quase tão atrevida quanto a de Petr.
A ave símbolo do reino fora talhada à mão em detalhes tão minuciosos que
arrebatava o espírito de qualquer admirador. O artefato fora um presente da Forja
Élfica a Hanna Zanotchka, sua mãe, a única mulher a liderar o Círculo dos Cinco.
Ambos objetos teriam novos donos então e Petr estava louco para poder ver a
reação de todos quando anunciasse sua escolha.
O grande salão de festas do palácio estava apinhado. As pessoas mais ilustres e
importantes de toda Anlevor e até de outros continentes atenderam ao convite para
este dia mais do que especial. Decidira que era hora de liberar o vinho. Cumprira
seu objetivo e acreditava que todos o tinham vislumbrado tão à vontade sobre o
trono. Era hora de deixar que seus convidados se embebedassem. Isso não faria
tanta diferença quando anunciasse sua decisão. De qualquer forma, eles ficariam
chocados.
O pescoço latejava de dor em ter que suportar o nariz em pé que se forçara
manter por tanto tempo. Apesar do formigamento nos músculos das costas, até
que fora divertido bancar o petulante por alguns momentos e ver as caretas que
iam de assustadas a reprovadoras. Algumas satisfeitas, como se soubessem que o
que ele fazia era um mero teatro proposital. Muitas com um sorrisinho insípido
estampando suas carrancas aduladoras. Desses em particular, Petr tinha um pouco
de asco.
Esquecendo o misto de rostos de pessoas que, em sua grande maioria, só via em
festas da realeza e a eclética paleta de expressões caricatas ao seu redor, Petr
devaneava, como tantas outras dezenas de vezes desde que retornara de Gelor-
Torine, com os eventos misteriosos que ocorreram ao norte do reino congelado e
nas inacreditáveis coisas que seus olhos vislumbraram enquanto tentavam
sobreviver aos temíveis wargs invernais. A intensa nevasca que se precipitava dos
céus era violenta e perturbadora, mas não o suficiente para pôr em xeque o que
acreditava ter presenciado. Os olhos não o traíram naquele platô congelado.
Embora jurasse não ser possível e ficar vários dias encucado com o que vira,
conjecturando dezenas, centenas de explicações possíveis e plausíveis, nem mesmo
a maior e mais mirabolante teoria o convencia do contrário: Conrod não usou sua
magia de alquimestre do vento para erguer aqueles lobos terríveis; o velho de
260
cabelos brancos e rastafári parou o tempo e tudo ao redor para que pudessem fugir.
Não sabia quem era Conrod, mas, naquele dia, quando retornaram das montanhas
e os soldados de Lorde Marvan fugiram para o palácio atordoados com o ataque
dos lobos gigantes, o velho mágico disse que Petr precisava ir embora
urgentemente.
— Embora? — retrucou Petr; a cabeça doía só de tentar entender o que foi que
aconteceu nas geleiras: o tempo estagnara, uma luz fluorescente surgira no lado
oculto da montanha. — Não posso! Meu pai está lá em cima, você não percebe?
— Petr, precisamos ir embora. Se esses wargs descerem, vão devastar tudo que...
— Chermont, basta! — Petr não conseguia raciocinar. O transtorno consumia
sua mente.
— Siga as orientações de seu amigo e escudeiro. Vá embora, enquanto ainda é
tempo...
— Há uma chance mínima, quase remota, de que meu pai esteja vivo naquele
lugar — crocitava Petr, apontando com tanta efusividade que os dedos pareciam
prestes a saltar da mão; algo quente brotava em seus olhos e a voz embargava a
cada nova palavra — Não é possível que vocês não tenham visto. A luz. A luz
verde. Havia uma luz lá...
— Luz? — inquiriu Chermont, confuso e amedrontado, lançando olhares para o
paredão branco formado pela avalanche que quase os atingira. Não havia nada além
de uma massa branca e sem vida de pura neve.
Conrod abaixou-se e encarou Petr. As lágrimas quentes escorriam pelas
bochechas rosadas do menino naquele momento.
— Há um propósito para tudo, Petr. Bem como, há um tempo para todas as
coisas. Atente-se às minhas palavras, o tempo agora é de se ausentar. Vá embora.
Volte para casa, pois o tempo não deixará você sem respostas.
Confuso e contrariado, Petr sentiu a mão de Chermont puxando-o para cima do
dorso de um artiro. Ele não resistiu. Ambos cavalgaram para longe do palácio de
Lorde Marvan. A última visão daquele obscuro momento era a da figura misteriosa
de Conrod Baash em meio aos ventos impetuosos e cinzentos da nevasca trazida
pelas Montanhas Congeladas, firme em seu cetro reluzente. Não tinha ideia de
quem ele era, mas estava convicto de uma coisa: ele sabia muito mais do que aquilo
que revelara.
Vez ou outra, ainda assentado sobre o trono do Palácio de Ônix, mas rindo-se
satisfeito naquele momento, Petr lembrava que toda essa presepada a que se
prestava o papel não fora uma ideia insana de ninguém, nem mesmo de Chermont
que adorava pregar peças nos demais empregados do palácio. Estava orgulhoso em
poder dizer que articulara tudo isto sozinho e obrigou-se a ficar calado sobre seus
261
planos, fazendo tudo às escondidas para que ninguém suspeitasse. Não comunicara
sua decisão a ninguém, nem mesmo ao velho amigo e mordomo do palácio.
Acariciando a coroa e o cetro em cada lado do trono, Petr analisava se a pessoa a
quem ele queria irritar com sua mirabolante encenação o estava observando. E o
que ele mais queria era ter certeza de que o olhar dela encontraria seu olhar de
sarcasmo e ironia. Passou a ter um apreço em torturá-la psicologicamente —
algumas vezes ele se perguntava se não era doentio demais. Gostava de vê-la
atordoada e ensandecida sem descobrir que decisão havia tomado. Embora
soubesse que o avô estaria decepcionado com essa atitude, tinha convicção de que
ele riria de tudo isso também. Vasculhando em meio ao mar de cabeças virando
taças e mais taças de vinho, Petr sondava em que lugar do imenso salão estaria
enfurnada sua avó Astúrias.
Era fato que nenhum dos convidados naquele lugar tinha algum apreço por ela.
Durante todos esses ciclos em que fora rainha, apenas a aturavam por causa do rei.
Assim como também era correto afirmar que a rainha Astúrias detestava cento e
vinte por cento das pessoas ali presentes naquela cerimônia. A antipatia pela velha
rainha e sua impopularidade em Snartria e nos vinte e cinco condados era tão
grande que ela ganhara um apelido nada agradável: Megera Real. Até os dias atuais
não se sabe se o “Real” do apelido deve ser escrito com “R” maiúsculo, indicando
sua majestosa antipatia ou com “R” minúsculo, atestando que ela era uma autêntica
megera. De qualquer forma, a maioria concordava em uma coisa: ambas formas
eram corretas quando se tratava de Astúrias.
Vasculhando pela multidão que se acotovelava pelo salão, jurava que tinha visto
sua sombra tresloucada e cheia de pompas perambulando por algum lugar dali.
Avistara Lorde Marvan comendo e bebendo como um porco esfomeado. Rei Trev
degustava alguma coisa do banquete e mantinha-se muito comedido, porém à
vontade, ao lado de seus ministros e alguns amigos que tinha em Snartria. Lady
Marini também estava por ali em algum lugar. Jurava ter visto seus longos cabelos
loiros agitando-se em meio à multidão. Vislumbrou uma figura corpulenta, com
bochechas que sempre o lembravam os grandes bolos fofos e redondos de abacaxi
servidos ao café da manhã. Reconheceu seu primo Wayne Wallensig II, o filho mais
velho de seu tio-avô Wayne de imediato. Os cabelos loiros escorridos que
atrapalhavam sua visão eram sua marca registrada desde a adolescência. Mesmo que
o contato com ele fosse raro, as memórias de sua relação com o primo eram
péssimas. Detestava as brincadeiras que fazia e mais ainda seu jeito bonachão e
adulador toda vez que vinha ao palácio. Possuía uma pré-disposição em correr para
bajular alguém de mais alta nobreza, como o rei, os condes ou mesmo os
conselheiros reais. Era estúpido e preguiçoso. Adorava ser servido e esbanjar as
comidas do palácio. Completamente diferente de Warren, seu irmão mais novo.
262
Jamais cogitaria dizer que Wayne II era o primogênito se Petr não soubesse que
Warren era o irmão mais novo.
Petr tinha uma leve sensação de que a natureza cometera um grave erro no caso
dos dois irmãos e que Warren é quem deveria ser o mais velho. Ao contrário do
irmão, Warren era centrado, responsável, coisa que Wayne II jamais foi. Com
cabelos loiros escorridos iguais aos do irmão, ele preferia não os repartir ao meio;
adorava amarrá-los em um coque, o que virou uma espécie de sinal característico
seu. Nas raríssimas vezes em que Warren deixou o longínquo condado de Landersig
para visitar a capital, sempre fora muito recatado e moderado. Evitava importunar
os empregados do palácio e preferia manter-se taciturno e contemplativo, como se
não desejasse estar ali ou como se as regalias do castelo fossem um absurdo
exagerado de mais para ele; algo que o fazia parecer muito com seu outro primo,
Roben. Casado, tomou a mão de Lady Lanisi ainda muito jovem. Esbelta, era
centrada e cordata como o marido. Uma verdadeira dama, dizia-se sobre ela que
poderia ser o que quisesse, inclusive rainha se algum pretendente herdeiro do trono
a tomasse como esposa. Contudo, caiu de amores pelo filho mais novo de Wayne
e, mesmo que o pai, o caricato e velho Lorde Jonnes Gelvor Zanotchka e a mãe, a
agitada, porém dócil Lady Naelise Ottonis virassem os narizes para esse
relacionamento, não tinham como proibir o amor de ambos. Atualmente, apesar
de ainda manterem um pé atrás com o pai do genro, aprenderam a amar Warren e
aproveitavam os momentos livres que tinha cuidando do netinho, Ian, e educando
a irmã mais nova de Lanisi.
Petr agitou-se de súbito sobre o trono.
O coração deu piruetas dentro do peito pela mera lembrança da irmã de Lanisi.
Os olhos afobados se arregalaram para os quatro cantos do salão; procurou com
desespero irrefreável por aquela que considerava a garota mais linda que existia e
que viria a existir na face de Eirin: Lana Ottonis. Lana era a irmã caçula de Lanisi.
Ao contrário da irmã mais velha, Lana herdara uma beleza que não era costumeira
aos Ottonis e excepcional nos Zanotchka. A pele aveludada e de tom leitoso —
esse, o mesmo da irmã — lembrava o toque de seda de uma bela orquídea, os
longos cabelos negros eram encaracolados nas pontas e o olhar, ah, era tão
encantador que Petr não fazia mais ideia de quantas vezes se perdera naquela beleza
arrebatadora. Não precisava falar nada — e de fato, era de pouca fala, porque seus
pais a ensinavam assim, mas bastava ela estar no recinto para que o universo ao
redor fosse um mero detalhe e ele caísse encantado por sua beleza e presença. Era
uma pena que nas vezes em que estava em sua companhia, a timidez e falta de
assunto fosse um lastimável e monstruoso elefante branco entre ambos. Mas ela
corava e era toda sorrisos quando estava com ele.
Deixando de procurar pela prima por quem nutria uma paixonite secreta, Petr
lembrou-se de algo. Uma coisa que, lá no fundo, o incomodava profundamente,
263
embora relutasse contra os sentimentos que afloravam nas vezes em que pensava
sobre isto. Outra vez, varreu todo o lugar com olhares apurados. Ele não estava lá.
De todas as cartas que escreveu, convidando um por um dos presentes na
cerimônia que pegou a todos de surpresa, a dele fora a primeira. Rememorava
quando se assentou com a pena e o tinteiro na mão para escrever seu convite. Não
sabia por onde começar. Passou horas a fio encarando o pedaço de papel, apertando
o bico da pena molhada com tinta escura. Os olhos se perderam sobre a pena
dourada e dela para a escrivaninha e de volta para a pena e em seguida para a janela
e o horizonte em um fulgurante pôr do sol. A noite irrompeu sem pudor e se
converteu em madrugada enquanto ele não conseguia saber como convidar seu avô
materno. Para falar a verdade, já nem se recordava muito bem de seu rosto. Sempre
fora ausente, jamais se importou com o neto, esquecido no continente além das
Águas de Argúrius. Órfão de pai, mãe e de avô paterno. Quando o sol brotava
novamente lá nos confins da abóbada celeste, decidiu que seria apenas cordial.
Direto. Sucinto. Não queria demonstrar desespero e muito menos fraqueza, uma
vez que ele sempre o desprezou. Para Hamm Louis Zanotchka, o convite era
lacônico: informava sobre a nomeação do próximo soberano da Suntuosa Snartria
e daquele que viria a ser o futuro Guardião de Anlevor. Nada de emoções. Nada de
sentimentos.
E ele não estava lá. Esquadrinhou a confusão de rostos conhecidos à procura de
alguma figura ruiva e de traços marcantes como os demais Zanotchka, mas não
avistou ninguém além dos que conhecia. No lugar do avô, seus olhos encontraram
outro ruivo. De expressão bondosa, sorria para ele. Roben, seu primo, o observava
de longe. Acima dos trejeitos sisudos e até de poucos amigos, ele era alguém em
que sempre poderia confiar cegamente. Havia momentos em que Petr até esquecia
que o primo Roben também era um Zanotchka, filho de Roben Louis Zanotchka
II, o irmão mais velho — e falecido — de Hamm. Ainda que a negativa do primo
em assumir como regente o decepcionasse, sua sugestão na melancólica sala de
estar em Graehamm fez Petr enxergar uma luz e ter uma excelente ideia. Não
conseguia ter raiva dele. Compreendia suas escolhas. Se estivesse bem e feliz longe
da capital como ele, jamais retornaria para o convívio com a megera e tresloucada
rainha.
Pouco amigável e com aquele quê corriqueiro de quem não está nada à vontade
em uma festa, apenas para cumprir tabela, Petr entreviu, com os olhos muito
atentos aos seus, o “Cara-de-Coruja”. Novamente em trajes negros e elegantes, o
queixo rígido como se seus dentes rilhassem de impaciência e o habitual olhar
compenetrado como os de uma águia sondando a próxima presa, Salazar Stanhorne
acenou para ele com um breve movimento da cabeça. Entretanto, havia algo de
diferente no líder do Conselho dos Guardiões naquela noite. Quase uma figura
paternal, Salazar esboçou um leve sorriso para ele e ergueu uma taça em sua direção.
264
Por um breve momento, Petr vislumbrou o mesmo esgar de seu avô Maximo. Um
gesto simplório que quase o fazia acreditar que o homem mais poderoso da mais
alta cúpula mágica de Eirin aprovava suas ações insanas na cerimônia arranjada no
Palácio de Ônix. À vontade com a atitude de Stanhorne, pela primeira vez, Petr
sorriu e acenou para ele com a mesma cordialidade e humildade que sentira.
Irrompendo pelos portões de entrada, além da multidão que abarrotava o
ambiente, alguém deslizou com rapidez para o salão e, em um lampejo de
esperança, Petr torceu para que fosse sua avó. Ainda que o rosto fosse bastante
parecido, bem como os cabelos grisalhos e o aspecto de pouco cuidado, a figura
meio encurvada e de trejeitos asquerosos e sempre suspeitos era seu tio-avô Wayne
Wallensig. Num breve instante, Petr suspeitou que sua avó poderia estar na
companhia dele. Mas a suspeita logo se esvaiu. O irmão mais velho de Astúrias era
avesso ao palácio. Evitava, sempre que podia, comparecer aos eventos reais na
capital. Desde que se entendia por gente, embora nunca descobriu o porquê, Wayne
não tinha uma relação amistosa com a irmã, muito menos com o cunhado ou os
sobrinhos. Especulava-se que nem mesmo com os filhos ele se entendia bem. Entre
as dezenas de fofocas e boatos que Petr conseguia captar pelos corredores, dizia-se
que Warren rompeu as relações com o pai depois de descobrir um segredo obscuro
e aterrador. Wayne, por sua vez, rejeitara as indignações do caçula e não parecia
nem um pouco inclinado a tentar se explicar ou mesmo aproximar-se do filho.
Preferia ignorá-lo, como se somente Wayne II fosse seu único filho. Quanto à irmã,
a única coisa de que tinha conhecimento era sobre algo do passado que abalara a
boa relação entre ambos. Uma coisa tão séria que seu avô Maximo ficou
transtornado na única vez em que o questionou; o repreendeu de um modo que
jamais vira, quando insistiu no assunto.
— Jamais, Petr. — Maximo assumira um tom sombrio e inquisidor, como nunca
antes fizera. — Jamais, eu repito, toque neste assunto. Muito menos perto de sua
avó. Você me entendeu?
— Mas...
— Sem ‘mas’. São problemas irrisórios, irrelevantes, que os adultos criam por
mera vaidade. Não vale a pena se importar com eles e muito menos se contaminar
com o que eles significam. Eu não quero que volte a falar neste assunto outra vez.
Você me entendeu, ou não?
— Sim, senhor — respondeu Petr, curioso, mas resignado.
— Vou precisar repreendê-lo outra vez quanto a isto?
— Não, senhor.
Era inútil acreditar que Astúrias poderia estar na companhia do irmão a quem
tanto odiava se a história do avô era verdade e se a relação de ambos nunca foi das
melhores. O fato era que sua avó sumira da festa. Um acontecimento
definitivamente anormal, visto que aparecer e chamar a atenção de todos para seus
265
vestidos e joias era algo pelo qual Astúrias era apaixonada, mais até do que ameaçar
cinco vezes ao dia os empregados do palácio.
Um beijo inesperado sobre as costas da mão direita fez Petr acordar de seus
devaneios.
A atenção do garoto se voltou no mesmo instante para o homem alto e de porte
pujante à sua frente. Curvando-se em uma longa e exagerada saudação, Petr o
reconheceu de imediato e, embora ainda não tivesse tido a oportunidade de dialogar
com ele após o falecimento de seu avô, este era um dos poucos nobres de Snartria
que gozava da inteira confiança e amizade pessoal do antigo rei.
Lorde Aldair era seu nome.
Nas centenas de vezes que o vira na cidade, Petr sempre o observava de longe
com muita admiração. Havia algo de hipnótico em sua volumosa barba grisalha e
no bigode cujas pontas eram curvadas. Imaginava quantas horas ele não devia
gastar, modelando à exaustão, para que seus pelos faciais, abaixo do nariz levemente
adunco, ficassem perfeitamente curvos e apontando sempre para cima para se
encontrar com o rei. O olhar escuro era meio cansado e com muitas rugas, como
se ele fosse um guerreiro exausto depois de lutar dezenas de batalhas e entre o
cabelo sempre penteado para trás e as sobrancelhas negras e espessas, repousavam
outras rugas sinuosas sobre a testa.
O que Petr sabia a seu respeito era que Lorde Aldair era o Ancião. O Ancião era
o líder dos conselheiros reais de Snartria, o conselho estratégico do rei. Mesmo que
fosse impedido de participar das reuniões às portas fechadas quando seu avô ainda
era vivo e que, desde a morte do rei e o desaparecimento de seu pai, uma reunião
formal ainda não tivesse acontecido, embora tivesse recebido a visita de pelos
menos uns nove conselheiros diferentes desde o funeral, Petr sabia que o Conselho
era quem levava os anseios do povo e os principais problemas dos condados ao
conhecimento do rei. Discutiam estratégias militares e debatiam sobre os rumos da
nação nos mais diversos temas, desde as relações comerciais estabelecidas com os
reinos amigos, discussões sobre condições climáticas ideais para uma boa colheita
no plantio de safras estratégicas para o reino com apoio dos sacramentadores,
passando por julgamentos, condenações, divisão de terras, impostos, etc. O
Conselho era formado pelos vinte e cinco condes de Snartria, os líderes de cada
condado. Entrementes, Petr não se lembrava da fisionomia de todos eles. Contudo,
não era difícil identificá-los no meio da multidão. Estavam sempre bem ajustados
e elegantes. Costumavam desfilar com uma capa de veludo vermelho com bordado
dourado drapejada sobre os ombros para lhes dar algum destaque em eventos como
este. Exibiam uma bela insígnia da Harpia Voraz nas cores das bandeiras de seus
condados sobre o peito.
Petr recordava do rosto de apenas cinco deles. Bonachão e com uma fisionomia
agradável, com um sorriso de grandes dentes abaixo do cavanhaque longo e loiro,
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Lorde Vincurd, do condado de Altenaand era o tipo de pessoa que todos queriam
ter por perto. Adorava contar histórias e fazia questão de narrar antigas lendas de
Snartria. Narrava tão bem seus mitos e aventuras que havia sempre uma roda de
pessoas em sua volta, para ouvi-lo falar. De longe, ele lhe sorriu com os olhos e fez
um sinal de positivo. Diferente dele, Lorde Carmol era mais reservado. Raquítico e
esgalgado, sempre achava que ele estava doente. A pele era morena, queimada de
sol. Assim que o conheceu, teve muito medo de seu jeitão pitoresco e caladão, com
olhos saltados, parecendo bisbilhotar algo a todo momento. Descobriu com o
tempo que aquele era o jeito dele mesmo. Seu avô dizia que Carmol era muito
quieto, porém o mais experiente dos conselheiros. Cheio de tiques e de manias
esdrúxulas, Lorde Pottden era atarracado e puxava de uma perna. Adorava
conversar sobre armas, principalmente espadas. Fora um mestre-ferreiro de marca
maior que galgou posições até se tornar o conde de Aethvalida, mas seus muitos
cacoetes podiam assustar de vez em quando. Petr preferia cumprimentá-lo de
longe, sabia que se chegasse perto não conseguiria segurar o riso. Por último, Lorde
Zonnir, que, além de conde, era um dos grandes almirantes aposentados da marinha
de Snartria. O porte pujante e atlético e o corpo coberto de tatuagens eram seu
maior destaque. Não dava para deixar de notá-lo no meio da multidão e se Pottden
amava falar sobre lâminas, Zonnir entrava em êxtase ao conversar sobre os
mistérios dos mares. As histórias das viagens a bordo de corsários animavam
qualquer roda de amigos, embora esses contos nem sempre pareciam ser tão
verdadeiros quanto ele dizia.
— É uma honra poder estar em sua presença, Sua Majestade, em um evento tão
grandioso como o desta noite — crocitou Lorde Aldair.
— A honra é minha em poder contar com a sua presença, Lorde Aldair. — Petr
esquecera como a voz do conde era bonita, quase como se ele cantasse cada palavra
de sua frase.
— Faço votos de que Sua Majestade esteja tendo uma noite formidável.
Obviamente, sustento a esperança de que, com brevidade, honrará a memória de
seu avô e de seu pai, demonstrando a sabedoria herdada de Lorde Maximo,
anunciando uma decisão que manterá a Serena Snartria em um rumo livre de
incertezas e tiranias.
Petr esboçou um sorriso. Mesmo com a fala polida do conde de Trent-Kalir, o
maior condado do reino, ele sabia exatamente o que queria dizer.
— Creio que minha decisão satisfará os anseios do Conselho Real.
As maçãs do rosto de Lorde Aldair se contraíram exibindo novas rugas. Atrás da
barba grisalha, um sorriso cheio de dentes e exultante surgiu. O Ancião se curvou
e antes de se retirar, ergueu uma taça na direção de Petr.
— Vida longa aos nobres e valentes Bravior. Que Snartria seja sua herança por
longos ciclos e eternas eras!
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Petr se pôs de pé. Não precisou pedir a palavra e chamar a atenção de todos para
que os convidados interrompessem a balbúrdia e a bebedeira sem fim para que as
dezenas de pares de olhos no imenso salão se voltassem para o ponto mais alto e
imponente do recinto. Os convidados estavam ali para isso, em uma intensa e
incontida expectativa. A essa altura, ele desistira de encontrar a avó. Uma
aglomeração de gente se acotovelando e se espremendo ao redor do trono em um
semicírculo quase não dava espaço para que vislumbrasse a expressão malhumorada
e curiosa de Astúrias no mar de rostos ao alcance de seus olhos. Os
portões foram imediatamente fechados pela guarda real. Até mesmo os empregados
do palácio se colocavam sobre as pontas dos pés nos extremos do salão para
poderem vislumbrar e ouvir seu discurso. Petr nunca se sentiu tão importante. Este
era um momento histórico, era seu momento.
— Nobres convidados, amigos, familiares, conselheiros — falava Petr, quase
gritando, na esperança de que, onde sua avó estivesse, pudesse escutar com clareza
cada palavra. — Fiz questão de convidá-los a este evento para um anúncio
importante. Um anúncio que mudará para sempre os rumos de nossa tão estimada
nação. A Serena Snartria jamais será a mesma.
Sobre as escadarias no extremo oposto, Petr a avistou. Sua avó descia cada
degrau, passo a passo, bem devagar. Não poderia deixar de usar seu vestido mais
chamativo, um longo vestidão dourado de quatro caudas e um ostensivo colar de
pérolas que cegaria as vistas de quem olhasse diretamente para ele. O olhar de
Astúrias era de espanto. Na realidade, um misto de medo e expectativa dominava
seus grandes olhos arregalados e carregados de uma maquiagem espalhafatosa.
Deslizava pela escada como se desfilasse, mas com cautela, agarrada ao corrimão
sinuoso como se a própria vida dependesse disso e fitava unicamente o neto em
seu discurso definitivo, ignorando alguns empregados do palácio que foram até ela
para ajudá-la a descer. Petr sorriu. De um modo cínico, escancarou os dentes
satisfeito por saber que sua avó o estava vendo. Satisfeito porque ela assistiria, do
melhor lugar possível, à estupenda decisão que tomara.
— Os últimos dias em Snartria não fizeram jus ao título atribuído a nosso reino.
Com a morte tão inesperada de meu avô e a mor... o desaparecimento de meu pai
nas Montanhas Congeladas de Gelor-Torine, vivemos momentos tenebrosos de
incertezas quanto ao futuro de nossa nação.
Petr sentia o coração pulsando em cada centímetro de seu corpo. Na pequena
pausa que fez, uma gota escorreu de sua testa e as pernas teimavam em querer
vacilar. Observou os rostos da multidão atentos a cada palavra que proferia. Os
conselheiros fitavam-no apreensivos, os primos e alguns tios presentes o encaravam
hesitantes, contorcendo o cenho e franzindo as sobrancelhas. Mas um breve aceno
268
de cabeça de Roben, que segurava o pequeno Robbes dormindo em seu colo, fez
com recuperasse a confiança para prosseguir.
— A decisão que tomei não foi uma deliberação fácil, mas estou convicto de ser
a correta neste momento tão conturbado. — Petr respirou fundo e ergueu a coroa
e o cetro. — Não poderia fugir de meu destino e, mesmo vacilante, tenho fé de que
há um propósito maior que me fez trilhar este caminho até aqui. Luto por um bem
maior. Um bem maior do que eu. Um bem maior do que a Serena Snartria. E, assim
como meu pai e minha mãe deram a vida por este bem maior, pelo equilíbrio e
harmonia dos povos de Anlevor, pelas vidas dependentes da minha magia, pelos
fracos que protegerei, eu, Petr Bravior, seguirei meu rumo como o Guardião que
este continente precisa.
Uma salva de palmas irradiou pelo salão. Ecoou de forma comedida ao passo que
um burburinho muito audível inundou as bocas da maioria dos convidados ao
redor. Petr observou tudo atentamente e aguardou. A expressão dos conselheiros
era de evidente desespero. Juntaram-se uns aos outros cochichando em alta
velocidade, lançando olhares decepcionados a todo momento para o garoto aos pés
do trono e dele para o pé da escadaria. Roben ficou atônito e Salazar sorria
abertamente como ele jamais vira. Mas o que Petr contemplava com muita
satisfação era o rosto radiante de sua avó Astúrias. Sobre o primeiro degrau, ela
vibrava. O sorriso escancarado de orelha a orelha era notório. Se pudesse pular, dar
piruetas de alegria, ela provavelmente o faria. Contudo, optou por manter a pose.
Iniciou seu trajeto no meio da multidão, empertigada e com o nariz empinado, até
o púlpito onde Petr estava, na iminência de ser convocada para a nomeação como
a soberana absoluta de Snartria.
— Entretanto, — Petr retomou o discurso e as vozes sussurrantes emudeceram.
Sabia que o sorriso que carregava em seu rosto era de um deboche incontido e
proposital — não poderia assumir tamanha responsabilidade e deixar Snartria sem
um soberano para governar. Depois de muito relutar, estou certo de que esta é a
melhor escolha. Até que meus dias como Guardião terminem e possa retornar para
o trono, anuncio a todos vós Chermont Wooden, meu fiel amigo, como o novo
Príncipe Regente da Serena Snartria.
Não houve aplausos. Um silêncio mortificante se instaurou de imediato assim
que Petr terminou seu anúncio. A multidão ao redor estava pasmada; o choque era
evidente nas reações estáticas e nos queixos caídos de espanto de todos. Nem
mesmo Chermont, com seus trajes malcuidados de mordomo do castelo, parado
nos corredores de acesso à cozinha parecia ter digerido muito bem o que Petr
acabara de anunciar. Chermont, o novo Príncipe Regente? O mordomo do palácio
teria plenos poderes? Fora uma reviravolta inusitada que pegou todo mundo de
surpresa, mantendo os convidados ao redor em um estado de perplexidade sem
fim. Petr queria cair na gargalhada diante das variadas reações, mas se limitava a
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sustentar sua careta cínica sobre o púlpito. Astúrias estacara no momento em que
ele anunciara Chermont como o novo soberano. Empalidecera. Estava mais branca
do que as monstruosas camadas de neve de Gelor-Torine. A expressão da velha
rainha era um misto de perturbação e descrença; parecia prestes a enfartar ou voar
de onde estava e esganá-lo. A inquietação foi se convertendo aos poucos em um
ódio mortal e crescente.
Uma palma acalorada interrompeu o silêncio. Os olhares se converteram para o
lugar de onde ela irradiava. Petr acompanhou com os olhos a salva de palmas
solitária. Lorde Aldair deixou a companhia dos demais conselheiros. Vinha
caminhando em direção ao trono, prorrompendo-se em palmas esfuziantes e com
um esgar de exultação estampado em seu rosto, rindo-se sem pudor ou medo. Aos
poucos, os convidados acompanharam o Ancião e também desataram a aplaudir a
decisão de Petr, de uma forma mais acalorada do que antes.
Para surpresa dos presentes, Lorde Aldair não subiu ao púlpito onde Petr estava.
Dobrou à esquerda e puxou um acanhado Chermont de detrás das sombras das
pilastras dos corredores e o acompanhou até os pés do trono. Postaram-se ao lado
de Petr. O garoto abraçou o amigo, que ainda permanecia sem reação. Havia
lágrimas em seus olhos e uma nímia confusão na cabeça, refletida em sua expressão.
Deu espaço para que Chermont assumisse um lugar de destaque, bem no centro do
púlpito.
— Nobres cavalheiros e damas, lordes e ladies da Serena Snartria. Este é um
momento memorável de nossa triunfante história e que ecoará por toda eternidade.
— Lorde Aldair pediu uma taça de vinho e a ergueu o mais alto que pode. — Peço
a permissão ao nobre príncipe e Guardião de Anlevor, Petr Bravior, e proponho
um brinde à Sua Alteza, o novo Príncipe Regente, Chermont Wooden!
— Antes, Lorde Aldair... — Petr interrompeu.
Repousando o cetro a um canto, o garoto segurou a coroa com as duas mãos e
postou-se na frente de Chermont, que não parava de chorar e tremer.
— Confio em ti. — Petr repousou a coroa real sobre os cabelos desarrumados
do amigo. — Você é plenamente merecedor deste título e, por tudo que fez e tem
feito por mim nesses últimos ciclos, pela confiança devotada por meu pai e meu
avô à sua pessoa, eu te coroo com todas as honras e méritos que um legítimo
herdeiro de Snartria merece. Assente-se agora sobre o trono como o novo soberano
do reino, concedo-lhe esta dádiva com os poderes que me foram outorgados.
Afastando-se do amigo, Petr fez uma longa reverência, saudando-o.
— Vida longa ao Príncipe Regente Chermont Wooden, o Fiel.
— VIVA!
O tilintar de taças brindando seguido por novas palmas, desta vez menos
comedidas e mais exaltadas, ribombaram pelo salão. Os cochichos de antes se
transformaram em conversas conspícuas, quase gritantes, de surpresa e assombro.
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Petr decidira descer do palanque. O momento era de Chermont; de ser honrado
como ele bem merecia. Os conselheiros se avultaram para o púlpito, ávidos em
poder saudar o novo príncipe regente. O ex-mordomo do palácio não sabia como
reagir com aquela surpresa inesperada e com tantos cumprimentos e felicitações.
Uma fila de convidados se formava para saudá-lo e até Lady Marini e Lorde Trev
incorporaram o grupo que se avolumava a cada instante.
Petr sentiu uma mão agarrar-lhe o ombro esquerdo de chofre. Dedos de unhas
grandes e afiadas fincaram-se em sua pele e o puxaram com furor para longe da
multidão, na direção de um dos corredores laterais de acesso às cozinhas. Virandose
para ficarem frente a frente e pressionando cada vez mais seus dois braços, o
garoto vislumbrou a expressão insana de sua avó Astúrias. Transtornada, os olhos
se comprimiam em uma cólera letal, como se estivesse possuída por um instinto
assassino, disposta a matá-lo ali mesmo, a arrancar seu coração e tripas com as
mesmas unhas afiadas que cravava sobre sua pele.
— Que traição é essa, moleque? Você perdeu a cabeça? — Astúria salivava de
ódio; os olhos vidrados encaravam com ferocidade o olhar assustado de Petr. —
Era a MIM que você devia indicar. Era EU quem devia estar assentada sobre aquele
trono como soberana do reino. Eu não aceito ser substituída por um alquimestre
de araque como Príncipe Regente. Eu ordeno que vá até aquele palco ridículo e
desfaça a grande merda que você acabou de fazer. Ou então, eu irei...
— Você não irá fazer nada.
Uma voz trovejou atrás de ambos e eles foram pegos de surpresa. Uma figura
imponente estava parada à sombra da entrada do corredor. Astúrias largou o neto
de imediato. Assomando-se em direção aos dois, a frouxa luz das lamparinas
revelou o rosto circunspecto e a expressão de ira mal contida de Salazar Stanhorne.
— Se é desejo de Petr que Chermont governe Snartria até seu retorno triunfal
para ocupar o trono como rei, assim será. — Salazar repousou as mãos sobre os
ombros de Petr, mirando o esgar perplexo de Astúrias. — O Conselho dos
Guardiões está ao lado dele, o apoiando e trazendo uma oposição virulenta e
avassaladora a quem quer que tente sabotar suas decisões.
Os lábios de Astúrias tremeram. Balbuciou palavras inaudíveis repetidas vezes.
Consumida pela raiva, deu as costas para Stanhorne e Petr, e saiu bufando e batendo
os pés.
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Capítulo Dezenove
Cobra e Cão
Uma bola de fogo cortou os ares com tamanha velocidade que fez os pelos da
nuca de Heidlich se ouriçarem, deixando-o atarantado. Esforçando-se para
acompanhar o percurso da pequena esfera incandescente, por pouco seus olhos
quase não a observaram atravessar o pátio de pedra como um foguete em disparada
e chocar-se com tamanha violência em um dos alvos, fazendo-o explodir em mil
pedacinhos que se espalharam por todo o piso de lajotas brutas.
— Acertei! Acertei!
Ivyna berrava de alegria, extasiada por ter explodido o boneco de madeira, cujas
lascas naquele momento se amontoavam do lado oposto ao que estavam. Deixara
os vestidos, joias e os longos cabelos escovados de princesa e assumira pesadas
calças de algodão, cota de malha e uma trança bem apertada para esse dia de
treinamento. E cá entre nós, o golpe teria sido fantástico, com uma deslumbrante
esfera de magia em dimensões perfeitas, se Heidlich não a tivesse instruído a fazer
exatamente o contrário.
Cruzando a extensão do pátio em direção ao alvo que virara picadinho no chão,
Heidlich meneava a cabeça. Achava que tinha sido muito claro com a irmã mais
nova quanto ao que deveria fazer. Fora difícil convencê-la de que era seguro
treinarem ao ar livre e de que não, a mãe dos dois não perturbaria a santa paciência
de ambos e ralharia com ela por estar “brincando de mágica” e não tomando aulas
de etiqueta à mesa com Madame Cesir ou aprendendo a tecer mantas de lã de
carneiro em teares de madeira com Lady Silla. Colocara os alvos no extremo do
pátio com o máximo cuidado possível e preocupara-se inclusive em mantê-los
muito bem alinhados, obrigado, para que pudessem exercitar a magia indomada de
Ivyna. Mas ainda assim, a histeria e o êxtase da irmã bloqueavam seus ouvidos para
entender que tudo o que ele pedira, era acertar o braço do boneco de madeira.
Somente o braço. Nada mais do que o braço. E ela até poderia escolher qual braço
atingir. Em sua época de Academia, perdeu as contas de quantas vezes levou a mão
à palmatória — e ainda carregava algumas marcas daquela maldita vara de goiabeira
na palma da mão — por errar o quarto quartil do antebraço direito dos bonecos de
madeira dispostos estrategicamente sobre os campos de treinamento. No entanto,
272
eram outros tempos. E Ivyna, sabia-se lá porque motivo, foi impedida de ingressar
à Academia, o que Heidlich acreditava ser uma tremenda tolice e não havia
conseguido tempo para conversar com a mãe sobre isso.
Apesar dos reveses e questionamentos com relação às atitudes intempestivas de
sua mãe em relação à irmã, era incrível como sua relação com Ivyna tornara-se tão
fluida e fácil, mais até do que ele mesmo imaginara. Não viveu os ciclos ao lado
dela, não a viu crescer ou cuidou dela como um irmão mais velho deveria fazer e,
ainda assim, com seu retorno em condições adversas, sentia-se próximo da irmã.
As conversas com ela eram fáceis, como se dialogasse em papos descontraídos com
seu pai. A convivência convertera-se rapidamente em uma relação amistosa de
cumplicidade e, mesmo não falando tanto sobre coisas da vida particular, sentia que
a ligação entre ambos se tornara mais forte do que ele próprio esperava. Saber que
Ivyna possuía a mesma aspiração que ele, vinte ciclos antes, era algo maravilhoso;
o ponto em comum que unia os dois.
Aproximando-se da fuligem que cobria o chão e pisando sobre os míseros
cotocos esturricados que sobraram espalhados por todo lado, Heidlich ergueu os
olhos para cima. Um colossal círculo de fogo pairava no ar a alguns metros de sua
cabeça, circundando toda a extensão do pátio. O dia amanhecera cinzento. Uma
densa cerração inundara as terras altas do noroeste de Badorian. Típico da estação
mais fria do ciclo, quando as águas negras do Mulbe se tornam um grande platô
congelado, a neblina avança das matas fechadas em direção aos condados,
permeando pelas avenidas, ruas e vielas com o frio atroador e um característico
nevoeiro quase negro que engolfava até os menores cantos do extremo mais
enregelante do reino, incluindo a capital e os terrenos do palácio. Heidlich não
estava a fim de perder a oportunidade que tinha de treinar a irmã e, sabendo que
ela poderia desanimar diante do fenômeno natural que fora acontecer
inoportunamente no dia mais aguardado por ela desde que ele descobrira suas
aspirações a se tornar uma guerreira, decidira conjurar o exorbitante anel mágico
flamejante. As chamas alaranjadas crepitavam de um modo intenso e afugentavam
a escuridão melancólica — ainda que fosse quase oito da manhã e o sol estivesse
escondido em algum ponto atrás das nuvens. Iluminavam a arena improvisada que
criara de forma plena, como se um milhão de tochas incandescentes se
emaranhassem para clarear o espaço em que estavam.
O fogo ardente e inexorável brilhava de um modo peculiar. As chamas trouxeram
lembranças em sua mente, de poucos dias antes. Lembranças de coisas que,
entrementes, ele preferia esquecer, mas que, sem entender porque, elas a todo
momento retumbavam em sua memória, emergindo e desaparecendo, perturbando
sua paz.
Era a Cerimônia de Coroação.
273
A suntuosidade do palácio era ímpar, com um toque estonteante de decoração de
sua mãe e das tias. Os convidados desfiavam longos elogios para a arrumação, as
comidas, as bebidas, as músicas entoadas pelo coral e a orquestra e o evento de um
modo geral, mas nada convencia Heidlich de que este evento fora o pior e maior
desastre de toda sua vida. A verdade era que se recordava de breves lampejos e
pouco instantes marcantes. A grande maioria dos demais momentos ele sequer
conseguia recordar o que acontecera.
Recordava de um enorme capão vermelho de veludo e, em suas bordas, um
manto abastado de pele de lobo branco. Lembrava deles porque roçavam em seu
queixo e algumas vezes sobre o nariz e lhe davam uma imensa vontade de espirrar.
Felizmente, para sua sorte, conseguira conter os espirros a cada vez que as narinas
voltavam a coçar. Dado momento, os convidados se colocaram de pé e um capitão
da infantaria trouxe um objeto reluzente, intacto, descansando sobre uma grande
almofada vermelha. Os olhos se encheram de lágrimas, mas Heidlich sabia que não
era um bom momento para chorar, embora ele soubesse que, uma hora ou outra,
isto seria inevitável. Inevitável não lembrar que o objeto de metal nobre sobre o
travesseiro avançando lentamente, como mandava a tradição, era a coroa que seu
pai usara por tanto tempo. A coroa em breve repousaria sobre sua cabeça e ele não
estava certo se era digno de carregar um símbolo tão grande de poder e sabedoria.
Vacilava em suas convicções. Jamais chegaria aos pés do homem que tanto amou,
daquele que não foi apenas seu pai, mas também um grande amigo e que o deixou
de forma tão precoce, sem poder dizer-lhe um último adeus ou mesmo acompanhálo
na derradeira caneca de rum.
Lady Ianora se posicionou aos pés do trono. A idade a castigara de uma maneira
que Heidlich não esperava. Por pouco, não a reconheceria. Mas dentre todas as
belezas que o tempo levou da prima de sua mãe, uma permanecia intacta: a voz
encantadora. Abriu a boca para entoar uma canção da forma natural e singela que
somente ela sabia fazer. O timbre de voz perfeito enlevava seu espírito e trazia paz.
Os presentes se aquietaram. Os muitos pares de ouvidos esqueceram os demais
ruídos da cerimônia. Um a um, os convidados foram se calando e se postaram para
prestar atenção unicamente às letras entoadas. A mais encantadora canção de
Badorian, sua preferida dentre tantas músicas e sonetos, era então a maior
causadora de dor e remetia a um passado que ele sabia que não voltaria mais.
Nas veredas dessa vida, a vagar.
Nessa lida, qual peregrino, sozinho, sigo com meu pesar.
Divagando, devagar, rememorando;
Aflito e distante, me dispondo a sonhar.
Relembrar, a caminhar, quão distante estou,
274
Onde rios, cristalinos, correm até o mar.
Florestas, verdes-pastos; rosas, lírios e orquídeas;
A desabrochar, me fazem lembrar, meu doce e terno lar.
Pode o mundo inteiro desmoronar;
O desatino dos dias ser meu pesar;
Mas haverei de regressar;
Num grande e lindo dia, ao meu terno lar.
Lá, onde os campos relvados
São serenamente assoprados,
Cujos pomares em filas,
Tão verdes respiram, a leve brisa do mar.
Lá, onde as belezas naturais,
Tão doces, desnudas,
Arrebatam e encantam, num breve olhar.
Pode o vento contrário soprar,
O mar encapelado querer se assomar;
Das vagas, a vida, desatinar,
Mas haverei de regressar, feliz em tornar;
Tão breve estarei, em meu terno lar.
Lágrimas escorreram de seus olhos e foram imediatamente contidas antes que
qualquer um pudesse perceber. Não era dessa forma que imaginara regressar à sua
terra natal. Aliás, sequer passara pela sua cabeça um dia retornar ao palácio e
ascender ao trono. Odiava tudo aquilo de um jeito inimaginável. As riquezas, os
luxos e o requinte da corte. Os vestidos costurados com fios de ouro e os grossos
gibões cintilantes. As capas de veludo, os camisões de pura seda. A soberba e
prepotência dos que arrogavam para si o título de nobres, mas que de nobres nada
tinham. Vivera vinte ciclos acostumado ao frio extremo de perturbadoras
temperaturas negativas das geleiras de Boralioch. Aprendera, pelo exemplo ímpar
dos centauros, o que era a verdadeira humildade e a servir ao próximo. Havia mais
humanidade neles do que em qualquer guardião que o observava com seus olhares
altivos e um nímio esgar soberbo, presente naquela cerimônia. Passou longos
períodos sozinho em densas florestas úmidas caçando mercenários e outros tipos
de homens cruéis e sanguinários. O vapor intenso provocado pelo calor nos dias
275
de verão quase o sufocava. Diversas noites, fora dormir com fome. Não conseguira
caçar nada. Não havia empregados do palácio para servir cordeiro assado, torta de
batata e sequer uma caneca de rum. Entretanto, a beleza das estrelas pontilhando
um céu enegrecido suplantava o ronco de seu estômago. Mesmo nesses momentos,
em que estava completamente solitário, lançado à própria sorte em suas muitas
missões arriscadas, jamais se sentiu tão sozinho quanto naquele momento.
Nada fazia sentido. Fora obrigado a atender um chamado. Intimado a vestir um
manto escarlate e a encaixar uma coroa sobre a cabeça com a alcunha de Sua
Majestade em seus lombos. Mas ninguém o ensinou a ser um rei. Fora um guerreiro
a vida inteira e não um nobre político. As dúvidas sobre o futuro de Badorian
debaixo de sua liderança eram uma crescente aterradora e cruel que o assolavam de
um modo perturbador.
— Vou falar pela última vez e espero, de coração, que você me ouça — dizia
Heidlich, impaciente, afugentando as memórias de sua mente. — Acho que fui bem
claro quando disse que era para lançar um balaço de fogo aqui — E apontou para
o braço esquerdo — ou aqui — e apontou para o braço direito. — Não importava
qual o braço, mas era para acertar um braço. Não evaporar o boneco de madeira
inteiro com seu poder!
Tão rápido quanto deu piruetas de alegria, Ivyna murchou. Os ombros decaíram
e o semblante da princesa foi de uma satisfação radiante para uma profunda
decepção. Do outro lado, Heidlich ria.
— Talvez seja o momento de aprendermos um pouco mais sobre estratégia de
batalha. — Heidlich aproximou-se da irmã, ficando muito próximo a ela e de sua
expressão contrariada. — É inegável que seu poder é assombroso. Eu diria até
colossal. Mesmo desobedecendo meu pedido, ninguém lança uma chama
concentrada daquela sem, no mínimo, perder um pouco das energias. E você sequer
parece abatida por isso. Ao contrário, está acabrunhada não porque fez uma mísera
esfera de magia, mas por ter explodido seu alvo.
— Me desculpa, irmão. Eu não...
— Esqueça as desculpas — Heidlich interrompeu, levantando o rosto da irmã —
concentre-se em mim e siga minhas instruções. Como eu disse, poder você tem de
sobra. Agora, só lhe falta estratégia.
Heidlich tomou uma distância razoável da irmã. Estendeu o braço direito. Com
o polegar em riste, esticou o dedo médio, formando um ângulo de noventa graus
com o indicador, que apontava exatamente para o meio da testa de Ivyna. A garota
observava com atenção, em um esgar que mesclava dúvida e apreensão.
— A estratégia de combate direto é a mais básica de todas as táticas de batalha
ensinadas na Academia dos Guardiões. Sugiro que grave cada palavra que eu disser
e cada movimento, pois você levará isto para a vida. Meus mais sinceros
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agradecimentos a Lorde Olov, o grande mestre que me instruiu. Esse método me
salvou de dezenas de enrascadas, acredite.
“Enfim, toda vez que estiver diante de um inimigo em um combate direto, um
duelo por exemplo, antes de cair na mão, é preciso ter em mente três coisas básicas
para um ataque preciso e a conquista da batalha: Expansão, — Heidlich apontou o
dedo médio — Extensão, — apontou para o dedo indicador — e Nível — com a
mão livre, segurou o polegar.
“Expansão, é a quantidade de poder que seu oponente pode desenvolver. Se ele
for muito alto, a ampliação da magia tende a ser maior do que a sua. Neste caso, a
melhor forma de derrotá-lo é usando a própria estrutura corporal dele. Inimigos
muito altos tem expansões limitadas de ataque para baixo. Então, é preciso canalizar
seu poder para bloquear ataques laterais e somente atacar de frente.
Preferencialmente, de baixo para cima, que é a zona em que ele estará mais
vulnerável.
“Extensão é o deslocamento de magia. Oponentes grandes, gordos ou fortes
possuem extensão acentuada, pois costumam atacar de frente e canalizar seus
poderes em ataques frontais. Geralmente, sua Expansão é baixa. O melhor ataque
para liquidar um duelo contra esses inimigos será sempre pelas laterais.”
Ivyna estava de olhos arregalados e ouvidos aguçados para cada palavra do irmão.
— Por fim, Nível. Há inimigos que conseguem combinar extensão e expansão
pelo desenvolvimento de ambos. Para estes, sim, você precisa ter atenção
redobrada, pois adquiriram o domínio de duas técnicas. Nestes casos, a melhor
defesa será o ataque. A melhor forma de derrotar esses adversários é explorando
seus níveis de magia. Ninguém consegue atacar e defender sempre pelas duas
formas. Suas energias se esgotarão em algum momento e ele apresentará algum
ponto fraco. Mas é preciso ter cautela, pois, quando você usa a tática do Nível, você
terá de explorar seus próprios poderes e estará exposta a também ter sua energia
afetada.
“Nos três casos, é preciso observar. Estudar seu oponente. Analisar o estilo de
luta, a estrutura corporal, o comportamento na batalha, forças e fraquezas. O que
ganha uma guerra não é a força ou poder, é a estratégia e a inteligência.”
Imitando o gesto do irmão, Ivyna fechara um olho e observava Heidlich do outro
lado da arena como se o polegar fosse a mira de uma besta e o dedo indicador uma
flecha prestes a se desprender do cordão tensionado do arco.
— Agora me responda, — Heidlich cruzou os braços, fitando-a com esgar de
iminente repreensão — pela sua careta de surpresa, não deve ter lido nem um livro
que te dei sobre técnicas de mãos para ataques mágicos, não é?
Ivyna contorceu o cenho como se Heidlich tivesse ofendido sua honra.
— Não somente li seus livros capengas de capas rasgadas, Sr. Heidlich, como
também decorei os inúmeros golpes descritos em cada página. Mais até do que as
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infindáveis regras de etiqueta idiota que nossa mãe me obriga a memorizar. E quer
saber de uma coisa? Você me subestima de mais. Não gosto de ver você me
tratando como se eu fosse uma criancinha. Tenho vinte e um ciclos de idade. Não
sou uma completa ignorante em magia. Papai me ensinou muitas coisas nos ciclos
em que você esteve fora. Treinamos por muito tempo em Hareborne e nos vales
de Azenvind. Foi só depois que mamãe descobriu que precisamos deixar o ar livre
e migramos para as galerias ou os calabouços do palácio para que ela não soubesse.
Não vou negar para você, aliás, que continuo achando muito perigoso nos
expormos tanto assim. Como se não bastasse treinarmos no pátio externo, você
ainda me coloca esse círculo flamejante sobre nossas cabeças. É quase como um
aviso para a mamãe — e a jovem ruiva nasalizou a voz, falando com um falsete
cheio de ironia — ‘Ivyna está lá fora brincando de mágica, você não vai lá impedir?’
Heidlich riu.
— Você está paranoica de mais, igual a mamãe.
— Paranoica?
— É, sim — inferiu Heidlich. — A propósito, se nossa mãe vier falar qualquer
coisa sobre o que estamos fazendo aqui, que venha. O rei agora sou eu. Quem
manda nessa bagaça toda agora sou eu. Minha palavra é ordem. Querendo ou não,
ela terá de me obedecer.
— Acho que o poder está dissolvendo o seu cérebro — falou Ivyna, debochada.
— Pelo jeito, já consumiu o pouco de inteligência que tinha. Você está se achando
de mais agora que carrega essa coroa na cabeça.
— Não estou me achando... — falou Heidlich, num tom cínico — Eu sou. E,
como você acha que estou te tratando feito uma criança, proponho tornarmos este
treinamento mais interessante.
— Interessante? — questionou Ivyna, desdenhosa — Vai fazer o que, colocar
mais desses bonecos de madeira pelo pátio?
O círculo de fogo coruscou de repente. A um estalar dos dedos de Heidlich, as
labaredas alaranjadas se agitaram e estremeceram, como se uma ventania se
arremetesse contra as chamas. O anel flamejante se movimentou, saindo do ponto
em que pairava no ar em direção ao chão. Na descida brusca, emitia um ruído
retumbante como de uma fornalha consumindo lenha e transformando-a em brasas
em alta velocidade.
— Proponho um duelo — disse Heidlich, tomando distância, sobrepondo a voz
acima do estalar ensurdecedor das chamas. — As chamas se fecharão ao nosso
redor, diminuindo progressivamente seu diâmetro, a cada dez segundos. Se em
quatro rodadas de dez segundos, você não me neutralizar, serei o campeão do
desafio e você ainda terá de dar um jeito de descobrir como não morrermos
queimados pelo fogo mágico.
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Ivyna vislumbrava, com um terror nítido refletido nos olhos, as chamas vivas
circundando os dois. Vacilou por um breve momento, avaliando se não havia algum
tipo de pegadinha e então mirou a expressão confiante do irmão. Não quis dar o
braço a torcer. Mudou as feições e aprumou-se. Empinou o nariz em um esgar
desafiador. Esganiçou-se com ímpeto para se fazer ouvir.
— O que eu ganho quando neutralizar você?
Heidlich sorriu para a irmã. Admirou-se com tamanha audácia que bateu breves
palmas para ela de um jeito bastante irônico. Questionava-se de qual parente ambos
herdaram essa petulância toda. Cinismo e insolência nunca foram características
dominantes de Cench e Falla. Continuou aumentando o espaço entre ele e Ivyna
até estar a alguns palmos de distância das chamas. O calor do fogo elemental fez a
pele arder de leve. Arrependeu-se por ter criado uma pira tão intensa.
— Se, e somente se, você, porventura, conseguir me derrotar, como troféu deste
duelo eu a inscreverei para competir no Torneio da Academia!
Ivyna prendeu a respiração. Heidlich imaginava se o coração da irmã não havia
parado subitamente. Pelo esgar de espanto dela, arrazoava se não tinha se
precipitado de mais em oferecer tal prêmio.
— Que vença o melhor! — Heidlich curvou-se em uma longa reverência para a
irmã.
Adiantando-se aos movimentos do irmão, Ivyna conjurou uma esfera de magia
do tamanho de uma bola de canhão e aumentou-a até que atingisse sua altura. Num
movimento das mãos, lançou-a na direção de Heidlich.
O guardião balançou os dedos. Num gesto abrupto do polegar e do dedo anelar,
uma faísca vermelha crepitou em suas mãos. A pequena labareda cresceu. Adquiriu
uma forma quadrangular, esticou-se ainda mais, até que, por fim, em fração de
segundos, apresentou-se como uma longa espada de fogo.
A lâmina flamejante zuniu nos ares e cortou a densa esfera de poder. As metades
do balaço mágico voaram pelos flancos de Heidlich e atingiram com estrépito duas
pilastras dos corredores contíguos ao pátio externo.
— Achei que tentaria alguma coisa menos... previsível? — debochou Heidlich.
Ivyna arquejou. O rosto ficara vermelho como um tomate tão rápido quanto os
olhos se comprimiram e um bico de insatisfação surgiu em seus lábios. Heidlich
não deixava de mostrar um sorriso cínico; sabia que conseguira cutucar a fera.
Dez segundos passaram como um piscar de olhos. Sem se dar conta, Ivyna
observou o círculo flamejante diminuir seu diâmetro. O cerco entre ela e Heidlich
se fechou consideravelmente.
Uma fumaça cinzenta ocultou a jovem ruiva. Não era a neblina que ocupava os
campos naquela manhã friorenta. A névoa era mágica. Os olhos de Heidlich
comprimiram-se para tentar enxergar em meio ao negrume que se adensava. De
um cinza desbotado, o nevoeiro foi adquirindo nuances mais obscuras e se
279
avolumando. Aos poucos, ia tomando forma. Crescia em direção aos céus. Quando
atingiu uma altura vertiginosa, dois olhos amarelados e de íris verticais surgiram. A
cabeça em formato triangular oscilava para cima e para baixo. Com olhar frívolo e
ameaçador, o enorme basilisco mágico se apresentava. Arreganhava as presas
afiadas para o homem de cabelos louros com um misto de deboche e admiração
estampado na face a poucos metros de distância.
Oito, sete, seis...
A serpente empertigou-se e atingiu o ponto máximo. O ataque mortal era
iminente.
— Gostei do seu truque — gritou Heidlich; da mão uma energia azulada surgia.
— Mas eu prefiro cachorros...
Em um infinitésimo de segundo, que nem mesmo os olhos de Ivyna conseguiram
notar, outra fumaça emanou. Brotando do nada e dominando o perímetro mais
rápido do que qualquer um podia ver, ela se adensou, avançando sobre o gramado.
A jovem de cabelos vermelhos trançados ofegava, mantendo o controle do bote de
sua cobra mágica. Heidlich desapareceu em meio ao nevoeiro estratosférico da cor
do mar. Os olhos admirados de sua oponente seguiam na expectativa.
De chofre, surgiu.
Três cabeças caninas sobre um corpo coberto de pústulas se apresentaram. O
focinho enrugava-se em uma expressão assassina. Os olhos comprimidos eram
vermelhos e miravam as presas afiadas de sua rival de escamas. Os dentes afiados
rangiam de modo aterrador e a baba escorria de seus beiços para o chão do pátio.
O Cérbero elemental aguardava. Rosnando abaixo dos enormes focinhos
brilhantes, aprontava-se para encarar o basilisco diante dele.
Quatro, três...
O rosnado estridente reverberou nos ouvidos de Ivyna. A névoa negra e a azul
desapareceram. Basilisco e cérbero se encaravam sob os olhares atentos de ambos
irmãos. O longo silvo da serpente abissal reboou pelos ares. Três focinhos se
moveram e então, encurtando a distância entre eles, cobra e cachorro se
engalfinharam.
Heidlich moveu as mãos com destreza e rapidez. Ivyna gesticulava tão ágil quanto
o irmão.
Dois, um.
A cobra enroscou-se sobre o corpo pustulento do cachorro no mesmo momento
em que o anel de fogo encurtava as distâncias entre Ivyna e Heidlich. Fugindo do
calor causticante das chamas elementais, Ivyna vislumbrava sua serpente mágica
tentar esmagar o cão conjurado pelo irmão o mais depressa que podia. As feridas
tenebrosas do cachorro explodiam a cada nova tentativa de golpe e o corpo coberto
de escamas negras do basilisco encontrava dificuldade em sufocar sua presa.
280
As patas robustas do gigantesco Cérbero desferiam uma série de investidas contra
a cabeça triangular da serpente. Os dentes poderosos e afiados como uma lâmina
recém amolada tentavam abocanhar o pescoço escorregadio da cobra elemental.
O basilisco resistia com firmeza, mas as erupções azuladas sobre o corpo do
Cérbero impediam o corpo arrojado da serpente de aplicar seu poderoso golpe
final. O focinho do cachorro monstruoso aumentava a frequência de seus ataques.
Seria impossível resistir por muito tempo. Os caninos como estalactites
aterrorizantes estavam cada vez mais perto de encerrar a batalha.
Nove, oito, sete...
A contagem recomeçava na mente da jovem ruiva. Movimentava os braços com
imensa rapidez, como se conduzisse uma marionete ou mesmo a batuta para as
canções de uma orquestra, mas sem tirar os olhos do fogo que logo, logo estaria
mais perto de ambos.
As patas do Cérbero travaram o basilisco. O animal agitava a cauda, reverberando
seu chocalho. A língua bifurcada engrolava silvos de desespero. A bocarra do
enorme cachorro enganchou-se abaixo da cabeça do basilisco e com um único
golpe, dilacerou o corpo encrustado de escamas do animal.
A cabeça ofídica estatelou-se sobre o chão. O corpo escamoso ainda estremeceu
contra os céus até que finalmente tombou pela grama, em um baque ensurdecedor.
Cinco, quatro, três...
Assim como surgiram, cobra e cachorro desapareceram em espirais de fumaças
cinza e azulada. Heidlich e Ivyna se encararam outra vez, ofegantes. O rei de
Badorian aguardava em uma expectativa exacerbada o próximo golpe de sua
oponente.
— Devo lembra-la de que são somente quatro rodadas de dez segundos.
Ivyna viu o fogo deslocar-se outra vez. Encarou o irmão em seguida e correu para
mais perto dele. Era sua chance. A única chance. Precisava ganhar se quisesse
competir no Torneio da Academia dos Guardiões.
Era hora de arriscar o seu melhor golpe.
Agachou-se sobre o centro do pátio.
Sete, seis, cinco...
Os dedos da mão direita se moveram rápidos como um balaço em disparada.
Fizeram uma série de ligeiras combinações com a mão esquerda. Heidlich
aguardava e observava atentamente. Esperava. Embora estático, tentava decifrar os
próximos movimentos da irmã para poder se antecipar.
Quatro, três...
Faíscas azuladas coruscaram. Ivyna terminou a combinação de movimentos e
seus dedos tocaram a superfície enregelante do pátio externo.
Dois, um, zero.
281
Na iminência de atingir os corpos de Heidlich e Ivyna, o círculo de fogo não se
moveu. Uma nuvem de raios eletrizantes se espalhou para todos os lados do ponto
em que a jovem guardiã tocou o chão. Serpeando pelo mármore bruto, a magia de
Ivyna atingiu as chamas do irmão com veemência. Heidlich contemplou,
embasbacado, a onda azul enregelante neutralizar as labaredas indomáveis que os
cercavam a meio metro de acertá-los. O colossal círculo de fogo se convertera em
um grande paredão circular de puro gelo.
— Mas o que está acontecendo aqui?
O anel congelado evaporou-se em um estalar de dedos.
Uma voz carregada de insatisfação e surpresa ecoou. O timbre de voz era
inegável. Heidlich sentiu como se tivesse dez ciclos de idade outra vez e acabado
de fazer uma besteira muito grande. Sabia bem de quem se tratava. Os trejeitos de
mãe nunca mudaram, afinal. Ainda que em seus lábios houvesse uma incontida
vontade de rir, a inquietação de sua irmã o deixou apreensivo. Ivyna estacou.
Tremia dos pés à cabeça. Os olhos arregalados vislumbraram a expressão cética e
contrariada de sua mãe, parada a alguns centímetros onde antes havia uma parede
de gelo.
— Quantas vezes eu falei sobre isto? — Falla trotava pelo pátio, avançando em
direção à filha. Ivyna permanecia lívida e sem ação. — Este não é um ambiente
para uma dama. Você não tem que perder seu tempo treinando com seu irmão, há
muitos assuntos que você precisa saber antes de...
— Antes de quê? — A voz de Ivyna tremulou. A jovem ruiva reuniu um ínfimo
raio de coragem que emanou do fundo de sua alma. Decidiu que não queria mais
se calar. Era hora de encarar a mãe e mostrar que também tinha opinião, mesmo
que o medo de enfrentá-la estivesse estampado em seu rosto.
Falla arregalou os olhos. Parou no mesmo instante em que os lábios da filha
balbuciaram sua questão. As maçãs do rosto da rainha-mãe tremeram de forma
involuntária. Os olhos continuavam vidrados em Ivyna como se absorvesse o que
havia acabado de acontecer. Heidlich franziu o cenho; desde criança, sabia que isso
era um mau presságio.
— Você está me questionando? — Falla pronunciou as palavras pausadamente,
aumentando o volume em cada uma delas. A última soou como um berro
tresloucado.
Relembrando sua infância e adolescência, nas incontáveis vezes em que isso
aconteceu, Heidlich costumava seguir o ritual: recolhia-se à própria insignificância
e abaixava a cabeça para as broncas da mãe. Seguia cabisbaixo de volta ao palácio,
por fim, enfezado e desgostoso com as ordenanças de Falla. Contudo, contrariando
o que ele mesmo esperava, a reação de Ivyna foi diferente.
— Estou, sim — crocitou Ivyna; desta vez, sua voz estava um pouco mais firme.
— A senhora me impõe cargas pesadas. Cobra de mim aprendizados irrisórios e
282
antiquados. Regras de etiqueta em público, comportamento nos mais diversos
eventos, como coser, cuidar de casa, plantar, cuidar de animais, agir e pensar como
uma dama que viverá para sempre em função de um marido. Mas a senhora jamais
perguntou se eu quero ter um marido. A senhora nunca teve interesse em saber o
que eu realmente queria! Eu não quero uma vida de lady. Não quero ser uma dama
da corte e viver de fachada para uma nobreza imbecil que se gaba de glórias de eras
passadas. Eu quero ser uma Guardiã. A Guardiã de Eurodian, assim como Heidlich
foi.
O queixo caído de Heidlich e a expressão exacerbada de Falla denotavam a
proporção do susto que ambos tomaram. O desabafo de Ivyna foi claro como o
sol que se escondia por trás da densa neblina que cobria o pátio. Mesmo os guardas
reais a uma distância considerável puderam ouvir seu discurso exasperado.
Perturbado com o silêncio constrangedor que se instaurou entre os três, mas
pensando com seus botões, Heidlich estava em completo desespero, sem saber que
atitude tomar.
— Já para o seu quarto.
A voz impassível de Falla irradiou, antecipando-se em interromper o silêncio. Em
um sussurro desprovido de emoção, uniu-se aos ruídos estridentes do vento a
soprar pelo pináculo do castelo. Se Ivyna e Heidlich não estivessem tão próximos,
talvez não teriam escutado.
— Mas, mãe, eu...
— PARA SEU QUARTO, AGORA! — berrou a rainha. A apatia repentina
transformava-se em uma raiva incontrolável.
— Mãe, eu não vou obe...
Heidlich esticou a mão e segurou o braço da irmã. Interrompeu uma nova
investida dela em insistir naquela discussão que já tinha ido longe de mais.
— Ivyna, ouça nossa mãe. É hora de você se retirar e nos dar licença, por favor.
Ivyna fitou a expressão contundente do irmão. Interrompeu-se na hora. Vira
aquele esgar incisivo outras vezes: a mandíbula rígida como se rilhasse os dentes, o
queixo duro, os olhos azuis muito abertos mirando-a como se contemplasse a
aflição de seu âmago. Era como se dissesse, sem pronunciar mais nenhuma palavra,
que ela precisava ir embora imediatamente. Que este era o momento em que ele
interviria e agiria em seu favor. Como rei, somente ele conseguiria mudar a cabeça
de sua mãe.
A jovem assentiu. Virou-se e retornou para o interior do palácio.
O frio cinzento e desolador do pátio externo abraçou Heidlich e a mãe, a sós. O
guardião a encarou no fundo de seus olhos, meneando a cabeça, contrariado e
confuso com uma atitude tão mesquinha e uma reação irracional e intempestiva.
Falla permanecia indiferente; evitava encarar os olhos inquisidores do filho mais
velho.
283
— O que é que está acontecendo, mãe? — Heidlich segurou os braços de Falla,
fitando dentro de seu olhar apático. — Por que tanto drama, tanto autoritarismo
quanto às decisões de Ivyna? Eu testei e comprovei sua magia. Minha irmã é tão ou
mais poderosa do que fui quando tinha a idade dela. O que ela mais anseia, em
todos esses ciclos, é poder concorrer ao posto.
— Ivyna não pode concorrer — pronunciou Falla, impassível. — Ela está
prometida em casamento, desde os quinze ciclos de idade, para o jovem Ropher
Ottonis, filho de Lorde Tranto Ottonis, da Austera Amistelar.
— Isto não tem lógica, Lady Falla Lohntrak. Eu apelo para que coloque a mão
na consciência. Por que obrigar Ivyna a fazer algo ao qual ela não deseja? Minha
irmã é muito poderosa e deixou muito claro que não deseja se casar contra a
vontade. Se é desejo dela viver a experiência de Protetora de Eurodian, que assim
seja.
Contrariando as próprias suposições sobre o rumo da conversa, Heidlich viu a
mãe desmoronar. Falla levou as mãos ao rosto de repente e começou a chorar.
Dentre todas as reações que poderia imaginar, lágrimas inesperadas e contraditórias
após um discurso autoritário eram a última coisa que esperava ver.
— Não posso perder mais um filho — balbuciava Falla. A voz embargada,
naquele momento, abafada pelas palmas das mãos. — Não, outra vez, não. Cench,
meu amado Cench partiu. Agora, perderei outro filho para o Conselho dos
Guardiões.
Heidlich balançou a cabeça e abraçou-a com ímpeto. O choro repentino da mãe
perturbava seu interior.
— A senhora jamais perdeu um filho para o Conselho. Ainda que meu retorno
tenha sido tardio e em uma situação adversa para nossa família, eu nunca estive
longe o suficiente a ponto de não poder regressar para o conforto do meu lar.
Os soluços de Falla ribombavam. O rosto ainda oculto pelas duas mãos, sendo
envolvida pelos braços do filho, a rainha se derramava em uma lamúria sussurrada.
O pranto abafado da mãe deixava Heidlich cada vez mais desesperado. A única
reação que martelou em sua cabeça foi segurar os dois braços da mãe e encará-la
nos olhos.
Não havia lágrimas. Não havia olhos vermelhos. Não havia sequer um esgar de
tristeza no rosto marcado pelo tempo e pelo luto recente de sua mãe.
— Entre todas as coisas que aprendi com a senhora, desde moleque, foi a ser
sempre verdadeiro.
Heidlich não largou os braços da mãe. Continuou encarando-a, dessa vez com
olhos semicerrados, desconfiado. Aguardava dela uma resposta verídica. Falla
aprumou-se. Enfrentou o olhar do filho com a mesma presunção de antes da
suposta choradeira.
284
— Existe alguma coisa que a senhora não está me contando e insiste, com
lágrimas fingidas, em esconder de mim.
A rainha tentou se desvencilhar das mãos de Heidlich, mas ele permaneceu firme
e obstinado, com os dedos arraigados aos braços da mãe. Olhando para todos os
lados de um jeito aterrador, a rainha desarmou-se. Fitou o filho mais velho com
uma expressão desolada, mas denotando sinceridade pela primeira vez, desde que
pisara no pátio.
— Dentre todas as coisas pelo qual eu poderia me arrepender, há uma guardada
a sete chaves. — Falla abaixou a cabeça, consternada. — Uma coisa do qual me
arrependo amargamente e que me corrói por dentro todos os dias. Algo que não
há mais com esconder e que preciso revelar a você.
285
Capítulo Vinte
Lealdade em xeque
Era pelo menos a vigésima sétima vez que Alezeia repetia o mesmo movimento:
balançava a cabeça devagar, denotando interesse, esboçava um sorriso cordato e
desviava o olhar para os portões de entrada do grande Salão de Vidro. Não era um
olhar curioso ou interessado em o que quer que tivesse de especial nas admiráveis
portas translúcidas do outro lado. Entrementes, eram portas belíssimas, diga-se de
passagem. Fabricadas em um diamante específico e peculiar, proveniente de Tulich,
raríssimo em toda Eirin e uma exclusividade dos artesãos de Achmat. Contrastavam
de um modo suntuoso com a beleza da ornamentação da festa; um baile em
comemoração ao solstício de inverno no hemisfério norte. O baile mais tradicional
e milenar de Eurodian. Uma tradição tão antiga, celebrada religiosamente todos os
ciclos no palácio do governador de Cruisand.
Aquele era um momento ímpar. Uma oportunidade de poder encontrar velhos
amigos e reiterar os laços de amizade, confraternizar e discutir o futuro. Em ciclos
passados, esses momentos eram sempre carregados de grandes reflexões e boas
risadas. Grandiosos acordos de cooperação e tratados de paz tiveram início em
festas como aquela, sempre iniciadas com uma boa taça de vinho, uma música suave
e um pouco de diálogo aberto para quebrar o gelo. Além do luxo e requinte aparente
desses eventos, nem todos conseguiam compreender que, por trás da soberba e
altivez característica da humanidade, principalmente dos que galgavam posições
elevadas na sociedade, havia um verdadeiro propósito que sobrepujava as bebidas
caras, as joias cintilantes pesando nos pescoços e a ostentação exibidas desde a
decoração até os menores adornos dos convidados: as relações políticas. Alezeia
demorara a entender como a sacramentação e a exigência por pureza e abnegação
podia coexistir com estilos de vida tão depravados, relações com humanos tão
mesquinhos e amantes de si mesmos.
Enxergue além do que os seus olhos acreditam ser a realidade. Contemple além da ignorância,
além da presunção humana, além da vaidade. A máxima da Sacramentação não é a harmonia,
é a fé. Tenha fé na humanidade, Alezeia.
As palavras de seu antigo maedor ecoaram em sua cabeça e a ajudaram a
compreender, muitos ciclos mais tarde. Depois de tanto relutar e questionar,
286
enxergou que a paz podia nascer de momentos contraditórios e até mesquinhos.
Mesmo que as intenções da grande maioria não fossem nobres, se houvesse uma
fagulha de humildade, uma ínfima chama de perdão e graça, isto seria suficiente
para beneficiar o futuro de gerações, para salvar o destino das nações. Entretanto,
havia elfos intitulados sacramentadores que se deixaram levar pelos luxos e pela
jactância; que não conseguiam vislumbrar além do engodo das riquezas e não mais
se importavam com o real propósito de seus chamados. Orgulhosos, arrogantes,
amavam mais as benesses da alta sociedade do que a resignação clamada pela
sacramentação.
Quando retomou sua visão para o interminável monólogo de Bovir a respeito
dos incontáveis benefícios do chá de carqueja-de-Mistral para aliviar as dores que
sentia nas juntas provocadas por uma forte gripe que o lançou na cama por quase
um mês inteiro, Alezeia não conseguiu fugir dos olhares curiosos de Lorde Argus.
O rei da Magnífica Mistral também se envolvia na irrelevante conversa com o
anfitrião da festa. No alto de seus longos cabelos, que aquela noite pareciam mais
loiros do que o comum, e de suas vestes vinho muito elegantes, ele até tentava
parecer interessado. Estava acompanhado da esposa, Lady Iamira. Esta, sim,
parecia bem à vontade em sua prosa com o governador. A rainha de Mistral tinha
traços semelhantes aos do marido. Era loira e alta como ele e dona de uma beleza
ímpar. Sempre gentil, possuía um dom que poucos humanos e mágicos tinham: o
de saber lidar com os mais variados tipos de pessoas. Sabia como deixar uma pessoa
confortável em sua presença e tornava qualquer conversa interessante, por mais
chato que fosse o assunto. Diferente de Argus, ela não tinha tato para reparar nos
detalhes. Não conseguia observar os sinais tácitos de que alguma coisa não estava
bem.
E Alezeia sabia que o rei de Mistral havia reparado nela. O esgar intrigado, a
quantidade de vezes que desviava os olhos em sua direção de uma forma tão rápida
e furtiva que nem mesmo Lorde Bovir conseguia notar, reparando seu estado
aflitivo, a todo momento mirando a entrada do salão, denotavam que, mais uma
vez, Argus sabia que algo perturbava a paz dela.
Ignorando o fato de que não estava interessada em revelar o verdadeiro motivo
de sua inquietação, Alezeia mirou outra vez os portões transparentes. Além das
muitas cabeças de convidados espalhados pelo salão, ora dançando, ora dispostos
em pequenos grupos para conversar ou mesmo apreciar uma boa bebida, ela tinha
a esperança de entrevir, ao longe, depois dos campos externos, alguma carruagem
conhecida. Aguardava uma diligência com o brasão da Ordem dos
Sacramentadores. Infelizmente, o que via eram archotes incandescentes, guardas
reais e carruagens luxuosas que se abriam para convidados opulentos, com títulos
reais e uma indiscutível presunção exacerbada estampada em suas faces e trajes
pomposos.
287
Outra vez, dedicou os ouvidos e os olhos a Lorde Bovir, mas sem
necessariamente prestar atenção. Perturbou-se em seu íntimo. A qualquer
momento, sabia que o governador de Cruisand faria a pergunta que tanto a
inquietava, a raiz de todos os males e preocupações: onde estava Menfesis. Pela
primeira vez, ela não saberia o que responder a ele.
O convite era enfático. Seria um crime contra o carinho que o governador possuía
por ambos. Uma tradição tão antiga e celebrada por ela e Arturo desde eras muito
remotas, quando ambos eram humildes arcanos prontos a servir. Recordava, no
fundo de suas mais longínquas memórias, a primeira vez em que pisou naquele
lugar. À época, abominava tudo que vinha dos humanos: suas festas, suas roupas,
os olhares lascivos que lançavam em sua direção quando passava por eles. Não
conseguia compreender porque os sacramentadores tinham de estar envolvidos em
tanta hipocrisia que se arremetia com fúria contra tudo o que sua religião mais
valorizava. Mas a sabedoria do tempo foi transformando suas opiniões, mostrando
que podia, sim, haver beleza em meio a tanto horror, salvação onde imperava o
caos. Menfesis, por sua vez, era fascinado. Inocente de mais para enxergar o que
ela vislumbrava. Encantado com tudo o que jamais viu ou teve antes de ingressar à
Ordem, perdia-se no meio de tanto luxo e suntuosidade.
Em que momento no tempo este Menfesis, ingênuo e modesto, se perdeu? Em
que instante se transformara no elfo frívolo e solitário que preferia se esconder da
presença de todos?
A verdade era que Alezeia estava acabrunhada. Insistia em tentar mostrar-se forte;
persistia em negar que uma crise havia se instaurado numa instituição tão antiga e
respeitada em toda Eirin, a religião mais antiga e venerada para tantos elfos
devotados. Entretanto, a força que tentava manter e demonstrar ia se esvaindo
pouco a pouco, minada pela ausência e fraqueza de seu líder máximo. Cansara do
isolamento de Menfesis, agonizava pela falta de informações a seu respeito. Mais
do que a presença do Supremo-Chanceler de Purysia, sentia saudade de seu velho
amigo, sonhador e obstinado, inspirador e conselheiro de eras atrás. O amigo que
enfrentou, de forma sábia e corajosa, um conflito que quase abalou as estruturas da
Ordem, sem que isto resvalasse sobre a sociedade e abalasse a confiança das nações.
Alguém que conduziu com equidade e justiça um dos períodos mais tenebrosos da
sacramentação moderna.
Não obstante tantos problemas que vinha enfrentando sozinha, outra coisa a
incomodava de modo perturbador e se tornara uma pedra incômoda em seu sapato:
Klaus Trishnann, o recém-nomeado sacramentador de Perspicácia. Na única vez
em que Menfesis deu as caras no Oráculo do Tempo, após selar o Acervo
Sacramental e se isolar de vez na torre da Grande Bússola, o jovem sacramentador
não saiu de seu encalço, seguindo-o por onde quer que fosse. O jeito adulador, o
olhar inquisidor para os outros elfos e arcanos e a obsessão pelo poder, estampada
288
em suas expressões bajuladoras, faziam-na questionar o quanto Menfesis não fora
precipitado em indicar um elfo tão mesquinho e prepotente para um cargo deveras
elevado. Ao passo que os demais sacramentadores recém-nomeados seguiam em
suas peregrinações por conhecimento nos reinos de seus novos Octaedros,
Trishnann ignorara por completo o aprendizado anterior e desprezou as
recomendações de seu padrinho. Preferiu manter-se o mais próximo possível do
Salão da Bússola, como um autointitulado arauto do Supremo Chanceler, ainda que
Arturo não tivesse outorgado tal poder a ele.
Menfesis abriu as portas de seu isolamento uma outra vez. Dessa vez, para se
reunir a Klaus, às portas fechadas. Os arcanos e sacramentadores, confusos,
corriam, de imediato, para relatar tudo à Alezeia. A única coisa que podia fazer era
ouvir e tentar minimizar as fagulhas de uma possível crise, colocando panos quentes
na situação, sempre reiterando que estava tudo sob controle. Mas, no fundo, a
angústia a consumia, pois nem ela mesma tinha tanta certeza. A visita inesperada
de Lorde Moronov em Purysia caiu como uma bomba quando todos descobriram
o real motivo de sua visita. O Conselho cobrava respostas. Exigia informações
sobre os boatos de um conflito interno que colocava a Ordem em xeque. Logo, ela
mesma não seria mais respeitada e o caos, tão temido e mitigado pelos elfos, viria
à tona. Outrossim, encontrava-se questionando por que Menfesis preferia falar com
um jovem e inexperiente sacramentador e não com ela. Por que evitava sua
presença, mas não se incomodava com as bajulações de um estranho novato?
Ainda não havia descoberto as respostas para suas indagações perturbadoras,
mas, desde o fatídico encontro às escuras com Klaus, o palácio se transformara em
um verdadeiro inferno. O mais novo líder do Octaedro de Perspicácia não parecia
satisfeito em assumir tamanha responsabilidade, parecia querer mais. Ao sair da
presença de Menfesis, que permaneceu enclausurado em sua fortaleza solitária,
Trishnann passou a se achar o novo líder de Purysia. Andava de um lado a outro
dando ordens aos arcanos, como se fossem seus escravos particulares. Ordenou
que o protetorado reforçasse a guarda em toda encosta, como se a ilha estivesse na
iminência de um ataque militar. Exigia dos demais sacramentadores relatórios e
tarefas surreais, sempre gritando e ordenando como se eles o pertencessem. Alezeia
observava, de mãos atadas, sentindo-se completamente impotente. Indagava-se se
a sanidade mental de Menfesis não se corrompera de vez. A gota d’água se deu
numa tarde de domingo, quando o palácio ficou mergulhado em uma densa
penumbra e as tochas dos salões e corredores ainda não crepitavam suas chamas.
— Ei, você aí! — Klaus caminhava a passos largos. Nariz empinado, inspecionava
cada archote com redobrada atenção quando cruzou o caminho de uma arcana
recém-chegada à ilha. — Por que essas luzes ainda não estão acesas?
Por uma irônica coincidência do destino, Alezeia cruzava o hall de entrada
quando vislumbrou a fatídica cena. Ainda que decidisse fazer vista grossa para tudo
289
o que acontecia e não se abater em seu âmago, aquela situação fora o estopim para
constatar que um colapso sem precedentes se arremetia.
— Eu... eu não sei... — gaguejava a arcana aturdida. Tremia de medo, olhando
para todos os lados sem saber o que fazer.
A expressão de Klaus transformou-se de repente. O corriqueiro olhar de
desprezo desapareceu e deu lugar uma carranca transtornada, consumida por um
ódio descontrolado.
— COMO É QUE É? — vociferou Klaus, se assomando em direção à
inexperiente elfo — Sua elfo imbecil, arcana inútil. Como ousa responder-me que
não sabes porque as luzes não estão acesas? Ordeno, imediatamente, que...
— Klaus Trishnann! — crocitou Alezeia.
A voz firme e serena ecoou por todo hall; soou mais alto do que ela imaginara,
ribombando sobre os ouvidos de todos, atraindo a atenção de uma comitiva de
arcanos e um pequeno grupo de sacramentadores que seguia pelas escadarias
principais, virando os olhos para a cena que se seguia. Klaus ergueu a cabeça e
mirou, com uma expressão assassina, o rosto impassível de Alezeia. A jovem arcana
girou a cabeça, atordoada, fixando os olhares no mesmo alvo de Trishnann.
— Acredito — Alezeia caminhou lentamente até ficar bem próxima de Klaus —
que esta exacerbada ambição por poder está afetando suas faculdades mentais.
— Como você ousa... — balbuciou Trishnann, comprimindo os olhos.
— Como você ousa esquecer-se completamente que os pilares de nossa religião
nos levam à resignação, humildade e temperança? — Alezeia interrompeu,
mantendo o timbre inabalável. — Como você ousa ignorar o vasto aprendizado
obtido desde seus mais ignóbeis ciclos como arcano, amando mais sua própria
ignorância, presumindo ser a força maior do que a inteligência?
— Creio eu, nobre e eminente Alezeia, — inferiu Klaus, com um tom carregado
de ironia — que talvez não estejais à par das mudanças que nosso líder máximo,
Arturo Menfesis, tem efetuado em nosso meio. Dentre elas, enquanto ainda
perdura seu período de meditação, outorgou poderes de Mediador a mim para
cuidar de Purysia com o objetivo de manter a ordem e a harmonia de nossa religião,
da forma que eu julgar necessária.
Alezeia sorriu. Mesmo que não fosse sua intenção e desejasse ter parecido afável,
a forma singela com que exibiu os dentes e encarou o jovem sacramentador soou
de um jeito debochado. Klaus se inquietou; estufou o peito e rilhou os dentes;
arquejava de um jeito abissal. As orelhas pontudas assumiram um tom púrpura e as
veias de seu pescoço saltaram de modo assustador.
— Segundo a seção quarenta e cinco, inciso nove, de nossas Leis e Preceitos
Pétreos, as decisões sobre alterações e outorga de responsabilidade só serão
consideradas válidas quando definidas em sessão solene da Ordem, com o aval do
Supremo Chanceler de Purysia e da Superiora Chanceler — falou Alezeia,
290
pontuando cada palavra com uma serenidade ímpar — e eu te informo, inócuo
sacramentador, se é que és digno de um título tão nobre, que somente por cima do
meu cadáver eu concederia os poderes de Moderador à sua pessoa.
Klaus respirou fundo. Mirou o olhar pacífico, porém firme de Alezeia. Os lábios
tremiam involuntariamente; uma fúria incontida o dominava pelas palavras que
acabara de proferir, mas nenhum som saiu de sua boca. Limitou-se a sair de sua
presença, batendo os pés de um jeito pesado sobre o piso do hall.
— O QUE É QUE VOCÊS ESTÃO OLHANDO? — berrou Klaus,
tresloucado, vislumbrando os olhares curiosos dos sacramentadores e arcanos
estacados ao redor, observando a discussão. — ANDEM! VÃO EMBORA! — E
seguiu por um corredor, sem ousar olhar para trás.
A avalanche de preocupações que assolava sua mente desapareceu quase que por
completo quando Alezeia girou o pescoço e vislumbrou o que os demais rostos
contemplavam, de queixo caído, encantados e enlevados, descendo as escadarias
principais do Salão de Vidro.
No alto de uma beleza deslumbrante e de uma opulência arrebatadora que
cativava cada convidado da festa, até mesmo as suaves melodias da orquestra foram
interrompidas, dezenas de figuras importantes de Eurodian prenderam suas
respirações e um silêncio se instaurou para os presentes conseguirem admirar a
plenitude do esplendor da bela elfo que deslizava graciosamente pelos degraus,
sorrindo e acenando para todos. Alezeia sorria de um modo bobo. Um sentimento
de orgulho ardia em seu peito. Esqueceu as preocupações por um instante. A
inexperiente e dócil arcana que um dia teve a oportunidade de ensinar, tão inocente
e sempre solícita em seus afazeres e no serviço sacramental, tornara-se então um
ícone extasiante, admirada pelas principais lideranças do continente, finalmente
conhecendo o rosto daquela que viria a ser a nova representante do Octaedro de
Hegemonia. Uma apresentação estonteante, carregada de leveza e resplendor,
como mandava os preceitos da religião. Uma das poucas decisões de Menfesis que
Alezeia considerava assertiva, ainda que tomada em um momento conturbado e de
forma equivocada, profanando princípios tão antigos de Purysia, violando inúmeras
leis e normas pétreas, desagradando os demais sacramentadores que ainda não
haviam completado suas eras perpetatem.
— ... Não é mesmo, Alezeia?
A pergunta de Bovir fez Alezeia despertar de seu transe, ainda arrebatada pela
elegância e imponência de Dhara em meio à multidão. A música irradiava pelo salão
outra vez; permeava entre os convidados e os impulsionava a se ajuntarem e
deslizarem pelo recinto em valsas acaloradas. As maçãs do rosto queimaram com a
sensação de não estar dando devida atenção; a sacramentadora sorriu de forma
automática e educada.
291
— Perdão — proferiu Alezeia, retornando de seu estupor. — Acho que me perdi
em pensamentos. O que dizia?
Bovir soltou uma longa gargalhada. A simpatia exacerbada do governador de
Cruisand era uma marca registrada. Os dentes grandes, levemente protuberantes e
o longo bigode escuro que escorria em direção ao queixo estavam sempre prontos
a se abrir em um esgar caricato e contente. Argus, ao seu lado, balançava a cabeça
e arregalava os olhos para ela, como se tentasse transmitir uma mensagem
desesperada.
— Ficamos todos arrebatados com a beleza ímpar da nova Octaedro de
Hegemonia. Uma belíssima apresentação para os convidados, sem dúvida. Mas eu
perguntava a respeito de Menfesis. Há tempos não o vejo. Imagino que esteja
atafulhado de trabalho, ele não costuma se ausentar dos meus eventos.
Alezeia estremeceu. Observava a expressão curiosa de Lorde Bovir aguardando
uma justificativa, no mínimo decente, para o dissabor da ausência de uma figura tão
ilustre em um evento daquela magnitude. Argus fez uma careta ao seu lado, seguido
de um muxoxo. Bovir desviou o olhar. Franziu o cenho para os tiques bizarro do
amigo ao seu lado. O rei de Mistral esticou a mão para um garçom e pegou uma
nova taça de vinho, virando-a de uma só vez.
— Lorde Bovir, é que Menfesis está...
— Espero não estar atrapalhando esta prosa que parece deveras interessante.
Alezeia, Argus e Bovir foram pegos de surpresa e giraram onde estavam para
vislumbrar quem era o dono da voz grave e firme, que de tão polida vibrava como
uma música suave em seus ouvidos. Argus fitou o interceptor e respirou aliviado
por ter interrompido sua tentativa de ajudar Alezeia.
— Você nunca atrapalha, Sisno.
A presença majestosa de Sisno Sannfrye obliterou qualquer vestígio de
constrangimento que surgira nos míseros segundos em que a coragem de Lorde
Argus vacilou vergonhosamente. Sisno era a maior referência viva de sabedoria e
liderança de Purysia. Se havia alguém que podia ser considerado o maior
contribuinte para a aproximação dos sacramentadores com os humanos mágicos e
não mágicos e a boa relação da Ordem com o Conselho dos Guardiões, este alguém
era Sannfrye. Um elfo de feições amistosas, sempre cordato e extremamente
atencioso a quem todos admiravam e em quem se espelhavam. Não havia um único
arcano ou jovem elfo aspirante à sacramentação que jamais tivesse ouvido falar
dele. Com um jeito elegante e educado, era um elfo sereno e extremamente político.
Era considerado um dos sete mais sábios sacramentadores da história. Ainda que
não pertencesse a um dos clãs dos Etéreos, esforçou-se ao longo de eras para forjar
a reputação e o prestígio de que possuía ante à comunidade élfica. Não obstante
era o grande mentor de Menfesis. Vira o atual líder da Ordem ascender de um
jovem e ingênuo arcano, seu próprio arcano, à cadeira mais alta do Oráculo do
292
Tempo. Imaginava, contudo, os dissabores que não estava passando pela falta de
prestígio de seu maior e mais querido aprendiz. Dizia-se que detestava holofotes e
que preferia os bastidores — o que para Alezeia fazia bastante sentido, pois jamais
quis acreditar que fosse apenas abnegação o fato de não almejar o posto de maior
destaque em Purysia, visto que ele possuía as qualidades necessárias e o apoio de
centenas de sacramentadores para tal. Quando a principal lei de Purysia fora
quebrada, foi o maior articulador para a deposição do antigo líder da Ordem. Foi
legislador e juiz, acusando o líder deposto por todos os seus crimes. Uniu os Oito
Octaedros e a maior parte dos elfos conselheiros, jogando-os contra o ex-Supremo
Chanceler, sem que ele tivesse a menor chance de se defender. Diante da
oportunidade de liderar os sacramentadores, preferiu que seu pupilo levasse todo
crédito e a glória de salvar o destino da harmonia do tempo, transformando
Menfesis no mais novo líder da Ordem. Ninguém jamais entendeu muito bem essa
história, mas todos confiavam em Sisno e sabiam que ele fora o grande condutor
da única revolução ocorrida na sacramentação. Alezeia tinha suas dúvidas.
Questionava-se se as intenções de seu contemporâneo de sacramentação eram
realmente nobres e altruístas, embora ele nunca tenha dado razões para duvidar de
sua conduta e intenções.
— Concede-me a honra desta dança? — Sisno ergueu a mão para Alezeia.
— Ma... Mas é claro, Sisno — respondeu Alezeia, um tanto surpresa com o
convite inesperado.
— Com a sua licença, cavalheiros. Tomarei esta bela dama de vossas presenças e
a conduzirei ao longo de uma valsa. Ainda que eu não seja um exímio dançarino,
prometo devolvê-la sã e salva.
Bovir gargalhou e brindou ao casal que se deslocava para o centro do salão. Lorde
Argus bebericou de uma taça e fez um gesto com o olhar, instigando Alezeia a
aproveitar a dança e fugir das questões do qual ela preferia não responder.
Deixando-se conduzir por Sisno até o centro do salão, Alezeia piscou para Dhara
que aguardava ao pé da escada, quando passou por ela. A jovem elfo sorriu de volta
de um jeito que era um misto de gratidão e inocência, mas também de garra e
compleição. Nunca tivera a experiência da maternidade, mas imaginava que os
sentimentos de uma mãe deveriam ser os mesmos que experimentava naquele
instante. Orgulho por uma filha do coração, que viu crescer em sabedoria e estatura
e que desabrochava perante a sociedade, com determinação e garra, para o mundo.
A mão de Sisno repousou em sua cintura sem titubear. Ao passo que a outra
segurava seus dedos de uma forma delicada, ambos deslizaram para o meio, onde
outros pares também dançavam. Bailavam de forma graciosa, com uma elegância
ímpar, sem improvisos e ela descobriu uma nova habilidade que desconhecia de seu
amigo elfo.
293
— Alezeia, quero ser franco e direto contigo e acredito gozar de sua confiança
para isto: o que está acontecendo com Menfesis?
A pergunta surpreendeu Alezeia. Encarou os olhos azuis como um profundo
oceano de Sannfrye. Ele tinha esse dom: o mundo podia estar desmoronando, o
caos imperando de uma forma assustadora, mas a serenidade e a racionalidade se
mantinham inabaláveis. Outra vez, se pegava questionando por que ele nunca
almejou a cadeira de líder e como a Ordem estaria muito melhor se, com toda sua
sabedoria de eras, ele a liderasse. Era amigo dos Guardiões, admirado pelos elfos e
sacramentadores e respeitado pelos maiores reis de Eirin.
Alezeia sorriu, desgostosa e resignada. Gostaria, no profundo desespero que
habitava seu âmago, de ter essa resposta para dar ao amigo que a conduzia tão
preciso pelo salão. As maçãs do rosto queimaram e ela sabia que Sannfrye notara o
rubor violento que a dominava. Não era difícil ler suas expressões de pesar ao longo
do salão.
— Sisno, com toda franqueza e sinceridade que habita meu coração, eu não sei
pelo que Menfesis passa. Sequer possuo conhecimento do que acontece na Sala da
Bússola. Menfesis acolheu o isolamento e o chamou de amigo. No fundo, algo o
perturba, sei que seu coração está em profundo desespero, mas eu não sei pelo que,
pois ele não confia mais em mim. Ele não confia mais em ninguém.
— Alezeia, julgo de minha parte que, talvez, em toda minha carreira como um
humilde servo da sacramentação, dedicando o melhor de meus ciclos e a plenitude
de minhas ciências, tenha cometido um erro gravíssimo. Um erro que se reflete em
consequências desastrosas para o Oráculo do Tempo e que põe em xeque todas as
conquistas arrebanhadas ao longo de eras: escolher Menfesis em vez de você para
líder da Ordem.
Alezeia arregalou os olhos. O queixo despencou com o baque da sentença
inesperada. Do que Sisno estava falando? Ouvira realmente o que achava ter
ouvido? Sisno... arrependido? Arrependimento não era um sentimento comum
entre os elfos. Externá-los tão franca e abertamente não era visto com bons olhos.
— Sei que compartilhamos de um sentimento mútuo. Infelizmente, nossas
escolhas têm consequências. Não podemos alterar o curso do tempo, ainda que
tenhamos poder para tal. Passamos por isto ciclos atrás. Já vivenciamos isto. Mas
somos reféns de nossas escolhas. Meros lacaios de suas consequências. Não era
Menfesis quem devia ocupar aquela cadeira...
— Sisno, se está propondo que eu...
— Não estou propondo que, por influência de um discurso de arrependimento,
possua a pretensão de comover seu coração para que usurpes o trono do líder da
Ordem. Sim, Alezeia, tomo seu espanto como surpresa diante de minha sentença.
Assim como um mero humano, o arrependimento me consome. Não somos
294
levianos para sermos levados por sentimentalismo e é sua racionalidade, a maior
virtude que admiro em você.
— Não consigo compreender, Sisno.
— Os sacramentadores estão insatisfeitos, Alezeia. Isto com certeza está patente
às suas percepções. Sabes que Menfesis cometeu o maior dos sacrilégios,
interrompendo as eras dos antigos e nomeando novos e despreparados
sacramentadores. Os maiores pensadores élficos de nossa atualidade questionam
todos os dias tal decisão. Os Etéreos são os maiores inquiridores. Não há um dia
sequer que não receba uma carta deles à procura de respostas para o que classificam
como uma crise dentro de nossa religião. A liderança de Menfesis está em xeque. A
ausência de governo em Purysia abala a credibilidade da Ordem, construída sob
muito esforço e resignação ao longo de tantas eras. A confiança das nações na
sabedoria dos sacramentadores está sendo despejada na sarjeta. A harmonia do
tempo não pode ser prejudicada pelos delírios, que beiram o infantilismo, de
Menfesis, que não é mais um arcano de pernas raladas como o foi há tanto tempo.
— Sisno, eu compreendo a insatisfação que permeia toda Eirin. Você não é o
único a receber centenas de cartas e questionamentos. A minha alma chora pela
indiferença de Menfesis e suas...
— Alezeia, perdoe minha indelicadeza em interromper suas palavras, mas não
estou aqui unicamente para compartilhar contigo de meu tolo arrependimento de
não ter dado a você a liderança de Purysia quando bem pude. — A expressão de
Sannfrye assumiu um tom soturno quando ele a interrompeu. — Menfesis foi
pesado e medido. Uma difícil, porém necessária, decisão está tomada: os antigos
sacramentadores e eu decidimos destituir Menfesis.
Alezeia ficou atarantada. Arregalou os olhos para a expressão impassível de Sisno
em declarar tal sentença com tamanha calma.
— Sisno, por tudo que há de mais sagrado, vocês não podem fazer isto. — Em
seu íntimo, Alezeia se abatia. O desespero ia tomando conta de seu corpo, pouco a
pouco. — Você sabe o que isto significa. Um levante dos Oito seria considerado
alta traição.
— Possuo plena consciência, Alezeia, do que isso significa. Fui eu mesmo quem
escreveu essas leis e posso citar a ti em qual alínea, parágrafo e inciso seríamos
condenados. Entretanto, períodos conturbados exigem medidas extremas. Eu não
vim até aqui pedir sua permissão, Ada Alezeia Turim. — Sisno sorriu de uma forma
singela, quase paternal. — A decisão está tomada. Menfesis tornou-se poderoso
demais para ser combatido por qualquer um de nós. Até mesmo você, se quisesse
levantar-se em armas e combater a tirania de Arturo, seria um irrisório e pífio
obstáculo para o vasto poder que ele possui.
— Mas, então, como vocês pretendem...
295
— Partiremos ao amanhecer. Incursionaremos para buscar o único elfo que
possui capacidade para deter Menfesis e reestabelecer a confiança dos povos élficos
na Ordem. A única e derradeira dúvida e que ainda me mantém conduzindo-a ao
longo desta valsa suave é: a quem você é leal?
Alezeia estava estarrecida.
— Sisno, você não pode estar falando de...
— Adryan Varnor — pronunciou o sacramentador, sem titubear, o nome que fez
Alezeia estremecer e arregalar ainda mais os olhos assustados.
— Sisno, mas nós...
— Sei muito bem o que fizemos a ele. Não precisas recordar-me dos tenebrosos
eventos de quase uma era atrás. Ambos estávamos lá quando tudo aconteceu.
— É impossível, Sisno, que Adryan tenha sobrevivido à horrenda condenação
que infligimos a ele.
— Há rumores, Alezeia. Rumores de terras longínquas e inóspitas, de que Adryan
ainda vive, habitando as Terras Distantes de Turmis. Há boatos que afirmam sua
nova alcunha: Rei Elfo. Contudo, sem querer alongar-me, pois a música em breve
cessará e não pretendo atrair mais atenções para nós, pois até as paredes aqui
possuem olhos e ouvidos. Minha questão permanece sem resposta: a quem você é
leal, Ada Alezeia Turim?
Espreitando a conversa, uma ninfa das águas esgueirou-se pelo lugar. Correu
pelas paredes do Salão de Vidro e lançou-se às águas salinas e revoltas de Argúrius.
Disparando em ultra velocidade, singrou os oceanos e alcançou o Oráculo do
Tempo. Klaus Trishnann aguardava. Contemplava um céu azul pontilhado de
estrelas, no auge da noite em Purysia. A ninfa serpenteou por uma das torres e
materializou-se ao lado do sacramentador. Contou a ele tudo o que ouvira na festa
de Bovir.
Trishnann sorriu de ponta a ponta da orelha.
— Menfesis vai adorar saber a respeito desta alta traição.
296
Capítulo Vinte e Um
Perdidamente Apaixonado
O barquinho aportou no pequeno cais de um jeito nada suave. Madeira com
madeira se chocou e seu único tripulante, além do próprio condutor, quase foram
arremessados para dentro das águas geladas. A noite imperava havia algumas horas
e as estrelas brilhavam com vívido esplendor. Uma gloriosa lua reinava, insólita, em
um céu enegrecido livre de nuvens ou de qualquer sinal de avenatis flutuando pela
abóbada celeste.
Os avenatis eram uma presença constante esta época do ano e tornavam os céus
turmisianos um espetáculo à parte, de dar gosto de admirar. Monstros nômades,
colossais e exorbitantes, eram as maiores criaturas voadoras de Eirin e faziam dos
céus sua morada. Contemplados lá de baixo, se assemelhavam e muito com as
grandes nuvens esbranquiçadas típicas da Primavera durante o dia. E, quando a
noite ia surgindo, no lusco-fusco do fim de cada dia, pintavam a imensidão com
uma miscelânea de tons que variavam do laranja ao púrpura. Uma suntuosa aurora
boreal de nuances quentes. Apesar de abissais, eram criaturas mágicas
extremamente dóceis e amistosas. Nas hibernações de inverno, forneciam um óleo
natural muito valioso, usado de diversas formas: desde combustível para lareiras até
a aglutinantes para forjas de minerais mágicos com pedras preciosas. Como não
pairavam sobre os céus da Austera Amistelar, provavelmente estavam em suas
transições migratórias, interrompendo a letargia estagnada a que viviam durante o
verão e a primavera e se locomoviam pelo espaço, rumando em direção ao sul, para
além dos limites da Cordilheira Negra, em direção às Terras Distantes, quando
sumiam no horizonte para regressarem somente no ciclo seguinte.
Com o coração acelerado, Louk desvencilhou-se de sua capa de couro e pulou do
barco. Chapinhou pelas pequenas poças de água parada acumuladas sobre a doca
de madeira quase apodrecida; por um instante viu-se indagando por que o pai nunca
reformou aquela plataforma. Tudo bem que o acesso predileto dele e de toda
nobreza tornara-se o Arco Real, a triunfal entrada recém-inaugurada com exaustivas
escadarias que brilhavam até no escuro, mas por eras aquele pequeno cais
maltratado e castigado pelo tempo foi a principal forma de se chegar ao castelo e,
atualmente, não passava de uma doca abandonada e esquecida.
297
Sob à luz vacilante das tochas engastadas ao longo do sinuoso caminho entre as
rochas tortuosas e escarpadas, morro acima até o palácio dourado, brilhando com
as luzes incandescentes de alguns cômodos ainda acesas, Louk vislumbrou o grande
lago que circundava a escarpa do castelo. Sempre acreditou que o grande lago
Tiwara (poça negra, em antigos dialetos turmisianos) tinha o estranho formato de
um coração. Embora seus amigos, principalmente Ropher e Mark, afirmassem
categoricamente que ele estava enganado, que na realidade o lago tinha o formato
de um fígado de bebum perfurado por uma flecha em chamas, em dado ponto do
caminho percorrido, ele conseguia enxergar o formato desenhado de um coração.
Meio torto, mas ainda um coração. Esforçando-se para tentar observar,
comprimindo os olhos e testando vários ângulos, jamais conseguiu enxergar da
forma como seus amigos descreviam.
Havia uma razão ainda mais forte para fazê-lo vislumbrar o lago de tal jeito. Nesse
dia, muito mais do que antes. Regressava à Amistelar radiante, arrebatado por um
sentimento dominante. A leveza o abraçava, como se estivesse flutuando. Um misto
de sentimentos esquisitos preenchia seu coração. Sentia-se bobo, perdido nas
inúmeras lembranças que ocuparam sua viagem de volta para casa. Nem percebera
o tempo passar. O gosto do beijo ainda estava em sua boca. A pele macia e delicada
do ser angelical, a quem tomou nos braços, perambulava em sua memória,
marcando-o como uma cicatriz feita à ferro e fogo. Toda vez que fechava os olhos,
ficava como quem sonha. Rememorava, a todo instante, o rosto perfeito, o sorriso
gracioso e os olhos cheio de vida de Dhara Lovrens, a bela elfo por quem estava
perdidamente apaixonado.
Apaixonado. Completamente apaixonado. Doente de amor. Essas palavras
martelavam em sua cabeça porque o coração dava cambalhotas no peito sempre
que regressava àquele momento único, eternizado no tempo, mesmo que por
breves segundos, em que seus lábios pressionaram a boca suave de Dhara e pôde
sentir seu hálito quente, sua língua doce como mel. Puxar sua cintura mais próxima
a dele e com uma das mãos acariciar os cabelos tênues da esplendorosa elfo em
seus braços.
A certeza dominante em sua mente era de que, pela primeira vez, estava
plenamente feliz. Pela primeira vez, a paixão dominou suas faculdades mentais. Um
sentimento sem precedentes, suplantando qualquer outra paixão de toda sua vida.
Fazia as outras mulheres com quem ficara, meras memórias insignificantes e sem
sentido. Mesmo que não fosse uma mulher, Louk tinha a certeza de que era com
Dhara que ele queria viver todos os ciclos possíveis, até ver o fim de seus dias em
Eirin. Ainda que houvesse tantas diferenças entre ambos, como o fato de sua
longevidade, saberia que, quando chegasse sua hora, morreria feliz por ter
encontrado alguém que valeu à pena.
298
— Sua Alteza está bem? — Um dos guardas do palácio o observava com uma
expressão desconfiada.
— Melhor, impossível, meu amigo. Melhor, impossível! — respondeu Louk,
radiante, sacudindo o soldado.
Subiu as escadarias bem devagar, flutuando pelos degraus. A cada nova piscadela,
vislumbrava as luzes esplendorosas do palacete de Lorde Bovir. A orquestra
dedilhando suas notas suaves ao fundo. À sua frente, Dhara sorria. Ela discorria
sobre como a Ordem dos Sacramentadores funcionava, mas nada daquilo
importava. Não conseguia tirar os olhos de sua beleza descomunal. No silêncio que
se seguiu, depois de explicar como estava fadado ao posto de Guardião, pegou-se
rendido à paixão exacerbada. Um sentimento que nenhuma das suas maiores
loucuras, buscando uma felicidade momentânea, foi capaz de proporcionar. Um
sentimento que preencheu um vazio de sua alma, carregado há tanto tempo e que,
por diversas formas, tentou saciar. A louca paixão o acertou de repente e o fez
admitir: por ela, desistiria de tudo.
Estacou de súbito, no meio da escadaria. Encarou o belo céu estrelado ao seu
redor e tudo pareceu se esclarecer diante de seus olhos.
Era este o momento. Jamais tivera tanta certeza que chegara a hora de seguir seu
coração e ser feliz. Fazer o que achava correto, não o que os outros queriam que
ele fizesse. Deixar de lado as regras e leis impostas pelo pai e pelos demais clãs e
voar rumo ao destino que, mesmo parecendo incerto, lhe traria a verdadeira
felicidade.
Correndo afoito pelas escadas, tomou a decisão que mudaria sua vida e com
certeza abalaria as estruturas da Austera Amistelar, já tendo como certa a decisão
de Lorde Leoris, seu pai, o rei. Decidiu abdicar da indicação para Guardião. Outros
jovens guardiões aceitariam de bom grado o “fardo” de ser o protetor do continente
e viver acorrentado aos grilhões infligidos pelo Conselho. Quem não gostaria de
ser o grande herói de Turmis? Bald, Mark, Gavor saltariam de emoção se fossem
indicados ao cargo por ele. Jano, com seu jeito “certinho” de ser e toda sua caretice
seria o primeiro a aceitar a missão. Bald se sentiria honrado — e Louk apostava que
seu amigo choraria feito criança ao saber — os Ottonis adorariam este ato de
bondade por parte do herdeiro do trono. Com certeza, Herm teria total aprovação
de seu tio mal-encarado, Salazar, e dos outros irritantes Stanhorne. O que Louk
mais queria era deixar a vida insossa na corte para trás e viver para fazer Dhara
Lovrens feliz. E que se explodisse o mundo se todos achavam que isto era errado.
Se ela o amasse e sentisse o que ele também sentia, o restante, até mesmo o
Conselho dos Guardiões, a Ordem dos Sacramentadores, os Cinco Continentes e
o raio-que-o-parta, tudo, seria um mero e insignificante detalhe para o amor dos
dois.
299
Abriu a porta de carvalho em um arroubo e trombou com Ropher. O amigo de
cabeça raspada e expressões corriqueiramente cínicas trajava um longo pijama
listrado. A cara era de sono e os olhos não se aguentavam de exaustão por ser tarde
da noite. Em uma das mãos, pairava uma pequena labareda de fogo elemental.
Encarou o amigo enlevado e pressuroso com uma desconfiança muita característica
estampada em seu rosto.
— O que está acontecendo? Viu uma fadinha brilhante? Está com essa cara de
retardado por quê?
— Retardada é a sua irmã, aquela vadia que dá para todo mundo em Carabact.
Deve estar batendo ponto perto dos vinhedos a essa hora da noite.
— Ô, rapaz! Você é maluco? — Ropher estufou o peito, empinou o nariz e meteu
o dedo indicador no meio do rosto de Louk. — Mais respeito comigo. Veja lá como
é que você fala da irmã que eu nem tenho.
— Cala a boca, eu sou seu pai! — esbravejou Louk, também estufando o peito.
Os dois desataram a rir.
— Imitar Lorde Flynn desse jeito, a essa hora da madrugada, é jogo sujo! — disse
Ropher, ainda rindo. — Mas, enfim, o que está acontecendo?
— Talvez seja muito tarde e sua memória fraca esteja sendo afetada pelo sono,
mas você se lembra qual sempre foi o meu maior questionamento?
Ropher coçou a cabeça. Contorceu o cenho em um esgar confuso.
— Hum... Ah, já sei. Por que Lorde Nomur Gundorf tem tantas linhas de
expressão na testa?
— Não, idiota...
— Ah, então, é: por que Lady Vália tem cinco dobras de papeira embaixo do
pescoço que mais parecem um bolo de carne com bacon?
Louk levou a mão à testa.
— Agora, sério. Ao menos tente lembrar, sem levar na sacanagem, qual era o meu
maior questionamento na vida...
— É claro que eu me lembro — falou Ropher, emitindo um longo bocejo. —
Seu maior questionamento sempre foi se, um dia, você encontraria a verdadeira
felicidade, se alguma coisa faria sentido na vida pra você e tal. Até cheguei a pensar
que você entraria em depressão por isso e...
— Ropher, eu encontrei!
Ropher arqueou as sobrancelhas em uma expressão de dúvida.
— Do que você está falando? Eu sempre achei que aquela loucura nos Pilares da
Magia em Paragon fosse motivo forte o suficiente para te deixar feliz...
— Meu amigo, eu ainda não posso te contar detalhes, mas você logo saberá.
Contudo, posso te afirmar algo agora sem sombra de dúvida. — Louk agarrou os
dois braços do amigo e o encarou, com um largo sorriso no rosto. — É algo um
milhão de vezes maior do que isso. Eu finalmente encontrei a minha felicidade!
300
Ropher comprimiu os olhos para o amigo, encucado.
— Ok, se você diz...
— Onde está meu pai?
— Seu pai? — inquiriu Ropher, confuso — Bem, até onde sei, está em uma
reunião de emergência com os conselheiros, desde o fim da tarde, na Sala Oblíqua.
— Preciso falar com ele.
Antes que Louk desembestasse a correr pelas escadarias, Ropher segurou o amigo
pelo ombro. Encarou a expressão radiante dele e arqueou uma das sobrancelhas.
Jamais o vira com tal brilho no olhar em toda sua vida.
— Olha, meu amigo, hã... seu pai parecia muito apreensivo quando entrou na
reunião hoje. Na realidade, até meu pai estava, mas ele não comenta muito comigo
os problemas internos do reino. Eles estão há horas lá. Sequer jantaram. Não creio
ser uma boa hora para você interromper essa reunião.
— O que eu tenho para dizer não pode esperar — pontuou Louk, rindo de um
jeito aparvalhado para a inquietação impressa no rosto do amigo.
Desviando-se das mãos do amigo, Louk pôs-se a correr pelas escadarias, rumando
para a torre da Sala Oblíqua. Uma última questão de Ropher ecoou pelas paredes
de pedra do palácio e ribombaram em seus ouvidos.
— AO MENOS PODE ME DIZER QUAL É O MOTIVO DESSA SUA
REPENTINA FELICIDADE?
Louk estacou. Parou no último degrau e vislumbrou a figura intrigada de seu
amigo, na penumbra do fogo mágico que pairava em seus dedos.
— Quem sabe um dia você entenda que eu encontrei o grande amor da minha
vida e não é fruto de um casamento arranjado como o seu, com uma guardiãzinha
qualquer de Badorian que você sequer sabe o nome direito.
Avançando pelas escadarias e corredores do castelo, Louk não tinha a mínima
noção de que horas da noite deveriam ser. Sabia que era bem tarde mesmo, pois o
estômago começava a roncar alto de fome. A última refeição no navio, uma
suculenta lagosta, fora servida assim que o sol se pôs, na divisa entre céu e mar, no
longínquo horizonte laranja e azul. Pelas palavras de Ropher e sua aparência
derrotada, era madrugada em Amistelar. Os corredores por onde passava estavam
mergulhados em completo silêncio. Mesmo o crepitar das chamas estralando sobre
as lamparinas arraigadas às paredes ribombava em seus ouvidos e, vez ou outra,
conseguia identificar um sonoro ronco enquanto deixava as portas dos dormitórios
para trás. O suor escorria em cascatas e empapava sua camisa. Algumas vezes,
descia pela fronte e invadia suas vistas, ardendo de forma pungente. As pernas
quiseram vacilar por um instante. O estômago roncou alto quando subiu um novo
lance de escadas. Mas estava obstinado. Era este o dia em que mudaria sua sorte
para sempre.
301
A Sala Oblíqua era o salão oficial de reuniões do reino e o principal aposento do
castelo. Louk só não conseguia entender porque precisava estar tão distante dos
demais cômodos do palácio e em um lugar tão alto. Afinal, era o lugar mais utilizado
pelo conselho real e por seu pai. Diziam que era estratégico, mas Louk nunca viu
uma estratégia tão sem sentido em um salão estar na torre mais alta e mais afastada.
Ouvira os Gundorf discutirem, diversas vezes, que a Sala também era um abrigo
fortificado contra invasões e segura o suficiente até para investidas violentas, como
as de dragões-rubi — que, diga-se de passagem, havia um bom tempo não eram
avistados por aquelas bandas do continente. Louk se habituara à sala da torre mais
alta e levemente tortuosa e desalinhada — daí o apelido de “oblíqua” — afinal, seu
pai passava mais tempo enfurnado nela, em reuniões intermináveis, do que com ele
e com seus dois irmãos mais novos. Jamais teve real interesse pelos assuntos
discutidos lá. Detestava discussões maçantes e que não levavam a lugar nenhum,
ainda mais com pessoas intragáveis como as dos demais clãs aliados. A verdade é
que nunca teve a menor pretensão de um dia ascender ao trono para assumir a
liderança do reino. Ainda que fosse o primogênito e o próximo na linhagem, essa
não era sua pretensão. Talvez este fosse o maior desgosto de seu pai que sempre
conduziu a Austera Amistelar com mãos de ferro.
O conselho real conseguia ser ainda mais tedioso do que os concílios quase
diários em que se embrenhavam. Era formado por todos os velhos das demais
famílias de guardiões que possuíam uma aliança para governar Amistelar — numa
notória e descarada imitação do modelo de governo do Conselho dos Guardiões.
Muitas vezes, Louk pensava que talvez este fosse o motivo pelo qual o reino possuía
a alcunha de “austero”. As quatro famílias que detinham o poder máximo sobre o
maior reino de Turmis eram considerados os clãs de guardiões mais contumazes de
toda Eirin. Prezavam por valores e crenças arcaicas que Louk considerava
extremamente antiquados para os dias atuais, como o fato de obrigar seus
descendentes a casarem com outros guardiões escolhidos a dedo por eles, sem a
menor sombra do que eles adoravam chamar de “mistura” ou miscigenação entre
os guardiões e as demais raças mágicas, consideradas por eles como “menos
nobres”. Por este motivo, apoiavam e até fomentavam o casamento entre primos,
tudo em razão da garantia de uma máxima pureza do sangue guardião para
perpetuação do que discorriam como “poder sem mácula”.
O casamento de Ropher estava sendo cuidado, nos mínimos detalhes, por Lorde
Tranto e Lady Nubia, seus pais, com a supervisão particular da irritante Lady Sally
dos Gundorf desde adolescente; estavam ávidos por garantir que a união fosse a
mais nobre possível. Louk jamais achou essa questão de “pureza racial” algo
relevante. Nunca se importou com esse aspecto. Considerava irrisório para a vida
que levava. Sabia que quando encontrasse um grande amor, o que acreditava ainda
demorar muitos ciclos para acontecer, casaria com ela e a faria muito feliz,
302
independentemente de seu sangue guardião, mestre, alquimestre ou élfico. Mas
tinha consciência que para seu clã isto era um assunto intocável, indiscutível,
principalmente para os Stanhorne, que eram implacáveis nesse sentido. Por isto,
tinha muita pena de seu amigo e de sua ausência de liberdade. A razão disso tudo,
Louk estava convicto, era de que os Stanhorne, os Ottonis, os Gundorf e até
mesmo sua família, os Savya, queriam manter as aparências de uma suposta pureza,
em nome de uma supremacia dos guardiões sobre os demais, quando a supremacia
que deveria existir era em virtude da proteção do mundo e não em questões de
raças.
A motivação dos quatro clãs era uma tácita vaidade enrustida, permeada pela
inveja sem precedentes dos nobres que ocupavam as mais altas cadeiras da corte.
Os Gundorf, por várias gerações, foram o clã mais famoso e prestigiado do mundo.
Reconhecidos pelo poder imensurável do maior guardião que Eirin já conheceu,
viviam atualmente do resquício das glórias do passado e da fama que um dia
tiveram. Amargavam o trágico final a que Lorde Hazer fora acometido, mesmo
após tantos ciclos de sua hegemonia. Preferiam elucidar em seus muitos contos e
versos às mesas de jantar e nas festas da nobreza, somente os momentos de glórias
e apagar de forma contundente a parte sombria de seu passado, nos últimos e
tenebrosos ciclos de sua vida. Após Hazer e sua grande vergonha, os Gundorf
jamais conseguiram qualquer lugar de destaque na política mundial.
Os Ottonis, ainda que conseguissem disfarçar muito bem, invejavam o extenso
poderio do clã Savya. Mesmo em um sistema de indicação pelo rei, que tentava ser
o mais democrático possível com às demais famílias, jamais tiveram um nome de
expressão em sua história como Guardião de Turmis. Além disto, eram taxados de
preguiçosos, esbanjadores e altamente glutões, embora essas opiniões se
mantivessem em completo sigilo, perambulando somente nos burburinhos e
cochichos pelos corredores do palácio. Claro, havia suas raras exceções. Contudo,
quando não estavam sendo altamente desagradáveis com os empregados do
palácio, se metiam em intensas discussões e embates com os Savya sobre os rumos
do reino, nunca deixando de ser uma forte oposição às decisões da família real.
Entrementes, havia uma aliança implícita, notória e muito sólida entre os
Stanhorne e os Savya, que vinha de décadas e sustentava as aparências na corte. Os
Stanhorne eram a família mais poderosa de guardiões da atualidade e, para Louk,
os mais acintosos e irritantes. Salazar, seu líder máximo, assentava-se sobre a mais
alta cadeira do Conselho havia muito tempo e forjou, ao longo dos ciclos, um
enorme prestígio ante às famílias de guardiões de Eirin e alguns poucos e
irrelevantes desafetos também. Não era político e tampouco bom com as palavras
como Lorde Moronov, mas sabia agir por trás dos panos, sendo um articulador
implacável e um líder que inspirava confiança e medo ao mesmo tempo. Contudo,
a maior frustração dos Stanhorne residia no fato de não terem sido os reis da
303
Virtuosa Candorn. Tentaram de muitas formas, no passado, usando até de artifícios
escusos e sórdidos, tomar o trono do maior reino de Elstoen, mas sua tentativa foi
obliterada pelas famílias de guardiões de lá. Mas, como tinham o mundo em suas
mãos, através do Conselho dos Guardiões, isto acabou se tornando um mero
detalhe. Os Savya eram os donos do trono de Amistelar há mais de dez gerações.
Quando a Grande Era das Trevas eclodiu, foram considerados guerreiros
magistrais, liderando extermínios de hordas de ogros e elfos sombrios pelo leste
eurodiano e o norte turmisiano. Nas Batalhas Sangrentas de Etrid, receberam a
alcunha de “lendários”, quando, ao longo de nove sangrentos embates,
combateram incursões rebeldes de centauros vindos de Líria e que ameaçavam
Amistelar, Frandar e Zavir no maior banho de sangue da história do continente.
Estimularam o êxodo dos guardiões de Eurodian para os demais continentes,
fomentando a fundação dos maiores reinos do mundo. O tempo foi passando e os
Savya acomodaram-se sobre o trono e optaram pela regionalização, limitando-se ao
interior das fronteiras de Turmis. Lutaram arduamente para a fundação de um reino
sóbrio que se tornou rígido, austero, porém unificado. Ao passo que os Savya
mandavam sobre a política nacional e ocupavam o trono de Amistelar, os
Stanhorne ascenderam de forma meteórica e alçaram status mundial. Influenciaram
a legislação mágica, assumiram o protagonismo ante às decisões estratégicas
mundiais a respeito da magia e foram determinantes na política com os elfos
sacramentadores. Enraizados sobre esses objetivos, nenhum dos dois clãs tinha
pretensão de um dia isso mudar. Os Savya estavam satisfeitos com o trono e os
Stanhorne com a política internacional.
Deparou-se com a monstruosa porta de entrada da Sala Oblíqua, depois de
percorrer quatro corredores e cinco lances de escadas em um longo aclive. Negra
como as Águas de Crispoles no ápice da madrugada, a porta não rangeu tanto
quanto ele achou que faria. Agarrado à maçaneta dourada, enfiou a cabeça para
dentro do local e espiou a reunião que ocorria. Dezenas de pares de olhos se
entreolhavam de um jeito apreensivo e Louk podia quase afirmar que estavam
assustados. Nomur, Dorner, Tranto, Vália, Sinnair, Birtromb, Chalees, Paviv,
praticamente todos balançavam as cabeças e estampavam em seus rostos uma
feição irrequieta. O que quer que estivessem conversando, deveria ser algo
realmente sério, pois Louk jamais os vira assim.
Apurou os ouvidos. Ficou inesperadamente feliz que ninguém ainda tivesse
notado sua imensa cabeça sobre o vão entreaberto da porta. Era a oportunidade
para ouvir o que fazia tantos rostos se contorcem de inquietação.
— ... quando disse. Mas, talvez, Vossa Alteza esteja ignorando nossos conselhos.
Não sei se por temor ou porque optou por desviar os ouvidos de nossas
304
recomendações. Esses atos rebeldes não são isolados e há ciclos nós os avisamos,
desde que o primeiro atentado, em Fal-Candrema, ocorreu.
Ainda que não visse o rosto, a voz rouca e cansada era conhecida. Pertencia a
Lorde Seimur Stanhorne. Arrogante como sempre, era típico dele ser acintoso e
hostil com seu pai.
— Nós sabemos a origem de tudo isto. Há tempos que Bucamar desafia a
autoridade desta corte. E o que nós fazemos? Aceitamos o jugo ignóbil e irracional
que o Conselho nos impõe, acolhido de bom grado por Sua Majestade.
— Nossa resposta tem de ser imediata. Bucamar precisa ser obliterada por nossos
exércitos e por nossa...
— Jamais ignorei o que esse concílio me indica. — Uma nota de estafa ecoou, na
voz cansada de Leoris, quando interrompeu Lorde Paviv e, se o que Ropher dissera
era verdade, as muitas horas enfurnado naquela sala deviam estar afetando-o. —
Mas, contrariando-o Lorde Seimur, para mim, essas ações de degradação jamais
deixaram de ser o que disseste: atos isolados e sem qualquer ligação. Não podemos
tomar nenhuma atitude precipitada e tampouco afirmar que a Cidade dos
Rejeitados está ligada aos ataques recentes.
— Mas, milorde, chegamos a um consenso de que a demanda é urgente. Carece
de respostas duras e imediatas. Se essa rebelião, que até então considerávamos
isolada e irrisória, atingir as principais cidades e os condados mais importantes, uma
guerra civil poderá se instaurar.
— Espero que os senhores não estejam esquecendo das advertências do
Conselho. Homens não são criaturas das trevas. Não estamos lidando com
centauros, ogros ou trolls. São pessoas.
— São reles plebeus que ameaçam a hegemonia secular desta Casa. Não podemos
permitir que...
— Ei! O que você está fazendo aqui?
A apreensão desapareceu nos variados pares de olhos ao redor da grande mesa.
Dava lugar a um espanto inesperado em observar a cabeça de Louk na fresta da
porta, ouvindo e vendo tudo que se passava na interminável reunião. A pesada
cadeira do rei se arrastou e os olhos de Leoris, num misto de cansaço e surpresa, se
encontraram com os do filho. O esgar do rei transtornou-se de imediato.
— O que está fazendo aqui? — perguntou o rei, ríspido.
— Pre-pre-preciso conversar com o senhor, meu pai.
Lutou contra a dicção vacilante, mas foi inevitável para Louk gaguejar diante de
tantos olhos observando-o ao mesmo tempo. Aliada à nímia exaustão, a expressão
reprovadora ia crescendo pelos rostos dos conselheiros do rei ao redor da mesa. O
carão magrelo e encovado de Lorde Seimur, e seus olhos enormes de profundas
olheiras, fez Louk querer enfiar a cabeça no chão, como um avestruz apavorado. O
muxoxo de Lorde Tranto e Nomur quase o fizeram bater em disparada para longe.
305
Mas, não sabia exatamente porquê, permaneceu firme, encarando a expressão
abatida e furiosa do pai.
— Será que você não está vendo que estou ocupado?
Os demais conselheiros balançaram a cabeça, concordando com o rei.
Aguardavam numa ansiedade incontida que o primogênito do rei respeitasse a
hierarquia e as tradições para com os anciões, pedisse mil desculpas e cerrasse a
porta para que pudessem terminar a extenuante e duradoura reunião. Contudo,
Louk não se moveu do lugar.
Inabalável, o filho mais velho do rei extinguiu da face qualquer resquício de
fraqueza. Encarou o pai no fundo dos olhos, desafiando a autoridade de todos,
inclusive do rei.
— Minha questão também é urgente. Preciso de sua atenção, meu pai,
imediatamente.
— Louk, eu não vou repetir. Saia, agora.
Era o momento de se ver livre do autoritarismo irracional que o perseguia desde
à infância. As posições tresloucadas de seus familiares nos clãs ali presentes
exauriram os resquícios de sua paciência. Não podia ser outra hora, tinha de ser
imediatamente. A demanda era urgente. Não queria esperar por uma nova
oportunidade. O momento de se libertar da nobreza maçante e imbecil era aquele.
— Quero que os senhores, milordes, e você, meu pai, saibam: estou abdicando,
oficialmente, de minha indicação para Guardião de Turmis.
Os olhares esgotados assumiram uma expressão atarantada. De chofre, um a um,
os conselheiros se colocaram de pé. Num arroubo inesperado de fúria, o rei
avançou em direção à porta. Louk se sobressaltou. Com expressão dura e pisando
forte sobre o chão de pedra, Leoris arremeteu-se sobre o filho como se na iminência
de esmagar um monstro causticante.
A mão do rei pressionou o peito de Louk. O jovem guardião foi ao chão com o
golpe violento. Vislumbrou as paredes negras de pedra e o teto passarem por seus
olhos como um borrão enegrecido. Bateu a cabeça no piso com violência e uma
dor causticante atingiu os cotovelos e as costelas. Ouviu o clique agudo da
maçaneta. Um burburinho generalizado irradiou do lado de dentro. Captou alguma
coisa sobre o rei não ter controle nem mesmo da própria família, antes de a porta
se fechar. Os dedos do pai pressionaram seus dois braços na sequência, colocandoo
de pé outra vez.
Estava frente a frente com pai.
O olhar esgotado do rei exalava uma cólera acumulada e profunda. Linhas de
expressão por causa do tempo e estresse marcavam seu rosto. A cicatriz que nascia
um pouco acima do olho esquerdo e morria quase no queixo, da qual Louk jamais
soubera a origem, mesmo insistindo muito para que o pai revelasse, estava
protuberante e estranhamente avermelhada naquele momento. A barba, que um dia
306
fora loura, tinha grandes tufos cinzentos e desgrenhados. O nariz levemente
aquilino tremia por causa do ódio que o arrebatava no momento.
— Você enlouqueceu? — trovejou a voz de Leoris. Louk pôde sentir o bafo
carregado do pai. O mau hálito era pungente. Ele podia jurar que havia uma nota
de gim ou rum misturada com café.
— Só assim mesmo para ter a sua atenção, não é, meu pai?
Louk se desvencilhou dos braços fortes do pai.
— Eu não sou mais um moleque para você me escorraçar da sala desta forma.
Eu não quero ser tratado como um menino, não estou à mercê de suas decisões
sobre o meu destino. Eu não quero mais ser Guardião e isso está decidido.
— Você, por acaso, quer lançar o nome do clã Savya num lamaçal de vergonha?
— Leoris parecia não acreditar. Balançava a cabeça e vociferava na direção do filho.
— Seu nome foi aprovado com louvor por todo o conselho. Isso jamais aconteceu.
Salazar fez menção positiva a você e apoia sua indicação. Você tem noção de
quantas noites fui dormir tarde, preparando um discurso convincente sobre suas
qualidades para assumir esse cargo? Quer destruir o prestígio de nossa família?
— É sempre sobre o senhor, não é, pai? Para não manchar seu nome e a
imaculada autoridade que tem. Estou pouco me fudendo para esse prestígio imbecil
que vocês tanto prezam. Não quero viver agarrado a essas tradições bossais
simplesmente porque o senhor quer. Quero decidir por mim, sobre o que é melhor
para minha vida e não que vocês, reunidos nessa sala, decidam sobre como deve
ser meu futuro.
— Não, isto não é possível. Não pode ser verdade... — Leoris esfregava as mãos
sobre o rosto e coçava os cabelos louro-acinzentados e curtos com as pontas dos
dedos. — Diz para mim que isso é um longo pesadelo. Não passa de um terrível
pesadelo.
— Eu encontrei o amor da minha vida — falou Louk, encarando o pai.
A expressão de Leoris mudou. Comprimiu os olhos na direção do filho, como se
não acreditasse no que tinha acabado de ouvir. Permaneceu fitando-o, balançando
a cabeça, aguardando as próximas palavras de Louk.
— Quero abdicar da minha vida no palácio e viver ao lado dela. Quero viver para
fazê-la feliz, longe desse lugar. Dê-me a minha parte na herança e irei embora
imediatamente.
Leoris permanecia embasbacado, taciturno. Meneava a cabeça de tal forma que
ela parecia prestes a saltar do pescoço.
— Não acredito que estamos tendo esta conversa. Não é possível.
— Sejamos francos, meu pai. O senhor nunca se importou comigo. Nossos
encontros como pai e filho só se dão em alguns raros banquetes e em festas no
palácio. O que o senhor ama de verdade é o trono, o poder, as glórias de ser o rei
da sua tão amada Austera Amistelar. Eu vou embora e prometo não importuná-lo
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mais, como fiz hoje. Ah, e não precisa se preocupar quanto a um herdeiro quando
o senhor estiver velho e cansado. Leonora e Leonis estarão aí quando a hora chegar.
— Quem é ela? — interrogou Leoris, respirando ruidosamente — De qual
família? Você sabe que pode casar-se com ela, viver bem no palácio, ela pode ter
uma vida de princesa na corte e ainda assim, você ser Guardião. É a Brim Ottonis,
Luma Gundorf? Alguma Stanhorne?
Louk sorriu.
— É Dhara. O nome dela é Dhara Lovrens, a elfo mais bela que existe no mundo.
Um som oco estalou no corredor. As costas da mão do rei cortaram os ares. Os
dedos estatelaram-se com estrépito sobre a face direita do filho. Louk girou sobre
o próprio eixo com o impacto do golpe e, cambaleando, caiu outra vez, batendo a
cabeça no chão.
— VOCÊ SÓ PODE TER FICADO LOUCO! EU JAMAIS APOIAREI ESTE
AMOR BESTIAL E PROFANO, MOLEQUE!
Louk se recompôs. O topo da cabeça latejou e um sorriso cínico brotou entre
seus lábios. A raiva se converteu em petulância à medida que se erguia do chão.
Ficou em pé novamente e mirou no fundo dos olhos do pai. Com a ponta dos
dedos, massageava o lado do rosto que ardia como brasas vivas.
— EU LARGARIA TUDO POR ELA. ABRIRIA MÃO ATÉ MESMO DESSA
HERANÇA MALDITA.
Avançando para a porta, Louk empurrou o pai para um canto. No interior da Sala
Oblíqua, os conselheiros ficaram visivelmente aparvalhados com o transtorno
notório em seu rosto machucado e se colocaram de pé no mesmo instante.
— Anseio que os senhores, a suposta nata de uma geração mesquinha e fútil de
guardiões desta terra, tenham ouvido a conversa do lado de fora. Gravem muito
bem este dia, pois faço questão de carregar na minha memória as feições
embasbacadas de cada um de vocês quando eu virar as costas e me retirar. Que
todos os Savya, Ottonis, Gundorf e Stanhorne saibam que estou abdicando de
minha indicação para Guardião para me casar com uma elfo.
Os olhares se arregalaram instintivamente, tendo o filho do rei como o centro
das atenções. O espanto era generalizado. O horror pelo que acabara de dizer estava
gravado em cada rosto presente. Louk fez uma longa e sarcástica reverência, antes
de sair da Sala, batendo a porta com força, com um sorriso largo estampado na
face.
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Capítulo Vinte e Dois
Sangue por Sangue
Recostou a cabeça sobre a cabeceira da cama e o cocuruto ardeu com a pancada
inesperada na madeira dura. Esfregou os dedos sobre o ponto dolorido até que a
sensação desagradável passasse. Acabou despertando um pouco de seu estupor,
mas não da preguiça dominante que o abraçava em meio ao conforto dos lençóis e
travesseiros. Os olhos percorreram, desinteressados, o teto de madeira e fixaram
em um local específico. Pintado de ouro, grandes manchas sinuosas e escuras se
espalhavam em vários lugares. Puro mofo. Um provável reflexo das tempestades
que, vira e mexe, assolavam o Porto e acumulavam poças de água da chuva,
minando pelos telhados gastos, com dezenas de telhas de barro ausentes, levadas
pelo vento. Mas isso era irrelevante.
Estava no maior quarto do bordel mais razoável da zona portuária de Candorn.
Razoável, pois Vegor não podia afirmar ser o melhor prostíbulo do reino. Alguns
quartos (e até algumas prostitutas) deixavam muito a desejar, aquém da qualidade
esperada pelo preço que pagava. Ainda assim, o bordel era um dos mais altos e
caros da colina que circundava a região do Porto. No Clorido, a região que abrigava
a maior parte dos bordéis do cais, era assim: quanto mais alto o puteiro, menos
intragável e pútrido ele era e, consequentemente, mais caro. Para um marinheiro,
um mercador de navio e até mesmo para os piratas disfarçados de mercadores que
aportavam em Candorn, havia prostitutas das mais variadas e para todos os gostos
e, principalmente, preços. Os mais miseráveis, geralmente os marinheiros de porão,
de aspecto sempre malcuidado, sujos, sem dentes e com um olho de vidro ou uma
perna de pau (às vezes, os dois) se contentavam com qualquer coisa. Os casebres
mais molambentos, caindo aos pedaços e cheirando a chiqueiro e urina do Baixo
Clorido eram a salvação para seus desejos desenfreados de descarregar no meio de
qualquer par de pernas. Menos de um candolin era suficiente para poder se
satisfazer. Entretanto, pagando tão pouco, não se podia exigir muita qualidade. Os
mais abastados, na maioria das vezes os mercadores, aportando com suas abissais
caravelas drapejadas de metais reluzentes, fardos de seda pura, sacas recheadas de
cereais, tonéis de vinho tinto e baús apinhados de ouro e joias resvalando pelas
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amuradas dos navios, tinham a oportunidade de se deliciarem com as prostitutas
mais luxuosas da cidade. Obviamente, longe da podridão dos barracos mais escusos
e sórdidos das regiões mais baixas de Clorido. Os bordéis mais requintados e, na
teoria, melhor asseados, ficavam bem expostos, com amplo destaque no cume da
colina, com luzes vermelhas ou roxas bem chamativas, para atrair aqueles que
tinham bastante ouro para gastar.
Vegor se dava ao luxo de gastar o tanto de ouro que quisesse, afinal, era somente
o herdeiro da maior autoridade da Virtuosa Candorn e que durante muitos ciclos
foi o grande herói dos reinos de Elstoen, o primogênito do rei. Gostava de se dar
ao luxo de torrar a fortuna que tinha com quantas e quais mulheres quisesse. Era
seu hobby favorito.
Chegara pouco depois que o sol se pôs. As luzes chamativas dos prostíbulos mal
tinham se acendido no lusco-fusco que pintava os céus. Como evitava chamar
atenção para sua figura real, tampouco sem fazer alarde, viera numa carruagem
discreta. Arrancou as bandeiras, o Corcel Alado e qualquer menção à corte. As
noitadas em Clorido não eram vistas com bons olhos por alguns candorianos
bisbilhoteiros dos vilarejos no caminho. Embora ninguém o julgasse e ali fosse uma
“terra sem lei”, aprendeu com o tempo a tomar determinados cuidados. Não queria
cometer o mesmo vexame duas vezes e ter de ouvir os sermões de suas tias outra
vez. Mas, com o tanto de ouro que trouxera, era difícil passar despercebido que o
filho do rei acabara de chegar.
Pulou da carruagem encapuzado dos pés à cabeça. Um manto de saco de cereal,
nada muito requintado para não dar pinta. Puxou uma das alças do pesado baú
abarrotado de moedas de ouro e seguiu seu caminho no cume do morro. Havia
ouro suficiente ali dentro para comer todas as prostitutas de cinco diferentes
bordéis do Alto Clorido por pelo menos uma semana. Na outra ponta do baú,
igualmente encapuzado e sem nenhum frufru, seu fiel amigo de todas as loucuras,
Kevan, o ajudava a carregar bordel a dentro.
Enrolado entre um emaranhado de lençóis, completamente pelado, com as
pernas entrelaçadas nas das duas morenas que acabara de comer e que roncavam
alto, deitadas em seu peito, Vegor sentia um leve odor pungente de urina misturada
com goza. Não tinha jeito. Mesmo nos prostíbulos mais caros, a catinga era sempre
a mesma. O que variava era a intensidade. Toda vez que o dinheiro ia se esgotando,
Vegor e Kevan eram obrigados a descer a ladeira e baixar o nível. O que mais
gostava no amigo era que ele não tinha melindre: no final do dinheiro, descabeladas,
raquíticas, velhas, qualquer uma, era uma boa opção. Comiam a de luxo e a sem
dente; a de banho tomado, com cheiro de almíscar e a fedorenta e com bafo de
onça. Kevan era o legítimo irmão que gostaria de ter. Não o trairia jamais, muito
menos da forma como Rudi o traiu. Acintoso, ansiava por usurpar um lugar que
nunca seria digno, que era seu por direito.
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Desviando os olhos do teto mofado, deu uma boa olhada no ambiente ao redor.
As pesadas cortinas de veludo vermelho contribuíam para o clima quente dentro
do quarto. A luz fraca dos lampiões lançava um brilho tremeluzente e melancólico
sobre as paredes, a cama oval e o emaranhado de lençóis marfim espalhados pelo
chão. Quadros bizarros de molduras douradas descascando drapejavam algumas
paredes. Pareciam ter sido pintados por alguém com tremedeira; dezenas de
rabiscos sem nexo em cores quentes se espalhavam pelo aposento. Um enorme
desperdício de tela, tinta e tempo. Notou Kevan estirado a um canto.
Completamente bêbado e com a bunda de fora, lambia o pescoço e descia até os
seios de uma prostituta que ria histericamente, numa risada nasal e irritante como
um porco com rinite fungando — Vegor não sabia se os tremeliques da mulher
eram pelo dinheiro ou pelo nível de embriaguez; mas por dinheiro e bebida, elas
topavam qualquer coisa. O clima sorumbático que o engolfava trouxe à tona uma
lembrança. Uma memória intrusa e maldita que invadiu sua mente com violência.
Os campos relvados cobertos de sangue. O tilintar das espadas. O galopar dos
cavalos. Tripas voando, braços decepados, cabeças degoladas. Vozes em agonia.
Uma silhueta monstruosa se desenhava à sua frente, sempre que fechava os olhos.
A figura aterrorizante, com um capacete de longos chifres sinuosos, peitos de fora
e olhos assassinos mirava-o, obstinada. Caminhava com um machado na mão na
iminência de arrancar-lhe a cabeça, sem titubear. Vivera o maior trauma de sua vida.
Uma inconsequente decisão de seu pai, influenciada pelos tresloucados conselhos
de Mastenion e Callan, que o colocou na mira das lâminas mortais dos bárbaros
sanguinários.
Jamais devia ter tocado aquele maldito chifre também. Mas quem imaginaria que
sua decisão desencadearia o maior banho de sangue dos últimos ciclos? Só queria
mostrar quem mandava no campo. Não era para se trucidarem com espadas,
machados, martelos e porretes na região mais inóspita de Elstoen. Queria provar
que era um bom líder e voltar para casa são e salvo, convencendo o pai de que era
digno do título. Fora uma ideia idiota, tinha que admitir. Uma ideia tola, em um
momento inoportuno e que quase lhe custou a cabeça. Para sua própria sorte,
ninguém havia descoberto que fora ele o ignitor da chama avassaladora que cobriu
os campos relvados com a nuance escarlate do sangue de centenas de soldados e
guerreiros.
Um estampido repentino fez Vegor emergir do torpor que voltava a dominá-lo.
Um som alto e forte eclodiu de algum lugar. Repentino, cadenciado, alteava a cada
segundo e dominava os corredores externos do quarto onde estava. Portas se
escancararam em algum lugar. Um vozerio apressado e violento ressoava de forma
abafada. Maçanetas rangiam alto e carvalho semipodre se chocava contra as paredes
de pedra fria e lascada. A algazarra era crescente.
311
Empurrou as prostitutas para longe. Vegor assentou-se sobre a cama, tomado
por um desespero repentino e prestou atenção. Os ouvidos estavam apurados. Os
olhos arregalaram e vidraram na porta de entrada do dormitório. Os pelos da nuca
se ouriçaram. Não de tesão, mas de medo. A balbúrdia ia ficando cada vez mais
próxima, cada vez mais aterradora e audível.
A porta se escancarou de chofre. A fraca luz branco-pérola do luar que irradiava
do corredor revelou, para dentro do aposento, uma silhueta corpulenta e
ameaçadora. Com o coração a mil, Vegor se pôs de pé e, involuntariamente, gritou
como uma garotinha assustada.
— Achei! Ele está aqui.
A voz grave reverberou pelo quarto. Um fuzuê de lençóis emaranhados se agitou
como cortinas esvoaçando com os ventos de uma forte tempestade. Um misto de
luzes incandescentes e dos tons avermelhados das cortinas de veludo sambaram
ante a vista turva e amedrontada de Vegor. Tombou de cara no chão frio e úmido.
A marcha de botas e o tilintar das armaduras metálicas invadiu o quarto. Risadas e
gargalhadas ecoaram nos ouvidos do jovem guardião. A dor lancinante na cabeça
por causa da queda não o deixaram distinguir quem exatamente estava ali e por que.
Outras vozes surgiam no ambiente. Pescou algumas poucas palavras engroladas de
vozes grossas e esganiçadas, mas carregadas de deboche, que se juntavam aos
gritinhos histéricos das prostitutas alarmadas.
— ... gritou que nem uma menininha desmamada!
— Arrombado!
— ... assim. E, finalmente, encontramos esse maldito bastardo que matou nossos
irmãos.
— ... tocou o chifre e começou a batalha...
— ... meu primo só tinha quinze ciclos de idade. Um bárbaro desgraçado
estourou seus miolos com uma lança sem pensar duas vezes e...
— ... de sangue poyariano inocente derramado por uma causa fútil...
— ... e matá-lo aqui mesmo. Quem saberia? Podemos falar que ele tentou esf...
Um ruído agudo ribombou com estrépito. Dedos estalaram sobre um rosto
qualquer.
— Tira a mão da minha coxa, seu verme imundo e desgraçado. Pra tocar isso
aqui, só por dois mil candolins bem aqui na minha mão.
— O que você vai ter é um pau grosso no meio da sua bunda, sua vadia
desgraçada!
Outra vez, a dor. Repentina, fez Vegor quase desmaiar. Uma mão esquálida de
dedos raquíticos agarrou seu couro cabeludo. Com a cabeça girando e a visão
distorcida da pancada no chão, vislumbrou um rosto encovado e marcado por
cicatrizes profundas e sórdidas, enfurnado em um pesado capacete de bronze. A
boca escancarada exibia um sorriso sem dentes e uma feição buliçosa. A única
312
reação que veio à cabeça, que latejava causticante, foi de puxar um lençol e se cobrir
como pudesse.
— É realmente ele. Vegor Wullith. Bêbado e pelado.
Gargalhadas explodiram pelo aposento fechado.
A falta de ar repentina pressionou os pulmões do jovem guardião. A pele ardeu e
ele sabia que não era pela dor ainda persistente na cabeça. As maçãs negras de seu
rosto deviam estar púrpuras, queimando de vergonha. Humilhado, estava exposto
ao ridículo por aqueles homens esdrúxulos que o procuravam.
— Larga essa daí, Cael e vamos embora. Já o encontramos!
— Calma, eu tô quase acabando aqui e... Ei! Quem é esse aqui?
Ouviu alguém arrastar um corpo. Camadas de lençóis balançaram e foram jogadas
a um canto. A voz de Kevan emergiu. Engrolou uma reclamação, mas bêbado
como estava era difícil distinguir suas palavras. Uivou de dor, por fim, com um
golpe que recebera.
Novas risadas.
— Esquece esse bebum maricas aí. Tá todo gozado, fedendo e com o rabo cheio
de rum. Deve ser o namoradinho desse arrombado aqui. Vamos embora. Já
encontramos nosso troféu. Precisamos levá-lo porque Lorde Brenrar está
impaciente.
O mundo girava a seu redor. A cabeça doía a ponto de quase fazê-lo desmaiar. O
ar ficava mais denso, pesado e sentia dificuldade de sorver oxigênio para os
pulmões. Os braços retesados e doloridos foram imobilizados pelos lençóis, que
eram usados como cordas para travar seu corpo. Como um porco prestes a ir para
o abate, foi lançado sobre o ombro do soldado mais alto e, então, passou a ver o
mundo de cabeça para baixo.
O brilho do luar irradiando nos corredores do casarão quase o cegou assim que
a tropa de soldados irrompeu pela porta de volta ao sereno. Pela nesga de espaço
entre o braço e a pança do soldado que o carregava, observava as portas dos outros
quartos, escancaradas e os olhares curiosos das prostitutas e de seus clientes
assustados vislumbrando o grupo de militares que marchava, rindo e cantarolando,
em direção à saída do bordel.
Nas vielas fétidas e enlameadas, já no ponto mais baixo de Clorido, as risadas
histéricas e o deboche dos guerreiros em uma marcha cadenciada ecoavam em seus
tímpanos. A cantoria animada despertava a atenção de todos os prostíbulos ao
redor. Inúmeras cabeças brotavam nas portas e janelas, curiosas, observando a cena
excêntrica. Bebuns largados sobre as calçadas e mendigos maltrapilhos riam sem
saber exatamente do que ao acompanhar a procissão bizarra que seguia seu
caminho, ladeira abaixo, rumo à saída, feliz e cantando. Faziam primeira e segunda
voz. Tenores berravam os versos masculinos; falsetes desafinados imitavam um
soprano esganiçado.
313
Oh, bela donzela, por que estais tristes?
Por que não admiras minha espada em riste?
Bravo soldado, que queres comigo?
Beijar sua boca, lamber seu umbigo!
Enche-me agora de beijos ardentes,
Mas não me deixes assim, de repente.
Bela donzela, quem achas que sou?
A honra em Poyares, meu pai me ensinou.
Tão másculo, viril, não me deixes só.
Vou agora à guerra, destruo o inimigo sem dó.
As faculdades mentais de Vegor voltavam aos eixos preguiçosamente conforme
a cabeça ia deixando de latejar. O raciocínio se encaixava no lugar outra vez e ele
conseguia juntar as palavras e frases ditas — e cantadas — por seus captores para
ver se algo fazia sentido.
Poyares? Lorde Brenrar?
Então os soldados desbocados e violentos que o levavam na corcunda não eram
os bárbaros do Sul que habitavam seus pesadelos. Eram guerreiros de Poyares.
Devia ter percebido de imediato; o sotaque forte de caipiras iletrados do interior de
Elstoen não negava suas origens. Respirou aliviado por alguns instantes, mesmo
que sorver o ar podre cheirando à urina fosse tão complicado, travado como estava.
Mas devia haver alguma coisa errada. Por que eles afirmaram tão categoricamente
que ele era um “troféu”? O que Lorde Brenrar queria tanto com ele? Haviam dito
algo sobre matá-lo no quarto ou era coisa de sua mente?
Um baque inesperado.
A boca do estômago doeu. Novamente, ficou sem ar. O nariz chocou-se contra
algo peludo. Fora atirado de qualquer maneira em cima de alguma coisa. Cordas o
envolveram acima dos lençóis e o travaram em um nó apertado nos braços e nas
costas. As risadas irônicas e gemidos histéricos ecoavam em seus ouvidos com um
leve som da rebentação sobre rochedos. Não conseguiu discernir muito bem onde
estavam, mas pelo odor acre e o cheiro de sal e peixe podre, deviam ainda estar em
qualquer viela baixa, fora de Clorido.
As gargalhadas cessaram de súbito. Alguns assovios persistiram e Vegor ouviu
um relinchar. O estômago voltou a doer. Amarrado onde quer que estivesse,
quicava em trotes curtos e pressurosos. Pelos movimentos intermitentes e o forte
cheiro de merda, estava travado sobre o dorso de um cavalo que aumentava os
solavancos, correndo a todo gás pelas ruas do cais.
314
— Ei! — Vegor ouviu a própria voz engrolar. O queixo estava meio frouxo; cair
de cara no chão lhe fizera um mal ainda maior do que esperava. — Posso ao menos
saber... onde vocês estão me levando?
— Tá com medinho, princeso?
— Você vai pagar pelo grande mal que provocou aos nossos irmãos poyarianos!
Um alvoroço descomunal dominava a Ágora do Princípio. Começou como um
burburinho quase inaudível, insignificante. Um cicio de passarinho teria sido mais
gritante. Até que tomou proporções abissais. Uma verdadeira balbúrdia repentina
e ensurdecedora irradiava nos arredores do palácio real. Gritos e berros
reverberavam do lado de fora, agitando as vidraças do castelo. Uma marcha
constante e poderosa fazia o chão tremer. Derrick, Trawlin e Hallzer ficaram
alarmados. Logo, estavam perambulando pelos corredores, enrolados em suas
roupas de dormir, aflitos, lançando olhares de preocupação para o lado fora. Airis,
Deelya e Betine deslizaram imediatamente para as janelas e colaram os narizes nos
vidros. O movimento exterior era assustador. As filhas de Deelya e Trawlin corriam
de um lado a outro, agitadas, enfurnadas em seus robes de seda, com toucas de
dormir na cabeça, envolvendo os longos cabelos enrolados.
Mastenion exteriorizava uma preocupação sem precedentes.
O que estava acontecendo? Um levante contra o rei? Um ataque surpresa?
A expressão acabrunhada se refletia sobre o espelho do quarto. Andando sem
rumo certo, ainda de pijamas, lançava olhares angustiados pelas janelas. Seguiu seu
instinto e saiu à procura do rei. Conhecia o protocolo de proteção real, mas insistia
em garantir a segurança de seu velho amigo. Airis fez menção de abordá-lo, mas a
ansiedade aflorando à pele a fez voltar atrás e deixou o marido sair do quarto.
Loubor carregava uma tocha pelo corredor adjacente. Atarantado, observava o
movimento exterior. Os dois se entreolharam numa fração de segundos quando se
encontraram. Tiveram a mesma ideia, aparentemente. Mas a expressão prolixa e os
passos pressurosos de Mastenion deixavam claro que ele estava tomando uma
atitude imediata. A tensão o impeliu a correr para as densas trevas do terceiro andar
e rumar para o hall de entrada do castelo. A intuição berrava em seus ouvidos que
Saldivar não estaria em seu dormitório.
Avançou pelas escadarias, descendo de dois em dois degraus, diminuindo a
distância entre ele e a entrada do palácio. A poucos metros do salão, deu de cara
com Callan. Desperto e armado com uma pequena lâmina, a expressão do general
era igualmente alarmante. Os poucos fios ruivos de sua cabeça estavam
desarrumados e a julgar pelo estado de sua camisa mal abotoada e amarrotada, devia
ter pulado da cama com o susto e colocado qualquer roupa que viu pela frente.
Ambos se entreolharam por um breve momento e assentiram. Como se tivessem
lido o pensamento um do outro, seguiram para o primeiro andar o mais rápido que
315
conseguiram. O objetivo era o mesmo. Precisavam garantir a proteção de Saldivar
de um possível ataque iminente.
Estacaram assim que atingiram o hall de entrada.
Empertigado e taciturno, Saldivar estava lá; a serenidade costumeira desaparecera
de sua face. Usava ainda seu pijama de seda azul. Os cabelos grisalhos estavam
bagunçados, como de alguém que foi arrancado da cama de repente. Soberba, a
lendária espada candoriana, estava firme em sua mão esquerda. Sóbrio, ainda que
tenso, posicionava-se em frente aos portões altos da entrada do palácio, pronto
para travar uma verdadeira guerra. Dois guardas rumavam para remover as travas
de cada lado dos portais, tremendo de medo.
Mastenion e Callan se entreolharam outra vez. Caminharam até ficarem lado a
lado com o rei. Mastenion à esquerda. Callan à direita. Não ousaram dizer nada.
Estariam ali pelo rei, em nome de sua lealdade, para o que desse e viesse. E, se essa
era sua vontade, assumiriam quaisquer que fossem as consequências.
A brisa cálida da madrugada agitou as vestes dos três homens quando as portas
se escancararam. O vozerio alvoroçado invadiu o grande hall, como o som
tonitruante de uma manada de animais selvagens e furiosos. Gritavam histéricos da
Ágora do Princípio. Na escuridão dominante do alto da madrugada, a multidão em
frenesi se apresentava em uma monstruosa aglomeração como meras figuras e
silhuetas sombrias e indistinguíveis. Era impossível afirmar quem eram ou mesmo
o que gritavam. Os berros eram confusos, dissonantes. Milhares de vozes bradavam
ao mesmo tempo. Saldivar, Callan e Mastenion, mergulhados em um silêncio
mortificante, acompanhados dos guardas, avançaram em direção ao foco da
agitação, acompanhando com os olhares cautelosos, qualquer movimentação fora
do comum ao redor.
— Lorde Saldivar! Eu o cumprimento por seus cabelos brancos e sua vasta
experiência, mas meu povo me impeliu a estar aqui.
Saldivar hesitou. As muitas rugas de sua testa se contorceram de um jeito peculiar;
conhecia aquela voz enérgica e poderosa que bradava das sombras da multidão.
— Lorde Brenrar? — sussurrou Mastenion, confuso, o nome que perambulava
na memória do rei.
— Perdoe-me por este alvoroço inoportuno no meio da noite e por perturbar a
paz de seu sono — sussurrou a voz vigorosa, tentando se fazer ouvir em meio aos
alaridos ensurdecedores. Outras vozes distintas tentavam pedir às multidões que
fizessem silêncio. — Mas meu povo, Lorde Saldivar, clama por um sangue inocente,
derramado há muitos hectares daqui, nos campos de Baetrafid.
Os gritos tornaram-se histéricos novamente. A multidão se ouriçou ainda mais
com as palavras de seu rei. O povo poyariano bradava a plenos pulmões e Callan
conseguiu distinguir um ou outro berro de “assassino” e “justiça” entre os alaridos
ensandecidos. Mastenion puxou uma pequena adaga da cintura, alarmado.
316
Uma labareda esmeralda e cintilante coruscou nos ares. Invadiu os céus como um
furacão abissal e flamejante que se origina do nada. A escuridão da noite
desapareceu para dar lugar a um brilho verdejante e intenso como o de uma aurora
boreal, iluminando as ruas da capital. Os gritos da multidão cessaram assim que a
chama elemental serpeou por sobre as cabeças de todos os presentes na praça,
ribombando nos ouvidos de cada um como o fogo ardente a crepitar sobre lenha
cortada. Uma voz potente, mas cansada, retumbou de supetão.
— CHEGA!
Cruzando a praça de forma agressiva, Saldivar sustentava a chama esmeralda que
irradiava sobre todos. Furioso e contumaz, cortou por entre as estátuas dos antigos
reis de Candorn até atingir o centro da ágora. Os olhos semicerrados miravam o
rosto redondo e de cavanhaque negro e bem aparado de Lorde Brenrar. A coragem
parecia tê-lo abandonado de repente. Encarava o rei guardião com cautela. Uma
leve ponta de temor ocupou seus olhos vacilantes. Mastenion e Callan seguiram no
encalço. O general empunhava firme uma machadinha na mão direta e sua
costumeira adaga na mão esquerda.
Antes que alcançasse o rei de Poyares, Saldivar se deteve no meio do caminho. A
luz incandescente que alumiava a todos então revelou outros rostos conhecidos.
Lorde Grenbolth se postava, no topo de seu cavalo negro, encarando-o com
profunda reprovação. Ao seu lado, o mirrado Lorde Hagar-Evon, de Anvor-Elíada,
também o observava. Lady Yisi, em uma longa capa escarlate, estava impassível,
sustentando o mesmo olhar inquisidor de Lorde Danrel, de Turvoreio, que
meneava a cabeça para o rei de Candorn. Identificou Lorde Teonar um pouco mais
atrás, igualmente desgostoso e, ao seu lado, o velho Lorde Nolstain fazia um
muxoxo, como se descontente de estar ali.
— Mas o que é isso aqui? — crocitou Saldivar, espantado, observando com
atenção os rostos de seus amigos monarcas. — Vieram, por acaso, me destronar?
— Não, Lorde Saldivar. — Lady Yisi avançou. Os cabelos negros e curtos
balançaram quando ela tirou o capuz felpudo da cabeça. O rosto redondo e coberto
de sardas não demonstrava a fraqueza que enxergou na expressão de Brenrar. —
Temos um profundo respeito por sua figura ao longo de tantos ciclos, devotando
sua vida a nos socorrer em momentos tão adversos.
— Então, por que estão aqui?
Lorde Danrel avançou até ficar frente a frente com Saldivar. A trança negra,
coberta de pequenos amuletos e outras miçangas, pendendo em seu ombro direito,
cintilava à luz verde-esmeralda.
— Viemos clamar por justiça!
— JUSTIÇA!
— JUSTIÇA!
— JUSTIÇA!
317
Aos berros do povo por justiça, gritando eufóricos mais uma vez, um cavalo
malhado veio trotando pelo meio da multidão. Parou a poucos metros de Saldivar
que não tirava os olhos da cena. Um soldado parrudo desceu do alto da sela. Mal
cabia dentro da armadura de bronze e que trazia a Serpente Astuta de Poyares em
destaque sobre o peitoral. Desengonçado, puxou as calças frouxas para evitar que
caíssem e tirou da parte traseira de sua montaria o que parecia ser um pacote, um
fardo pesado de algodão. Saldivar demorou um tempo para perceber tratar-se de
alguém enrolado em um lençol velho e maltrapilho.
— Meu exército foi dizimado pelos bárbaros nos campos de Baetrafid em uma
batalha que jamais deveria ter acontecido. — Lorde Brenrar achegou-se para perto
de Saldivar. Callan e Mastenion deram um passo à frente, sempre alertas. — Uma
guerra estúpida que ceifou a vida de centenas de homens honrados cuja única
missão era intimidar, na intenção de conter o avanço dos intrusos em nossas terras.
Intimidar, apenas. Estar presente nos campos para mostrar que pelotões reais
faziam rondas por ali. Pequenos batalhões em que a grande maioria eram jovens
inexperientes. A intenção sempre foi mostrar que as terras possuíam um dono.
— Como eu orientei — inferiu Saldivar.
— Mas alguém resolveu tocar o chifre. Um dito cujo decidiu que poderia
enfrentar os exércitos bárbaros, com os poucos guerreiros que lá estavam. Um ser
mesquinho e petulante descumpriu a única merda que eu disse para não fazer, que
era envolver-se em um embate direto com os malditos intrusos que assolam nossas
terras.
Lorde Brenrar parecia fora de si. Cuspia as palavras, de olhos arregalados,
vociferando com profundo ódio no coração.
— Eu levei duas semanas, Saldivar. Duas malditas semanas, recolhendo corpos
desmantelados, em um campo banhado de sangue. Disputando espaço com corvos
e abutres, montava um quebra-cabeças de braços, pernas e cabeças decepadas, até
identificar, entre os poucos que sobreviveram, quem foi o imbecil que decidiu tocar
o corno e partir para o embate sangrento. Qual não foi a minha surpresa em
descobrir quem era o verdadeiro culpado.
O rei de Poyares deu um passo para trás. O soldado que acabara de descer de sua
montaria afrouxou as cordas do homem envolto em lençóis e o largou aos pés de
Saldivar. Os olhos do rei de Candorn se arregalaram de imediato quando
reconheceu quem era o homem prostrado aos seus pés.
— Vegor!
— Seu filho, Saldivar, incendiou o coração das tropas ao soprar o chifre e dar
início ao banho de sangue de Baetrafid!
A multidão inflamou-se novamente. Gritavam outra vez por justiça, bradando
que o filho do rei era um assassino. Uma satisfação notória ocupava a expressão
dos demais reis ao redor. A felicidade era nítida em expor ao antigo Guardião a
318
irresponsabilidade de seu herdeiro, que provocou a morte de centenas de soldados.
Esperavam do soberano de Candorn uma reação imediata. Uma decisão que fizesse
justiça às mortes provocadas por seu filho. Ainda que não expresso em palavras,
ansiavam por uma condenação severa que fosse agradável a todos.
Ao lado de Mastenion e quase quebrando os dedos cerrados sobre o cabo de
madeira da machadinha e da pequena lâmina, Callan estava tão estupefato quanto
Saldivar ao contemplar os olhos do próprio filho, ajoelhado e humilhado, no chão.
A ideia de colocar Vegor e Rudi à prova, comandando batalhões do reino amigo,
partira dele e de Mastenion. Não passava de um simples teste. Uma avaliação de
liderança ante a indecisão que pairava no ar. Jamais passou por sua cabeça que uma
simples prova desencadearia uma verdadeira carnificina. Uma ponta de
arrependimento brotava em seu coração por ter sugerido o desafio e muito mais
por colocar Saldivar em xeque, na presença dos demais reis.
— O que está acontecendo?
Rudi se aproximou de Callan, confuso. O general o abraçou e o segurou pelo
ombro. Fez um breve sinal para que fizesse silêncio e não se metesse.
— Fique aqui e confie na sabedoria de seu pai. Não há nada que possamos fazer.
Os berros eram cada vez mais causticantes. Brenrar e os outros soberanos ainda
aguardavam. Ajoelhando, Saldivar encarou o filho face a face. Lágrimas escorriam
dos olhos vermelhos de Vegor. Ele tentava de todas as formas esconder a nudez
com os lençóis, imundos com lama e bosta de cavalo. O medo era evidente em seu
rosto.
— Você tocou aquele chifre? — questionou Saldivar, movido por uma íntima
compaixão.
Vegor nada disse, apenas balançou a cabeça confirmando.
— Que essa culpa recaia sobre mim! — bradou Saldivar, pondo-se de pé
novamente. Soberba caiu sobre o chão, ao lado de Vegor. O rei de Candorn abriu
os braços. Estava vulnerável de propósito, completamente à mercê da vontade dos
demais reis e do povo poyariano. — Se clamam por sangue, se clamam por justiça
e desejam um sacrifício em favor das vidas inocentes ceifadas em Baetrafid, estou
pronto. Entrego-me no lugar do meu filho para que satisfaçam seu desejo de justiça.
As multidões se alvoroçaram como nunca. Explodiram em uma algazarra
generalizada na iminência de avançarem para trucidar Saldivar em plena praça
pública. Callan, Mastenion e Rudi, bem como os demais Drunírio, Campwell e
Wullith que deixaram o palácio para se concentrar na ágora, se movimentaram para
acudir o rei. Mas foi Lorde Nolstain quem interveio, seguido por Lady Yisi.
— Basta! Não queremos o sangue de um homem inocente, nem mesmo por
substituição, para saciar nosso desejo de vingança.
— Não podemos aceitar esta troca — falou Lady Yisi. — Não é esta condenação
que queremos.
319
— Sofremos nos últimos ciclos com a invasão de nossas terras pelos bárbaros.
— Lorde Danrel aproximou-se de Saldivar, ficando entre ele e o povo que avançou
em sua direção. — É inegável sua luta indômita, Lorde Saldivar. Que tipo de nobres
seríamos se vertêssemos seu sangue? Se o matássemos para massagear nossos egos?
— Mas não podemos sair daqui sem uma condenação para o verdadeiro culpado!
— exclamou Lorde Brenrar, aproximando-se de Saldivar.
Lorde Danrel, Teonar e Hagar-Evon se achegaram, deixando suas montarias.
Lady Yisi e Lorde Nolstain vieram no encalço.
— O que imagina que farei, Lorde Brenrar? — inquiriu Saldivar, no pequeno
círculo fechado formado pelos oito reis de Elstoen. — Você trouxe seu povo aqui
para clamar a morte de meu filho.
— Eu quero a cabeça de Vegor! — Brenrar destilou sua sentença, sem titubear.
— Só por cima do meu cadáver! — vociferou Saldivar.
— Milordes, nenhuma violência resolverá esta intempérie — inferiu Lorde
Hagar-Evon.
— Nada do que decidirmos aqui será aceito pelo povo. Eles querem um nome.
Querem alguém a quem possam esfolar vivos — falou Saldivar. — Vamos ao
castelo. Conversaremos no Salão de Reuniões, às portas fechadas e decidiremos
esta questão.
O clima de tensão perdurava no interior do grande salão. Saldivar e os reis de
Poyares, Turvoreio, Mondrária, Anvor-Elíada, Legur, Nogaza e Sincar adentraram
o recinto com os ânimos aflorados, arrastando consigo um resignado e emudecido
Vegor, enrolado então em um longo capão vermelho, arrumado às pressas, para
esconder sua nudez. O alarido do povo não silenciava um segundo sequer do lado
de fora. A gritaria persistia, cada vez mais retumbante e eufórica, invadindo as
janelas altas do palácio, pressionando os oito reis a tomar uma atitude quanto aos
seus anseios em relação ao grande culpado de trazer a desgraça que se abateu sobre
Elstoen. No ante salão, os Wullith, Campwell e Drunírio aguardavam, ansiosos e
atoleimados.
— Há muitos ciclos nós sofremos com a assolação dos bárbaros, Saldivar —
desabafava Danrel, encarando o rei de Candorn. — Você ajudou-nos muito no
passado, isto é inegável. Devemos nossas vidas a você e quem pensa diferente, é
mentiroso e ingrato. Mas você está velho, cansado e os selvagens do Sul aproveitam
da inércia dos guardiões e de nossa impotência ante à política do Conselho, para
avançar sobre minhas terras e sobre os territórios de Poyares. Não dá para
continuar assim.
— Trazer o povo poyariano até o cerne do meu reino para exigir vingança por
um erro do meu filho não resolverá nada! — vociferou Saldivar, mirando os rostos
de Danrel e Brenrar com uma cólera incontida. — Pretendem criar uma crise em
320
Elstoen? Porque se vossas intenções eram colocar-me em xeque e me envergonhar
na frente de minha família e de meu povo, vocês lograram êxito.
Lorde Brenrar lançou a capa sobre uma cadeira. A passos largos, cruzou o salão
e aproximou-se de Saldivar. Com o indicador em riste e consumido por um ódio
letal, pressionava o peito do rei com ousadia e petulância.
— Um quarto dos meus territórios está sob o domínio dos bárbaros que aportam
no extremo-Sul. Eles invadem terras, saqueiam vilarejos, estupram nossas filhas e
matam nossos filhos sem o menor pudor. Nossas forjas trabalham dia e noite, mas
já não há guerreiros para vestir as armaduras e empunhar as espadas. E o
inconsequente e irresponsável do seu filho não consegue liderar um maldito pelotão
para patrulhar os campos e evitar as investidas de uma horda de selvagens. O que
você chama de vingança, eu chamo de justiça. Somente quando eu sentir o sangue
quente das veias de Vegor sobre minhas mãos é que terei paz.
Saldivar permanecia impassível.
À frente do filho, que continuava prostrado sobre o chão e de cabeça baixa, o rei
ouvia cada palavra com o mesmo ar desafiador de Lorde Brenrar. O queixo duro
sustentava uma feição carrancuda; a nímia expressão abatida e de poucos amigos se
desenhava por trás da barba grisalha e desgrenhada. Optava pelo silêncio, obrigado
a ouvir tais palavras e engoli-las à seco.
— Então você nunca terá paz — sibilou Saldivar, taciturno.
— Senhores, por favor... — Lady Yisi se postou entre os dois reis — Não somos
animais e tampouco os selvagens que tanto combatemos.
— A grande questão é que precisamos fazer algo a respeito. — A calvície
dominante de Lorde Nolstain coruscou à luz dos archotes quando ele se levantou.
— Necessitamos de um novo Guardião que combata os invasores e os expulse de
nossos territórios.
— Com menos política e mais força! — exclamou Lorde Teonar. A juba ruiva e
revolta como a de um leão estava contida em um grande rabo de cavalo mal
arrumado.
Lorde Grenbolth e Lorde Hagar-Evon balançaram a cabeça, concordando.
— E este Guardião, Saldivar, não pode ser seu primogênito — se pronunciou
Lorde Danrel, aproximando-se de Lady Yisi, Brenrar e Saldivar.
À sombra do pai, Vegor ergueu a cabeça. As palavras do rei de Turvoreio
aguçaram seus ouvidos. Acertaram seu peito como uma faca afiada que atinge em
cheio o coração. Atônito, levantou-se. O desespero era patente em sua face. Ainda
que estivesse completamente pelado por baixo da capa escarlate que o cobria e que
tanto puxava para evitar expor sua nudez, encarou cada um dos oito soberanos de
Elstoen com uma agonia perturbadora no olhar.
— Não. Por favor, não. — Vegor ouviu a própria voz, vacilante e embargada,
ecoar sobre o salão. Os olhares ao redor se voltaram para ele de imediato. —
321
Cometi um grande erro. Imperdoável, inconsequente e irresponsável, como os
senhores mesmo disseram e repetiram. Mas vocês não podem fazer isto comigo.
Sou capaz de me tornar o Protetor de Elstoen. Sou capaz de defendê-los desses
bárbaros.
Gargalhadas sarcásticas interromperam sua súplica. Observou, aturdido, os
rostos de Lorde Danrel, Teonar e Hagar-Evon em suas feições de ironia. Lady Yisi
balançava a cabeça com uma notória repulsa. Lorde Nolstain meneava a cabeça,
como se estivesse com pena dele. Lorde Brenrar emanava indiferença. Uma fúria
implacável estampava sua face.
— Você não é capaz nem mesmo de se vestir adequadamente, moleque —
crocitou Lorde Hagar-Evon, acintoso.
Atarantado, Vegor correu para encarar o pai. Esperava enxergar em seu rosto
uma expressão de compaixão e de misericórdia por sua súplica aflitiva e pelo estado
deplorável em que se encontrava. O que viu foi um esgar exausto e apático, livre
de sentimentos, externando uma vergonha ímpar por trás das grandes rugas que
marcavam sua face.
— Pai, — suplicava Vegor. Lágrimas escorriam de seus olhos de forma
involuntária. Lutava contra as emoções para não deixar transparecer o tamanho de
seu desespero — o senhor não pode ir contra a tradição. Eu exijo que você diga
isso a eles. Nossas leis são determinantes. O filho mais velho assume o manto de
Guardião e...
Um estalo agudo reverberou pelos quatro cantos do salão fechado. As risadinhas
maliciosas que persistiam cessaram imediatamente. Os olhos dos sete reis,
arregalados e apalermados, se fixaram em um único ponto. A palma da mão cortou
os ares com fúria. Dedos se estatelaram sobre a face direita, marcando-o de forma
violenta. O golpe impetuoso do próprio pai fez Vegor rodopiar sobre os
calcanhares e cair de borco no chão.
— Não venha citar para mim as leis de nossa nação! Não está em posição de
exigir nada. Você envergonha nosso reino, envergonha nossa dinastia, envergonha
o nome dos Wullith e dos demais clãs. Durante vários ciclos, você negligenciou seu
chamado de primogênito. Não pense que foge ao meu conhecimento que você
rouba de nosso tesouro pessoal para gastar em bordéis nos confins da cidade. Era
para você ter se preparado, Vegor. Era para você assumir este posto. Mas tudo o
que você fez foi gastar nosso ouro com prostitutas, bebidas, farras e sabe-se lá mais
o quê. Vidas inocentes morreram por sua total irresponsabilidade. Se para proteger
nosso continente, preciso quebrar uma mera tradição hierárquica, estou pronto a
fazê-lo sem titubear.
— Exigimos que Rudi seja o indicado... — inferiu Lorde Danrel, pressuroso,
ainda embasbacado.
322
— Sim — acrescentou Lorde Brenrar. — Foi por causa dele que não perdemos
mais homens. Ele conteve o avanço dos bárbaros usando sua poderosa magia.
— Rudi provou seu próprio valor até mesmo em seu retorno, Saldivar — falou
Lady Yisi, concordando com os demais. — Obliterou aquele troll como se fosse
uma simples barata.
— Ainda que isto não minimize a culpa de seu filho mais velho e que ele deva
pagar de alguma forma pelo que fez, desejamos que Rudi seja o próximo Guardião.
— Sim. Queremos Rudi como Guardião.
Saldivar balançava a cabeça, acuado pelos desejos dos outros soberanos ao seu
redor.
O discurso dos reis se assomou sobre Vegor. Como uma espada afiada, terminava
de dilacerar seu peito e rasgar seu coração, sua esperança e seus sonhos. Inflamado
por suas exigências, o primogênito do rei observava o próprio pai assentir em
concordância com os demais. Consumido por um furor inexorável que emanava de
seu interior, esqueceu-se da dor lancinante e da vergonha do tapa que marcava sua
bochecha e colocou-se de pé outra vez.
— NÃO! — berrou Vegor e todos emudeceram com seus brados ensandecidos
— EU SOU O ÚNICO HERDEIRO DIGNO DESTA POSIÇÃO. EU DEVO
SER O GUARDIÃO. RUDI NÃO MERECE ESTA INDICAÇÃO!
Os gritos reverberaram pelas paredes. O silêncio imperou repentino. Uma súbita
rajada de vento agitou as pesadas cortinas do salão. Lorde Brenrar e Lorde Danrel
ficaram atônitos; desembainharam suas espadas, de chofre. Lady Yisi puxou um
escudo que deixara repousando sobre a mesa e ficou em alerta. Os olhos que o
encaravam estavam dominados de temor. Saldivar fitou o filho, sobressaltado.
Recuou para longe, achegando-se para onde Brenrar e Danrel empunhavam suas
armas. Os dedos de Vegor apertavam algo frio e rígido. Os braços retesados se
esticavam para frente. Sem se dar conta, as mãos se apropriaram de Soberba. Ao
seu redor, uma ventania elemental assoprava pelo perímetro como um furacão em
formação.
— VEGOR! JÁ BASTA! — berrou Saldivar, obliterando as ondas de ar que
sacudiam as paredes e a mobília, lançando Vegor contra as portas de entrada.
Acossado, Vegor agarrou-se à espada. Sob os gritos e protestos dos outros reis e
de seu pai, rodou a maçaneta e abriu os portões de madeira. Na penumbra do ante
salão, o rosto lívido de Rudi foi a primeira coisa que seus olhos focaram. Erguendo
Soberba e cego de raiva, Vegor avançou sobre o irmão mais novo, como uma
serpente prestes a dar o bote.
Uma pancada certeira atingiu o filho mais velho de Saldivar no estômago. Puxou
o ar com força. Os pulmões doeram de tentar sorver o oxigênio. Acabrunhado, a
cabeça girou, mas conseguiu reunir forças para erguer-se e confrontar quem o
golpeara. Entre ele e Rudi, Callan o encarava. A mão direita firme no cabo de uma
323
machadinha afiada e a esquerda na pequena faca de estimação, pronto para agir.
Disposto a matar ou morrer se fosse necessário.
— Não me obrigue a tomar uma atitude que eu não queira, Vegor!
Respirou fundo, com dificuldade e aguardou. A dor na boca do estômago ainda
era intensa. Mirou os olhares espantados de Mastenion, Airis, Trawlin, Hallzer,
Derrick, Loubor, Deelya e dos demais guardiões ao redor. A um canto, irrompendo
pela porta do salão, o esgar estarrecido de Saldivar surgiu, ladeado por Lorde
Brenrar e Lorde Danrel e sua expectativa desenfreada sobre no rosto.
— Um dia, todos vocês irão pagar!
Como uma flecha atirada por um exímio arqueiro, Vegor disparou por um
corredor. Carregando consigo a espada lendária de Candorn, sumiu na escuridão
da noite.
324
Capítulo Vinte e Três
Vingança na Floresta
Uma voz trovejou no silêncio mortificante da mata fechada. Emergindo do
pesadelo, Zakkar se pôs de pé num salto, atônito e alarmado. Por puro instinto,
agarrou-se ao caule de um salgueiro próximo e pulou para o topo, apoiando-se em
cima de um galho forte e retorcido. Abraçando os joelhos, desapareceu entre as
folhas altas. Escondido na copa da árvore, percebeu que estava faminto. O desejo
por manter-se vivo e alcançar a maior distância possível da capital fez-no esquecer
completamente de se alimentar. O estômago roncava de fome e as energias iam se
esvaindo a cada segundo. A fraqueza dominava o corpo. Moveu um dos braços e
apoiou-se sobre outro galho. Fez pressão com o pé para não tombar dali ao chão.
A cabeça girou. Achou por um instante que ia desmaiar.
Caminhara sem rumo certo. Embrenhou-se floresta adentro, em meio às árvores
de troncos brutos e raízes pitorescas e à densa mata abrupta e hostil até que a
exaustão o impeliu a tombar aos pés de um velho salgueiro no limiar de uma
pequena clareira e desmaiar de sono e cansaço.
Perdera completamente a noção das horas. Ante o desespero do ataque surpresa
ao palácio, não tivera tempo sequer de chorar. Deslizando por uma corda de lençóis
improvisada, fugiu como um cão covarde para evitar ser assassinado, enquanto sua
família era enfileirada no saguão de entrada e obliterada por uma força militar
sombria e esmagadora. As imagens execráveis da brutalidade que presenciara
estavam muito recentes em sua mente e, toda vez que fechava os olhos, elas
retornavam, vívidas como se tivessem acabado de acontecer, fazendo-o lembrar
que aquilo não era um terrível pesadelo, mas a dura realidade. Era real: o pai
assassinado com uma espada cravada no peito, sua família prostrada prestes a
sucumbir pelas lâminas de guerreiros mascarados, a cidade em chamas, destruída;
homens, mulheres, elfos, anões, duendes, centauros convertidos em pilhas de
corpos de cidadãos miliatenses mortos pelas ruas da capital, cobertas de cinzas que
pairavam sobre os ares cálidos da noite iluminada pelo fogo que ainda ardia em
várias edificações. Uma realidade que esgotava as esperanças de Zakkar.
Acabrunhado, relutava contra o desejo de se derramar em lágrimas.
325
A Floresta Demoníaca se apresentava como sempre a viu: abafada, úmida,
coberta por centenas de árvores de aspecto hostil. Lúgubre e angustiante.
Aterradora como em seus piores sonhos. Jamais imaginara que sua vida dependeria,
um dia, daquela que era o maior dos seus medos. As raízes protuberantes e os
galhos retorcidos figuravam como vultos fantasmagóricos ao longo do caminho. O
negrume funesto era intenso e sufocante. As folhagens se emaranhavam de forma
intrincada nas copas das árvores. Era impossível afirmar que horas do dia seriam.
As silhuetas hediondas e difusas da mata provocavam arrepios na espinha.
Correndo pela terra enlameada, no frio dominante que se assomava, Zakkar estacou
várias vezes, o coração dando cambalhotas no peito, acreditando estar diante de
uma criatura das trevas, pronta para devorá-lo ali mesmo, sem que ninguém
soubesse. A cerração era quase palpável. Densa e cinzenta, permeava por cada
centímetro da floresta. Não conseguia nem saber em que ponto de Miliat estava.
Deixara para trás o crepitar das chamas consumindo a cidade e há muito o estralar
do fogo desparecera para dar lugar aos esdrúxulos e indecifráveis ruídos da noite e
a escuridão total. Agarrava-se à esperança de sobreviver embora sua fé fosse
vacilante, mas esquecera que os perigos da Floresta Demoníaca eram tão reais e
iminentes quanto o da emboscada na cidade.
Manter-se vivo era seu único objetivo. Estava sozinho. Exaurido. Desarmado e
fraco. Assolado por uma dor pungente. Uma presa fácil para os destruidores da
dinastia de sua família. O desejo de fugir de seus algozes só não era maior do que
sua sede implacável por vingança. Eliminar os traidores do Trono dos Ayarza era
o que mantinha sua cabeça no lugar para não sucumbir à angústia que se arremetia
contra ele.
Mais uma vez, a voz pujante retumbou. Alerta, Zakkar apurou os ouvidos.
Esforçava-se para não fazer nenhum ruído. Aguçava a vista na esperança de
conseguir enxergar alguma coisa, mas só vislumbrava a névoa cinzenta e opaca. As
retinas doíam. Lacrimejava de um misto de cansaço e curiosidade excessiva que o
fazia arregalar cada vez mais os olhos. Não tinha noção de que horas deviam ser,
mas as nuances cinza-chumbo estavam diferentes. Assumiam, ainda que
timidamente, tons alaranjados que invadiam pouco a pouco a cerração e se
misturavam ao cinza dominante. O sol devia estar raiando em algum lugar no
horizonte, mas sem a força necessária para penetrar as densas folhagens.
Nas variações de ruídos indistintos da floresta, a voz crescia, possante e
exasperada. Era impossível reconhecer de onde vinha. A única coisa de que Zakkar
sabia era que se aproximava do lugar em que estava escondido. Torcia, com todas
as suas forças, que a névoa pesada estivesse escura o suficiente para evitar que quem
quer que estivesse vindo o encontrasse escondido ali, até que fosse capaz de
descobrir se era ou não um inimigo.
326
O timbre intransigente tornou-se plenamente audível ao ponto de Zakkar
conseguir distinguir claramente cada palavra proferida. Outras vozes emergiam
junto à primeira. Gargalhavam, cantarolavam satisfeitos, falavam alto: uma
verdadeira algazarra, emitindo palavras ainda indistinguíveis. Aproximavam-se da
clareira a passos largos e rápidos.
— Já falei para vocês falarem mais baixo. O feitiço do dialeto acabou. Querem
que descubram a gente na floresta? Não esqueçam que ainda não estamos livres. Se
encontrarem a gente, lascou-se tudo.
A voz trovejante falou. Podia sentir sua presença a poucos metros abaixo de onde
Zakkar se escondia. Prendeu a respiração com medo de ser detectado. Apurou
ainda mais os ouvidos para prestar atenção.
— Deixa de ser chato, Giomar. Tu acha que realmente alguém vai vir atrás da
gente nessa floresta? Além do que os ogros que a gente soltou pra cima deles devem
ter matado o que sobrou na capital.
Outra voz apareceu. Esganiçada, passava por baixo do salgueiro sem pressa
alguma. Zakkar arregalava os olhos a cada nova frase. Ogros em Miliat? Havia muito
tempo não se ouvia falar dessas criaturas no continente. Foram exterminados há
eras.
— É verdade. Essas criaturas nojentas serviram bem para suas finalidades.
— Desbarataram os exércitos nas ruas de Miliat como se fossem ratos de porão.
— Deixaram o caminho até o castelo completamente livre!
Gargalhadas ribombaram sobre a clareira. Agarrado aos joelhos, o coração de
Zakkar disparou dentro do peito. Miliat? Os homens que passavam bem debaixo
de seu nariz eram guerreiros inimigos que invadiram Miliat. Esquecendo a fome
inexorável que ardia no fundo de seu estômago, esforçou-se para manter os últimos
fios de vigor para não perder nenhum detalhe do que aqueles homens falavam.
Quem sabe descobriria sobre os traidores de sua família?
— Acho que podemos montar acampamento aqui pra tirar um cochilo, o que
acham?
— Não, de forma alguma. Está amanhecendo e vocês já devem ter ouvido falar
sobres os monstros que habitam essa floresta esquis...
— Cara, a gente lutou a noite toda! Tá todo mundo na merda.
— E pior, enfurnados nessa bosta de uniforme preto e quente que esconde até o
rosto. Tô todo suado. Até minha bunda tá suando.
— E como sua a bunda, não é, Logar?
Novas risadas eclodiram.
— Vai se lascar, Boroni.
Arraigado ao galho do salgueiro, Zakkar se deu conta de que não eram tantos
soldados quanto tinha imaginado. Eram os mesmos timbres de vozes que se
repetiam em uma conversa despretensiosa. A não ser que houvesse algum mudo
327
no meio, não passavam de quatro homens, pelas suas contas. Deviam estar
puxando alguns cavalos também. Ouvira o trotar de ferraduras sobre as raízes
baixas e um relinchar quase imperceptível em meio ao falatório.
— ... Ok, ok. Vamos descansar, então. Mas só um breve cochilo e aí partimos.
Precisamos nos encontrar com outros três pelotões em Namit dentro de vinte dias.
E estamos muito atrasados!
— Deixa de ser exagerado, Giomar.
— Não esquece, Talurd, que nossa missão ainda não acabou. Não vai demorar
muito até que os outros condados saibam do ataque à capital. Lembrem-se que
ainda vamos fazer uma parada em Angabur e nos misturarmos ao povo. Ninguém
pode saber sobre nós e...
— De novo você com essa história? A gente está muito longe da capital. Matamos
quem tínhamos que matar. Pegamos o exército deles de surpresa e nossos pelotões
se dispersaram por inúmeras saídas distintas, como mandava o plano. Só os
condenados ficaram para trás para morrer. Mesmo que alguém tivesse conseguido
fugir do palácio e avisar sobre a emboscada, nenhuma tropa dos outros condados
ou de Neergúria, Pernítrulis ou Corínio chegaria a tempo de nos deter.
— Ou sequer nos encontrar.
— Exato! Foi tudo muito rápido e bem executado.
— Seguindo pela floresta agora, não tem erro.
— E quando vamos receber o restante do nosso pagamento?
— O restante estará em Pedra Negra.
— Em Pedra Negra? Naquele buraco entre Neergúria e Sombroceano?
— E tem outra Pedra Negra por acaso, imbecil?
— Mas não tinha um lugar mais isolado e podre do que lá, não?
— O que isso importa? O importante é que seremos bem pagos. Um emissário
estará nos esperando lá. De Namit até Pedra Negra é uma viagem de dois dias de
navio.
— Vocês não acham muito estranho sermos pagos em Neergúria?
— E o que isso importa, Logar? É ouro. Dinheiro. Muito dinheiro.
Pedra Negra? Zakkar arrazoava, confuso. Pedra Negra era um dos condados mais
inóspitos e esquecidos de Neergúria. Escondida em um profundo vale, vivia do
comércio de caranguejos de seus imensos manguezais. Abrigava também um reduto
de leprosos que eram enxotados das grandes cidades do reino. Mas por que
Neergúria estaria envolvida nessa chacina? Rei Belbert sempre fora um grande
amigo e admirador de Golmir, seu tio-avô, e as tensões que um dia existiram entre
Miliat e Neergúria eram um mero evento histórico irrisório que ficara no passado.
Nada fazia sentido. Será que Belbert havia mudado de lado? Mas o que motivaria
isto?
— Mas, diz aí, quem vocês acham que é o nosso contratante?
328
— Cara, esquece esse troço...
— Lógico que não. Eu quero descobrir quem é tão rico a ponto de gastar
toneladas infindáveis de ouro com uma legião monstruosa de assassinos
condenados. E o que tem de tão ameaçador em Miliat para alguém querer a família
real morta?
— Já falei pra esquecer essa merda, Boroni.
— Ouvi boatos...
O silêncio de uma curiosidade crescente instaurou-se de súbito e se arrastou por
breves segundos enquanto todos aguardavam que boatos eram esses. Assim como
Zakkar, os homens estavam na expectativa das revelações que viriam a seguir.
— Boatos, é? Conta aí.
— Conta, conta, conta.
— Ouvi um burburinho de alguns soldados... disseram que escutaram uns
comandantes dizendo que o fiador dessa chacina é o Conselho...
— O Conselho? Qual Conselho?
— Qual Conselho seria, idiota? Quantos Conselhos teriam ouro suficiente pra
uma coisa dessa? O Conselho dos Guardiões, obviamente!
— Fala sério, gente. O Conselho dos Guardiões existe para nos proteger e para...
— Cala boca, Giomar. Deixa o Talurd terminar a história.
— Disseram que há ciclos o Conselho estava insatisfeito com o rei de Miliat. Que
o estopim para essa decisão foi querer nomear seu filho impuro para o alto escalão.
Justo no Ano da ‘Ebeligilidade’.
— Elegibilidade.
— Isso aí, Giomar.
— Dizem que é o evento mais importante de eras, um marco histórico e não sei
o que mais e que o Conselho não aceitava a decisão do rei.
— Eu não duvido de nada. O Conselho dita as regras em Eirin, meus camaradas.
— O Conselho é brabo, parceiro.
— Fora que possui um poder ilimitado pra fazer o que bem entenderem. Não me
surpreende que eles decidam quais reinos devem ou não existir. Quem sobe e quem
manda no poder...
— O Conselho só faz o que ele quer...
— É verdade. O Conselho junto com aqueles elfos bizarros daquela ilha-não-seidas-quantas,
daquela seita bestial bizarra.
— Os Sacramentadores, Logar.
— Tá sabendo legal, hein, Giomar? Isso aí, mesmo. Eles mandam no mundo.
Fazem o que bem entendem.
— Sim. Quem nunca ouviu falar do extermínio dos drakoblards?
— Mas isso aí é mito, né, Boroni? Uma viagem sem pé nem cabeça,
convenhamos...
329
— Parem de falar tanta merda. Vocês pediram pra parar aqui pra cochilar e tudo
que vejo é vocês defecando pela boca, falando mal do Conselho. O que importa é
que estamos sendo muito bem pagos e em Pedra Negra vamos ficar milionários e
desaparecer. Lembrem-se que ninguém pode saber sobre nenhum de nós. Agora,
durmam, cambada. Logo, logo teremos de partir.
— Fala aí, Giomar. Tu ainda não disse qual crime tu cometeu pra parar aqui e
nem de onde tu veio.
— Vá dormir. E nada de roncar. Detesto gente que ronca.
Os roncos retumbavam pela clareira e se uniam aos ruídos obscuros dos grilos,
cigarras e outras aberrações soturnas escondidas na mata fechada. Invadiam a
mente perturbada de Zakkar, afetada pelas informações intensas que fora obrigado
a absorver. Processava o que ouvira da boca dos guerreiros, extasiado. Esquecera a
fome, embora a fraqueza ainda fosse real e perturbadora. Mas nada era tão atroador
quanto o que ainda ecoava em sua cabeça.
As peças do intrincado quebra-cabeça, de repente se encaixavam.
O receio de seu pai. A confusão no jantar em Neergúria. Os ânimos alterados e
o ataque dos conselheiros à mesa por seu sangue mestiço. Não fora uma reunião
para anunciá-lo como o indicado de Aladar. Isto era o que seu pai queria. Era a
última chance que o Conselho estava dando ao rei para nomear alguém de purosangue.
Alguém que não fosse meio-guardião e meio-alquimestre. Queriam alguém
inteiramente guardião. A petulância de seu pai em insistir pela nomeação do “filho
impuro” assinou sua sentença de morte. Uma sentença brutal e violenta.
Pendurou-se no galho e deslizou pelo tronco áspero do salgueiro. Era tão óbvio.
Como não percebera antes? A mente o forçava a não querer acreditar que era
possível. A insistência de seu pai e o enfrentamento ante aos conselheiros do modo
como os encarou, com a petulância com que os encarou, provocou consequências
terríveis. Aqueles que deveriam lutar pelo bem comum, agiram para obliterar
qualquer um que questionasse suas motivações. A magia, a pureza mágica, estava
acima da vida, incluindo a de guardiões leais há tantas eras, antagonizando as Leis
Primazes. Equilíbrio e harmonia não importavam. O que o Conselho prezava era
o poder. O poder à sua própria maneira. Inquestionável. Inviolável. Sob a pena de
uma morte sangrenta e aterradora.
O ódio crescente fez uma ideia brotar na mente de Zakkar. Descobriria quem era
o mentor da conspiração sangrenta que se arremetera sobre sua família. Sabia que
havia um mandante. Embora boa parte dos conselheiros em Neergúria torcesse os
narizes quando seu pai o anunciou, tinha de haver um líder. Um financiador das
atrocidades cometidas no palácio e que orquestrara essa chacina, pensando nos
detalhes mais sórdidos para que não houvesse testemunhas. Não contavam,
contudo, que o herdeiro do rei sobreviveria. Graças à perspicácia de Selena, estava
330
vivo. Roubaria um dos cavalos dos soldados fugitivos, seguiria até Namit e lá
tentaria encontrar um dos generais para obter mais informações sobre o líder da
conspiração no Conselho.
A escuridão se dissipava, mas a cerração ainda era plena. Os raios de sol
penetravam a floresta com dificuldade, lançando insignificantes fachos de luz por
entre as copas das árvores. Isso ajudou Zakkar a enxergar melhor por onde andava
e para onde deveria seguir. Pisando de leve sobre a terra molhada pelo orvalho,
desviando das poças de lama para evitar escorregar, o jovem avançou pela clareira,
caminhando por entre os guerreiros dorminhocos.
Quatro homens estavam estirados no chão, desmaiados de cansaço. Os roncos
ensurdecedores reverberavam nos tímpanos de Zakkar e abafavam os ruídos de sua
passagem no meio deles. Vislumbrando o perímetro da clareira, concluiu que estava
certo sobre a quantidade de guerreiros. Aos pés de um salgueiro-chorão, um
homem gordo, careca e de barba ruiva e volumosa era o que roncava mais alto. Sua
pança excêntrica conseguia ser mais roliça e abissal do que a de seu tio Bernat. A
armadura negra era a mesma que vira ao fugir do palácio. Nenhum detalhe,
nenhuma insígnia. Absolutamente neutra. Próximo a uma aljava com poucas
flechas remanescentes, um homem loiro, magricela e de rosto marcado por
cicatrizes dormia profundamente. Roncava alto, mas ninguém superava o primeiro.
Tombado sobre um escudo e um machado, Zakkar entreviu a barba volumosa e os
cabelos acaju e selvagens de um anão, encolhido sobre um tufo de mato cortado
em uma cama improvisada, desmaiado de sono. Por último, avistou aquele que
provavelmente deveria estar de vigia: um homem esgalgado e de rosto macilento
que dormia profundamente com o queixo apoiado em uma espada. No limiar da
clareira, quatro cavalos, carregados de bolsas, cochilavam tranquilamente.
Era sua deixa.
Atravessou o espaço entre os dorminhocos, com todo cuidado possível. Mesmo
que o ronco dos quatro fosse uma espécie de orquestra mal-arranjada e dissonante,
sobrepondo-se a qualquer barulho na floresta e que nem mesmo uma bomba seria
capaz de acordá-los, Zakkar preferiu ser cauteloso. As preocupações que o
assolavam eram relembrar como deveria acordar um cavalo sem que o animal
relinchasse a ponto de despertar os homens estirados sobre a terra e encontrar
alguma coisa para comer, antes de morrer de inanição.
Aproximou-se de um dos cavalos. Malhado, com dois alforjes perdurados sobre
as costas, Zakkar contemplava da crina brilhosa do animal às patas robustas e sujas
de barro seco. Não lembrava como se acordava um cavalo. Deveria alisar o pescoço
ou dar tapas de leves até que o bicho despertasse? Se puxasse as rédeas, será que
ele se assustaria?
O estômago doeu outra vez. Zakkar prostrou-se, perdendo as forças. A fome
exauria suas energias. Acabrunhado, estava a ponto de desmaiar. Enfiou a mão no
331
alforje, no desespero por encher a barriga. Os dedos agarraram algo macio e que
ele reconheceu de imediato. Não estava fresco, mas o cheiro era suave e agridoce.
Devorou o pão de milho em fração de segundos e logo estava metendo a mão para
comer outro e mais outro pão. A cada novo pedaço engolido, o vigor e as energias
cresciam em seu corpo e o desalento da inanição desaparecia.
Esticou o braço para arrebatar mais um pão e, sem se dar conta, agarrou a coxa
do animal. Os olhos do cavalo se arregalaram de espanto. As patas se agitaram e
Zakkar caiu com o susto. O relincho veio em seguida. Alto, estridente, se sobrepôs
até mesmo ao ronco mais alto, do soldado mais obeso entregue ao sono profundo.
Escudos e armaduras se agitaram. Uma espada zuniu pelos ares. O ruído abafado
de uma corda sendo tensionada se ouviu. Um pandemônio se instaurou na clareira
e rapidamente silenciou. Quatro homens encaravam um rapaz de estatura mediana,
sujo e acuado, segurando um pão de milho na mão, à frente de quatro cavalos que
relinchavam e pululavam, agitados, sem sair do lugar, preso por suas rédeas.
— Quem é você? — disparou o mais gordo deles. Era o homem da voz trovejante
que despertou Zakkar de seu sono pela primeira vez.
— Seu pior pesadelo! — pronunciou Zakkar, focando nos olhos do guerreiro
avantajado, revigorado pela massa de pães que devorara.
Uma serpente de água voou pelos ares num movimento furtivo da mão de
Zakkar. Golpeou o soldado mais gordo antes que pudesse brandir sua lança e
enroscou-se em seu pescoço como uma víbora assassina real.
A reação foi imediata. Apalermados com a rapidez de Zakkar, o guerreiro
esgalgado ergueu sua espada. Atravessou a clareira, cambaleando e atrapalhado, na
iminência de acertar o jovem intruso no estômago. Conjurando um escudo de fogo,
a chama elemental derreteu a espada como se ela fosse feita de manteiga. O soldado
magricela vislumbrou, embasbacado, o toco minúsculo que sobrara de sua lâmina
afiada e, no segundo seguinte, Zakkar converteu o escudo mágico em uma poderosa
adaga. Girando a arma na mão com destreza, cravou-a sobre o coração do soldado,
que caiu inerte no chão, jorrando sangue sobre a terra.
O guerreiro loiro e o anão ruivo ficaram atônitos. O anão de aspecto selvagem
agarrou seu escudo e ergueu o machado enquanto o loiro de profundas cicatrizes
disparou dezenas de flechas em sequência com tremenda agilidade. Zakkar
esquivou-se como pôde e agitou os braços e mãos em movimentos circulares.
Rajadas de vento em espiral surgiram. As flechas descreveram uma curva perfeita
no topo das árvores e retornaram, disparadas e em alta velocidade conduzidas pelos
ares elementais. Voltaram-se contra o homem que as disparou, crivando-se sobre o
peito e cabeça, dilacerando seu corpo em variados pontos. O loiro tombou pela
grama com o impacto do golpe, sem vida.
Guardião e anão se encararam. Uma chama pairava sobre a palma da mão de
Zakkar. Atrás do escudo, o anão comprimia os olhos para o jovem, estudando seus
332
movimentos, na tentativa de prever quais seriam suas próximas artimanhas. Um
sorrisinho debochado ocupava seus lábios. As mãos minúsculas rodopiavam o cabo
do machado em seu próprio eixo. O guerreiro gorducho continuava vivo, mas não
por muito tempo. Sufocava a um canto, espremido pela cobra elemental que o
enroscava dos pés à cabeça, lutando para não morrer asfixiado.
— Você é bom, moleque.
— Vindo de um anão e da fama que possuem como exímios guerreiros, deveria
considerar isto um elogio? — inquiriu Zakkar, petulante.
— Considere o que você quiser. Eu disse que você é bom, não que é um guerreiro
de verdade. Depende de seus truques mágicos de araque para poder nos derrotar.
Quero ver me ganhar no mano a mano. Vem pra mão e vamos ver quem é o melhor.
Zakkar riu de deboche.
Notou uma espada cravada sobre a terra. Esvaiu a chama que pairava sobre seus
dedos, caminhou até a arma e puxou-a. Limpou a terra incrustada na lâmina na
barra da camisa e segurou-a com as duas mãos.
— Ok. Estou pronto. E você? Será que está?
Moveram-se lentamente pelo perímetro da clareira, sem desviar os olhares um do
outro. O anão não parava de exibir seus dentes amarelados, denotando a satisfação
não contida por estar em uma batalha mano a mano. Sem magias. Sem feitiços. Um
duelo à moda antiga. Abaixo do bigode e barbas volumosos e sujos, a confiança era
notória. Os olhos estavam vidrados na figura de seu adversário: um jovem rapaz
magrelo, de cabelos revoltos e olhos profundos, agarrado a uma espada. Zakkar,
por sua vez, apreciava o suspense dos longos segundos se arrastando, em que se
encaravam, espreitando, estudando o movimento um do outro, mas sem que
avançassem para desferir o primeiro golpe. Cansado de andar em círculos, o jovem
guardião sussurrou para seu adversário:
— Vamos ficar nos encarando ou vamos lutar?
— Está afobado? De fato, você não é um guerreiro... — trovejou o anão, irônico.
— Um verdadeiro guerreiro es...
— Afobado? Jamais, anão. — Zakkar interrompeu-o no mesmo tom de ironia.
— Só não tenho tempo para ficar encarando um velho nanico, barbudo e biruta
para o resto da vida.
— Um verdadeiro guerreiro não se apressa, não se desespera. Ante a um desafio,
sustenta a serenidade e a temperança para discernir o momento correto de desferir
um golpe.
O machado rodou e cortou os ares três vezes. Zakkar esquivou-se com destreza
de todas elas. Recordou-se das aulas de defesa pessoal com lâminas do velho
Soberorn. Ansiava que seus ensinamentos o tivessem ajudado a sobreviver à
emboscada. Era o mais notável espadachim do reino e quiçá do continente; sua
perda seria uma lástima.
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A gargalhada do anão ecoou em meio à névoa suave e perene.
— Então, você também tem seus truques?
— Você pode se surpreender comigo, anão.
Boroni rosnou para ele como um cachorro com raiva.
— Pare de me chamar de anão, moleque insolente. Sou Boroni Machado
Certeiro. E não tenho esse nome por acaso!
Boroni se assomou para cima do oponente numa série de investidas rápidas e
violentas. Empunhava e descia o machado afiado mirando sempre nos pontos
vitais. Almejava encerrar o duelo com a vitória em suas mãos. Mais ágil e veloz que
o anão, Zakkar conseguiu escapar dos golpes em sequência por muito pouco.
Desviou da lâmina afiada por pura sorte, pelo menos quatro vezes, escapando de
perder a cabeça ou de sofrer um corte letal por um triz em todas elas.
Rodopiou, recuperando o fôlego, usando a espada como apoio para se pôr de pé.
Girando nos calcanhares, Boroni ergueu outra vez o machado. Pressuroso, Zakkar
ergueu a espada e zuniu-a nos ares. A lâmina acertou o escudo de aço e tremeu
como vara verde em ventania violenta. O estrépito agudo e estridente de metal se
chocando irritou os ouvidos de ambos. Erguendo o machado, o anão arremeteu-o
contra Zakkar, que o travou com sua espada com dificuldade. Movido pelo instinto
de sobrevivência, o jovem bicou o joelho de Boroni, que fez um “crec” alto e
estridente. Não foi um ensinamento de Alto Soberorn, aliás, seria algo que ele
criticaria veemente em uma de suas lições. Numa luta honrada, esse seria um golpe
sujo e desonesto. Mas esse não era um duelo de cavalheiros no palácio. Lutava pela
própria vida e sabia que na primeira oportunidade de matá-lo, o anão não hesitaria
em usar métodos nada honestos. O grito de seu oponente reboou pelos ares e ele
caiu de cara no chão, uivando de dor.
— Acho que você me subestimou, seu nanico miserável.
Zakkar fincou a espada na coluna de Boroni, sem misericórdia, até a lâmina
atravessar seu estômago e fincar sobre a terra. O anão vomitou sangue. Gemeu por
alguns instantes, ergueu os olhos para o jovem guardião e, abrindo um sorriso
debochado uma última vez, expirou.
Recuperando o fôlego e arfando ruidosamente, Zakkar desabou sobre um monte
de grama e musgo. Inspirou e expirou duas vezes e mirou o guerreiro sufocado pela
serpente mágica.
— Então, — proferiu o jovem, recompondo-se, ajeitando os cabelos revoltos,
encharcados de suor. Abocanhou um pedaço do pão de milho que teve de jogar a
um canto durante as últimas lutas — Giomar, não é?
Afrouxando o aperto da cobra de água, Zakkar viu o soldado remanescente
tombar ao chão, puxando o ar com força em um desespero descomunal. O monstro
elemental converteu-se em irrisórias gotículas e, assim como surgiu, desapareceu
no ar.
334
— Seu... desgra... desgraçado!
Giomar fez menção de atacá-lo com um punhal. Um breve movimento dos dedos
de Zakkar fez a miúda faca voar a meia altura e se fincar em um galho qualquer.
Ergueu o corpo pesado do último inimigo na clareira com um simples aceno e o
manteve a poucos metros do chão com a força de seu poder.
— Não seja tolo, Giomar. Você viu o que fiz a seus amigos. Nenhum deles está
mais aqui para contar a história. Agora fique quieto e me ouça. Ouvi cada palavra
que disseram desde que chegaram aqui e me despertaram do sono. Sei que vocês
pertenciam ao exército que atacou e assassinou minha família.
Os olhos de Giomar se arregalaram, surpreso.
— Sim, Giomar. Sou Zakkar Ayarza, o herdeiro remanescente do Trono de Jaspe
da Intrépida Miliat.
— Eu, e-eu n-não sei de n-nada.
— MENTIRA! Eu sei que você sabe de algo. Não foi à toa que deixei você por
último, mantendo a serpente de água apertando seu pescoço somente o necessário,
sem matá-lo sufocado. A marca que você carrega abaixo do pescoço entrega quem
você realmente é.
O soldado estremeceu.
— Quando passei por vocês dormindo, eu a vi. Você cometeu o erro de deixar a
marca da traição exposta. Somente alguém letrado e culto possui o sinal de uma
runasmagiam sobre a pele. — Zakkar puxou a camisa para baixo e exibiu um “R” e
um “M” cheio de floreios, limitados em um círculo, marcado em seu peito
esquerdo. — Não arriscaria dizer que você seja um rei ou pertença a alguma alta
nobreza, porque nenhum nobre honrado faria o que vocês fizeram no palácio, mas
posso inferir que você talvez seja um duque, um marquês, um general ou um
proeminente comandante de tropas que selou um pacto, marcando a própria pele
abaixo do pescoço, principalmente pelas marcas recentes desse selo.
Uma gargalhada maquiavélica e desesperada ecoou de repente. Zakkar franziu o
cenho, aguardando. O semblante dominado pelo medo e horror de Giomar deu
lugar a uma expressão carregada de ironia. Os dentes arreganhados em um sorriso
petulante encaravam-no como se estivesse em grande vantagem naquela disputa.
— Você não é tão idiota como me disseram, seu bastardo desprezível. Lorde
Wynsor, Marquês de Caleen-Endrar. Pode me matar, fazer o que quiser comigo,
mas eu jamais trairei meus fiadores. Jamais saberás quem mandou matar sua família.
Zakkar empertigou-se, furioso. Apertou ainda mais a magia que sufocava o
guerreiro. Wynsor estremeceu, sufocando. Debatendo-se e buscando um ponto de
apoio na esperança de poder escapar, o riso debochado era cada vez mais sonoro e
desafiador.
De súbito, cessou.
— Posso fazê-lo mais rico do que seu contratante.
335
O marquês caiu no chão e inspirou o ar com força. Outra vez, riu
descontroladamente: mais alto e mais descarado do que antes.
— Você não tem mais nada, moleque. Que é que podes me oferecer? É um
pobretão órfão que logo, logo será capturado e decapitado. Sequer vai ter um
funeral. Será colocado numa cova rasa e esquecido por todos. Morto feito um cão
assim como seu pai.
Zakkar respirou fundo.
— Acha que meu pai só tinha riquezas no palácio? — Zakkar mantinha o timbre
calmo e sereno. — Condado de Braeagor, Rua Baixa, número dezessete. Palacete
do Tesouro. Cofre quinze, código quatro-zero-zero-nove-vinte-zero-zero.
Encontrará todo ouro que desejar lá, eu prometo e, assim, poderá sumir do mapa
para sempre se você unicamente me disser quem bancou essas tropas.
Wynsor ainda sorria de forma acintosa, quando refletiu por um momento.
— O Conselho dos Guard...
— Que foi o Conselho, eu já sei, imbecil. Até seus soldados suspeitavam. Eu
quero um nome. O líder dessa conspiração!
O marquês respirou fundo. Comprimiu os olhos como se avaliasse se todo ouro
dos Ayarza valeria a pena em troca da informação que estava prestes a revelar.
— Lorde Hamm Louis Zanotchka, sob a autoridade e aval de Salazar Stanhorne.
Demorou alguns segundos para que Zakkar absorvesse o impacto das palavras
do homem diante dele. Zanotchka era o implacável vice-líder do Conselho. O
homem de duras feições que impelira nele, no jantar em Neergúria, um temor
descomunal. Contido e cordato, um guardião de poucas palavras cuja mente
maligna estava por trás do terrível trauma que era obrigado a enfrentar. O homem
que arrebatara suas esperanças de um dia ser o Protetor de Aladar.
— Pois bem, Lorde Wynsor. Que sua morte seja lenta e dolorosa.
O marquês arregalou os olhos, atarantado.
— O quê? Mas eu te disse quem era o mandante. Exijo minha recompensa. Você
me prometeu.
Zakkar sorriu, comendo o último pedaço de pão.
— Eu menti.
Aproximando polegar e indicador, a magia reluziu na penumbra da floresta e a
serpente de água renasceu. Aninhando-se sobre o pescoço de Wynsor, ela se
enroscou com ferocidade, apertando-se contra a traqueia do homem. O marquês
transitou de um tom avermelhado para púrpura em questão de segundos,
debatendo-se sem poder absorver o ar. Zakkar observava a cena com um fascínio
no olhar e um sorriso nos lábios. Na derradeira tentativa desesperada de manter-se
vivo, a cobra elemental apertou ainda mais o golpe. Um estalo se ouviu e a cabeça
de Wynsor pendeu de lado. O corpo caiu no chão, sem vida.
336
Caminhando devagar e observando o cenário ao redor, Zakkar limpou os
resquícios de sangue que restaram em seu rosto suado. Recuperou uma espada do
chão e a guardou em um dos alforges do cavalo malhado. Arrebatou outro pão de
milho, devorando-o com fúria e rapidez. Libertou os demais cavalos e os dispersou
floresta adentro com um tapa em suas ancas. Subiu na última montaria restante e
decidiu seguir sua longa jornada até o porto de Namit.
Os homens mais poderosos do mundo haviam destruído sua família. Jurou em
seu coração que não descansaria até que pudesse pôr as mãos em seus pescoços
para vê-los agonizar até a morte.
337
Capítulo Vinte e Quatro
O Desafio
O sol imperava sobre um céu livre de nuvens, ardendo como uma fornalha. Era
um dia atípico para aquela época do ciclo. A primavera em Eurodian costumava ser
agradável e até trazia dias quentes, com brisas cálidas a assoprar, impelindo os
campos de crisântemos e lírios a desabrocharem. Os triviais girassóis de Mandentur
se abriam e exibiam toda sua exuberância, tornando os passeios de charrete ou a
cavalo pelo condado mais próximo de Cruisand um maravilhoso espetáculo da
natureza. Mas, naquele dia, o clima estava estranho. Parecia uma manhã cristalina
do meio do verão. Os raios solares coruscavam sobre as cabeças, refletindo nas
intensas gotas de suor que se convertiam em cascatas, escorrendo pelas testas,
pescoços e narizes de todos. Castigavam a pele como brasas incandescentes.
Balançando a barra do longo vestido azul-turquesa, Ivyna se esforçava para
conseguir se refrescar em meio ao calorão infernal, mas sem muito sucesso. O suor
descia pelas pernas, por baixo das anáguas rendadas. Odiava ter nascido mulher em
momentos como esse e pelo simples fato de ter que vestir-se do jeito que estava
vestida: infinitas anáguas por baixo de um longo vestido, joias e mais joias pesando
sobre o pescoço; nos pulsos, variadas pulseiras cintilantes e brincos dourados
espalhafatosos pesando em suas orelhas. E ainda tinha a maquiagem. Uma
infinidade de pós de arroz espalhados no rosto contrastando em várias camadas,
rímel e modeladores torturando seus cílios, tinta vermelha nos lábios para dar
“volume”, como dizia sua madrinha Melina. Somado a isto, contava-se as três
terríveis horas arrumando os cabelos, enrolando-os à ferro quente para que
ficassem milimetricamente encaracolados em um penteado mirabolante para exibilos
em público, quase como uma obra de arte, obedecendo religiosamente ao que
mandava a etiqueta real.
Do alto da tribuna mais alta, observava, irritadiça e sem muito interesse, as
multidões ao redor. O povo se espremia, apinhando as arquibancadas da arena da
Academia dos Guardiões, engolfados por um frenesi extasiante. Bandeiras
flamulavam de um lado a outro, dos mais variados tamanhos e cores. A maior parte
delas exibia o grande Grifo Inquietante e as cores de Badorian. Mas umas mais
tímidas balançavam um corcel com duas asas em tons verde e prata e outras,
338
poucas, um leão empertigado e de aspecto hostil em prata e dourado. Tambores
irradiavam pelos ares junto ao som de cornetas estridentes e coros animados de
torcedores mais fanáticos. Fitas multicoloridas perambulavam por todo o perímetro
da arena, agitadas por muitas mãos e sendo balançadas pelo vento. E faixas, muitas
faixas, cada uma maior do que a outra. Exibiam o nome de seu guardião favorito
naquela que seria a maior disputa da arena dos últimos vinte ciclos.
Os torneios na arena eram triviais. O maior e mais badalado evento que ocorria
em Badorian. Movimentava milhares de pessoas dos mais variados lugares, de
dentro e fora do reino, deixando a capital apinhada de turistas e cidadãos dos mais
longínquos condados. Verdadeiras torcidas organizadas eram formadas. Lançavam
sortes em quem seria o favorito para conquistar o torneio daquele ano. Embora o
prêmio nem sempre fosse uma indicação ao posto mais cobiçado de Eirin, as
recompensas eram interessantes: um posto de Almirante, um cargo de Marechal,
uma ou outra vaga de General. Isso motivava não apenas os guardiões de Badorian,
mas os de outras famílias dos demais continentes, principalmente aquelas que
sabiam que jamais seriam indicadas em suas nações de origem. O torneio era
democrático. Dava uma chance para o melhor. Não era à toa que isso atraía
centenas de milhares de turistas, loucos para gastarem todo seu ouro, joias e o que
mais conseguissem investir no melhor lutador. Com isso, as casas de câmbio
ficavam abarrotadas de apostadores, arriscando dinheiro e bens nos guerreiros que
eles acreditavam serem o de maior potencial. Mercadores e vendedores de outras
partes do mundo aportavam em Mistral, Cruisand e Paragon e migravam
imediatamente para Badorian na esperança de aproveitarem a época para venderem
seus produtos e bugigangas. Elfos e duendes artificies esqueciam as desavenças e
se misturavam pelas ruas da capital, comercializando suas obras de arte, fazendo
esculturas de argila e caricaturas nas praças e centros comerciais. Caravanas de
druidas montavam acampamento nos arredores da cidade, ofertando previsões do
futuro por uma pequena quantidade de ouro. Artistas circenses, camelôs de
amuletos, centauros vendendo armas e outros artefatos confeccionados a mão,
cozinheiros de refeições exóticas, ilusionistas e variados tipos excêntricos
apinhavam Belrar.
Contudo, o alvoroço era maior neste ciclo.
O prêmio não era uma pequena fortuna e uma alta patente militar para o
campeão. A recompensa para o vencedor do torneio, depois de vinte ciclos, era a
mais cobiçada de todas: assumir o posto de Protetor de Eurodian. Grande parte do
Conselho dos Guardiões estava presente e se posicionava nas outras tribunas de
honra, pois não se tratava somente de uma Sucessão Honrosa como da última vez.
Pela primeira vez na história, o Ano da Elegibilidade aconteceria. Eurodian sediaria
um acontecimento ainda maior do que o Torneio dos Guardiões de Badorian.
Cruisand, Paragon e Vervaz seriam palco do maior evento de todos os tempos,
339
nunca antes ocorrido, nos próximos meses, quando os cinco Guardiões assumiriam
seus postos ao mesmo tempo, compondo o novo Círculo dos Cinco.
Desistindo de sacudir o vestido, Ivyna agarrou um leque próximo, agitando-o
freneticamente, sentindo a irritação crescer em ritmo acelerado. As gotas de suor
escorriam pelas têmporas, abrindo um sinuoso caminho por sua maquiagem
pesada. Pingavam das sobrancelhas em direção à orla do bojo das vestes. Respirava
fundo para não perder a paciência e sair correndo dali direto para o castelo. Queria
mostrar uma compostura digna de princesa, desafiando sua mãe que parecia
considerá-la ainda uma menininha mimada.
Assentado sobre a maior e mais requintada cadeira bem no meio da tribuna,
Heidlich assistia às lutas sem demonstrar qualquer sentimento ou esboçar reações
mais expressivas. Não parecia nada impressionado com qualquer lutador dos
duelos. Limitava-se a segurar o queixo rígido, alisando a barba loira e bem aparada.
Os olhos azuis concentravam-se no centro da arena, como se estudasse os dois
oponentes se digladiando lá embaixo. Adornado com a mesma capa longa e
vermelha que seu pai usava, ele lembrava uma versão mais jovem e robusta de
Cench. E muito mais burra e desleal.
O ódio, que a consumira dias antes, ressurgia outra vez pelo simples fato de
observá-lo empertigado sobre o trono em seu modo displicente. Traíra sua
confiança. Mas como poderia confiar em um dito cujo que estava ligado a ela pelo
sangue, mas que jamais teve uma atitude verdadeira de irmão? Quando nasceu,
Heidlich havia acabado de subir ao posto mais alto de Eurodian, sendo considerado
um dos mais jovens mágicos a se tornar Guardião. Desde então, vivia distante.
Seguia sua vida, isolado de Badorian e chegava a passar meses sem dar qualquer
notícia e até mesmo algum vestígio de que ainda continuava vivo. Veio descobrir
que tinha um irmão mais velho através das muitas histórias contadas por seu pai,
que sempre narrava seus contos como se o primogênito fosse uma lenda, um herói
lendário e invencível saído de uma das muitas estórias contidas nos livros infantis
que ocupavam a biblioteca do palácio. A mãe falava de Heidlich como quem
comenta de um parente distante. Era notório que Falla detestava o fato de também
não receber notícias do filho, mas quando ele surgia em Badorian, não deixava de
paparicá-lo um segundo sequer. Os momentos em que o via no castelo eram
raríssimos e todos o tratavam como se fosse um deus que desceu de seu plano astral
superior e resolveu visitar os meros mortais de Eirin para contemplar o favor de
sua graça e benevolência. Mas, para Ivyna, ele era um forasteiro de uma terra muito
distante. Perdido, deslocado e externando uma louca vontade de sumir o mais
rápido possível daquele lugar para poder retornar ao refúgio, vivendo entocado o
resto de seus dias, nos ciclos que ainda lhe restavam. Mas aquele homem, um
completo estranho que se assentava sobre o trono e governava uma nação ao qual
não pertencia, fora categórico: ela estava proibida de se inscrever no Torneio e não
340
poderia, sob nenhuma hipótese, participar da competição. Conforme as
recomendações da mãe, deveria se concentrar no casamento.
As lembranças daquele dia ainda perturbavam sua mente e era impossível conter
o pranto desesperado sempre que recordava. Treinara a tarde inteira com o irmão
no pátio, convencida por ele de que era tranquilo lutarem em público, até serem
descobertos pela rainha que imediatamente teve um ataque de estresse ao ver sua
adorável filhinha fazendo o que ela sempre proibiu. Após investir contra a mãe,
fora interrompida por Heidlich. Algo em seu rosto lhe dizia que ele brigaria em
favor dela. Que o irmão, então rei, defenderia sua causa e convenceria a mãe de que
a irmã mais nova tinha potencial. Confiou cegamente que ele a salvaria de um
destino que não desejava.
Furiosa e a contragosto, subiu as escadarias em alta velocidade e enfurnou-se
dentro do quarto. Arreganhou as pesadas cortinas e enfiou as caras na janela. Dali,
era possível ver parte do pátio em que estava antes, junto ao irmão. A cerração não
aliviava, estendendo-se para além dos terrenos do castelo, mas graças às tochas que
alumiavam o entorno, conseguira vislumbrar a discussão acalorada em que Heidlich
e Falla estavam metidos. Desejava poder conhecer leitura labial para entender o que
estavam falando, embora da posição em que estava seria muito difícil discernir
sobre o tema do debate. Imaginava estarem falando sobre ela e as proibições sem
sentido da rainha. O ideal seria conhecer alguma magia que a fizesse ouvir de longe.
Ouvira falar algo sobre manipulação do ar para captar sons à distância, mas não
encontrara nenhum livro que a ensinasse a fazer isso na prática. Questionava-se se
haveria de ser uma matéria da Academia dos Guardiões, mas acreditava ser muito
improvável que ensinassem a bisbilhotar os outros usando magia.
Observando a conversa infindável, fitava o estado alterado do irmão, erguendo
os braços e gesticulando com frequência e da mãe, parecendo acabrunhada e
exasperada ao mesmo tempo. Imaginava Heidlich usando todos os seus
argumentos, movendo-se em um grande frenesi, demonstrando para a mãe como
a filha tinha potencial, força e habilidade para ser uma Guardiã, ao passo que Falla
tentava contra argumentar, sem fundamentos, abatendo-se com as palavras do
filho. Devaneando, compenetrada na cena, não notara alguém abrindo a porta e
adentrando seu quarto. Fitando, de esguelha, notou sua prima Laurie deslizar para
o interior do aposento sem fazer barulho. Assomou-se em direção à janela
rapidamente para ver o que tanto ela espionava.
— O que você está fazendo aí? — perguntou a prima, comprimindo os olhos lá
para baixo. Procurava o motivo da curiosidade de Ivyna no véu cinzento de névoa
que cobria tudo.
— Observando — respondera, o menos prolixa possível.
Laurie tinha a fama de ser uma baita fofoqueira. Filha de Lorde Silgard e Lady
Zalvena, era Heinhardt por parte de pai e Lohntrak pelo lado da mãe. Conseguira
341
extrair o melhor de uma família e o pior de outra. Herdara a beleza do lado da mãe:
os cabelos castanhos e volumosos, olhos azuis, nariz empinado, rosto angelical e
uma postura exemplar de princesa. Qualquer pai de família adoraria ter uma filha
comportada e bela como ela. Embora não fosse o pior defeito dos Lohntrak, algo
dera errado em Laurie e a bisbilhotice sobressaíra de uma forma exagerada, sendo
tão intrometida como um Moronov. Adorava disseminar fofocas, chegando a
aumentar alguns pontos para tornar a história mais “interessante” quando muitas
das vezes não passavam de irrisórios boatos sem fundamento. Sabia que a prima
não era muito de confiança para segredos — embora sua vontade de se tornar
Guardiã nunca tivesse sido um segredo guardado a sete chaves, mas era dócil e
amava conversar com Ivyna por horas a fio, mesmo que fosse somente para rir dos
momentos engraçados na corte ou falar mal de algum parente chato.
— Tia Falla e o primo estão... discutindo?
— Sim — respondeu Ivyna, aflita.
— Por quê?
— Meu irmão... hã... — Sabia que seria impossível esconder de Laurie quando
Heidlich terminasse de convencer a mãe e então decidiu desembuchar de vez. —
Está tentando convencê-la a me deixar participar do Torneio...
— Sério, prima?
A alegria iluminou o rosto de Laurie. Logo, transformou-se em uma expressão de
dúvida.
— Mas eu não entendo. E seu casamento?
— Que se exploda meu casamento. Eu não quero casar, Laurie. Quero e vou me
tornar a Protetora de Eurodian.
Laurie fez um muxoxo, espantada.
— Sinceramente, prima, você vai me perdoar, mas eu não consigo entender
porque você quer tanto ser Guardiã. Você devia casar. Ouvi dizer entre as babás
que a família do seu pretendente manda em três cidades de Amistelar. Três, Ivyna.
Tudo bem que não são as três principais, mas elas formam um grande ducado do
reino. Você poderia ser uma duquesa poderosa.
Ivyna desviou a atenção da janela e encarou, irritadiça, o olhar sonhador da prima.
— E para quê, Laurie? Qual o propósito disso? Vou me casar com um cara que
eu nem conheço para viver amarrada a um homem que não amo e cujo casamento
foi arranjado pelos meus pais e pelos pais dele desde que eu era uma bebezinha.
Que raio de vida mais sem graça. Se ainda fosse por alguém que eu realmente me
apaixonei, seria diferente...
— E como você espera ser feliz como Guardiã? — inquiriu Laurie, na sua
peculiar expressão de dona da razão. — Você prefere viver isolada, no meio do
nada, enfrentando perigos que você nem sabe se vai conseguir vencer? É isso o que
você quer? Prefere sofrer com frio, ameaças monstruosas, gangues violentas,
342
criminosos foragidos, correr riscos? É muito melhor ser uma duquesa bemsucedida
do que viver assim.
— Se houver um propósito no que faço e isso me fizer feliz, é o que quero, sim!
Lançou um olhar curioso para a janela e seus olhos não vislumbraram mais
Heidlich e sua mãe no pátio. O coração acelerou mais do que o habitual e a angústia
para saber no que resultara a conversa que mais parecia uma briga a arrebatou de
imediato porta à fora, deixando a prima falando sozinha, sentada sobre a cama.
Irrompeu pelas escadas em absoluto silêncio, consumida por um desespero
descomunal, descendo os degraus de dois em dois, quase tropeçando nos próprios
pés em três oportunidades. Queria respostas imediatas e que a tranquilizassem. Era
a primeira vez que tinha alguém a encorajando a lutar no Torneio. Estimulando-a
a ser uma Guardiã. O pai nunca foi avesso à ideia, mas não enfrentava a mãe nesse
sentido. Respeitava e acatava as decisões de Falla sem jamais questionar. Isso e o
fato de nunca sequer poder chegar perto da Academia dos Guardiões só contribuía
para deixá-la ainda mais deprimida e revoltada. Graças à prima e sua conversa fiada
sobre casamento, perdera os dois de vista. Corria contra o tempo para poder arguir
o irmão e ter a resposta de que tanto ansiava.
Heidlich cruzava o hall de entrada a passos largos. Havia passado da escadaria
dupla e se dirigia, taciturno e pressuroso, avançando em direção ao salão de jantar.
Notou a expressão dura da mãe, caminhando lentamente no oposto do salão. Os
olhos estavam avermelhados e o rosto inchado. Falla havia se derramado em
lágrimas, mas a encarava com um olhar fulminante da porta de acesso ao pátio.
Ivyna acreditou que era um sinal de resignação frente ao que o filho lhe havia dito.
Heidlich conseguira. Convencera a mãe sobre a decisão. Uma alegria indescritível
invadiu seu peito. Conseguiria afinal viver seu maior sonho. Contudo, o irmão mais
velho não parou para falar com ela. Seguia seu caminho obstinado, sem sequer olhar
para trás. Com um sorriso no rosto, correu até alcançar o irmão e o puxou pelo
braço.
Esperava enxergar em sua expressão o mesmo sentimento de felicidade que
experimentava, porém, o que viu fez sua alegria desaparecer. O esgar do irmão era
soturno. Sério, as mandíbulas estavam rígidas, os olhos encarando-a com o que lhe
pareceu asco. Exalava uma impaciência contida, respirando fundo ao encará-la.
— E então? — perguntou ela, na expectativa de obter a resposta que tanto
desejava.
Heidlich fitou a mãe por um breve momento e seus olhos voltaram, indiferentes,
para a irmã.
— Repensei a minha decisão — respondeu, ríspido. — Obedeça a nossa mãe e
esqueça essa ideia utópica de virar Guardiã. Você não nasceu para isso. Deves focar
em seu matrimônio e deixar as responsabilidades de protetor para quem está se
preparando há tantos ciclos na Academia.
343
Desvencilhando-se das mãos da irmã, Heidlich seguiu seu caminho.
— EU TE ODEIO! TE ODEIO!
Sem se dar conta, ouviu a própria voz berrar para o irmão. Via os próprios sonhos
ruindo como castelos de areia invadidos por uma rebentação violenta. Não havia
nada que ela pudesse fazer. Os últimos resquícios de esperança que restavam,
morriam com a indiferença do irmão. Ele sequer reagiu ao seu desespero.
Impassível, seguiu seu caminho como se nada tivesse acontecido e desapareceu,
cerrando as portas do vestíbulo contíguo. Os gritos histéricos atraíram muitas
atenções. Laurie a observava, assustada do topo da escada. As tias Menzira e Alma,
ao lado da prima, arregalavam os olhos para o escândalo provocado pela princesa.
Artie e Lorde Kurkov surgiram, assim que Heidlich sumiu, atarantados. Caindo em
si, pegou-se chorando. As lágrimas corriam por seu rosto sem parar. Rolavam pelas
bochechas, desprendiam-se do queixo e morriam no assoalho. O desalento em
saber que não conseguiria o que tanto almejava provocava soluços altos e terríveis.
A realidade logo golpeava-lhe o âmago como um soco na boca do estômago. Um
golpe que arrebatava suas forças e transformava suas aspirações em desalentos.
— Minha filha, — Falla agarrou a mão dela de repente — isto é o melhor para
você. Não tenha raiva do seu...
— A senhora não sabe de nada — sibilou, meneando a cabeça. — A senhora me
obriga a viver uma vida que não quero e que interessa exclusivamente a você.
Quanto a senhora está ganhando com esse casamento arranjado, hein? Ou o quê?
Fama, prestígio, poder? Eu não quero mais saber da senhora, nem de mais ninguém.
Não quero mais estar no mesmo aposento que você, não quero cruzar contigo pelo
castelo e tampouco olhar na cara do imbecil do meu irmão.
Virando-se, retornou para o quarto e sumiu da presença de todos.
Contrariada e desgostosa, estava ali, na tribuna do Torneio. O sentimento de
traição misturado à fúria que carregava desde aquele fatídico dia era latente e decidiu
que não dirigiria a palavra a mais ninguém, nem mesmo às primas, muito menos à
mãe. Assim, permanecera muda, ainda que surpresa, quando a intimação de
comparecer à Arena dos Guardiões bateu à sua porta. Recebera o convite pelas
mãos do próprio irmão, que não ousou pronunciar uma única palavra. Aceitou o
papel timbrado, encarando Heidlich sem titubear. Com o coração em pedaços,
resolveu que estaria presente e que olharia no fundo dos olhos do futuro Guardião
ou Guardiã de Eurodian e rogaria a ele todas as pragas possíveis por não ser ela em
seu lugar.
Era a primeira vez que saía de seu quarto após da briga no hall de entrada, depois
de semanas. Ninguém no palácio ousou perturbá-la, é claro, exceto Laurie e
Annalis, a quem dispensou por pelo menos quatro ou cinco vezes. Recebia as
refeições à porta de seu aposento como uma presidiária e ficou alienada a qualquer
novidade que acontecia em Badorian, inclusive a de que seu pretendente estaria
344
presente no Torneio. A seu lado direito na tribuna, Ivyna lançava olhares rápidos
em sua direção, tentando parecer discreta, torcendo para que ele não notasse o
quanto ela estava curiosa. Era a primeira vez que o via. Ele parecia alto e tinha um
belo porte atlético. Estava muito bem vestido, adornado com um grande sobretudo
azul-marinho que contrastava de uma forma interessante com sua pele negra. Um
broche dourado e prata com a figura de um leão rugindo reluzia em seu peito. Não
era exatamente como tinha imaginado, mas o achou atraente e despojado, no pouco
que se esforçava para ver sem que ele notasse sua intensa curiosidade. Parecia à
vontade, assistindo às lutas com real interesse, sem tentar impressioná-la de alguma
forma, exibindo músculos ou falando frases aleatórias sobre sua virilidade, como
alguns bocós que conheceu e que estudaram na Academia. Definitivamente, ele
estava se divertindo. Mas, no fundo, não conseguia se ver casando com alguém que
mal conhecia, por mais bonito, rico e legal que fosse, somente para cumprir os
caprichos de um acordo de sua mãe. Não era assim que ela queria que as coisas
acontecessem. Se era para casar com alguém, tinha de ser pela paixão, por ter um
sentimento tão profundo e arrebatador que a fizesse desistir de tudo para viver com
aquela pessoa especial. Tinha de haver romance, atração, uma ligação com alguém
que extrapolasse os desejos de um matrimônio perfeito e planejado por seus
familiares.
Uma salva de palmas ensurdecedora irradiou, enlevando a arena de uma forma
surreal. Ivyna despertou dos próprios pensamentos e seguiu a multidão, aplaudindo
de maneira contida, sem saber exatamente o quê. Focou o centro da arena e
percebeu um jovem caído no chão e outro, completamente esgotado e cheio de
marcas no rosto, ainda de pé, com os braços erguidos. Era a última luta. O vencedor
se apresentava para as ondas de espectadores em completo alvoroço. Fogos de
artifício estouraram, iluminando os céus. Tambores, cornetas e buzinas se acirraram
pelas arquibancadas. O público ia à loucura, pulando e gritando de seus lugares.
Identificou o último guardião de pé assim que notou os trejeitos presunçosos: era
o insuportável Aron Lohntrak.
— Grande luta, não?
Ivyna fitou o rosto de seu pretendente pela primeira vez, muito próximo do seu.
Ele a cutucara de um jeito despretensioso para comentar sobre a batalha e, então,
ela se deu conta de como ele era bonito. O rosto era desenhado. Os olhos grandes
transmitiam uma tranquilidade, como se estivesse contemplando o lusco-fusco no
horizonte. O queixo largo possuía um furinho delicado bem no meio e que não
passava despercebido. Mas o que realmente a arrebatou foi seu sorriso. Era
belíssimo, encantador. Na calmaria daquela expressão confiante, Ivyna ficou longos
minutos sentindo-se confusa e abobalhada, como se um magnetismo irresistível a
impedisse de desviar os olhos do rosto arrebatador que a encarava.
— S-sim — pegou-se proferindo, ainda enlevada. — Grande luta...
345
As arquibancadas silenciaram bruscamente e Ivyna só foi reparar porque o esgar
de Ropher, seu pretendente, tornara-se soturno de uma hora para outra.
Imediatamente, o jovem guardião ao seu lado mirou para além de onde ela estava
e focaram-se exatamente na principal cadeira da tribuna. Seguindo seu olhar, ela
observou o próprio irmão de pé. Com o longo capão pendendo dos ombros e a
coroa rutilando no topo da cabeça, o braço estava estendido e a palma da mão
aberta. Ivyna não compreendeu o que estava acontecendo.
— Como soberano da Suntuosa Badorian, eu o felicito, jovem Lohntrak, pela
demonstração de poder que assistimos. Posso afirmar que foi deveras assombrosa
e que, de fato, és um grande guerreiro.
Novas palmas surgiram pelas arquibancadas. O sorriso debochado e altivo de
Aron era visível no centro da arena. Nem todos conseguiam notar a ironia típica
que ele sempre carregava. Somente os mais próximos sabiam o quanto o filho de
Lorde Armie era insuportável, mesquinho e soberbo. Dos competidores do
Torneio, ele era o menos indicado a ascender a esse cargo. Mas Badorian prezava
pela isonomia: chances iguais a todos os nascidos guardiões, fosse ele um cara legal
ou um completo idiota como Aron. Ele se curvava, mesmo que exausto, em um
demorado cumprimento na direção da tribuna. Ivyna tinha lá suas dúvidas se não
havia um tom de sarcasmo até nessas saudações exageradas.
— Contudo, — Heidlich voltou a falar e as multidões emudeceram outra vez —
devo dizer-lhe que não foram lutas à altura de um grande oponente como você.
Em resumo, não me impressionaram como eu gostaria. Arriscaria dizer, inclusive,
que foram fáceis demais. Logo, eu proponho um desafio.
Um suspiro de admirável surpresa se ouviu das arquibancadas. Olhos se
arregalaram de todas as partes. Até mesmo Ropher emitiu um silvo longo e
impressionado com as palavras do rei. Ivyna comprimiu o olhar na direção do
irmão, sem compreender muito bem o que ele estava fazendo. Lorde Anturc e
Kurkov levaram a mão à boca. Lady Susan e Almena cochichavam baixinho,
lançando olhares curiosos na direção do rei. Lorde August era o único que parecia
abafar uma risadinha. Fã de intrigas do jeito que era, não a surpreendia o fato do
mais sórdido dos Moronov estar rindo-se à toa com o pandemônio generalizado
que tomou a arena após as palavras do rei.
O burburinho logo dominou as tribunas e o restante das arquibancadas. Alguém
desceu da tribuna abaixo e correu até o centro da arena. Postando-se ao lado do
jovem Aron, o Almirante Armie Lohntrak empertigou-se, estufando o peito.
Ajeitou os cabelos grisalhos no topo da cabeça. A voz possante irradiou a plenos
pulmões para que todos pudessem ouvi-lo.
— Sua Majestade, Lorde Heidlich Heinhardt, muito estimado és entre todo o
povo e perante a alta nobreza das suntuosas e abundantes terras de Badorian. Devo
lhe dizer, talvez o senhor não saiba, pois assentou-se sobre o Trono Branco há
346
pouco tempo e a inexperiência pode estar sublimando suas faculdades mentais, mas
o senhor não pode desafiar o campeão. O jovem Aron Lohntrak, por acaso meu
estimado primogênito, venceu as doze batalhas do Torneio por mérito próprio,
alçando grande vitória perante seus poderosos adversários. Sendo assim, Sua
Majestade, tendo um dia sido Guardião de Eurodian, não tem autoridade para
desafiar o campeão, pois seu tempo como tal já passou. És agora soberano em
Badorian e, volto a dizer, mui estimado e querido por todo seu povo aqui presente
e que, com esfuziante admiração, o saúda com intensas salvas de palmas.
As palmas e silvos se iniciavam pelas arquibancadas, quando Heidlich levantouse
e ergueu a mão, pedindo silêncio. O rei soltou a capa dos ombros e depositou,
ternamente, sobre a cadeira. Sorrindo abertamente um sorriso que Ivyna jamais vira
em seu rosto, um misto esdrúxulo de cinismo e presunção, ele desceu da tribuna
sem nenhuma pressa e caminhou pela arena até ficar frente a frente com o irmão
de sua mãe.
— Se bem me lembro, Armie...
— Almirante Armie Lohn...
— Eu o chamo como quiser, eu sou o rei.
— Perdão, Sua Majestade.
— Se bem me lembro, Armie, há vinte ciclos, nesta mesma arena, depois que
venci todas as lutas do Torneio, você me desafiou. Alegava que não me considerava
digno para a função e quis me expor ao ridículo na presença de nossa família, dos
clãs aliados e do povo. — Heidlich quase sussurrava, encarando o tio no fundo dos
olhos. — Talvez, eu não considere seu filho capaz o suficiente para assumir
tamanha responsabilidade.
— Devo lembrar-lhe, porém, estimado sobrinho — Armie argumentava em um
tom sério, sem deixar de exalar o escárnio em sua voz — que há dois fatores que
você não está observando: o primeiro, somente um oponente que se considera à
altura do desafio é que deve desafiar o campeão. Como você não é o oponente e
nem o pode ser, pois abdicou de sua posição perante o Conselho para assumir o
trono, seu desafio não é válido. O segundo, a antiga regra da Academia que permitia
o desafio ao vencedor foi abolida há quase quinze ciclos. Eu mesmo me encarreguei
de fazê-la, após minha malsucedida tentativa.
Heidlich sorriu para o tio. Havia uma ironia peculiar que conseguia ser maior do
que o do próprio Armie ou de seu filho.
— Estimado tio Armie, talvez a pouca experiência nessas coisas esteja
sublimando suas faculdades mentais, mas meu primeiro decreto assim que me
sentei sobre o Trono Branco foi tornar o desafio ao campeão do Torneio uma lei
pétrea de nosso país. Logo, nem mesmo o rei pode desfazer tal regulamento. Em
segundo lugar, não sou eu quem está desafiando seu filho, porque não ouso retomar
uma função que uma vez exerci e a fiz com tanto esmero.
347
— Se não é você, estimado filho da... minha irmã, quem então irá desafiar o
campeão? Não vislumbro oponentes dispostos a tal façanha.
— Como rei de Badorian, — Heidlich afastou-se até ficar bem perto da tribuna
— anuncio a desafiante: Ivyna Heinhardt.
As caretas céticas dominaram o entorno. Da tribuna às arquibancadas, dos
oponentes derrotados nas cadeiras mais baixas aos ilustres convidados das tribunas
reais, queixos caíam com a surpresa do anúncio do rei. A começar pelos
espectadores mais ávidos e animados com a competição até aos Heinhardt, Borovit,
Moronov e Lohntrak espalhados sobre as arquibancadas especiais, ninguém parecia
acreditar no que acabaram de ouvir. Os olhares estupefatos dos presentes se
concentravam de imediato em um único ponto enquanto o silêncio imperava. Nem
mesmo Ivyna acreditava. O espanto crescente no rosto de Ropher ao seu lado se
replicava para os demais guardiões espalhados pelas cadeiras ao seu redor. Embora
estivesse tão embasbacado quanto todos no entorno, no rosto do jovem de
Amistelar havia uma afobação incontida. Nunca presenciara uma reviravolta tão
intensa e chocante. Heidlich realmente fizera aquilo ou estava sonhando acordada?
Pronunciara seu nome como a desafiante do campeão? Pelo esgar aparvalhado das
pessoas próximas, tudo indicava que sim.
Ivyna se beliscou por um momento para constatar que não se tratava de um
sonho. Colocou-se de pé meio vacilante, sem saber muito bem o que deveria fazer
em seguida. Sentiu-se constrangida. As maçãs do rosto queimavam. Imaginava estar
da cor dos cabelos, rubra como uma chama acesa. Contemplou o rosto lívido da
mãe, uma cadeira depois da de Heidlich. Ela não acreditava no que estava
acontecendo. Atravessando a tribuna, a jovem desceu tímida pelas escadarias sob
olhares incrédulos de centenas de pessoas. Acanhada, com lágrimas enchendo os
olhos, contidas sobre as pálpebras para não parecer fraca ou medrosa, parou
próximo ao irmão.
— Por que isso agora, Heidlich?
— Porque eu acredito em você! — sibilou, piscando para ela. Naquele momento
tão breve e singular, entreviu trejeitos conhecidos, familiares. Sentiu-se envolvida
por uma estranheza peculiar. Eram as mesmas expressões confiantes do pai,
idênticas às que ele externava quando a via demonstrando seus poderes mágicos e
habilidades, habitando naquele instante a faceta bondosa no rosto do irmão.
Armie avançou, vermelho de raiva, até onde Heidlich e Ivyna estavam parados.
Debaixo do braço, carregava um enorme livro.
— A lei é bem clara, Sua Majestade — vociferou o tio, exasperado — O rei não
pode indicar um oponente. Está escrito aqui no livro das Crônicas do Reino. Ela é
enfática em afirmar que somente um oponente, de livre e espontânea vontade,
deverá desafiar o campeão. Você não pode obrigar a minha sobrinha a...
348
— Princesa Ivyna Heinhardt, filha de Cench Heinhardt e da rainha Falla
Lohntrak, você, por livre e espontânea vontade, sem qualquer tipo de influência,
pressão ou coação do rei, gostaria de desafiar o grande campeão do Quinquagésimo
Terceiro Torneio da Academia dos Guardiões?
— SIM! — berrou Ivyna, a plenos pulmões.
Um alvoroço se instaurou entre as multidões. Deixando de lado a letargia do
ceticismo, o público foi ao delírio, pulando e gritando com a reviravolta inesperada
que se apresentava. Parte das arquibancadas berrava o nome da princesa ao passo
que um pequeno grupo de espectadores gritava o nome do filho de Armie
Lohntrak.
— Então, — pronunciou Heidlich, sorrindo pelo canto da boca — desafie,
oficialmente, seu oponente para que não haja dúvida de que não há influência do
rei sobre este embate.
— Eu, Ivyna Lohntrak, Princesa de Badorian, a segunda na sucessão do Trono
Branco, por livre e espontânea vontade, sem ser influenciada, pressionada ou
coagida por ninguém, desafio o último campeão do Torneio da Academia dos
Guardiões.
Uma nova explosão de vivas irradiou pelos ares, seguida por fogos de artifício.
Heidlich posicionou-se atrás da irmã e apoiou as mãos sobre seus ombros, como
se fosse seu treinador. Contemplou a expressão estarrecida e furiosa do tio e do
primo, sob a cantoria extasiada da multidão.
— Muito bem, Almirante Armie Lohntrak — proferiu Heidlich, circunspecto. —
Acho que satisfizemos seu desejo por ouvir um desafio formal. Não há com o que
se preocupar, eu presumo. Se seu filho é tão forte como acreditas, creio que não
terá grandes dificuldades em vencer mais um oponente.
Impassível e sem pronunciar uma só palavra, Armie puxou o filho pelo braço
com violência, conduzindo-o até o lado oposto da tribuna.
Sob o clamor frenético de uma multidão em êxtase, aglomerada nas
arquibancadas na segunda maior reviravolta que o Torneio já vira em sua história
recente, Ivyna e Aron se posicionaram sobre a grama no centro da arena. A jovem
deixara de lado o longo vestidão azul e as pesadas anáguas que vestia por calças e
blusa leves de algodão e um colete de couro curtido com o brasão do reino em alto
relevo sobre o peito e as costas. As damas de companhia e até suas tias Katri e
Menzira insistiram que ela colocasse uma armadura ou mesmo partes dela em
pontos vitais. Tia Susan, em constantes muxoxos, quase a convenceu a usar uma
poção de corpo fechado para evitar ataques mortais. Não evitaria o efeito de alguns
golpes, mas pelo menos preservaria sua vida. Lançavam comentários em tom de
lamúria como se a jovem princesa fosse muito frágil para uma batalha e rumasse
349
para o abate. Ignorou seus conselhos, vestiu a roupa que a deixou mais confortável
e livre para poder duelar e seguiu para o meio do campo.
Uma onda de assovios e palmas encheu a arena quando ela entrou. Ivyna não
tinha noção de que o povo sentia tanto afeto por ela assim. Talvez, fosse muito
mais pelo fato de que seu tio almirante e o primo almofadinha fossem realmente
intragáveis e possuíam a antipatia da grande maioria dos badorianos. Mas esse
carinho da torcida deixou-a ainda mais confiante e determinada. Raramente tinha
contato com aquelas multidões em alvoroço. Sua mãe não a deixava sair com
frequência do palácio e, sempre que queria, precisava se utilizar de métodos escusos
para poder visitar a cidade. Ainda que exausto, com os cabelos sebentos de suor e
alguns hematomas espalhados pelo corpo, Aron não tirava do rosto a irritante
expressão de triunfo misturada à sua costumeira presunção exacerbada. Embora
fosse quatro ciclos mais novo do que ela, Ivyna sempre detestou a arrogância do
primo, assim como detestava o jeito altivo e prepotente do irmão mais novo de sua
mãe. Era como se ambos se achassem superiores ao povo e até mesmo aos demais
Borovit, Heinhardt e Moronov e a alguns Lohntrak, a quem sempre se referiam
como “os menos poderosos da família”. Sempre que podia, evitava interagir com
Aron, embora gostasse bastante de seus dois irmãos mais novos, Arnie e Aralis.
Achava que ainda havia alguma salvação para eles dois. Bastava não seguir os
exemplos do babaca de seu pai e do antipático irmão mais velho.
Aguardando o apito para a luta começar, Ivyna lançou um breve olhar para além
de Aron. Estava no lado oposto à tribuna que há poucos minutos ocupava. Jamais
imaginaria que o irmão tomaria uma atitude inesperada como aquela. Sempre
considerou Heidlich muito previsível e político em suas breves visitas à Badorian.
Alguém cujo jeito de ser e agir denotavam que suas atitudes eram planejadas e
triviais. Mas, naquele momento, fitava o irmão com um misto de surpresa e
admiração. Percebia o quanto realmente não o conhecia. Assentado sobre o trono,
abaixo de sua barba loira e cintilando à luz do sol, ele abriu um sorriso singelo em
sua direção e balançou a cabeça num movimento suave. Um breve aceno indicando
que ela tinha a confiança do irmão, como se mostrasse que tudo ficaria bem,
independentemente de qualquer resultado. Uma lágrima escorreu dos olhos dela.
Heidlich jamais pareceu tanto com a figura de seu pai quanto naquele instante. A
mesma expressão, o olhar paterno, o sorriso acanhado, mas que inspirava uma
certeza exemplar.
O apito soou, longo e estridente, se sobrepondo com dificuldade diante do
vozerio ensurdecedor. Ivyna observava seu oponente, suspeitando de que ele não
usaria dos métodos mais convencionais para ganhar seu último desafio. Ela tinha a
vantagem de Aron estar esgotado, tendo o uso constante da magia nas outras lutas,
consumido os resquícios de energia que ainda lhe restava. Não considerava isso
justo com alguém que enfrentou tantos oponentes e estava desgastado física e
350
mentalmente. Mas considerando quem era seu adversário, ignorou esse pequeno
detalhe. A vida não era realmente justa. Motivada pelo sinal do irmão antes da
batalha começar, Ivyna relembrou de suas últimas lições. Expansão, extensão e
nível. Um aprendizado que não constava em nenhum livro de magia que lera,
advindo da sabedoria e da vivência como Guardião de seu irmão. Pelo que
observara nas outras lutas, Aron era astuto. Ainda que estivesse cansado, não podia
considerá-lo um adversário a ser desprezado. A sagacidade do primo era elevada e
ele usaria o que fosse preciso para acabar de vez com ela, mesmo que não fosse a
estratégia mais correta. Se a vida não estava sendo justa com ele, ele não seria justo
no derradeiro desafio.
Duas labaredas surgiram das mãos de Aron. Arfando ruidosamente, o jovem
guardião ampliou as chamas o máximo que conseguiu. Mesmo a uma distância
considerável, Ivyna podia sentir a intensidade do fogo elemental crepitando entre
os dedos de seu oponente.
Decidiu esperar.
Estudava o oponente com um olhar clínico, exatamente como Heidlich a
orientara. Aron estava esgotado e usara todo seu poder contra os demais oponentes,
logo, sua Expansão era baixa e não conseguiria desenvolver uma magia que pudesse
afetá-la. Não era alto, beirava sua altura, o que se tornava uma vantagem para ela,
pois não precisaria se preocupar com ataques surpresa pelos flancos. Talvez
estivesse aí um ponto fraco dele, embora não fosse o único. Seu forte era realmente
a Extensão. Era letal nos embates frontais e diretos. As últimas três lutas do torneio
foram vencidas dessa forma. Contudo, dominava muito bem o Nível. Combinava
os poucos ataques laterais da Expansão e os golpes precisos de Extensão com
maestria. Ivyna sabia que este seria sim um tremendo desafio.
As labaredas se converteram em uma monstruosa bola de fogo vermelha que
voou das mãos de Aron. Ivyna se perguntava quanta energia o primo ainda tinha
para arriscar golpes diretos e frontais como aquele. Conjurando uma cortina de
vento poderosa, a guardiã converteu a esfera incandescente em uma serpente em
chamas. A criatura elemental viajou sobre o topo das cabeças das multidões e se
voltou contra o oponente.
Um suspiro de surpresa e terror invadiu as arquibancadas. Cada espectador
segurou a respiração com o assombro que estava diante de seus olhos. Era um
assombro de pirotecnia e pura magia. Um verdadeiro espetáculo como eles jamais
haviam visto. O olhar de Falla refletia um terror inigualável e os demais Moronov,
Heinhardt, Borovit e Lohntrak contemplavam a cena, impressionados e com o
coração na mão, à exceção de Armie, que seguia impassível nos arredores mais
baixos da arena. Heidlich estava sereno. Sobre a cadeira mais alta da tribuna,
segurava o queixo e se concentrava na batalha como se estivesse admirando o luscofusco
às margens do Mulbe, em um dia cálido de verão.
351
Aron rolou sobre a grama a tempo de escapar do bote certeiro da cobra
flamejante. O gramado da arena foi consumido pelo fogo e o cheiro de mato
esturricado invadiu as narinas de ambos. Erguendo-se, com a vista turva, as narinas
ardendo e o cansaço pesando nos joelhos, percebeu que seria inútil atacar a prima
com magia direta. Mesmo sendo uma princesa reclusa a sete chaves, ela tinha seus
truques na manga. Os músculos vacilavam. O corpo pedia arrego. Queria uma cama
quentinha, uma boa coberta e travesseiros macios para poder se jogar sobre eles.
Dormiria por horas, dias se fosse possível, até recuperar as energias. Mas aquele
momento ímpar valia pela eternidade. Era a chance de se tornar uma lenda, maior
até do que o imbecil que um dia foi chamado assim e que naquele momento
arrogava para si o título de rei. Subestimara a prima mais do que achara. Mas quem
imaginaria que a jovem e indefesa princesa entendia tanto de duelos e desafios? Se
quisesse ganhar essa luta final, precisaria adotar outra estratégia. Mesmo que essa
tática não fosse a mais nobre.
Correu até ficar frente a frente com Ivyna e desferiu uma série de socos. O
primeiro passou a centímetros do rosto da guardiã, que se esquivou por puro
reflexo. O segundo, o terceiro e o quarto soco foram golpes ao léu que não
atingiram seu objetivo: o maxilar, a garganta e a têmpora direita. A prima,
aparentemente, fora muito bem treinada. Era versada em defesa pessoal para a sua
surpresa e a dos espectadores ao redor. A aparente calmaria foi dando lugar ao
desespero e Aron, mesmo fazendo o melhor que podia em sua sequência de golpes
e chutes, via-se esgotado: tanto de vigor quanto de ideias de como sair vitorioso.
— EU SEREI O CAMPEÃO DESSE TORNEIO. SEREI EU O GUARDIÃO
DE EURODIAN!
Ivyna arregalou os olhos para o transtorno súbito que dominara o primo. Gritava
feito um menino mimado, tendo o desespero dominado sua cabeça.
Aron correu para longe do cerne da batalha, perturbado. Os olhares curiosos de
todo o estádio se voltavam para o oponente que tomava distância rumo às fileiras.
Acompanhavam o desenrolar do desafio com intensa curiosidade quanto ao que
estava prestes a acontecer. Próximo à tribuna mais baixa, o jovem guardião
arrancou a espada que o pai carregava na cintura. A bainha de couro da arma
rasgou-se de cima a baixo. Com o impacto inesperado da atitude do filho, Armie
tropeçou e caiu no chão. Empunhando a lâmina, Aron correu de volto ao campo,
arremetendo-se contra Ivyna com uma fúria tresloucada, refletida em seus olhares
arregalados e o esgar ensandecido.
Um, dois, três, quatro investidas mortais da espada. A multidão estava de pé,
suspirando a cada novo golpe. Falla levou a mão a boca. Ropher agarrou a mureta
da tribuna, quase caindo lá de cima. Sequer ousava piscar, concentrado em qualquer
movimento na batalha. Os olhos de todos vidraram na cena imprevisível que se
desenrolava. Ivyna desvencilhava-se dos golpes com facilidade. A lentidão do
352
primo era notória e a mira previsível só externavam seu desespero em ganhar o
torneio a qualquer custo. Os métodos nada dignos se sobressaíam e qualquer coisa
valia para sair dali com a vitória, como roubar a espada do pai e atacar de modo
desvairado.
Aron balançou a espada num movimento rápido, inflado por uma cólera que
estampava seu rosto exaurido. Bufava de ódio, puxando o ar com dificuldade,
plenamente fora de si. Os olhos injetados denotavam sua louca vontade de
derramar o sangue da própria prima. Ivyna esquivou-se outra vez, a espada
passando a centímetros de seu pescoço. Falla levantou-se da cadeira, bem como
Ianora, Silla e Almena, atarantadas. Brenda Borovit e Vanda Moronov correram até
a rainha e seguraram seus ombros, inquietas. Kurkov e Anturc aproximaram-se do
trono, na ânsia de interpelarem o rei para tomar uma atitude quanto ao iminente
desatino que estava prestes a acontecer. Heidlich, contudo, não se abalava. Os olhos
serenos do rei acompanhavam o desenrolam do duelo sem muita preocupação.
Outro golpe mortal da espada cortou os ares, num zumbido oco e audível. Prestes
a ter o braço decepado pela lâmina do primo, Ivyna conjurou um escudo redondo
e flamejante que travou a espada de Aron instintivamente. Possesso de raiva, ele
agarrou o cabo da arma e pressionou-a contra o escudo de fogo com vontade.
— Não adianta, priminha — falou Aron, forçando a lâmina cada vez mais. — Eu
serei conhecido como o guardião que matou a frágil princesinha na arena, sob os
olhos assustados da corte e a apatia de seu rei. Eu mudarei a história de Eurodian
como o maior guerreiro que esse continente já viu e ainda colocarei em xeque a
liderança do imbecil do seu irmão.
Ivyna ouvia cada palavra de seu execrável adversário sem deixar-se abater. Sabia
que, quando não era possível ganhar pela força, a melhor tática era o terror
psicológico; proferir palavras que pudessem desestabilizá-la. Mas ela continuava
firme. Obstinada, sabia o que tinha de fazer e jamais haveria momento melhor para
provar seu valor do que diante do povo e de sua família. Como a protetora do
continente, ela tinha de inspirar e não provocar o medo e o terro como ele fazia.
A lâmina não derretia com o fogo elemental. A cada instante, ela se aproximava
de dilacerar sua carne e nervos. Mas uma espada forjada em aço élfico e banhada
em qualquer mineral mágico como as de Vaelfar não derreteriam tão facilmente
com um simples escudo mágico conjurado. Se continuasse do jeito que estava,
tentando conter o avanço do primo, perderia o braço e a batalha. A expressão
ensandecida marcando o rosto de Aron forçando a espada, demonstrava que ele
não teria a menor cerimônia em tirar sua vida, se fosse preciso, para poder ganhar
o torneio. Só havia uma chance de reagir. Ela precisava ser rápida.
Empurrou o escudo para frente. Aron cambaleou para trás com a reação
inesperada, erguendo a espada para golpeá-la outra vez. Com a outra mão, o fluído
vermelho da magia de Ivyna emanou. O barulho impetuoso como o de um furacão
353
destelhando casas irradiou pela arena, tomando as multidões de assalto. Um ruído
ínfimo e agudo surgiu, interrompendo a ventania que perturbava as arquibancadas.
Cortando os ares e reluzindo à luz do sol, Iluminum, o antigo sabre que pertencera
a seu trisavô, a maior relíquia de Badorian, se acomodou sob seus dedos.
A lâmina da rapieira de Aron chocou-se violentamente com o sabre lendário de
Ivyna. Faíscas coruscaram com o impacto. O baque estridente reboou pelos ares.
Ambos desferiraram golpes repetitivos em um embate alucinante de espadas. As
arquibancadas estavam em êxtase. A euforia dos espectadores incendiou a arena. A
cada novo golpe, gritos histéricos dominavam as bocas dos presentes no entorno.
Os soldados ao redor do estádio esqueceram suas funções, largaram capacetes,
lanças e espadas e concentraram os olhares no embate digno de espadachins.
Ropher estava de pé, pulando e vibrando ao lado de Autran e Amus Borovit. Os
três berravam da tribuna, torcendo por sua favorita naquela disputa. Falla
desaparecera, provavelmente preferiu não mais assistir aquela barbárie que tanto
reprovava, mas suas irmãs continuavam lá, menos aflitas dessa vez do que antes.
Uma pequena parte torcia por Aron e a maioria pela vitória de Ivyna. Kurkov e
Anturc esqueceram a ideia de intervir na luta e se apoiavam sobre a amurada, de
olhos arregalados, extasiados com o duelo. Contudo, Heidlich era o único imutável.
De pernas cruzadas e segurando o queixo, o rei não expressava qualquer
sentimento. Mantinha-se compenetrado, com olhos fixos como os de uma águia a
contemplar os movimentos de sua presa.
— Você nunca será Guardiã — proferiu Aron, ofegante, resistindo aos ataques
de Ivyna com a força que ainda restava. — Esqueça esse delírio. Você não nasceu
para isso. Eu estudei e me preparei para ser o protetor que esse continente merece.
— Essa exacerbada soberba será sua derrota, Aron. — Ivyna avançava,
desferindo golpes cada vez mais violentos. — Você não é meu inimigo. É só um
moleque mimado e arrogante que acha que Eirin deve se dobrar aos seus pés
porque, ganhando este torneio, passará a ter um título. Se você quer ser Guardião
para provar ao mundo que é o melhor ou o mais forte, então você é um imbecil
desprezível que não merecia sequer estar aqui.
Enchendo-se de confiança, Ivyna avançou sobre o primo com destreza. Ergueu
Iluminum e atacou-o com violência. As forças de Aron se esvaíam e ele mal
conseguia se manter de pé. Defendeu a primeira e a segunda investida com muito
custo. A lâmina do sabre subiu com voracidade e desceu precisa sobre o meio da
rapieira.
Um grunhido de dor retumbou e as multidões silenciaram de chofre. Centenas
de pares de olhos se comprimiram ao mesmo tempo para identificar e entender o
que acabara de acontecer. Heidlich se pôs de pé, pela primeira vez, desde que a luta
começara. A sobriedade desaparecera do rosto do rei para dar lugar a uma
preocupação crescente. Ivyna afastou-se de imediato, atarantada, jogando o sabre
354
para longe. Iluminum partira a espada de Aron ao meio, rompendo a lâmina como
se ela fosse feita de papel. Com o sangue quente e o cansaço latejante assombrando
suas faculdades mentais, o jovem guardião contemplou, estarrecido, os dois
pedaços do que antes fora uma espada élfica sobre a grama, ao lado de sua mão
decepada em uma sórdida poça de sangue empapando a grama.
O silêncio do espanto não durou mais do que alguns segundos. A euforia histérica
das multidões incendiou a arena. Esquecendo o oponente derrotado, uivando de
dor, berravam o nome de Ivyna, vibravam e pulavam sobre as arquibancadas.
Dezenas de pessoas invadiram o campo, de chofre, avançando em direção à
campeã. Fogos de artifício iluminaram os céus e cornetas e tambores retumbaram
pelo entorno, abafando os gritos aflitos de Aron, caído sobre o chão, perto de uma
poça de sangue. Ela tentou avançar até o primo para ajudá-lo, mas foi interrompida
por uma aglomeração de homens, mulheres, elfos, anões e centauros em polvorosa.
Viu o corpo ser erguido do chão e jogado para cima enquanto gritavam seu nome
aos quatro cantos, comemorando sua vitória triunfal e espetacular. Não era um
sonho. Era realidade. Não conseguia acreditar. Vencera o desafio final e, pela
primeira vez na história de Eurodian, uma mulher seria nomeada a protetora do
continente. Lançou olhares curiosos para a tribuna e, entre os vivas e arremessos
do corpo em direção aos céus, encontrou a expressão de felicidade de Ropher,
Autran e Amus, pulando e comemorando. Kurkov e Anturc aplaudiam de forma
comedida e, apesar da apreensão estampada em seus rostos, havia uma nesga de
alívio e felicidade que ocupava seus sorrisos. A mãe definitivamente não quisera ver
o duelo até o fim e as irmãs dela escapavam do palanque principal com uma
aparência de terror em suas faces. Certamente, iam socorrer o outro sobrinho. Com
a coroa muito bem alinhada na cabeça e a longa capa vermelha contrastando com
os cabelos e barba loiros e volumosos, Heidlich aplaudia de pé, mais contente do
que qualquer um ao redor. Exibia a imponência de um legítimo rei. Um rei justo e
leal, à altura do Rei Cench. O rei que a Suntuosa Badorian merecia.
355
Capítulo Vinte e Cinco
Um Chamado Obscuro
Menfesis caminhava de um lado a outro na Sala da Bússola, com as mãos para
trás. O som dos sapatos arrastando, preguiçosos, sobre o piso de mármore era o
único ruído que interrompia as ondas fustigando o quebra-mar da ilha. O mar
encapelado parecia zombar de suas preocupações, como uma risada funesta
afetando a sua dor. Lá fora, contemplava o sol se escondendo atrás da linha do
horizonte em pleno oceano e o dia se convertendo em noite mais uma vez. A
contemplação em que se enfurnara perdurava por tanto tempo que perdera a conta
de quantas vezes vira o sol nascer, se impor, presunçoso, sobre a abóbada celeste e
desaparecer em seu lusco-fusco melancólico, trazendo densas noites, pontilhadas
de estrelas. Caminhava para a terceira noite consecutiva em que o sono fugira por
completo. Os olhos ardiam, os músculos se retesavam e o corpo apresentava largos
sinais de estafa. Mas havia algo pior do que o sono e o cansaço o impedindo de
deitar-se na cama e adormecer. Uma coisa que perturbava sua mente havia dias,
meses.
Lançou olhares depressivos para os ponteiros da bússola. Como se tivessem
despertado de um sono profundo de eras, eles se agitavam de modo descomunal,
prestes a explodir. O prelúdio do caos absoluto. Nos últimos quatros meses, os
ponteiros se moveram em direção ao norte seis vezes — mais do que em todos
seus ciclos como líder da Ordem — diminuindo o ângulo entre eles, prestes a se
unirem, completamente em riste. Não havia um padrão. Não tinha uma lógica
plausível que determinasse os motivos desses movimentos. O passo descrevendo
pequenos arcos era aleatório. Sem precedentes de catástrofes, sem oscilações
significativas na malha, nenhuma vibração fora do padrão. Muito em breve, a
qualquer momento, os ponteiros estariam mais um grau próximo do Norte. Então,
viria o fim: o Caos Absoluto.
A risada debochada de C’Niha, o fogo ardendo sobre o Vale D’Além-Prata
queimando os corpos dos druidas martelava em sua mente como uma cena
diabólica, envolvida pela melodia angustiante e ritmada dos versos da derradeira e
maldita profecia. A profecia que não o deixava dormir. A predição que o fizera
tomar inúmeras ações desastrosas, acreditando ter interpretado corretamente:
356
trocara os Oito Pilares com medo de sua falta de governança. Nada adiantou. A
bússola seguia seu curso. Inabalável. Inalterável. Eliminara desafetos, cobriu rastros
e bloqueou qualquer acesso aos demais sacramentadores para que eles não
descobrissem a verdade. A verdade que não queria admitir: sua era estava em ruínas.
A governança, pela qual tanto prezava, em frangalhos e sua estrutura abalada por
uma crise que permitira se instaurar. O conhecimento sobre os augúrios e vaticínios
do tempo, que cultivou por tantos ciclos e eras, sucumbiam diante de uma variável
fora de seu controle. A liderança da Ordem, conduzida com mãos de ferro,
endossada por seus principais aliados, posta em xeque.
Assim como suas esperanças se esvaíam na medida que os dias resvalavam pelas
semanas, convertendo-se em meses de angústia e aflição, rememorou que havia
algum tempo deixara de receber os conselhos de alguém importante.
Durante ciclos, julgou ser um mito. Uma lenda fabricada nos recônditos do
Oráculo do Tempo, contada para causar temor entre os arcanos recém-chegados e
os elfos mais ingênuos. A velha estória contada pelos corredores e dormitórios
permaneceu adormecida por toda uma era, quando assumiu o pilar de Austeridade.
Já não passava tantos dias, lendo pilhas de livros ou estudando sobre a magia do
tempo em Purysia e sua rotina estava consumida com os assuntos urgentes da
proteção do tempo em Amistelar, Frandar, Líria e Zavir. Um dia, no entanto,
descobriu que até mesmo certas lendas se revelavam como estarrecedoras verdades.
Certa noite, ele surgiu.
Atravessava os corredores próximo ao Salão da Grande Bússola com uma pressa
incontida, quando uma figura misteriosa apareceu. Coberta por trevas, o rosto era
impossível de distinguir. A presença etérea, quase como a de um fantasma ou
espírito, o fez estacar de imediato. Envolto por vestes negras, seu olhar penetrante
era a única coisa visível, reluzindo em um tom âmbar, em meio à fraca luz dos
archotes espalhados por toda a extensão do corredor. A despeito de todas as
estórias aterrorizantes, para Menfesis, não era assustador. Era, estranhamente,
convidativo. Como se a presença mística diante dele o convidasse a aprender mais
sobre a sabedoria de tempos antigos, como se pudesse lhe dizer como resolver os
problemas que habitavam sua mente e pareciam impossíveis de solucionar, àquela
época.
A voz, como um sussurro cansado e aflito, lhe revelou coisas terríveis e perigosas.
Um sacrilégio fora cometido sem que ninguém soubesse. Um pecado que poria em
risco a ordem e a harmonia do tempo, provocando um caos jamais visto
anteriormente. Um prelúdio apocalíptico poderia insurgir naquele que era o maior
temor dos elfos sacramentadores. Homens, mulheres, crianças, elfos, anões,
centauros, mágicos e não-mágicos, todos corriam perigo de extinção por uma
deturpação execrável cometida pelo elfo que mais deveria zelar pelo bem da
harmonia do tempo: o Supremo-Chanceler de Purysia.
357
Apalermado, tomou as devidas providências. Orientado pela figura etérea que o
aconselhava, desvencilhou-se dos problemas irrisórios enfrentados em seu pilar e
fez o que nenhum outro sacramentador em toda história da Ordem jamais fez:
firmou uma aliança com os principais sacramentadores da época, muitos dos quais
foram arcanos contemporâneos seus; clamou pela sabedoria de um dos principais
elfos sacramentadores da ilha, Sisno Sannfye, de quem recebeu o aval para enfrentar
o mal que ameaçava o mundo de Eirin e buscou o auxílio de parte do Conselho
dos Guardiões para obter êxito completo — seu único e maior arrependimento.
Com aliados tão poderosos a seu favor, obliterou aquele que ousava profanar a
Sacramentação do Tempo. Subir ao posto mais alto em Purysia foi algo natural, por
sua liderança e atuação. No tempo certo, recompensou aqueles que estiveram ao
seu lado. Novos Pilares ascenderam ao poder, os laços com os Guardiões foram
fortalecidos e tudo ficou bem por algum tempo...
Uma batida frenética na porta interrompeu seus pensamentos.
Quem, a essa hora, ousava atrapalhar sua reclusão? Teria de trocar a guarda do
Salão mais uma vez. Mais uma leva de soldados que não prestava para manter a
ordem do lado de fora. As batidas continuaram intensas e um vozerio escandaloso
irradiava além das portas. Inspirando profundamente, Menfesis reconheceu a voz
histérica e irritadiça inconfundível no vestíbulo contíguo. Detestava pensar em
arrependimentos e vinha pensando em muitos desde que o iminente caos se
avizinhava de sua governança, mas, se havia algo com o qual também se arrependia,
era ter nomeado precisamente aquele sacramentador intempestivo como
Moderador de Purysia, durante sua reclusão. Não o conhecia bem, mas admirou-se
com sua proatividade e com o fato de ser tão solícito. Mas, de uns tempos para cá,
sua paciência estava se esgotando. Perturbava-o de tempos em tempos, querendo
relatar os pormenores dos acontecimentos na ilha, até mesmo de coisas irrisórias e
fúteis que ninguém ligava. Questionava-se, em primeiro lugar, como seu mentor o
havia aprovado para iniciar os ciclos de preparação de assunção a um dos
Octaedros. Mas o que poderia fazer? Os sacramentadores de confiança estavam
ficando escassos, muitos sequer haviam iniciado suas eras preparatorem. A maioria
parecia distante da maturidade exigida para a responsabilidade demandada. Aos
montes, os que estavam em vias de terminar seus estudos preferiam dedicar muitas
horas aos burburinhos pelo Oráculo do Tempo, conjecturando sobre boatos, com
certeza arrazoando a respeito de sua ausência ou da visita intragável e deletéria de
Lorde Moronov, o pífio chanceler do Conselho dos Guardiões.
Abriu as duas portas do Salão em um movimento brusco, convertendo a estafa
que o engolfava em uma impaciente irritação. O vestíbulo estava dominado pela
penumbra do começo da noite, quando vislumbrou Klaus Trishnann. Os cabelos
longos e brancos, desgrenhados, contrastavam com uma veia que saltava em sua
têmpora proeminente. Vermelho como um pimentão, ralhava com os dois
358
protetores que empunhavam suas lanças, impedindo o jovem sacramentador de
invadir o salão. Atrás do elfo enfezado, uma ninfa das águas arregalava os olhos
para a cena, curiosa e assustada ao mesmo tempo. As águas de seu corpo eram azuis
escuras, quase negras e revoltas como as ondas de Argúrius. Agitavam-se de um
lado a outro, como um oceano encapelado, ao longo de suas pernas, quadris e seios.
Era uma ninfa vinda dos oceanos. A cólera crescente que dominara Menfesis foi
dando lugar a uma intensa curiosidade.
— Posso saber o que se passa aqui e porque ousas perturbar a paz deste recanto
de contemplação? — trovejou a voz de Menfesis e encerrou o embate entre os
soldados e o sacramentador. Os olhares de todos se voltaram de imediato para ele,
assustados.
Os soldados rapidamente recompuseram-se e estacaram em posição de guarda.
Trishnann passou os dedos finos sobre os cabelos escorridos, tentando se
recompor o mais rápido que pôde, dando sequência a uma exagerada saudação. O
olhar da ninfa se fixou nos olhos austeros de Menfesis.
— Oh, Magnífico Primeiro-Líder da Ordem dos Sacramentadores e Supremo
Chanceler de Purys...
— Chega de formalidades, Klaus! — Arturo avançou para além dos soldados,
que logo se recolheram aos seus postos, quase grudados à frente das portas. — Eu
lhe fiz uma pergunta e é imperativo que tenhas uma plausível justificativa para vir
perturbar a ordem e a paz deste lugar. Se não houver um tema que me faças
convencer de que sua presença aqui, com uma voluptuosa ninfa dos mares,
corrompendo e perturbando a paz de minhas reflexões não é de caráter emergencial
ou essencial para o perfeito funcionamento do tempo, eu juro, Klaus, farei valer
meu poder como líder e o punirei de modo exemplar!
Klaus arregalou os olhos verde-água como Menfesis jamais vira. Atrás dele, o elfo
sentiu os soldados se distanciando cada vez mais, quase invadindo o Salão da
Bússola para se esconderem da ira que irradiava do líder dos Sacramentadores. No
encalço de Trishnann, a ninfa deu dois passos para trás, cabisbaixa.
— Oh, Magnificente Primeiro-Líder, eu peço...
Menfesis respirou fundo.
Era esse jeito nodoso do jovem sacramentador que ele detestava. Durante os
primeiros dias de seu isolamento, o jovem sacramentador serviu como um grande
executor, mantendo a paz e a ordem necessária em Purysia. Em ordenar e fazer as
coisas acontecerem, ele era um excelente e talentoso orquestrador de organização
e produtividade. Mas esse comportamento pelego a todo instante era algo
exaustivo.
Klaus dobrava-se ao meio, com os cabelos cobrindo seu rosto, quase prostrado,
desfiando um longo discurso com bajulações desprezíveis e infindáveis desculpas
por seu comportamento desprovido de sapiência e tão infantil.
359
Odiava aduladores. Assim como jamais fora com a cara de Lorde Moronov e seu
jeito sabujo de ser na presença de autoridades ou em meio aos Guardiões, nos
eventos em que precisava estar presente, Menfesis também se forçava a esconder o
desprezo que tinha por figurões de Purysia como Poledores Früg, Nelis Naziv,
Rodris Rannidge e outros tantos bajuladores, que precisavam usar de tal artifício na
esperança de conseguir algum prestígio, dentro e fora da Ordem. À época, fora
persuadido por Sisno. Admirava e, ao mesmo tempo, possuía asco por essa
capacidade de argumentação tão preponderante de Sannfrye. Era impossível
discutir com Sisno e sair vencedor. O antigo líder de Hegemonia possuía um dom
de envolver qualquer pessoa com seus argumentos e persuadir até mesmo os mais
turrões. Fora convencido por ele a nomear sacramentadores medianos para
tamanha responsabilidade. Uma leviana política da boa vizinhança que aceitara de
bom grado: foram grandes apoiadores de sua insurreição, reconhecidos pela
comunidade élfica como proeminentes sacramentadores, mesmo que duvidasse da
capacidade deles de enfrentar as intempéries do tempo. Conjecturava se tal
reconhecimento não era mero interesse, prostituído de barganha por um prestígio
e influência dentro da Ordem, principalmente por parte do clã dos Etéreos em sua
limítrofe insistência por interferir nos assuntos do tempo. Era um grande
contentamento, no meio de toda a crise que enfrentava, poder saber que esses
nomes já não eram mais líderes dos Octaedros. E nenhum argumento de Sannfrye
fora forte o suficiente para convencê-lo do contrário.
— Guardas! — berrou Arturo, interrompendo o fio de bajulações de Klaus. Os
guardas correram e emparelharam com o líder, prontamente. — Prendam este elfo
imediatamente. Levem-no para o cárcere das masmorras próximas ao velho cais e
sumam com a chave!
Os guardas arreganharam um largo sorriso, satisfeitos com a ordem de Menfesis.
Largaram as lanças, que ecoaram pelo vestíbulo com estrépito e agarraram os
braços de Klaus Trishnann. Soltando gritinhos histéricos e suplicando misericórdia,
a voz esganiçada do jovem sacramentador era inutilmente abafada pelas palmas das
mãos dos guardas que tentavam arrastá-lo pelos corredores. Girando nos
calcanhares, Arturo lançou um olhar de desprezo para a ninfa à sua frente e agitou
a cabeça em direção à janela, indicando por onde ela deveria desaparecer. Agarrou
a maçaneta dos portões do Salão da Bússola. A mente voltava a devanear sobre a
crise, quando a voz exasperada e quase inaudível de Klaus reboou, distante,
informando algo que o fez pasmar de súbito.
— Acredito que deverias saber... Há uma conspiração para derrubá-lo!
Atarantado, Menfesis ordenou que o soltassem imediatamente.
Desvencilhando-se das mãos de seus algozes, recompondo-se, Klaus bufou e
mostrou uma carranca encolerizada para os guardas. Empertigando-se e
empinando o nariz, caminhou elegantemente pelo corredor e parou bem ao lado
360
da ninfa. Sustentava um notório olhar malicioso de quem tem algo estarrecedor a
revelar.
— Sabes que não admito qualquer leviandade, Trishnann, tampouco admito que
possuas, por usurpação, intentos de querer arrogar para si minha atenção com
aleivosias desprovidas de fundamento categórico.
— Bem conheço que governas com mãos firmes, magnificente Chanceler e que,
de maneira alguma, cometeria o perjúrio de tecer, diante de vossa presença, tal
engodo para lograr êxito em atrair vossa atenção. Até a mais ardilosa esparrela
sucumbiria ante vossa sabedoria.
— Tens minha atenção, Klaus — inferiu Menfesis, cruzando os braços, atento
— Não a enfades com vitupérios irrisórios.
O jovem sacramentador mirou os olhos oceânicos da ninfa e balançou a cabeça,
em sinal de positivo. No instante seguinte, ela moveu os lábios devagar, como se
prestes a cantar uma linda melodia. A voz dócil, porém firme, mas com uma nota
de preocupação encheu o lugar, reverberando sobre o teto alto. Menfesis arregalou
os olhos, estarrecido. Era difícil de acreditar. De uma ponta a outra da orelha, Klaus
emitia seu sorriso mais satisfeito. O Supremo Chanceler de Purysia escutava as
palavras ditas pela ninfa, atônito. Não era a voz da criatura das águas. Ouvia em
alto e bom som, como se as palavras reverberassem pelas paredes em volta, a
reprodução de uma conversa entre Alezeia Turim e Sisno Sannfrye.
Alta traição.
A pior de todas que sofrera em sua carreira.
Uma traição sem precedentes, cometida pelas duas pessoas que jamais imaginaria
um dia intentarem algo contra sua liderança. Ada Alezeia Turim, a Segunda-Líder,
sua antiga confidente, ousava dizer que sua mais antiga amiga e auxiliadora. Alguém
a quem tanto considerou e por quem brigou incessantemente, ainda que ela
relutasse em aceitar, para assumir o posto de segunda na hierarquia da Ordem.
Confabulava formas de engabelá-lo e manter as aparências de normalidade em
Purysia enquanto os demais ex-sacramentadores buscavam resgatar um sucessor,
liderados por Sisno.
Justamente, Sisno.
O mesmo Sisno a quem um dia chamou de maedor. O mais culto, íntegro e
influente sacramentador, acima de qualquer suspeita. O melhor e mais desenvolto
intermediador de grandes conflitos, principalmente aqueles que envolviam os
humanos, que o ensinou a contornar as mais diversas escabrosidades dos homens,
profundo conhecedor das riquezas da verdadeira política e da mais douta cultura
da harmonia entre os poderes mágicos que regiam o mundo. Assim como fez com
o sacramentador que o precedera, arquitetava então uma sucessão imediata, traindo
a confiança que um dia lhe depositou. Uma apunhalada traiçoeira que o feria de
morte, obliterando um governo que fez tudo o que era possível para evitar o pior.
361
Enumerando mentalmente cada lei transgredida por Alezeia, Sisno e pelos exsacramentadores,
Menfesis tomou uma dura decisão. Algo que deveria ter feito há
tempos. Uma coisa que ignorara havia muitos ciclos, na crença de estar com a razão.
Chegara a hora de adotar medidas drásticas e urgentes, antes que fosse tarde.
Seguiria um conselho que optou por desprezar no início de sua era perpetratem e que
naquele momento lhe traria duras consequências.
— Retire-se de minha presença, Klaus e leve consigo esta ninfa lasciva.
A voz de Menfesis era um mero sussurro impassível. Trishnann franziu o cenho,
descrente.
— Mas, Supremo-Chanceler, é imperativo que vossa mercê tome providências
imediatamente!
— Cumpra o que lhe ordeno, agora — sibilou Arturo — ou mandarei os guardas
arrastarem-no por essas suas cãs até os mais pútridos calabouços!
Sem titubear, mas com um semblante incrédulo, Klaus deslizou para longe do
vestíbulo. Um turbilhão de dúvidas explodia em sua cabeça. Os guardas,
empunhando as espadas em riste, encaravam-no com profundo desprezo. Como
uma corrente marinha a chocar-se com estrépito nos corais, a ninfa das águas
serpenteou pelo mármore polido, esgueirou-se por entre as janelas e se lançou da
torre em direção ao mar. Retirou-se sem deixar vestígios, assim como seu mentor.
Sozinho, Menfesis escancarou as portas do Salão da Bússola. Estava decidido. Lá
dentro, a figura oculta o aguardava. A mesma que conhecera antes de ascender ao
posto mais alto em Purysia e revelara coisas terríveis. Envolta em mantos negros
como da última vez, estava coberta pelas trevas sufocantes da escuridão
arrebatadora da noite. A criatura estendeu o braço e, abaixo das vestes funestas, a
sua mão esquálida se revelara, convidando-o a adentrar. Pela fraca luz da lua que se
projetava de um ponto isolado, vislumbrou um sorriso tortuoso e cansado por
baixo do capuz.
— Venha ao meu encontro, Arturo. — A voz etérea reverberou pela abóbada de
vidro. Ressoava de todos os cantos; vários timbres ecoando ao mesmo tempo em
um tom carregado de mistério. — É chegado o momento de conhecer coisas
assombrosas que não sabes!
362
Capítulo Vinte e Seis
Razão e Emoção
Assentada ao redor de uma fonte, Dhara tocava a superfície incólume da água,
inspirando vigorosamente a brisa fresca da manhã a agitar as flores dos jardins
posteriores, trazendo consigo o odor agradável das madressilvas. A fragrância era
acolhedora e remetia às lembranças longínquas de seus primeiros ciclos como
arcana. O tempo costumava agir de formas misteriosas, brincando com memórias
e sensações de dias tão remotos e que pareciam ter acontecido em uma outra vida.
Chegara à Gradia, afinal. Era o último destino de sua peregrinação pelas principais
cidades do Octaedro de Hegemonia. Por quase um ciclo inteiro, desde que fora
nomeada por Menfesis a nova sacramentadora do mais importante Pilar de Eirin,
dedicara-se a aprofundar seus conhecimentos sobre os fatores climáticos, a
geografia e demografia e bem como as oscilações e vibrações mais características
das três principais cidades, começando por Paragon, depois Cruisand e, finalmente,
Gradia.
Fora um período de intenso aprendizado. Uma enxurrada de informações para
absorver em poucos meses. Muito além do saber a respeito da malha do tempo, a
Peregrinação que precedia a Grande Consagração serviu para aprender sobre
política. As relações politizadas eram um quebra-cabeça de infinitas peças de
tamanhos infinitesimais, que embaralhavam qualquer lógica que aprendera ao longo
de sua carreira. Nem mesmo os intrincados cálculos sobre os muitos ângulos da
malha e suas intermináveis combinações e probabilidades de reações oscilatórias
eram tão difíceis de compreender como as relações com os humanos — e levara
mais de cinquenta ciclos para adquirir tal conhecimento matemático.
Ainda que Borana fizesse questão de realçar como deveria se comportar na
presença das autoridades humanas, para Dhara tudo não passava de uma futilidade
ilógica e desprezível. Perdera a conta de quantas festas, jantares, bailes e cerimônias
precisou frequentar em todos esses meses. Quase toda noite, um evento diferente.
Enquanto ao longo do dia, em suas caminhadas pelas cidades, fazendas, à beiramar
ou nas aglomerações do povo nas ruas, buscava compreender quais
Convergências Sazonais eram características da malha do tempo, à noite precisava
se atentar a cada palavra e instrução de sua madrinha sobre como deveria se
363
comportar no que ela chamava de “a nata da sociedade moderna”. Variadas regras
de etiqueta, modelos de vestidos e anáguas diferentes para cada tipo de ocasião,
formas de iniciar uma conversa com algum rei importante ou mesmo parecer
interessada quando a conversa era entediante. O motivo de tanto aprendizado
sempre lhe parecia banal, embora sua maedor insistisse que seria algo de extrema
importância dali para frente. Evitava admitir, pois saberia o quanto isso magoaria
Borana pelo tanto que ela se dedicara em transmitir eras de conhecimento a respeito
dos homens poderosos, mas tal conhecimento exalava uma sórdida mesquinhez a
que os Pilares dos Octaedros eram obrigados a incutir em suas cabeças, moldando
o próprio caráter ao que era imposto pelos poderosos, tendo que conviver com o
que considerava, desde o primeiro evento que participou, uma ode à ganância, à
futilidade, ao narcisismo e às emulações. Sentimentos antagônicos ao que a
verdadeira religião dos elfos tanto apregoava. A dura realidade que se forçava a não
admitir: puritana para as camadas mais baixas da sociedade e lasciva para os
poderosos, a Sacramentação se prostituíra com o luxo, o requinte e o poder
daqueles que governavam o mundo.
Capturou algumas pétalas de madressilvas repousando sobre o espelho d’água e,
então, levantou-se da borda da fonte. Admirando o entorno da cidade, dos jardins
do palacete, vislumbrou a Casa dos Guardiões, bem no centro de Gradia.
Imponente, reluzia aos primeiros raios do sol e se destacava em meio às demais
construções. O conto popular mais famoso era de que os Guardiões precisavam de
um lugar para abrigar seu famigerado Conselho — do qual fariam parte os anciãos
e os mais destacados das principais famílias guardiães. Contudo, não consideraram
as cidades mais famosas do mundo, Cruisand e Paragon, como os melhores
destinos. Não eram dignas o suficiente, mesmo tendo emanando sobre elas os
Pilares da Magia e possuíam uma fama que ofuscaria o brilho de uma sede para o
famigerado Conselho. Precisavam de uma cidade só para eles. Uma cidade para
construir um monumento que fosse tão deslumbrante e suntuoso quanto as torres
mágicas de puro poder. Queriam ter seu próprio destaque no mundo. Como era
impossível competir com os dois maiores destinos de Eirin, decidiram ocupar uma
cidade mais próxima e torná-la tão famosa com as outras duas. Escolheram Gradia,
que antes se chamava Older-Agana, e a tomaram para si, separando-a
definitivamente de Vervaz. Reformaram-na por completo, apagando para sempre
qualquer resquício da antiga vila paupérrima de pescadores que um dia existira ali.
Ergueram em tempo recorde dois magníficos museus, uma imensa arena, sete
auditórios e um colossal anfiteatro com dezenas de aposentos luxuosos,
posicionado estrategicamente bem no meio da cidade e de frente para o mar,
chamado até os dias atuais de A Casa dos Guardiões. Tudo com muito ouro, joias,
metais mágicos refinados e bastante requinte. Ouvira essa mesma história, com
pequenas e irrisórias variações, de três pessoas distintas nos lugares por onde
364
passou, nas vezes em que não precisava estar rodeada de reis, duques, princesas,
governadores ou sacramentadores e suas conversas mesquinhas e entediantes.
A saudade dessa vida simples da qual precisou abdicar ainda era uma constante
em sua vida. Mesmo que tentasse não dar vazão a esses sentimentos tão humanos,
era inevitável. As conversas com gente simples, as velhas histórias de seu pai, as
receitas de sua mãe: esses momentos peculiares na rotina de pessoas normais eram
mais valiosos e marcantes do que tantas festas e cerimônias com gente importante
que mal conhecia. Pessoas comuns em rotinas comuns revelavam muito mais sobre
a cultura e a sabedoria de um lugar do que aquelas com quem precisaria conviver a
partir de sua Consagração.
Esvaindo da mente tais pensamentos que não levariam a lugar algum, contemplou
novamente a imponente Casa dos Guardiões e suspirou. Logo, conheceria o Leão
de Gradia. Estivera nos mesmos eventos que ele ao longo do ciclo, mas jamais
foram apresentados oficialmente. Borana sempre tecera inúmeros elogios ao líder
do Conselho dos Guardiões: um homem culto, douto em variados temas e
absolutamente reservado. Salazar Stanhorne era o tipo de homem íntegro que
prezava pelo cumprimento das leis e pelo equilíbrio entre os poderes mágicos e que
não admitia qualquer forma de corrupção. A madrinha insistia que ela precisava
causar a melhor impressão possível. Afinal, substituir o ilustre Sisno Sannfrye, o
elfo que era um verdadeiro ícone dentro da Ordem e de quem Stanhorne era amigo
íntimo, seria uma difícil missão. Faltava pouco menos de um mês para o último
evento da exaustiva programação que encerraria sua Peregrinação e consequente
era preparatorem: o Ano da Elegibilidade. Inédito em toda a história de Eirin, lera
incansavelmente sobre isto nos muitos regimentos dos Guardiões. Quando os
cinco Guardiões nomeados de Eirin declinavam de seus postos em um período
inferior a um ciclo completo, fosse por sucessão real, morte, desaparecimento ou
abdicação em função da idade ou cargo, o Conselho deveria reunir-se em
assembleia de três dias e declarar um período preparatório nos reinos-guardiões
para uma ascensão em cada continente dos cinco novos Protetores Mágicos. Um
novo Círculo dos Cinco ascenderia e uma cerimônia com três grandes eventos
marcaria este momento ímpar. Gradia seria o palco do primeiro evento, uma prova
para testar a lógica dos Cinco. O segundo evento aconteceria em Paragon, com
uma demonstração do poder dos novos Guardiões. Cruisand, por fim, abrigaria o
evento em que a habilidade de liderança seria testada. Com isto, o novo líder do
Círculo dos Cinco seria nomeado. Uma fascinante — e espalhafatosa — forma de
comemorar a nomeação daqueles que deveriam garantir o cumprimento das Três
Leis Primazes e a segurança das nações.
Passado isto, viria a Grande Consagração. Os novos Oito Pilares retornariam de
suas peregrinações após um ciclo e se reuniriam outra vez em Purysia. Seriam
lavados com óleos de mirras adanescas para se purificarem do mal e de quaisquer
365
contaminações que pudessem ter adquirido nesses meses. Por cinco dias, deveriam
rezar os cordéis frugais e alimentar-se apenas de água, damascos, romãs e nêsperas.
O banho com óleos aromáticos de ouro e nardo era o último passo do ritual de
preparação. Vestiriam túnicas e mantos de seda branca costuradas com fios
dourados e se apresentariam no Átrio da Ordenação, onde seriam aclamados como
os novos Oito Pilares da Sacramentação do Tempo. No Átrio da Ordenação, a
aclamação dos novos Oito marcaria um novo tempo dentro da Ordem. Uma nova
era para oito elfos sacramentadores, cheios de falhas, anseios e temores como
qualquer outro elfo, demonstrarem seu valor na proteção do tempo, garantindo a
consonância mágica que lhes cabia.
Ansiava por este grande dia, vislumbrando seu retorno à Purysia para tal
momento majestoso e único em sua história de vida, mas uma dúvida ainda
atormentava seu coração. Uma confusão que sob hipótese alguma deveria existir.
Buscava de variadas formas fugir de um sentimento tão tolo e mais do que proibido
que, no entanto, jamais experimentara. Além do Salão de Vidro, com a brisa da
noite assoprando sobre ela, o gosto daquele beijo ainda estava marcado em sua
memória. Por mais que lutasse contra, não conseguia não pensar em Louk Savya.
Ao final de cada noite, ao deitar a cabeça sobre o travesseiro, a imagem de seu rosto
grudado ao dela, de seus lábios beijando-a com ternura, das mãos dele acariciando
sua pele e cabelos. Sonhos impuros e involuntários se seguiam a isso. Sentimentos
proibidos de coisas que ela nunca experimentou, ansiando saber o que havia além
de seus beijos. Arrepios lascivos percorriam seu corpo e faziam-na estremecer.
Desejava-o ardentemente, de um jeito inimaginável. Ainda que lutasse contra e se
forçasse a não admitir, estava perdidamente apaixonada por um guardião que lhe
roubara um beijo em Paragon e a beijara ardentemente, escondido da visão de
todos, em Cruisand.
Surpreendendo-a, ele fez uma declaração que a deixou desconcertada. Desistiria
de tudo por ela. Abdicaria do principado, da indicação a Guardião, das riquezas,
unicamente para poder viver em função desse amor até o fim de seus dias. Tais
palavras balançaram seu coração de uma forma tão humana. Antes que pudesse
concluir sua justificativa, ele a beijou novamente; dessa vez, ardente e calorosa. E,
deixando-a com um turbilhão de dúvidas, voltou para o Salão de Vidro sem falar
mais nada.
Queria poder dizer que sim, que também largaria a Ordem, o Octaedro de
Hegemonia, seus ciclos de estudo e preparação para poder viver esse amor que
jamais experimentara. Poder se deliciar com esses sentimentos que a faziam
verdadeiramente feliz, como não se sentia havia muito tempo. A razão e a emoção
travavam um conflito emblemático. O seu maior receio era de que, pela primeira
vez, a razão saísse derrotada desta batalha.
— Admirando o romper da manhã?
366
Dhara esboçou um breve sorriso. A voz dócil e suave de Borana interrompeu seu
estado absorto, trazendo-a novamente à realidade. Contornando a fonte no meio
do pátio, a elfo mais velha sentou-se ao lado dela. Elegante como sempre, cruzou
as pernas e contemplou a beleza do sol nascente sobre o longínquo horizonte.
— ‘Contemplando a manhã, o frescor da brisa matutina invade-me e acalenta-me
a alma. Oh, quão magnífica és, estrela esplendorosa que rompe ao amanhecer: atraime
com seu brilho, inspira-me com seu fulgor e enobreces-me o espírito, aditando
ao conhecimento a sabedoria e o seu valor’.
— Ah, os Cânticos Sacros de Alindoor! — exclamou Borana, extasiada —
Admira-me que ainda te lembres desses versos tão revigorantes. Demonstras uma
memória salutar incomparável. A última vez que tive contato com eles foi há
algumas eras, quando ainda era uma jovem arcana.
— Jamais os esqueci, madrinha — sussurrou Dhara, enlevada com as lembranças
do aprendizado dos Cânticos Sacros. — Fora uma época deveras marcante para
minha aspiração ao sacramental aprendizado. Devaneios de momentos singulares
em que se exigia pouco mais do que manter a mente aberta ao saber iminente.
— A singularidade é uma utopia, minha doce Dhara. — Borana ainda
contemplava o horizonte; os olhos vidravam em ponto algum no esplendoroso
dilúculo. — Embora as pessoas, quer homens, elfos ou outro ser vivente derivado
da racionalidade, dediquem-se ardentemente a escapar ou esgueirar-se de seus
destinos, há uma beleza inigualável no que tange a complexidade. Poucos são os
doutos, seres dedicados a compreender tais sistemas e biotas, que de fato são
versados a respeito desta temática. A maior parte dos que desejam e tentam,
fracassam: enlouquecem durante o caminho. Compreender a complexidade é uma
via de mão única, sem retorno. Aqueles que se entrelaçam com o emaranhado
abstruso e intrincado que permeia os muitos sistemas desta vida são virtuosos e
dignos de louvor.
Dhara mirou o rosto de sua maedor. Não havia uma nota de alteração. Como
sentara sobre a amurada da fonte, ela permanecia. Pernas cruzadas, mãos no joelho,
a elfo mais velha tecia seu discurso como quem comenta lembranças formidáveis
de sua história de vida. Eram nesses momentos que ela buscava concentrar-se em
cada palavra da madrinha, ouvindo-a atentamente. Considerava maior sabedoria
nisto do que nas muitas regras de convivência dentro da alta sociedade.
— O motivo pelo qual os que almejam desvairam-se ou cedem ao longo do
caminho é porque não estão preparados para tal grandeza. Compreender o
complexo é uma arte. É percorrer tortuosas vias, cujas curvas estão repletas de
aprendizados sutis que carecem de contemplação peculiar para que se possa extrair
aprendizado. Invariavelmente, é decidir contra os próprios princípios. Remar
contra a maré que te impulsiona, mas também deixar que a maré te carregue por
367
um pouco de tempo, em nome de uma virtude ainda não conhecida ou
desesperadamente desejada.
Uma breve pausa se seguiu. Nada mais do que o silêncio perdurou entre as duas.
A brisa da manhã assoprou pelo grandioso pátio, provocando pequenas oscilações
sobre as águas mansas da fonte, retinindo nos ouvidos das duas elfos.
— Entender o complexo, Dhara, exige tempo. — Borana encarou Dhara pela
primeira vez, desde que viera ter com ela. — Exige paciência. Exige contemplação.
Exige abnegação. Minha adorável aprendiz, minha doce arcana que muito em breve
tornar-se-á uma líder importante neste mundo mau. Abraçar as responsabilidades
de um Octaedro é chegar ao ápice do aprendizado sobre a complexidade. O ápice
da complexidade da malha do tempo é alcançado através de muito estudo e
preparação, algo que, a essa altura, sua mercê demonstra total domínio e apreço.
No entanto, a complexidade do emaranhado de incertezas que permeiam esta
sociedade exige muito mais do que tão somente teorias e conhecimentos escritos.
É tácito. Doutorar na complexidade desta sociedade é cultivar a paciência em temas
que não se explicam pela razão. É relacionar-se com o que se ufana, ainda que a
razão puritana da sacramentação repudie com substancial veemência essas relações
desprezíveis. Dominar a complexidade desta sociedade é entrelaçar-se com o
execrável e, ainda assim, manter-se lúcido e são. Entendes isto, minha doce Dhara
Lovrens?
Dhara encarou a madrinha. Uma firmeza obstinada exalava em sua voz. A maioria
de seus conselhos sempre parecera habitar o limiar de uma superficialidade, aquém
à vasta experiência e saber de eras que tanto ansiava. O discurso sempre fora
voltado para relacionamentos, a maioria políticos, comportamento, etiqueta,
postura e liderança. Era a primeira vez que tecia um aconselhamento tocante e
intenso, carregado de alegorias. Enlevada por suas palavras, Dhara não conseguia
esboçar nenhuma reação diante da derradeira questão.
— Nasceste com um propósito, Dhara — continuou Borana, mirando o fundo
de seus olhos, como se pudesse vislumbrar o que perturbava o íntimo de sua alma.
— É notório como a magia do tempo flui em você. Nas suas atitudes, no seu
comportamento, em seus discursos e no teor fundamentado das palavras que
professas em qualquer prosa ou discurso, manifesta-se de uma forma fascinante e
inspiradora a beleza pura da sacramentação. Uma pureza formosa que jamais me
apercebi em qualquer sacramentador que tive a honra de poder lecionar e
acompanhar em suas preparações. O propósito da missão que recebeste é nítido e
cristalino como as águas que jorram desta fonte.
Dhara sorriu. Não esperava de Borana palavras de elogio tão profundas. De sua
parte tivera uma relação de íntima cordialidade e sensatez, típicos de mestre e
aprendiz. Muito em função do curto espaço de tempo para uma preparação de
368
posição dentro da Ordem, jamais houvera espaço para amabilidades tão longânimes
entre as duas.
— Não jogues seu dom fora por causa de um sentimento proibido como a paixão.
A sentença categórica fez Dhara arregalar os olhos. Nos instantes em que maedor
e aprendiz se encararam, a mais velha esvaiu o esgar contemplativo e assumiu uma
feição de verdadeira apreensão. Beirava o desespero. Desespero tal que não se
comparava ao que ocupava o rosto da elfo mais nova. Qual seria a possibilidade de
Borana ler pensamentos? Como ela podia saber sobre esses sentimentos que
embaralhavam sua mente?
— Por mais que tenhas tentado esconder, Dhara, há uma notória e crescente
dúvida que sobrepuja a obstinação que antes exalava em ti. Nos últimos dias, em
pequenos detalhes, tenho-me apercebido da presença de sentimentos confusos em
sua pessoa. Há tamanha pureza pelas questões do tempo em ti, que não tendes
como mentir a respeito de emoções tipicamente humanas.
Empertigando-se, Dhara não evitava o olhar de sua madrinha. A voz se mantinha
tão firme quanto em seu discurso inicial. Ela sabia que Borana sabia. O coração
acelerando no peito, com sentimentos e incertezas aflorando à pele, não se atreveu
a emitir réplica ou questionamentos. Apurava os ouvidos, posicionando-se como a
humilde serva e aprendiz que era, para as próximas palavras de sua maedor. O receio
em seu coração — quase uma certeza — era de que seu iminente discurso
terminaria destruindo para sempre a confusão de sentimentos que a dominava.
— Não caias na jactância de acreditar que há um futuro em uma paixão proibida.
Homens e elfos não nasceram para se relacionar nesta vida que se desenrola com
tamanha brevidade. O lugar dos humanos é a tortuosa maldição que os enfada ao
longo dos ciclos. Presunçosos, ignorantes, amantes de si mesmos, são engolfados
pelas próprias bravatas ao longo de suas jornadas. A perdição desta sociedade é
ditada pelas decisões exacerbadas dos homens, motivadas por algo que nós, elfos,
desviamos: as emoções. Os caminhos dos homens, quer mágicos ou não, são
carregados de maldade. Por essa razão, suas vidas são breves.
As folhas e flores ao redor farfalharam com um vento um pouco mais intenso do
que a brisa a assoprar no começo da manhã. O silêncio instaurou-se entre as duas.
Um ruído de pigarro, inesperado, como quem pretende interromper uma reunião
para comunicar algo, fez Borana e Dhara virarem as cabeças para a entrada do pátio.
Sob um dos muitos arcos cobertos de madressilvas do perímetro, Louk Savya
estava parado. As mãos para trás escondiam alguma coisa e emitia um som gutural
na esperança de conseguir interromper a conversa sobre a fonte. Devia estar
aguardando havia algum tempo ali. Cética, Dhara sentiu o coração pulular no peito
em um arroubo repentino de emoções análogas aos da varanda do Salão de Vidro.
Torcia para ele não ter ouvido as últimas palavras de sua maedor.
369
Borana fez um aceno com a cabeça, mostrando um sorriso simpático e autorizou
o jovem guardião a interromper aquela prosa para vir ao encontro delas.
— Rememore o que tenho dito, Dhara — sussurrou Borana ao mesmo tempo
em que se levantava, ajeitando o longo vestido marfim. — Nasceste com um
propósito que sobrepuja qualquer sombra de emoção e sentimento. Proteger o
octaedro que cobre os Pilares da Magia é seu destino. Somente alguém com a
pureza que tens e a liderança que inspiras pode obliterar o mal que os humanos
disseminam e proporcionar esperança às nações por meio da sacramentação.
Sem aguardar por uma resposta ou questão, Borana deixou a fonte e caminhou
em direção ao palacete em que estavam hospedadas. Passou por Louk e
cumprimentou-o cordialmente.
— Essa sua professora é bastante educada — crocitou Louk, ainda escondendo
as mãos. — Fico até com medo de cometer algum delito ou, como vocês gostam
de falar, um pecado na frente dela. Vai que ela me coloca de castigo, ajoelhado no
milho, ou sei lá e...
— Louk!
Dhara interrompeu o discurso do jovem guardião. Louk emudeceu de imediato.
Fez desaparecer do semblante o esgar irônico que sustentava, mas em seus olhos e
feições havia um brilho apalermado típico de emoções humanas. A fisionomia da
elfo era impassível. Aprumou a postura em pé diante dele e se esforçou para seu
olhar não denunciar o misto de sentimentos confusos que a consumia. A voz mais
firme do que nunca. Não haveria jeito de resolver tal dilema de forma fácil.
— Sim, Dhara... — Louk sibilou; o silêncio entre ambos perdurou por mais
tempo do que ela gostaria.
— Não há uma forma de externar a ti tal sentença sem que isto provoque
lancinantes sentimentos, mas é o único modo de encerrarmos esta questão —
prosseguiu Dhara, contemplando as irises azuladas do guardião, esperando não
vacilar em suas próximas palavras. — Nós não podemos ficar juntos.
A expressão de Louk assumiu um tom apreensivo.
— Dhara, é claro que nós podemos... Se é pelo que as pessoas vão dizer, eu...
— Louk, basta! Nossas vidas não estão entrelaçadas no espaço-tempo. Não
existem probabilidades favoráveis para um amor proibido e que beira a bestialidade.
Eu rogo, desse momento em diante: devemos seguir por caminhos distintos.
Suplico sua anuência para que compreendas. Nasci com um propósito cristalino e
devo zelar por tal desígnio.
Inesperado como a lufada de vento que atingiu as madressilvas, fazendo-as
esvoaçarem pelo pátio e cobrir o chão com pétalas amarelas, Louk agarrou Dhara
e a beijou de uma forma intensa e desesperada. Diferente da ocasião no Salão de
Vidro, a elfo não correspondeu. O guardião sentia-se pressionando os lábios nos
370
de uma estátua de mármore: sem vida, sem emoções. Impassível, denotava uma
frigidez antagônica ao que ele sentia. Ela sequer moveu os lábios ou tocou-lhe.
Afastando-se dela, Louk não compreendia. Observando no fundo de seus olhos,
não havia em Dhara um pingo de desejo ou paixão. Não parecia ser a mesma de
Cruisand. Aquela a quem tomou nos braços e lhe devolveu um beijo apaixonado e
envolvente. Não havia sentimentos. Não havia nada.
— Eu não te amo, Louk — proferiu Dhara, sem titubear. — Não sinto qualquer
coisa por você. Rogo-lhe, em uma derradeira tentativa: siga seu caminho e eu
seguirei o meu.
Virando-se, Dhara retirou-se do pátio, deixando Louk e seu coração despedaçado
para trás.
371
Capítulo Vinte e Sete
O Anúncio do Rei
Parada em frente a um colossal espelho que ia do chão ao teto, Selena vislumbrava
o próprio reflexo sem um pingo de animação. Drapejada com joias extravagantes,
colares de pérolas que pesavam sobre o pescoço e brincos de rubis e diamantes
quase do tamanho de suas orelhas, encarava a imagem dela mesma que mais
detestava.
Enfurnada dentro de um longo vestido azul-turquesa, grossas gotas de suor
escorriam pelas pernas perdidas em algum lugar no meio das dezenas de camadas
das vestes que era obrigada a usar para dar volume a seus quadris até que ficassem
largos e exagerados como os de uma dona de casa parideira. Os cabelos escovados
foram arrumados em mínimos detalhes, de modo a parecerem muito maiores e
encorpados do que realmente eram. O cocuruto ainda doía pelas intermináveis
horas que precisou se submeter à escova de sua segunda irmã mais velha, Meredith,
até que o cabelo estivesse do jeito que ela queria. Os olhos também não escaparam:
cílios postiços, delineador e sombra se misturavam de um jeito chamativo e
perturbador. Dando o toque final àquela cena execrável refletida no espelho, quilos
de pós de arroz, cremes e outras maquiagens empastavam as maçãs do rosto e
bochechas. Não arriscava dar um sorriso sequer, com medo de desmanchar da face
a dolorosa e exaustiva produção a que fora submetida.
As irmãs mais velhas não paravam de andar de um lado a outro do quarto, dando
os últimos retoques de sua arrumação. Arrochavam o espartilho a cada cinco
minutos, achando que não estava marcando devidamente a cintura — entrementes,
Selena acreditava que em algum momento desmaiaria, com falta de ar, de tanto que
elas o apertavam. As quatro falavam até pelos cotovelos e a cada vez que ela
acreditava que o assunto das irmãs havia esgotado, elas começavam a abordar algum
novo tema sem, contudo, deixar de retocar a maquiagem, alisar o cabelo, posicionar
o barrete sobre o topo da cabeça, ajustar a barra do vestido e decorá-lo com fitilhos
dourados. Estática diante do espelho, perdera as contas de quanto tempo estava ali,
imóvel, sendo arrumada pelas quatro em seu aposento, vendo a aparência singular
pela qual tanto prezava ser transformada em um emaranhado de roupas fúteis e
pintura facial para disfarçar imperfeições.
372
Meredith Vycard era a mais espalhafatosa e perfeccionista. A segunda mais velha,
não tinha tanta sabedoria quanto Caeleen, a primogênita, e tampouco sua
delicadeza. Perdia a paciência com grande facilidade. Fora a responsável por fazer
da infância de Selena um verdadeiro inferno. Transformou a irmã caçula em uma
espécie de serviçal em tempo integral. No fundo, Selena agradecia a irmã por esses
dias terríveis. Aprendeu a ser forte e destemida e a resolver qualquer tipo de
problema por causa dela. Quando atingiu a maioridade, casou com um nobre
qualquer de Amistelar e sumiu de Aladar. Vez ou outra, lembrava que tinha família
e uma mãe idosa e regressava à Miliat, com suas conversas fiadas e assuntos fúteis.
Ao contrário de Meredith, Caeleen era um doce de pessoa. Particularmente, para
Selena, a mais bela de suas irmãs. Casada há quase dez ciclos e com três filhos,
tinham uma habilidade descomunal de manter os cabelos castanhos sempre
brilhantes e escovados. As unhas eram impecáveis e bem cuidadas. A maquiagem
no rosto realçava os belos traços naturais, fazendo-a parecer muito mais nova do
que era. Selena não entendia como a irmã mais velha conseguia conservar uma
aparência de dar inveja, cuidando do marido e de três filhos. Visitava os parentes
em Namit com muita frequência e sempre passava as férias de verão na casa da
mãe. Desembarcava em Miliat abarrotada de presentes, desde tecidos finos e
vestidos de gala feitos por ela até compotas de doces de abóbora e geleias de laranja
e banana. Era de longe a irmã favorita, principalmente pelo número infindável de
mimos que recebia dela. O marido, Lorde Randell Gundorf, era um amor de pessoa,
o homem perfeito para ela. Amoroso e atencioso, passava intermináveis horas
papeando com seus tios de Namit e adorava acompanhá-los nas pescarias à beiramar.
Julien e Joline eram gêmeas. Foram as irmãs com quem mais brincou na infância,
antes de se mudarem para Badorian, para estudar na Academia dos Guardiões.
Ambas tinham uma conexão esquisita, que Selena atribuía a uma magia própria das
gêmeas. Costumavam ter os mesmos sonhos, sentir as dores uma da outra, ter os
mesmos gostos por roupa e até as mesmas manias. Chegavam a completar a frase
uma da outra em várias ocasiões. Eram divertidas até que conheceram seus maridos
e ficaram irritantemente esnobes e sem graça. Não que eles fossem esnobes, mas
com a vida de condessa que passaram a levar em Badorian, a realidade de luxos e
as responsabilidades na alta sociedade mudaram-nas completamente. Vinham com
alguma frequência à Namit, geralmente nas festas de fim de ciclo e no aniversário
da mãe. Não cansavam de contar as mesmas histórias de como a vida em Eurodian
era muito melhor do que em Aladar e outras intermináveis ladainhas irritantes.
Quase dois meses se passaram desde aquele fatídico dia em que sua vida fora
virada de cabeça para baixo. As notícias se espalharam como fogo consumindo
palha seca. A queda do Trono de Jaspe. O palácio invadido na calada da noite por
uma legião misteriosa e sem rosto circulou rapidamente pelos reinos vizinhos e até
373
para outros continentes. Caeleen, Meredith, Julien e Joline desembarcaram com
seus maridos em Miliat com uma comitiva vinda de Amistelar e de Badorian poucos
dias após a invasão. Os primeiros a chegar foram representantes do Conselho dos
Guardiões. A cidade ainda crepitava e os primeiros raios solares surgiam no
horizonte quando o tal Zanotchka chegou à capital. Selena reconheceu-o de
imediato. Lembrava dele na reunião na casa do rei de Neergúria e foi o primeiro a
se retirar após a discussão. Somente quando a poeira abaixou e as cinzas assentaram
sobre as ruas pilhadas de corpos e escombros que todos tiveram dimensão do
tamanho do ataque.
As explosões, os clamores e súplicas por misericórdia, pedras rolando e espadas
tilintando ainda ecoavam no fundo de sua mente como memórias agourentas de
um momento digno de ser esquecido. À noite, quando as trevas dominavam os
céus, ao deitar-se sobre a cama, terríveis pesadelos a assombravam. As primeiras
madrugadas foram as mais difíceis. Durante muitos dias, desejou fugir daquele
lugar. Ansiou por retornar à Namit, ao conforto da casa de sua mãe idosa, mas algo
em seu íntimo gritava que ainda não era hora. Parada ali, em um dos poucos
aposentos do castelo que não tinha se tornado meros escombros esturricados ao ar
livre, segurava as lágrimas que teimavam em querer escorrer pelo rosto pintado,
aguardando o término dos últimos arranjos em seu vestido. A ladainha de suas
irmãs mais velhas não conseguia impedir as lembranças daquela madrugada
retornarem para atormentar sua mente. Com as memórias, relembrava o motivo do
porquê ainda não era hora de deixar Miliat.
O fogo consumia a cidade para além dos muros do castelo. Berros horrendos,
súplicas e o choque de espadas retumbava pelos corredores, aposentos e salões.
Zakkar ainda estava a meio caminho do chão e ela sentia que o tempo estava se
esgotando. Naquela noite, muito antes do ataque surpresa, tivera um presságio
ruim. Por ser a filha temporã de uma família com quatro irmãs, fora obrigada desde
nova a se ater aos pequenos detalhes para não cometer nenhum deslize. Os
cuidados com a barra do vestido, atenção às peculiaridades das regras de etiqueta,
entender para que serve cada um dos talheres à mesa, entender os sinais das pessoas
de quando está sendo entediante, expressiva demais e tantas outras minúcias.
Acabou se tornando uma notória observadora. Quando o crepúsculo atingiu seu
ápice em Miliat e retornou ao palácio para se preparar para o jantar, notou um
comportamento estranho dos guardas. Entrementes, seriam gestos e olhares que
passariam despercebidos para qualquer membro da realeza — o que, de fato,
aconteceu. Mas não para ela. Os sinais estavam ali. Irrisórios, quase imperceptíveis.
Por baixo da armadura pesada com a Fênix Indomável marcada sobre o peitoral,
os olhares eram ansiosos, piscavam mais do que o normal. E mais do que o normal
para guardas dos portões, que deveriam manter-se impassíveis e estáticos, eles se
mexiam, trocavam de perna, tremiam as mãos que seguravam as lanças. Os
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primeiros ruídos anormais surgiram à meia-noite, uma agitação fora do comum.
Espadas agitando-se, armaduras rangendo de forma diferente, passos pressurosos
pelos corredores. O mau agouro se confirmava. Alta traição. Uma conspiração para
tomar o Trono de Jaspe. Se antes estava agitada e sem sono, naquele momento
estava atônita, acordada e de prontidão.
Levantando-se de fininho da cama, esgueirou-se por uma das passagens secretas
que iam de seu quarto até as varandas da ala leste do castelo. As passagens secretas
se espalhavam por pontos estratégicos dos andares superiores e levavam até às
galerias subterrâneas e dali para uma saída nas galerias de águas torrenciais que
saíam nos campos de centeio, mais de cinco quilômetros longe do palácio. Fora
projetada para uma fuga, em caso de emboscada, para a família real. Zakkar e ela
conheciam essas passagens como a palma de suas mãos. Adoravam brincar de
esconde-esconde por ali. Perdera a conta de quantas vezes derrotara o tapado do
Guilloch na brincadeira, que jamais descobriu sobre a rede de túneis secreta. O
vento assoprava pela varanda, agitando as trepadeiras ornamentais que pendiam
dos arcos. Lá embaixo, ela vislumbrou algo que a deixou boquiaberta: uma legião
de soldados marchava, silenciosa. Espreitavam as principais entradas do palácio,
espadas em riste, rumo a um ataque iminente. Num instante, estacou. Uma
explosão eclodiu na ala norte. Correndo pelos corredores da passagem secreta,
subiu ao ponto mais alto da maior torre para ver o que estava acontecendo. Os
olhos refletiam uma cena aterradora e inacreditável: a capital estava em chamas.
Exércitos negros letais pilhavam as casas e construções no entorno do castelo,
assassinavam pessoas e soldados de Miliat, ogros aterradores eram soltos pelas ruas,
destruindo tudo o que viam pela frente. A legião vultuosa invadiu os portões de
entrada do palácio em questão de segundos, fazendo suas armaduras chacoalharem
com estrépito. Atarantada, retornou às passagens secretas para poder avisar ao rei
sobre a emboscada. Vozes ameaçadoras engrolavam algo em um dialeto que ela
não soube reconhecer. Estavam perto demais. Gritos e súplicas ecoaram de
repente. Uma nova explosão. Vozes vociferavam como se estivessem a metros de
distância. Uma sombra passou por seus olhos e então, se deu conta: estavam usando
os corredores ocultos para impedirem qualquer fuga. Lançou uma magia no acesso
à varanda e correu desabalada até seu quarto. Dali em diante, nada tirava de sua
cabeça que alguém internamente os traíra.
A voz do lado de fora do quarto de Zakkar ficou mais alta, ensurdecedora. O
amigo guardião descia muito mais devagar do que deveria pelo emaranhado de
lençóis amarrados. Revirava os olhos pelo fato de ele ser astuto e fugaz algumas
vez e tão lerdo quando precisava ser mais ágil. Não poderia culpá-lo, contudo. Ver
o pai ser assassinado a sangue frio, os tios e tias, os demais amigos da família sendo
postos de joelho, aguardando uma morte iminente, em uma emboscada traiçoeira
na calada da noite, deveria ser algo perturbador. Ser obrigado a fugir para evitar
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uma morte certa, sem rumo, a esmo e ainda sem garantias se sobreviveria.
Provavelmente, não teria essa reação se fosse com ela. Se fosse sua família, as irmãs
ou mesmo a mãe ajoelhada e prestes a morrer, não tinha nem ideia do que teria
feito.
Batidas frenéticas na porta ecoaram dentro do aposento. A voz do lado de fora,
grave e ameaçadora, clamava por um nome específico: o de Zakkar. Não era uma
invasão para exterminar o clã dos Ayarza, Vycard e Greenhan. Por que não
gritavam por ela? Era uma chacina direcionada, o alvo principal era a família real.
Quem estivesse no caminho ou tentasse impedir, morreria, mas o objetivo final era
extirpar os Ayarza. A fechadura não aguentaria por muito tempo e logo a madeira
da porta se romperia pelos esmurros, socos e pontapés que alguém dava sem parar.
Ameaças contundentes bradadas a plenos pulmões ao príncipe de Miliat ecoavam
do lado de fora. Estava ficando sem tempo. Decidiu que precisaria arriscar. Era
tudo ou nada.
A porta do quarto de Zakkar se escancarou. Escondida atrás dela, Selena
vislumbrou as costas do soldado inimigo varrendo o perímetro ao redor,
empunhando uma espada em riste, pronto para atacar. Enfurnado em uma
armadura preta, uma longa crista vermelha pendia de seu capacete pitoresco. Por
instantes, acreditou ter visto aquela armadura peculiar em algum lugar, mas não
conseguia lembrar de onde. Levado pela curiosidade, o soldado observou a cama
vazia e correu até a janela aberta.
Sem titubear, Selena inspirou profundamente.
Os pulmões se inflaram de ar e ela segurou a respiração. Selena moveu os dedos
com destreza e deles fez fluir sua magia. A porta se fechou outra vez em uma fração
de segundos. Percebendo o movimento, o soldado virou-se e encarou uma guardiã
enfurecida, ainda de camisola e cabelos despenteados, prestes a acertar um golpe
em sua cabeça. A esquiva do inimigo armadurado não estava em seus planos e
Selena viu-se desferindo um, dois, três, quatro socos enquanto ele desviava de todos
com agilidade.
Levantando a espada, foi a vez de ele revidar. Desferiu golpes mortais e
desesperados a esmo. Selena conseguia escapar da lâmina, cortando os ares com
ruídos abafados, por questões de milímetros e frações de segundos, esgueirando-se
e pulando pelo quarto como podia, derrubando móveis e quebrando o espelho.
Essa não podia ser uma briga tão difícil. Não era um soldado tão preparado assim.
Outra vez, sua magia se manifestou.
Reluzindo pelo quarto, uma serpente de águas elementais emanou de seus dedos
e enroscou-se sobre a armadura negra do soldado, cobrindo cada centímetro de seu
corpo, como uma víbora prestes a devorar sua presa. Apertando-o vigorosamente,
ela movia os dedos, fazendo a cobra elemental enrolar-se mais e mais. Estalos
tonitruantes ressoavam pelo quarto. Cada osso era esmagado no aperto que se
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intensificava. Tomando o cuidado de cobrir a boca e evitar gritos desesperados,
denunciando sua posição, o rosto do guerreiro se contorcia de dor. Convicta de
que já não havia ossos para quebrar, Selena fez a serpente elemental desaparecer e
largou o soldado, que caiu como pastel amassado sobre o assoalho.
Uma ideia se formava em sua cabeça. Precisava agir rápido porque sabia que
outros inimigos viriam atrás do primogênito do rei, já que ele não estava de joelhos,
pronto para o abate, diante de seus algozes. Assegurou-se de que a porta ainda
estava trancada e lançou uma magia para mantê-la bloqueada. Conferiu a passagem
secreta do quarto e torcia para que sua outra magia na varanda ainda estivesse
impedindo os soldados inimigos de chegarem até ali. Certa de que nada a
atrapalharia, puxou alguns lençóis do armário de Zakkar, tantos quanto conseguiu.
Enrolou o soldado dos pés até o pescoço, como se estivesse colocando aquele
corpo moribundo para dormir. Ergueu-o do chão com alguma dificuldade e o pôs
sobre a cama. Curiosa em saber se suas expectativas eram verdadeiras ou não,
puxou o capacete para descobrir se era um soldado da realeza traindo seu próprio
rei ou algum infiltrado de um exército inimigo e desleal. Abaixo do pesado elmo
negro, um rosto moreno e careca se revelou. O nariz era bulboso e variadas marcas
do que pareciam cortes superficiais de lâminas se revelaram. Não era alguém que já
tivera visto em Miliat. Contudo, algo chamou sua atenção. Abaixo do pescoço,
próximo à nuca, uma marca redonda, rústica e grosseira, como um feitiço de
runasmagiam, mas feito às pressas. Era de um vermelho vivo e reluzia fracamente.
Runasmagiam demoravam pelo menos três dias para cicatrizar e se assemelhava à
uma marcação feita à ferro quente, como os que usam para assinalar bois e vacas.
No entanto, ela não sabia distinguir de onde era aquele sinal. Não pertencia a
nenhum reino vizinho. Não era a insígnia de qualquer reinado em Aladar.
Recostando a cabeça do soldado desconhecido sobre a cama como quem acaba
de embalar um bebê, Selena correu até a porta da entrada secreta. Moveu os dedos
acima da cabeça, fazendo um rodamoinho no ar. Uma chama brotou das palmas
de suas mãos e ela foi moldando e moldando até que assumiu o formato de uma
pequena esfera. Continuou aumentando a bola de fogo até ela ficar pesada de mais
para suportar. A esfera incandescente caiu sobre o chão, chamuscando o assoalho
de madeira, sem parar de ganhar volume e tamanho. Atingiu o teto em fração de
segundos e as vigas começaram a estralar. Selena trancou a portinhola da passagem
secreta e tomou distância por uma das galerias estreitas, com precaução.
Vozes distintas surgiram no quarto. Quatro, cinco, talvez seis timbres diferentes.
Exaltados e ameaçadores. Certa de que estava a pelo menos cinco dormitórios de
distância do quarto de Zakkar, pressionou o polegar contra o dedo médio e
instintivamente tapou os ouvidos.
Um estalar de dedos foi suficiente.
377
Uma explosão de proporções estratosféricas pode ser ouvida até por quem lutava
pela vida nas ruas além dos muros do castelo. As estruturas do palácio tremeram
com o impacto do estouro e, onde estava, Selena sentiu um bocado de poeira cair
sobre a sua cabeça. Aguardou um pouco mais e tirou os dedos dos ouvidos. Torcia
para que a bola de fogo elemental tivesse estourado antes que os demais soldados
inimigos descobrissem sobre o corpo moribundo enrolado na cama. Embora, pelas
proporções da detonação, não acreditava que alguém teria sobrevivido para contar
a história. A ideia era forjar a morte de Zakkar, causando um pequeno incêndio no
quarto. Talvez tivesse exagerado um pouco na intensidade de seu poder.
Ofegando, mas tentando manter a cabeça no lugar, fervilhando com inúmeros
questionamentos sobre a marca misteriosa no pescoço do soldado inimigo, Selena
se esforçava para manter o foco. O sono começava a afetar suas faculdades mentais.
O dia fora exaustivo e sequer conseguira pregar os olhos. O choque de que tudo
aquilo era real a atingia como um soco inesperado na boca do estômago. Através
do estreito corredor das galerias da passagem secreta, sorver o ar úmido e
impregnado com pó que se precipitava do teto baixo, era quase impossível.
Desejava que tudo aquilo fosse um terrível pesadelo e que logo acordaria para sua
vida normal. Que logo despertaria e poderia disputar corridas a cavalo com Zakkar,
aprontar alguma peça com Guilloch e jantar à mesa com Lorde Bartel e Lady Elma.
Infelizmente, a dura realidade a perturbava. Uma conspiração tomara a cidade de
assalto. Saber que jamais veria tio Bartel, assassinado diante de seus olhos, e
provavelmente Bernat, tia Elma, Tordund, Olotiel, tia Tressilda, tia Prisca, tio
Ansell, era difícil demais de aceitar. E Zakkar. Ah, Zakkar. Arrepios de temor
percorriam seu corpo ao pensar que talvez jamais fosse reencontrar Zakkar outra
vez. Que provavelmente o encontrariam durante a fuga e que o matariam sem dó,
nem piedade. Fugir pela janela talvez não fosse a melhor das ideias. Se tivesse
pensado melhor e arrumado uma forma de escondê-lo.
Os olhos se enchiam de lágrimas e, em meio ao pó cinzento e à escuridão que
cobria as galerias, Selena se via sentada sobre o piso gelado, com os cotovelos
apoiados em cima dos joelhos, segurando o próprio rosto. Soluços involuntários
escapavam de sua garganta. O choro era inevitável e angustiante e impossível conter
as lágrimas escorrendo entre seus dedos. A dura realidade que se desenhava a fez
desejar uma morte rápida.
Um ruído inesperado, seguido de um brilho incandescente fez os sentidos se
aguçarem. Os soluços cessaram, assim como as lágrimas desapareceram no mesmo
instante. Metal batendo contra metal ecoava, estrepitoso, pelas galerias e lá no final,
onde os túneis faziam uma curva e subiam em direção aos aposentos do rei, ela
vislumbrou dois soldados enfiados nas grosseiras armaduras negras, com uma longa
crista escarlate, esgueirando-se pelo caminho. Um deles carregava uma tocha na
378
mão, alumiando o caminho. Ambos, com espadas longas erguidas, na iminência de
encontrar algum fugitivo.
Os olhares dos inimigos se encontraram com os olhos marejados de Selena, no
único fio de luz que tremulava sobre as galerias úmidas. Houve um infinitésimo de
milésimo de segundo em que as reações dos três pareceram durar infindáveis
minutos de tensão. Expressões sobressaltadas, os cabelos da nuca em pé, ouvidos
aguçados, uma surpresa patente que fazia descair o maxilar em marcha lenta e
desejos antagônicos em cada lado do estreito corredor: o de vida e o de morte.
No instante do tempo em que a realidade cessou de transcorrer tão lentamente,
Selena saltou de um pulo. Esquecendo os sentimentos depressivos, o desejo de
morte logo se transformou em um ardente anseio pela vida e, muito mais, por uma
sede insaciável de justiça. Correu desabalada na direção oposta, com os pedregulhos
do corredor machucando seus pés e a cabeça batendo em pontos mais baixos pelo
caminho. Seguia sem um destino certo, sem se dar conta por onde ia. A escuridão
era sua única amiga naquele momento e desejava poder ter um pouco de sorte a
seu favor. Os ouvidos apurados no intenso breu sufocante eram invadidos com o
som metálico das armaduras dos soldados se agitando enquanto eles corriam para
alcançá-la, gritando ameaças no dialeto desconhecido do mesmo soldado que
matara no quarto. Dobrou uma esquina e depois outra. Atrás dela, mais passos
pareciam ter se juntado aos que a perseguiam em constante aceleração. Novas vozes
ecoaram de súbito e, então, teve certeza de que havia bem mais do que os dois
soldados que avistara anteriormente em seu encalço. Percebeu que precisava agir.
E se o exército inimigo estava cercando todas as entradas e saídas das passagens
secretas? Se havia homens perseguindo-a logo atrás, haveria outros nos principais
pontos de fuga. Era tolice acreditar que conseguiria escapar pelos túneis se, como
acreditava, uma conspiração se desenrolava no castelo. Quem quer que fosse, devia
ter pensado nisso por meses, por ciclos, arquitetando cada pequeno detalhe,
estudando todas as entradas e saídas, inclusive as secretas, nos poucos pontos de
fuga existentes. Teria de fazer alguma coisa e o mais depressa possível. Não sabia
que rumo estava tomando e nem se tal caminho a levaria à salvação ou perdição.
Seria arriscado outra vez, mas era necessário. Situações extremas demandavam
medidas extremas.
Ofegante e com o coração pulsando no ritmo de sua corrida, adentrara um declive
quando uma nova ideia lhe ocorreu. Os pés escorregaram em seu freio abrupto. As
vozes aterrorizantes se aproximavam e a luz bruxuleante da tocha ficava um pouco
mais viva, conforme avançavam. Selena se deu conta de que nenhum deles lançara
sequer uma magia em sua direção. Torcendo para que não houvesse nenhum
alquimestre na tropa prestes a colidir com ela, a guardiã sorveu todo ar que podia e
prendeu a respiração. Torrentes de águas elementais jorraram de suas mãos abertas
pelos corredores estreitos. Os jatos, como de quedas d’água violentas, logo
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inundaram os túneis, do chão ao teto, cobrindo cada milímetro. A intensidade das
muitas águas arremessou os soldados inimigos contra as paredes encharcadas. As
minúsculas galerias interligadas que antes serviam para uma fuga da família real,
pareciam dessa vez uma estreita piscina, imergida em um vigoroso negrume.
Mergulhada na escuridão, Selena segurou o pouco ar que ainda tinha nos
pulmões. Desesperada por oxigênio, observava somente as trevas tonitruantes ao
seu redor, com uma pressão terrível sobre os ouvidos. Na esperança de que seu
poder tivesse matado seus perseguidores, ela lançou uma magia em uma parede
antes que os pulmões estourassem e morresse afogada ali mesmo.
As paredes se romperam como numa explosão atroadora e as águas mágicas
jorraram para fora com violência. Selena foi arremessada do interior dos túneis
secretos como se cuspida de um vertiginoso tobogã. Sorveu o ar com força e
arrastou-se pelo chão de pedra. Os pulmões latejaram quando se colocou de pé. A
cabeça girou e, por um momento, achou que desmaiaria. Ensopada, coberta de
arranhões nos braços, pernas e no rosto, mas com o coração palpitando pela
adrenalina, ainda se acostumava à claridade pungente do lado de fora, quando se
deu conta de onde havia saído. O piso de mármore polido do vestíbulo circular de
acesso aos aposentos do segundo andar do castelo refletia os poucos archotes que
ainda permaneciam acesos, presos à parede. Um imenso rombo na parede à
esquerda dava vista para a cidade queimando e uma longa coluna de fumaça preta
subia em direção aos céus. Uma esplendorosa lua cheia reinava sobre a abóbada
celeste livre de nuvens. Com águas na altura das canelas, escorrendo pelas escadarias
e pelo buraco abissal na parede, viu no entorno vários guerreiros miliatenses
embrenhados em embates violentos contra os soldados inimigos. Ainda aturdida
com os últimos acontecimentos, uma dor lancinante perturbava sua cabeça.
Começava a sentir um esgotamento físico, principalmente depois de usar tantas
magias que exigiram bastante esforço. Estava ficando sem energia, até mesmo para
manter-se em pé.
Uma marcha avassaladora irradiou para além das escadarias. Acabrunhada, Selena
vislumbrou legiões de soldados de armaduras negras avançando em direção ao salão
do segundo andar. Carregavam espadas, lanças e tochas, vindo como uma força
demoníaca para extirpar qualquer viva alma que estivesse pela frente. Observou as
pilastras mais próximas das escadarias, sentindo o cansaço pesar em suas vistas. A
que estava perto do rombo na parede fora afetada gravemente pelo que quer que
tivesse feito aquele buraco enorme. A outra ainda estava intacta. Entreviu os
soldados de Miliat ao seu redor resistindo com suas últimas forças ao avanço dos
inimigos, perdendo a batalha e também suas vidas. O derradeiro arroubo de energia
que ainda restava foi suficiente para fazer a última coisa que acreditou ser necessária
para conter o avanço inimigo e evitar mais mortes.
380
Um clarão resplandeceu pelo teto alto, incomodando as retinas de todos os
guerreiros ao redor. Espadas caíram no chão, lanças se estatelaram sobre o piso de
mármore e os soldados inimigos desabaram com a luz intensa, atropelando uns aos
outros em sua marcha. Como um balaço chispante atirado por um navio de guerra,
uma onda colossal e fragorosa ribombou sobre os vários tímpanos ao redor.
Voando das mãos de Selena, a magia cruzou o salão circular e atingiu em cheio a
única pilastra intacta.
Os pés ainda molhados com os resquícios da água elemental que escorria do
rombo da passagem secreta, Selena sentiu o chão tremer. Tombou para trás de
repente ao som retumbante de concreto e pedras desmoronando. Atarantada, com
o cocuruto latejando pela queda brusca, entreviu soldados, espadas, portas, tijolos,
lanças, pedaços de mármore e forros do teto despencando e deslizando, juntamente
com seu corpo. O vestíbulo inteiro desabava como uma avalanche em direção ao
primeiro andar.
Escorregando pelo mármore molhado, Selena tentava se agarrar a alguma coisa,
embora soubesse que seria em vão: todo o segundo andar se precipitava rumo ao
átrio contíguo ao Salão do Trono. Blocos de concreto pendiam do teto e
esmagavam vários soldados inimigos escorregando durante a queda, acertando
alguns poucos guerreiros de Miliat também. Os gritos que precediam as mortes
eram angustiantes e se juntavam ao coro de ruídos estrondosos das pedras
desabando por todos os lados. As pesadas pilastras tombavam sobre as escadarias
e passavam por cima dos exércitos de preto como um rolo compressor.
Então, parou de escorregar.
Imaginava se estaria morta. Se estava, que sensação esquisita era ter morrido.
Estirada em algum lugar indefinido, as articulações doíam e a cabeça latejava. Nem
em seus piores dias de menstruação sentira tantas dores. Havia um gosto estranho
na boca e tinha quase certeza que era sangue. O estômago roncou de repente. Será
que havia fome após a morte? Preferia não abrir os olhos e acreditar que estava
morta ou de que tudo o que acabara de acontecer tratava-se apenas de um sonho
ruim. A barriga roncou alto e vozes histéricas fazendo coro ao som de espadas
tilintando com violência invadiram seus ouvidos. Não havia morrido e, sim, era
tudo real.
Uma mão forte surpreendeu-a de chofre. Os olhos ainda fechados, com cada
centímetro de seu corpo implorando por cama e remédios contra dor, Selena se
entregou ao esforço repentino de alguém tentando fazê-la ficar em pé. Torcia que
fosse algum aliado, pois, se fosse um soldado inimigo, morreria ali mesmo e sem
muita resistência. As últimas energias que sobraram para lutar foram exauridas
quando lançou as bombas no vestíbulo do segundo andar.
— Selena! Selena! Fique em pé, garota!
381
A voz era trovejante e seria ameaçadora se não a conhecesse. Era o tom grave e
com uma nota de rouquidão de alguém que conhecia — e que entrementes, amava
irritar até ele perder a paciência e sair resmungando seus costumeiros palavrões.
Uma cavalar injeção de ânimo ao ouvir aquela voz conhecida tomou-a de tal forma
que sentiu as energias se renovarem. Ao abrir os olhos, Alto Soberorn a encarava
com sua nímia expressão contrariada e um misto de surpresa e desconfiança. O
rosto encovado, de proeminente nariz adunco, do antigo general de Miliat e melhor
espadachim de Aladar de todos os tempos, estava coberto por fuligem, poeira e
gotículas de sangue misturadas e a barba, que costumava ser acaju em dias normais,
estava terrivelmente cinzenta. A mão esquerda sustentava Superiora, a espada que
jamais vira uma derrota em duelos oficiais — segundo ele próprio, embora
houvesse lá suas controvérsias.
— Foi você que explodiu o segundo andar?
— Todo, não... — respondeu Selena, abrindo um sorriso cansado — Só o piso
aqui de cima...
— Onde está Zakkar? — perguntou Soberorn, olhando ao redor.
Um alerta ligou em Selena que, por um breve instante, havia esquecido
completamente que o reino estava sob ataque. Embora achasse muito difícil que o
velho Soberorn fosse capaz de trair o Trono dos Ayarza — por trás de toda sua
pompa de guerreiro e machão, ela sabia como ele era dócil como uma criancinha
— não podia deixar de lado que uma conspiração transcorria em Miliat e uma
traição sem precedentes permitira a entrada de tropas inimigas, alcançando o rei e
seus aliados. Até que se provasse o contrário, qualquer um era suspeito em
potencial. Mesmo que sua intuição gritasse para confiar em Alto Soberorn, Selena
preferiu dar vazão à dúvida e não contar a verdade.
— Eu não sei, Sob — mentiu Selena. — Consegui fugir do meu quarto e acabei
parando aqui...
Alto Soberorn encarou-a com uma expressão de desconfiança. Ela esquecera
como ele adorava testar alguém caso duvidasse de sua sinceridade. Mas a situação
extrema em que estavam exigia uma medida nada agradável. Não poderia falar-lhe
que ajudou Zakkar a escapar e que cobriu seus rastros até descobrir se poderia ou
não confiar nele.
— Onde estão os demais? Tia Elma, tio Bartel...
Um profundo pesar ocupou o rosto carregado de rugas de Alto Soberorn. Os
olhos se fecharam com tamanha tristeza e um esgar angustiante de dor dominou
seu rosto flácido, como alguém que acabara de perder um grande amigo — o que
não deixava de ser verdade, os dois eram parceiros de pitos e prosas de longa data.
— Sinto dizer-lhe que não pude evitar que ceifassem a vida do meu velho amigo...
A expressão do velho espadachim fez uma lágrima escorrer dos olhos de Selena.
382
— Fui informado de que nossa nobre rainha foi cruelmente assassinada por esses
porcos desalmados enquanto tentava fugir.
— E tio Bernat?
— Lorde Bernat e Lorde Guilloch estão na Sala do Trono — crocitou Alto
Soberorn; o ânimo em sua voz fez a expressão de tristeza mudar de súbito. —
Apesar das baixas que tivemos, meu nobre amigo Bernat conseguiu deter as mortes
e conter o avanço dos exércitos inimigos. Ele os atraiu para uma armadilha que fez
na Sala do Trono. Bernat está ganhando tempo para nós. Pediu-me que fosse
imediatamente ajudar alguns soldados do reino que ainda resistem na ala sul contra
um ataque de ogros. A maioria de nossas tropas foi desbaratada nas ruas da capital
por essas malditas criaturas e os que sobraram estão sob as amuradas abaladas do
castelo. Vá até lá ajudar os dois enquanto vou derrotar uns monstros que ainda nos
atormentam!
Sem sequer esperar por uma resposta da guardiã, Alto Soberorn virou-se e partiu
por entre os escombros em busca de ajuda.
Atordoada com tantas informações cuspidas de uma vez, Selena moveu-se em
direção ao Salão do Trono. Arregalando os olhos no trajeto, se deu conta do
tamanho do estrago que sua explosão fizera. Não tinha percebido, até aquele
momento, que quase implodira parte da ala norte do castelo. Entre centenas de
corpos estirados no chão — a maioria do exército inimigo — blocos de concreto
se amontoavam junto a pesadas vigas de madeira do teto partidas ao meio, as
pilastras do segundo andar espatifadas contra as paredes do primeiro piso e montes
de pedaços de mármore espalhados a esmo. Um aglomerado caótico de entulho e
corpos moribundos, regado pela água elemental que não parava de resvalar do
buraco no túnel e com uma nuvem cinzenta de poeira pairando no ar. No entorno
daquela visão pitoresca, soldados remanescentes de Miliat terminavam de
exterminar os últimos inimigos ainda insistindo em lutar.
O caos imperava no Salão do Trono. Corpos jaziam sobre o piso manchado de
sangue, em pilhas indistintas de soldados inimigos e aliados. Espadas, escudos,
lanças, arcos e flechas se espalhavam por todo perímetro, desprendidos de seus
donos mortos espalhados pelo lugar. As cortinas de veludo das janelas foram
consumidas pelo fogo e as vidraças eram meros buracos cobertos por estilhaços de
vidro. Grandes marcas esturricadas de uma batalha mágica se desenhavam sobre as
paredes. A flâmula colossal com a Fênix Indomável do brasão da Intrépida Miliat
queimava e o Trono de Jaspe estava rachado ao meio. A saída principal do Salão
do Trono fora bloqueada por uma muralha de corpos e uma magia parecia uni-los,
como uma argamassa em um muro de tijolos. Alguns guerreiros inimigos lançavamse
pelas janelas e conseguiam adentrar.
No centro do Salão, vislumbrou uma imagem que jamais imaginaria em toda sua
vida. Guilloch empunhava uma espada e um escudo e, ainda com parte do pijama
383
listrado com buracos e marcas de queimado, continha o avanço das tropas inimigas,
desferindo golpes mortais, usando a força bruta como ela jamais vira.
— Selena! Rápido!
Virando-se para atender a voz desesperada que a chamava, ela avistou tio Bernat
um pouco à frente do trono partido ao meio. Uma aura fluorescente emanava de
sua mão esquerda e se espalhava em direção ao portão principal. Era ele quem
sustentava a muralha de corpos, pressionada por uma força externa, prestes a se
romper. Na mão direita do guardião, os dedos se agarravam a uma espada. Se sua
energia fraquejasse e o poder cedesse, estaria preparado para uma batalha corporal.
Uma ideia ocorreu à guardiã naquele instante.
— Quando eu contar três, — Selena parou ao lado de Bernat, prestes a fraquejar
— você desfaz sua magia.
— Eu não posso... — falou Bernat, a voz falhando. Havia nele intensas marcas
das batalhas que teve de enfrentar. — Soberorn ainda não chegou com as tropas...
— Confie em mim! — pediu Selena, balançando a cabeça.
Relutante, Bernat não resistiu e abaixou a mão esquerda. A muralha de corpos
explodiu pelos ares, com uma legião de novos inimigos invadindo o salão com força
descomunal e avassaladora. Uma labareda extraordinária irradiou das mãos em
concha de Selena e se precipitou em uma espiral torrencial de chamas vermelhas na
direção dos portões de entrada no momento em que erguiam espadas e lanças para
desferir golpes mortais contra eles. Guilloch pulou para trás, fugindo do ardor do
fogaréu e Bernat gargalhava, satisfeito. Gritos de sofrimento ecoaram pelo salão e
o cheiro de carne derretida exalou pelo ar. Bernat e Guilloch tratavam de matar os
remanescentes que conseguiam escapar do poder das chamas elementais.
Alquimestres do reino surgiram e se posicionaram ao lado de Selena para conter
os soldados com chamas elementais. Alto Soberorn apareceu com a cavalaria e
empunhava sua espada na dianteira das tropas. Inimigos conseguiam escapar das
chamas e saltar pelas janelas, mas davam de cara com os exércitos destemidos
comandados pelo velho espadachim e embrenhavam-se em verdadeiros embates
sangrentos.
Selena deixou a magia de lado e arrebatou para si uma espada perdida encravada
no peito de um guerreiro estirado. Brandiu sua lâmina duas vezes e acertou a
carótida de um inimigo. Avançando para onde Bernat e Guilloch lutavam, deixou
pelo menos dois soldados mortos pelo caminho.
— Alquimestres, aqui!
Bernat terminava de limpar o sangue de sua espada quando berrou para um grupo
de soldados alquimestres que adentrou o Salão para que ajudassem Guilloch na
batalha. O guardião desbaratava pelotões com uma força assombrosa e uma
coragem inesperada e surpreendente. Agarrando Selena pelos ombros, o irmão de
Bartel arrastou-a até a parte de trás do que sobrara do Trono de Jaspe.
384
— Você está bem? — Bernat a esquadrinhava dos pés à cabeça. Parecia assustado
com a quantidade de arranhões, hematomas, sangue e poeira que cobria seu corpo.
— Na medida do possível... — respondeu Selena, ouvindo os embates ficando
cada vez mais acirrados no salão.
— E Zakkar? — O rosto de Bernat se transformou; os olhos vidraram nos dela
e o desespero por notícias de seu sobrinho era notório — Você viu Zakkar?
Selena respirou fundo e tentou não piscar os olhos.
— Não. — Selena mentiu novamente e, desta vez, a resposta cortou-lhe o
coração. A tentação de falar a verdade só não era maior do que a desconfiança que
perdurava. — Acordei com as primeiras explosões. Quando abri a porta, vi o quarto
de Zakkar em chamas e fugi pelas passagens secretas.
Bernat emudeceu. Os olhos continuavam fixos nos dela, movendo as
sobrancelhas como se absorvesse cada palavra. O olhar inquisidor do irmão de
Bartel a incomodou profundamente e suas feições indicavam que ele não parecia
nada convencido com a história que acabara de narrar. Tentou mentir de modo
convincente, sem titubear, pronunciando cada palavra de forma cristalina e com os
olhos bem abertos.
— Certo — pronunciou Bernat, estarrecido — Fomos traídos, Selena. Traídos,
invadidos e subjugados por um reino que considerava como irmão e parceiro de
nossa nação. Meu irmão jaz no saguão de entrada do palácio com uma espada
cravada no peito. Minha cunhada assassinada ao tentar fugir do dormitório. Até o
momento não encontraram seu corpo. E Zakkar. Ah, Zakkar! Meu amado
sobrinho, carbonizado em seu próprio quarto. E eu... eu... não pude fazer nada.
O irmão de Bartel abaixou a cabeça em um sinal de luto. Com o polegar e o
indicador, esfregava os olhos e emitia um som gutural que Selena achou ser um
soluço consternado pela dor da perda de seus familiares. O soluço ficou mais alto
e ele se prostrava sobre os joelhos cada vez mais. Acabrunhado em um sofrimento
incontido, Selena percebeu, entre os arranhões, queimaduras e sangue seco sobre a
pele de Bernat, uma marca diferente abaixo de seu pescoço. Uma marcação como
de ferro quente. Vermelha. Um sinal marcado sobre a pele que não vinha de
qualquer batalha. Uma marca mágica. O mesmo estigma que vira horas antes no
soldado que invadira o quarto de Zakkar.
O espanto foi tamanho que deixou escapar um grunhido. Cobriu a boca com as
mãos, mas o escarcéu de espadas e escudos se digladiando e rajadas de fogo
elemental para além do trono rachado abafou o ruído. O que vira na noite anterior,
o comportamento esquisito dos soldados, seus trejeitos nada comuns e a marcha
silenciosa de inimigos em direção às principais entradas do castelo sem qualquer
resistência dos guardas, não era mero acaso. Não imaginava que uma traição tão
asquerosa, desumana e sanguinolenta viria justamente de Bernat, o tio Bernat, o
irmão diplomático e respeitado do rei. Mas ele com certeza não teria agido sozinho.
385
Uma ação dessa magnitude exigia a participação de mais conspiradores. Se antes
desejava ardentemente ficar em Miliat e descobrir quem eram os traidores da coroa,
naquele momento sua motivação era maior e com razão. Iria até as últimas
consequências. Permaneceria na capital para investigar até descobrir quem eram os
conspiradores e provar que Bernat era o grande vilão a ser combatido.
— Selena? Vamos?
A voz enérgica e irritante de Joline ribombou em seus ouvidos, desembaraçando
o emaranhado de lembranças que ocupava sua mente e trazendo-a de volta à dura
realidade. A irmã mais nova era a única no quarto, as demais já haviam saído.
Somente ela e Selena restavam no recinto. Pior do que seus piores e mais sórdidos
pesadelos, encarou a si mesma com o rosto maquiado, o cabelo arrumado e o
vestido plenamente decorado. A Selena, versão cerimônia fúnebre, refletia no
espelho e estava pronta para ser exibida em público.
O sol a pino queimava os cocurutos das multidões presentes diante da tribuna
montada do que sobrara dos portões de entrada do palácio real. O povo miliatense
— ou o que restara dele — viera em peso para um anúncio extraordinário solicitado
pelo remanescente herdeiro do Trono dos Ayarza. Cidadãos dos condados de
Canfrat, Athelsírlia, Beorlonar e até do outro lado do país, como Namit e Gendosir,
estavam presentes. Ao redor deles, as construções arruinadas pela invasão à capital
se apresentavam de um jeito medonho. Telhados destruídos, muros derrubados,
casas e edifícios consumidos pelo fogo. Uma visão de terra arrasada, arrancando a
esperança de qualquer um. Elfos, anões, mestres, alquimestres, não-mágicos,
duendes e até centauros que viviam no limiar da Floresta Demoníaca se
acotovelavam próximos ao palanque. Eram artesãos, comerciantes, pescadores,
ferreiros, marceneiros, pintores, bardos, andarilhos, músicos, cozinheiros,
agricultores: pessoas simples que perderam tanto ou que vinham de todas as partes
do reino para prestar solidariedade e ouvir a resposta de que tanto ansiavam, após
quase dois meses daquela fatídica madrugada de sangue e cinzas.
O suor escorria das têmporas de Selena como rios selvagens. Entrementes, uma
de suas características que mais detestava e se detestava por ter puxado justamente
isso da família de seu pai. Queria poder suar como gente normal e não como uma
porca com uma cachoeira a jorrar de suas axilas. O desespero irrefreável de sua
maquiagem estar derretendo naquele sol de meio-dia perturbava sua mente.
Milhares de facetas impacientes sob um calor de rachar miravam o centro da
tribuna, contemplando um púlpito improvisado, aguardando o único guardião que
ainda não havia dado as caras. Os demais estavam presentes. Os Greenham do Sul
vieram tão logo souberam do ataque surpresa, assim como seus primos Vycard de
Namit e Braeagor. As irmãs de Selena estavam postadas elegantemente, cada uma
mais enfeitada que a outra — e particularmente ridículas, exibindo seus vestidos
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emperiquitados de forma exagerada, quando muitos miliatenses da capital perderam
tudo o que tinham. Aguardavam impacientes sem jamais perder a pose,
acompanhadas dos maridos e filhos. Vislumbrando a fileira de guardiões
empertigados, Selena notou duas coisas: tio Golmir também estava presente e
abatido de uma forma sem igual, como nunca antes vira. Acostumara-se a vê-lo
sempre alegre, bebendo e contando histórias, na companhia de amigos. Essa
felicidade sempre o fazia parecer mais novo do que realmente era. Naquele
momento, contudo, o peso dos ciclos fazia jus diante da aparência derrotada que
exibia. Além da ausência incômoda de Bernat, a segunda coisa que notara era a falta
de sua própria mãe.
— Meredith! — Selena sibilou para a irmã ao seu lado — Meredith!
O cunhado deu com o cotovelo no braço da esposa.
— Oi, irritação da minha vida. — Meredith sequer virou o rosto; respondeu pelo
canto da boca, com os olhos vidrados na multidão à sua frente — O que você quer
agora?
— Cadê nossa mãe?
— Você é louca, por acaso? Mamãe não aguenta mais viagens longas. E, imagine
só, se ela estaria derretendo debaixo desse sol de rachar?
Uma trombeta ressoou e as muitas cabeças no entorno, da tribuna à multidão
aglomerada, cessaram os burburinhos e cochichos. Bernat surgira no extremo do
palanque. As vestes reais eram impecáveis e os detalhes dourados reluziam com a
incidência dos raios solares. Contudo, no rosto abatido sustentava uma
consternação que quase convenceu Selena, mas que certamente tocava os corações
de todos ao redor. Atravessou a tribuna numa marcha elegante e imponente, ainda
que ele estivesse cabisbaixo e com ombros decaídos. Caindo em lágrimas, entregouse
em um abraço apertado em Golmir, no final da fila. Julien soluçou alto. O marido
de Joline teve que amparar a esposa porque seus joelhos fraquejaram e ela quase
deixou a filha cair no chão. Selena revirou os olhos, torcendo para que essa
presepada acabasse logo de uma vez.
Bernat deixou o abraço do tio e caminhou em direção ao púlpito no centro.
Quando ele se posicionou para falar, os únicos que não choravam na fila de Ayarza,
Vycard e Greenham eram Selena, por motivos óbvios e Guilloch, impassível,
estufando o peito e arqueando os braços, tentando exibir os músculos.
— Valorosos e intrépidos miliatenses de todos os condados de nosso amado
reino. — Bernat impostava a voz, tentando fazer sua mensagem atingir as multidões
ou parecer majestoso, Selena não sabia muito bem. — É sabido de vocês a respeito
do grande infortúnio que atingiu nossa amada terra, há quase dois meses. Naquela
fatídica madrugada, as vidas de meu irmão, minha cunhada e meu sobrinho
sucumbiram ante à crueldade de um inimigo inesperado. Uma força vultuosa
dominou nossa venerada capital, sitiando o palácio, incendiando e pilhando nossa
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cidade, esmagando nossos amigos e irmãos sem um pingo de misericórdia.
Confesso que fui, de forma exacerbada, cobrado por respostas e por uma postura
diante da desgraça que nos alcançou. Hoje, estou preparado. Passado o luto, sintome
pronto para comunicar-lhes que descobri quem é o grande responsável por
tamanha traição!
Bernat fez um gesto e dois soldados trouxeram uma capa vermelha com
ombreiras brancas e felpudas e a coroa real.
— No entanto, antes de revelar-lhes o nome de nosso algoz, mesmo em meio ao
caos, não podemos deixar de condecorar atitudes grandiosas que permitiram que,
aqueles que estavam no palácio naquele dia, pudessem sobreviver à tal chacina
impiedosa. Há quem tenha atitudes nobres e demonstre sua coragem para encarar
a tirania covarde de um exército desonrado. Quero chamar para se colocar ao meu
lado: meu filho do coração, Guilloch Ayarza.
A um aceno de Bernat, palmas irromperam da multidão ao passo que Guilloch
dava três passos adiante, ainda de pulmões inflados, parando bem ao lado do irmão
de Bartel.
— O melhor espadachim do reino que, como sempre, fez jus ao nobre título de
Alto, a ele conferido ciclos atrás: Soberorn.
Soberorn veio mancando, agarrado à sua espada como se sua vida dependesse
disso e enxugando as lágrimas que escorriam de seus olhos.
— À bravura e lealdade incondicional desta que, para mim, foi uma grata surpresa
ao demonstrar tamanha coragem e ousadia: Selena Vycard!
Arregalando os olhos, Selena vislumbrou várias cabeças virando para encará-la.
As maçãs do rosto aqueceram instantaneamente. O rubor em sua face devia ser
visível à quilômetros de distância. O medo de estragar o vestido ou mesmo cair ao
tentar andar com tantas anáguas empilhadas sobre as pernas quase a fizeram
permanecer onde estava. Impulsionada por Meredith, foi obrigada a dar três passos
para frente, sem ainda saber muito bem como reagir diante dos aplausos e do
anúncio surpresa.
— Quero chamar também meu nobre tio Golmir. — Aplausos abafaram por um
momento sua fala, enquanto o respeitado ex-Guardião acenava para as multidões,
parando ao lado do sobrinho. — Meu tio Golmir, que deixou as terras de Gradia e
ajudou-me a identificar os traidores do reino.
Os aplausos ficaram mais efusivos após a última fala de Bernat e, então, ele pediu
silêncio.
— Contudo, o traidor foi revelado. Após dois meses de intensa investigação,
encontramos o líder dessa conspiração tentando fugir pela floresta e ele, assim
como muitos soldados inimigos que capturamos, confessaram que estavam a
mando de Lorde Belbert, em uma investida para devastar nossa amada terra, por
uma vingança que atravessava gerações.
388
Os ânimos do povo se exaltaram. As pessoas gritaram enraivecidas, berrando
palavrões e maldições contra Neergúria. Entre os olhares assustados e surpresos
dos Vycard e Greenham, Bernat inflamou seu discurso de ódio, incitando as
multidões encolerizadas.
— NEERGÚRIA É A GRANDE TRAIDORA DE NOSSO REINO! OS
CULPADOS PELA DESGRAÇA QUE SE ABATEU SOBRE MILIAT!
Selena encarou Golmir por instinto. O olhar do ex-Guardião de Aladar encontrou
o dela: ceticismo misturado a um choque repentino com a notícia habitava seu
rosto. Ela sabia o que Bernat tentava fazer. Instigava o povo de Miliat contra o
reino ao norte por uma velha rixa de eras e que, há muitos ciclos, deixara de existir.
Um plano para desviar a atenção do verdadeiro vilão nessa história funesta. Queria
poder contar a verdade e ter alguém em quem pudesse confiar, mas as últimas
pessoas dignas de sua lealdade sucumbiram ao ataque surpresa.
Trombetas ressoaram novamente: os pedidos por silêncio de Bernat não faziam
mais efeito. Os guardas com a capa vermelha depositaram-na sobre os ombros do
irmão de Bartel e, em seguida, a coroa foi encaixada em sua cabeça.
— A partir de hoje, como único sucessor vivo e herdeiro direto do trono, uma
vez que meu tio abdicou dessa herança ciclos atrás em favor de meu irmão,
abandono a posição de Primeiro-Ministro do reino e me autoproclamo o Rei e
Soberano sobre as longânimes terras da Intrépida Miliat!
Salvas de palmas ecoaram e bandeiras flamulando a Fênix Indomável foram
hasteadas em pontos estratégicos no entorno das multidões.
— Anuncio também Guilloch — Bernat levantou a mão de seu afilhado em riste
— como o novo Guardião de Aladar. Provou que sua valentia indômita é digna de
tal recompensa e que está pronto para defender nossas terras de quaisquer perigos
que possam ameaçar a paz e o equilíbrio das nações. Juntos, trabalharemos firmes
para reconquistar a glória e imponência de nosso reino, defender a honra de nossos
povos e suas gerações e recuperar a lendária Vingança de Aladar, a espada de meu
pai, roubada de nossas terras por esses malditos traidores.
Outras palmas e fogos explodiram nos céus sem nuvens. O coração de Selena
doeu. O maior sonho de Zakkar, uma aspiração que perseguiu por tantos ciclos,
dedicou-se com tanto esmero e afinco, entregue a um incompetente imbecil que
mal conseguia lutar. Não sabia se Zakkar sobrevivera à fuga, uma ponta de
esperança em seu coração teimava em achar que sim, mas, se estivesse vivo, seria
uma ofensa contra sua memória e ao tempo e esforço que tanto dedicou para
assumir esse posto.
— E como último anúncio, comunico meu casamento oficial.
Um grande suspiro de surpresa reboou pelos ares. Ninguém arriscou falar nada,
na expectativa de que ele declarasse quem era a dita cuja e quando este casamento
aconteceria o mais rápido possível. As fofocas sobre as motivações do antigo
389
Primeiro-Ministro de Miliat nunca ter casado renderiam uma bela trilogia literária
se fossem escritas.
— Após tantos ciclos e diante de tal infortúnio, descobri que minha vida precisa
de um sentido que somente o casamento pode consolidar. Como seu novo rei, não
os deixarei órfãos de uma rainha. Assim que as cerimônias do Ano da Elegibilidade
passarem, celebraremos juntos meu matrimônio com alguém que provou sua
lealdade à Casa dos Ayarza: Selena Vycard!
Segundos de silêncio se seguiram em que os olhares ao seu redor se viraram outra
vez para ela, antes que as palmas calorosas irradiassem novamente. A perplexidade
dominou os rostos dos Vycard e Greenham sobre a tribuna, incluindo o de Selena,
surpreendida com uma notícia tão espantosa quanto perturbadora.
390
Capítulo Vinte e Oito
Inclemência
A cidade portuária de Namit ia surgindo ao pé da colina. Com a lua minguante
pairando sobre o negrume da madrugada que cobria os céus, as Águas de Crispoles
vistas dali eram serenas e assim seguiam por toda imensidão do oceano, numa
infindável calmaria, até que o marasmo de suas ondas remotas tocava as nuvens de
tons purpúreos no longínquo horizonte. Majestosa como sempre, do jeito que
lembrava, a cidade era um reduto de construções antigas de tamanhos e proporções
variadas, pontilhada por uma centena de luminares incandescentes, como um
colossal organismo vivo. Dizia-se que Namit nunca parava, o que de fato era
verdade em virtude de seu suntuoso porto. Reformado havia poucos ciclos para se
tornar o maior dos Cinco Continentes, abastecia toda Aladar, abrigando dezenas
de galeões, fragatas, corvetas e caravelas. Mesmo sendo o mais extenso, as filas de
embarcações para atracarem sobre os terminais e liberarem suas cargas eram
intermináveis. Sobre as madeiras negras das docas do porto, o movimento era
constante. Não importava a hora do dia, capitães e marujos estavam sempre
correndo de um lado a outro vendendo suas mercadorias. Os galeões e as fragatas
tinham destino certo. Os maiores navios a aportarem descarregavam fardos de
tecidos finos, ouro, joias, madeiras especiais e armamentos pesados — a maioria
vinda de Vaelfar, Tulich, Aralyart e Sananzaria. As corvetas, juncos e escunas
chegavam abarrotadas de cereais e especiarias, além de coisas exóticas trazidas de
outros continentes. Ao longo dos bares, tavernas e hotéis do entorno, vendedores
e ambulantes comercializavam de tudo o que se podia imaginar: desde frutas e
peixes quase frescos a badulaques, ervas de fumo e artesanato excêntrico. Não era
tão difícil passar despercebido em meio aos tipos esdrúxulos e estirpes abissais que
ocupavam as ruas e adjacências do porto.
O desejo insaciável por vingança fez Zakkar finalmente chegar ao local que tanto
ansiava. A cada dia que passava, embrenhado na densa floresta hostil, a ambição
por encontrar os algozes que derrubaram a dinastia dos Ayarza e assassinaram sua
família crescia exponencialmente. Cavalgara por muitas noites entre a mata
agressiva e atroadora, sem ter a certeza se estava no rumo certo. Não tinha bússola
e tampouco conseguia enxergar a lua e as constelações no céu para poder se guiar.
391
A cada vez que erguia a cabeça, assentado sobre o dorso de um mustangueneeguriano
malhado, as únicas coisas diante de seus olhos cansados eram as copas
traiçoeiras de ciprestes e pinus. Os galhos retorcidos como verdadeiras garras
infernais se emaranhavam lá no topo, tornando-se uma intrincada teia de madeira,
cheia de veios e incontáveis vertentes que se espalhavam por metros, talvez
quilômetros, impedindo que qualquer nesga de luz penetrasse por entre suas folhas.
Conseguia ter uma noção do dia ou da noite pelas variações de cor da cerração que
permeava os ares úmidos sobre a mata densa. Imaginava que em algum ponto, a
luz do sol estaria invadindo a redoma enredada da vegetação e produzindo uma
mudança nas nuances da intensa neblina. Perdera a conta de quantos dias vira a
bruma cinzenta que castigava seus olhos mudar de um tom chumbo quase opaco
para uma coisa entre o alaranjado e o vermelho. Contou nos primeiros dias a
quantidade de mudanças de cor, mas com o passar do tempo, não conseguia ter
certeza mais.
Os pães acabaram quatro dias após obliterar os soldados inimigos que encontrou
na floresta. Arrependia-se de ter devorado tantos pães de milho quando desceu
daquele salgueiro. Mas lembrava de quase desfalecer de fome e então chegava à
conclusão de que não havia muito a fazer. Descobriu alguns biscoitos e um pedaço
minúsculo de charque em uma das bolsas e tentou racionar o máximo que pode.
Não estava certo se encontraria uma caça ou um caçador ao longo do caminho. Se
estivesse no rumo certo, em uma linha reta pela Floresta Demoníaca, para chegar
ao outro lado de Miliat, em pouco mais de vinte dias estaria em Namit. A
expectativa de encontrar os outros inimigos do reino ardia em seu peito. E, ainda
que isso não fosse possível, com as informações que conseguiu, partiria rumo à
Pedra Negra para executar sua vingança. Movido unicamente pela dor, pelo ódio e
por uma obstinada intuição, viu as horas cavalgando floresta a dentro se
convertendo em dias. Cada vez que a neblina mudava de cor, um pouco de sua
esperança se esvaía e a aflição pela escassez de comida e água assolavam sua mente.
Havia duas mudanças de cor da névoa, os biscoitos tinham acabado.
Como a assolação de uma morte por inanição e o desalento de não saber se seguia
no rumo correto, o medo de se deparar com algum monstro escuso era uma
constante. Nas vezes em que ele e seu cavalo interromperam a viagem insólita para
poder dormir, os sonhos nunca eram bons. Os devaneios tonitruantes em que
embarcava todas as vezes que fechava os olhos, traziam à memória um vislumbre
do castelo em chamas. Uma espada atravessava o coração de seu pai e pilhas de
mortos se espalhavam sobre as ruas de uma cidade destruída. Um dragão vermelho
sempre surgia nesses terríveis pesadelos. Imponente, sobre o alto de suas abissais
asas espinhentas e da cor do sangue, ele emergia da Floresta Demoníaca e
sobrevoava a capital. Com um olhar diabólico, exibindo irises verticais como as de
uma serpente, arreganhava seu longo focinho e cuspia um fogo infernal em
392
assombrosas espirais. Acordava ensopado de suor, todas as noites. Vasculhava cada
canto de floresta, cada nesga entre as árvores, para além dos arbustos e rochas em
destaque, comprimindo os olhos e aguçando a vista, na iminência de que, a qualquer
momento, um poderoso dragão emergiria das trevas indissipáveis e o consumiria
com suas chamas carregadas de enxofre.
Certa feita, deparou-se com uma criatura abissal em meio às trevas dominantes
da floresta. No primeiro olhar, acreditou estar diante de uma poderosa serpente,
um basilisco talvez, em razão da gigantesca cauda cheia de escamas, que se arrastava
pelo chão. Atônito, desmontou do cavalo e tapou a boca do bicho, arrastando-o
para trás de um salgueiro. Se fosse de fato um basilisco e os detectasse ali, seriam
mortos antes que pudesse dizer “malditos traidores do reino”. Encostado no tronco
áspero, o animal ergueu o longo rabo e, em meio à penumbra que os cercava, ele
vislumbrou patas grossas e peludas como as de um bode. Confuso e atarantado, se
esforçava para manter a respiração o mais compassada e calma que conseguia.
Imaginando se não era um basilisco devorando uma cabra gigante, Zakkar ouviu
um rugido e então tudo se esclareceu. Lembrou das aulas que tivera sobre os
animais exóticos que existiam no mundo. Aprendera sobre seres bizarros dos mais
variados tipos e, de todas as criaturas que estudara ao longo da vida, esta era uma
que jamais imaginara encontrar na Floresta Demoníaca. Embora, não imaginasse
um dia ter de lutar pela própria vida, embrenhando-se na floresta mais perigosa de
Eirin. Ante as sombras fantasmagóricas da mata, uma quimera terminava de
devorar sua presa. A cabeçorra de leão projetava uma juba colossal para a terra,
sendo impossível discernir que animal sucumbira ao seu ataque mortal. As patas
traseiras de bode estavam em pé e as dianteiras abaixadas. A longa causa se mexia
preguiçosamente. Devia estar farta de comer o que quer que tivesse atacado e logo
terminaria sua refeição.
Recostado sobre o tronco do salgueiro, Zakkar se forçava a pensar seus próximos
atos. Puxava pela memória o que lembrava sobre quimeras. Eram animais gigantes,
uma mistura incongruente de leão, bode e serpente e se alimentavam de equinos.
Encarou o olhar pacífico do cavalo de imediato, temeroso pela vida do mustangueneerguriano
roubado. Se a quimera adiante estava de bucho cheio, não acreditava
que atacaria ambos para devorá-los. Embora quadrúpedes fossem seu alimento
preferido, ela terminava um jantar. E como uma luz que se acende de repente,
recordou de uma coisa que fez uma ponta de esperança brotar em seu coração.
Impetuoso, bisbilhotou de esguelha e percebeu a poderosa criatura afastando-se
de sua presa, caminhando a passos lentos e preguiçosos para dentro da mata
fechada. As lembranças de seus dias de estudo insurgiam vívidas como o nascer do
sol que não via há dias. Quimeras são a combinação esdrúxula de leão, bode e
serpente, são carnívoras e têm uma preferência pela carne de equinos. Ao se
393
sentirem saciadas, rumam para beiras de leitos de rios, onde podem dormir por até
três dias consecutivos.
Cada centímetro do corpo pulsou de um modo frenético. A adrenalina o invadia
e a morbidez daquele cenário melancólico se esvaiu de repente. Uma chance real
de conseguir escapar da floresta surgia, rumo ao destino que tanto almejava, com
uma certeza maior de que chegaria até lá, sem contar apenas com a sorte.
Pulou de detrás do salgueiro com o cavalo em seu encalço. Estirado sobre as
raízes protuberantes de um cipreste, um unicórnio cinza — ou o que restara dele
— jazia moribundo. As costelas, limpas até o último fiapo de carne arrancado,
estavam expostas de um jeito grotesco e o sangue do animal se espalhava pelo
entorno. Era uma pena contemplar um animal tão bonito e difícil de se encontrar
transformado em uma carniça abandonada. Embrenhou-se entre os arbustos,
acompanhando as pegadas de bode da quimera, que sujavam o terreno com o
sangue do unicórnio. Caminhou por algum tempo, desvencilhando-se de galhos
mais baixos, cipós e plantas hostis pelo trajeto. Puxou as rédeas do mustangue por
pelo menos três vezes, quando ele empacou para se alimentar em um matagal
qualquer no percurso e por duas, parou para acalmar o animal. Os pés vacilaram
em uma descida e escapou de sair rolando por um triz. Firmou os passos e seguiu
descendo por um solo instável. A encosta que percorria parecia não ter fim e a cada
metro arrebatado em sua constante descida, perseguindo as pegadas entre a
vegetação selvagem, arrazoava se suas memórias sobre quimeras não estariam
erradas.
Um ruído borbotoante surgiu. Água e em abundância. Deixou a cautela de lado
e pôs-se a correr morro abaixo, puxando o cavalo pela ladeira. O som de águas
correntes ficava mais audível e arbustos e folhas ásperas vencidas pelo caminho
provocavam pequenos cortes e arranhões em suas pernas e braços. Esgueirou-se
por entre árvores de caule fino e retorcido e os pés chafurdaram sobre lama.
Uma clareira se apresentava, com salgueiros e ciprestes no entorno, pedras
cobertas de musgo e mato pisado pelos animais silvestres que passavam por ali. Ao
meio, as águas cristalinas de um rio seguiam um fluxo intenso. Vislumbrando o
cenário animador com ardente expectativa, Zakkar montou sobre o dorso de seu
mustangue-neerguriano e seguiu pelos flancos do riacho.
Não tinha muita certeza quanto tempo se passou seguindo o curso das águas. Um
belo dia, o riacho dobrou de tamanho e a encosta foi ficando mais alta e menos
selvagem. As árvores aumentavam sua distância, tornando-se menos assustadoras.
Foi a primeira vez que viu a lua depois de tanto tempo. Não era das mais belas e
sequer brilhava com o esplendor a que se acostumara. Era lua nova, misturando-se
a um céu obscuro e carregado de nuvens. Não parou de cavalgar até que seus pés
tocaram areias reconfortantes e seus olhos contemplaram o mar revolto de
394
Crispoles. O rio o conduzira até a enseada de Braeagor. Dali, para Namit, era uma
viagem de dois dias e bastava seguir pelas colinas.
Encarou os luzeiros da cidade portuária com determinação e uma fome insaciável.
O estômago roncou tão alto que até o cavalo tomou um susto. A motivação para
chegar à Namit e encontrar os porcos assassinos de sua família era tão grande, que
esqueceu as dores constantes no estômago vazio e continuou firme em seu trajeto.
Mirou o semblante esgotado de seu mustangue-neerguriano e apalpou a crina negra.
O momento de se separarem havia chegado. Estava ali para matar ou morrer.
Exterminaria os conspiradores e partiria para Gradia, para erradicar Hamm Louis
Zanotchka e Salazar Stanhorne e quem mais estivesse envolvido na traição ao
Trono de Jaspe. Não sabia muito bem como o faria, mas sabia que faria. Ansiava
por colocar as mãos no pescoço dos mandantes daquele assassinato. Livrou-se das
rédeas e lançou o cabresto do cavalo no meio do mato. O animal fez um pequeno
gesto, que Zakkar entendeu como uma reverência, e sumiu pelas colinas, entre as
árvores.
À luz do luar da alta madrugada, Namit estava exatamente como gostava de se
lembrar. Construções de madeiras tortuosas e empilhadas umas nas outras,
permeadas por vários archotes à luz de velas, se espalhavam pelos vários caminhos
que levavam ao cais. Estalagens em cima de tavernas, mercados que pareciam
pousadas e pousadas que pareciam prostíbulos, peixarias à céu aberto e albergues
esdrúxulos era um pouco do que se podia ver pelos becos e vielas estreitos mais
distantes do palacete do conde. Por lá, a coisa era diferente. Edifícios elegantes e
construções faraônicas desfilavam pelas avenidas cobertas de palmeiras e ruas
espaçosas. Mas Zakkar preferia a periferia do porto do que o vilarejo no entorno
do palácio. Não havia luxo e nem requinte, mas ali, entre vias estreitas e fedorentas,
a ação acontecia de verdade. Quem estava atrás de um território sem lei, bastava
virar na Rua dos Albergues e ir até o final dela, mas se o desejo era ter emoções
indescritíveis, a Alameda da Lama era tiro e queda: lá aconteciam coisas que não
valem à pena ser escritas aqui.
Caminhando pelas ruas de lajotas, ele afanou algumas roupas a esmo e o que
sobrou de sardinhas fritas sobre uma mesa de bar. Acalmou a fome por alguns
instantes, mas aquilo era insuficiente e logo precisaria de mais. Deu uma boa olhada
em seu rosto quando passou por um espelho quebrado, pendurado na parede. A
barba cobria todo o queixo, tão malcuidada e suja como a de um mendigo. Abaixo
dos olhos, tenebrosas olheiras e sobre o rosto como um todo, tipos variados de
arranhões e cortes. Mal distinguia a si mesmo e o que se tornara. Imaginava se
alguém o reconheceria naquele estado. Mesmo duvidando que o descobririam,
cobriu o rosto com um pano. O medo de ser encontrado persistia e não estava
certo se havia ou não alguém em sua cola ou à espreita pelo porto, para matá-lo.
395
Como único herdeiro de Bartel, era uma peça valiosa para assassinos contratados
ou caçadores de recompensa.
Desceu por uma viela pútrida, cheirando a urina de cachorro e carniça, pensando
por onde começaria a procurar quando uma conversa aos berros atraiu sua atenção.
Vinha de dentro de um buraco esquisito com uma placa de taverna faltando
algumas letras. Grudou os olhos nos vidros ensebados da janela e teve de tirar dois
mendigos pedindo esmolas e uma prostituta maltrapilha oferecendo um programa
por alguns centavos de seu encalço. Passou a manga da camisa roubada nos vitrais
e quanto mais esfregava, mais sujo e gorduroso ficava. Seria impossível eliminar a
banha de carne de porco tostada ao sol impregnada. Deslizou até a porta e
vislumbrou pela fresta o ambiente quente, mal iluminado e cheirando a toucinho.
Não queria ser notado bisbilhotando a conversa dos outros e, pelo pouco que
conseguiu vislumbrar, uma roda de cinco marinheiros recém-desembarcados
botava a conversa em dia com uma outra pessoa, impossível de se ver de onde
estava. Poderia muito bem ser um garçom, o cozinheiro, ou mesmo o dono da
taverna.
— ...mas quem me dera. E vocês, o que me contam do mundo exterior? Vivo
enfurnado aqui, só sei o que me contam...
— Então, você deve saber de muita coisa, Tovu. Esse boteco vive cheio de
manhã!
— Ouço muitas histórias, a maioria da capital e tal...
— Então conta as novidades de lá. Há tempos não piso naquele lugar...
— Não, não. Eu pedi primeiro. Tenho muitas novidades que ouvi dizer, mas
primeiro vocês.
— Tá bem, tá bem. O bagulho tá frenético lá em Gradia. Só essa se...
— Em Gradia só, não. Cruisand e Paragon tá uma doideira!
— Vai deixar eu falar ou você quer contar as novidades?
— Desembucha então, princesa. Ficou ouriçada porque te interrompi? Me
desculpa, sua majestoca.
— Vá se lascar!
— Vai você.
— Dá pra contar a história pro nosso amigo Tovu? Ele ainda quer contar as dele.
— Ah, é. Como eu dizia. Gradia, Cruisand e Paragon estão exigindo muito de
nós.
— Mas tão pagando bem!
— Sim, sim. Do dinheiro eu não reclamo, só do trabalho mesmo. Nas últimas
semanas, carregamos e descarregamos os navios uma caralhada de vezes.
— Com todo tipo de coisa que você possa imaginar.
— É. Joias, artefatos mágicos, comida pra caralho, fardos de linho e seda-fina,
co...
396
— E pra que tudo isso?
— Pra um evento doido que eles vão fazer aí...
— Evento? Ah, o Ano da Elegibilidade.
— Essa parada mesmo!
— O que é isso, afinal?
— É uma espécie de Sucessão Honrosa, pelo que entendi. Só que dessa vez, os
Cinco Guardiões ascenderão juntos. Imagino que tudo isso aí deve ser para
comemorarem.
— Faz sentido. Deve ter prêmio, comida...
— Disseram que haverá testes para os novos Guardiões. Parece que serão
eventos abertos ao público e com...
— De grátis?
— Parece que sim...
— Como tudo o que o Conselho faz, deve ser um espetáculo. Acho que é por
isso que ouvi muitas pessoas passando pela cidade hoje cedo, falando sobre
ingressos e passagens de navio para essas três cidades.
— Deve ser mesmo. Em Gradia tem uma pancada de gente, não tem nem
pousada ou albergue pra essa galera. Estão dormindo em barracas e redes pelas
ruas. Monte de gente querendo faturar nesses eventos.
— E as novidades aqui de Miliat, Tovu?
— Ia falar exatamente sobre isso. Não creio que seja novidade para vocês o que
aconteceu na capital. Já faz três meses e...
Três meses? As palavras do tal Tovu atingiram Zakkar como uma espada afiada
no coração. A esperança que lhe restava em encontrar os algozes do reino
desapareceu no mesmo instante. Arregalou os olhos, estupefato e cético. Havia três
meses que a chacina que o separou de sua família aconteceu? Era impossível ter
vagado pela floresta por tanto tempo. Acreditara em seus instintos, estava convicto
de que caminhava no rumo certo. Chegara à velha cidade portuária tarde de mais.
E era tarde de mais para tentar seguir até Pedra Negra. Os assassinos dos Ayarza,
Greenham e Vycard já teriam recebido o pagamento por seus atos sanguinolentos
e desaparecido por Eirin sem serem reconhecidos. A runasmagiam do pacto selado
marcado em seus pescoços desapareceria e eles nunca mais seriam descobertos. A
realidade do tempo perdido na insólita Floresta Demoníaca ainda o abatia e novas
palavras proferidas dentro da taverna fizeram Zakkar ficar atônito.
— ... há poucos dias e agora, Lorde Bernat se autoproclamou rei.
— Nada mais justo, não é. Com Lorde Bartel, a esposa e o filho mortos, não seria
estranho ele assumir como rei. Ele sempre foi o braço direito do irmão.
— Bernat indicou Guilloch como Guardião de Aladar.
Guilloch, o Guardião? Zakkar apertou o próprio punho e fechou os olhos,
meneando a cabeça. Lágrimas escorreram dos olhos sem que pudesse controlar. A
397
verdade era que ele não queria mais controlar seus sentimentos. O maior de seus
sonhos, o desejo mais ardente em sua vida desde a adolescência, uma aspiração
perseguida de forma voraz e insistente, fora arrancada e entregue ao mais imbecil e
incompetente guardião de Miliat, alguém que não chegava a seus pés em
conhecimento e poder. Questionava a si próprio se era merecedor de tamanho
castigo. Por que tal desgraça o atingira dessa forma?
— Hummm... E ele é bom o suficiente?
— Deve ser. Não entendo essas escolhas aleatórias. Acho que tem seus crité...
— Ah, esqueci de falar, tem mais: o Rei Bernat anunciou também seu casamento.
Disse que será logo após esses eventos do Ano da Elegibilidade. Os condados
foram convocados em peso para a cerimônia. Vai ser uma baita festa. E vocês não
adivinham com quem!
— Com quem? Com quem?
— Com a filha temporã de Lady Meredia e Lorde Jonel Vycard: Selena.
O coração de Zakkar estremeceu no instante em que ouviu o nome de Selena.
Bernat, seu tio Bernat se autoproclamando rei e anunciando o casamento com
Selena? Preferia acreditar que era tudo invenção ou que estava embrenhado em um
terrível pesadelo sem fim. Mas era tudo real, estava acontecendo e as palavras
vinham de pessoas livres, que não vagaram por três meses, fugindo para poder
sobreviver e que sabiam o que acontecia em Miliat. Por que Selena aceitaria casar
com seu tio? Por que se prestaria a isso, casando com um homem que não amava
e muito mais velho?
Como uma luz que brota de súbito em meio a uma mórbida escuridão, a mente
de Zakkar ligou pontos que até então não vinham se encaixando. Como Selena
sabia da conspiração? Dissera que vira a invasão acontecendo e o alcançou a tempo,
mas seria isso verdade? E se fosse tudo parte de um teatro para enganá-lo? Por que
ela não quis vir com ele enquanto fugia? Por que preferiu ficar do que segui-lo e
escaparem juntos? Como ela lutaria contra uma horda de assassinos? Ela não lutaria
se fizesse parte da conspiração. Não havia por que não fugir junto com ele. A única
explicação era de que Selena traíra os Ayarza. Vendera a cabeça dos herdeiros do
trono, traíra a confiança de pessoas que sempre a trataram como uma filha e então
se casaria com o tio Bernat para poder tomar o poder.
Um grito distante, abafado e inesperado atraiu a atenção de Zakkar.
Girou o pescoço e notou uma movimentação esquisita em um beco escuro.
Deixando para trás as terríveis notícias que acabara de ouvir, deslizou pela travessa
escura e úmida, seguindo um murmúrio suspeito ecoando ao longo do caminho.
As vozes eram estridentes e desesperadas, ora abafadas abruptamente por algo ou
alguém.
398
Adentrou a escuridão funesta, correndo em direção aos clamores interrompidos.
As lamparinas ao redor estavam quebradas e as velas intactas, porém apagadas.
Estalou os dedos e pequenas faíscas mágicas viajaram até os archotes. O beco se
iluminava, conforme diminuía a distância, exibindo paredes de madeira gastas dos
fundos de velhas estalagens. No final da viela, avistou o cais. Os grunhidos
desesperados vinham de um grupo de garotas. Correndo o mais rápido possível,
livrando-se dos panos que cobriam seu rosto e cabeça, notou que eram pelo menos
cinco, amarradas e amordaçadas. Homens sórdidos, com aspecto execrável, as
enfurnavam em sacos iguais aos de batata e levavam para dentro de um corsário
prestes a partir.
O navio zarpou e foi se afastando do cais, lentamente. Zakkar disparou,
arrancando a camisa. Os homens puxaram as cordas e levantaram as velas, logo
uma caveira oculta se revelou sobre o mastro principal. Não eram marinheiros ou
mercadores, eram piratas. Ouvira dezenas de histórias a respeito deles, mas nunca
os vira de fato. Eram criminosos caçados por frotas armadas de vários reinos e isto
era o que sabia. No seu imaginário, viviam de roubos de cargas em alto mar,
interceptando galeões carregados de ouro e joias ou mesmo de caçadas a grandes
tesouros, guiados por mapas antigos. Nunca arriscaria dizer que as atrocidades que
cometiam envolviam sequestro de garotas indefesas.
A distância entre o porto e o corsário ficava maior a cada segundo e, mesmo
vacilante, Zakkar lançou-se sobre as águas negras e geladas, nadando de braçadas
em direção ao navio. Alcançou uma corda esquecida pela tripulação e subiu pelos
veios da couraça da embarcação.
A cabine do capitão cheirava a erva de fumo misturado a um odor adocicado,
como o de carne de cordeiro assada com vinho. A iluminação não era das melhores.
Algumas velas grossas espalhadas em castiçais em três pontos distintos faziam com
que a mobília ao redor, como poltronas, uma grande mesa de madeira, estátuas
antigas e uma pesada armadura projetassem sombras fantasmagóricas sobre o
assoalho de madeira lustrada, enfiando o lugar em uma intensa penumbra
melancólica. Cortinas pesadas de veludo vermelho se estendiam sobre as janelas e
impediam que a luz saísse ou entrasse do cômodo, ajudando a abafar quaisquer
ruídos, de modo que quem estivesse do lado de dentro não conseguia ouvir os sons
externos à cabine. O ambiente era quente e sufocante. Quando dois piratas
trouxeram a garota, ela estava amarrada pelas mãos e foi jogada no chão, na sombra
do criado-mudo ao lado de uma luxuosa poltrona de couro.
Com dificuldade para respirar, tentando entender como fora parar ali, ela
vislumbrou a cabine com desespero. A respiração tornou-se descompassada e o
coração acelerou de um jeito angustiante. Virando o pescoço, notou os piratas ainda
aguardando, encarando-a como se fosse um pedaço de carne. A cabeça latejava.
399
Uma pancada havia a atingido e ela foi arrastada pelas ruas do porto e lançada, junto
com outras quatro garotas para dentro de um velho corsário. Atordoada, ouvia
choros inconsoláveis, misturado às risadas maléficas e ameaças. Uma voz carregada
de sarcasmo pedia calma e berrava que elas seriam primeiro tratadas pelo capitão e
aí então seriam do restante da tripulação. Gargalhadas e ironias. Ao redor, tudo era
escuridão. De repente, a luz da lua surgiu. O cheiro de mar invadiu suas narinas. O
convés superior apareceu e sobre ele, um homem esgalgado balançava um esfregão
pelo piso, solitário. Arrastada por dois homens que comentavam que a hora da
refeição do capitão chegara, ouviu a porta da cabine se abrir e foi lançada sobre o
piso.
Um homem surgiu de uma porta. Era velho, com um nariz aquilino e torto, o
rosto encovado e um cavanhaque preto. Uma cicatriz bizarra atravessava seu rosto;
começava pouco acima do olho esquerdo e terminava no maxilar. Terminava de
limpar a boca e abriu um largo sorriso para ela, jogando o que parecia ser um
guardanapo de seda sobre a poltrona. Ele falou para os dois piratas tirarem as
cordas e ambos titubearam. O velhote insistiu, e disse que estava disposto a brincar
um pouco esta noite e que não seria tão difícil, já que ela era tão novinha. Então,
compreendeu tudo. A refeição do capitão a que se referiam era ela. Depois que ele
a estuprasse em sua cabine particular, à prova de qualquer ruído, seria jogada para
a tripulação abusar dela como quisessem.
O corsário seguia o trajeto em mar aberto, com os ventos castigando as velas e
injetando velocidade sobre o navio. Um relâmpago cortou os céus, seguido pelo
som estridente de um trovão, jogando uma luz esbranquiçada sobre o rosto de
Zakkar. Agarrado aos veios da popa, ele sentia a ventania assoprar sobre seus
cabelos desgrenhados. Gotículas de água salgada se precipitavam do oceano, toda
vez que a embarcação quicava nas marés que se arremetiam contra a couraça.
Agarrado à madeira, questionava-se porque se lançara ao mar e invadira um navio
pirata para salvar garotas que sequer conhecia. Não estava em posição de vantagem
e tampouco tinha noção se um daqueles homens do navio não era um caçador de
recompensas a fim de entregá-lo aos conspiradores. Lá no fundo, sabia qual era a
resposta para suas indagações. Sabia que isto era o correto a ser feito. Sobre tudo o
que aprendera a respeito de um Guardião, proteger os mais fracos era a obrigação
primordial e não somente da função adquirida, mas um dever moral para com
aqueles que não tinham como se defender. Mesmo sabendo que talvez jamais fosse
nomeado como Protetor de Aladar, a consciência o impelia a fazer o certo. Aquelas
cinco garotas raptadas eram miliatenses, inocentes e indefesas. Se ele podia fazer o
certo, era este o momento. A vingança que tanto ansiava poderia esperar.
Pendurando-se pelas madeiras do corsário, seguiu pela lateral ao mesmo tempo
em que seu cérebro se esforçava para maquinar um plano de resgate inteligente.
400
Seria somente ele contra uma horda de piratas. Quantos deveriam ser? Sete, doze,
vinte? Provavelmente, estariam armados com espadas e facões. Se o vissem, seria
seu fim. Não conseguiria dar conta se fossem tantos. Escalou até o topo e ergueu
a cabeça para espiar. O convés superior estava vazio e um único homem carregava
um esfregão, limpando o assoalho, resmungando sem parar.
Era a deixa que precisava.
Subindo para o convés, Zakkar seguiu passo a passo, olhando para todos os lados,
constatando que não havia mais piratas por ali. Aproximou-se com cautela e num
movimento preciso, travou o pescoço do pirata entre seus braços.
— Vou perguntar somente uma vez: onde estão as garotas que vocês
sequestraram?
— O... quê... você...
Zakkar apertou os braços, esganando o homem. Ouviu o desespero dele ao tentar
sorver o ar, sem conseguir.
— Mais uma chance, seu verme. Onde estão as garotas que vocês raptaram?
— Nas... cadeias... lá embaixo.
— E os outros piratas, onde estão?
Lutando para poder respirar, o pirata tentava se soltar do golpe de Zakkar,
inutilmente.
— Estão... nos dormitórios...
— Certo. É hora de lhes fazer uma visitinha, então.
Soltando os braços do pescoço do homem, Zakkar seguiu em direção à porta que
dava acesso ao convés inferior. Iria se livrar dos piratas, surpreendendo-os em suas
próprias camas. O pirata com o esfregão puxou o ar com força até os pulmões
doerem. Compreendendo o que havia acabado de acontecer, correu desesperado
até o sino no mastro principal. Um vento elemental golpeou seu estômago com
força, antes que pudesse alcançar a cordinha metálica. Vendo o corpo ser levantado
no ar, fora arremessado para fora do corsário, caindo nas águas geladas e escuras
do mar.
O clima abafado da cabine do capitão aumentava o desespero da jovem
atarantada, estirada sobre o piso. O velhote mandara os guardas esperarem do lado
de fora e só entrarem quando ele os chamasse. Embora contrariados, eles saíram e
trancaram as portas. Ele a encarava com seu olhar lascivo e asqueroso, cercando-a
de todos os lados. A garota tentava se esgueirar para bem longe dele, apavorada.
— Vamos, minha filha. Não tenho a noite toda e você sabe que não há para onde
fugir — falou o capitão, passando a língua sobre os lábios — Estamos em alto mar.
A única escapatória aqui é cair nas águas geladas de Crispoles. Você não vai querer
isso. Mesmo que saiba nadar, há monstros marinhos e tubarões que vão acabar com
você em um instante. Eu só quero gozar na sua bocetinha e poderá voltar para a
401
cama preparada lá embaixo, para você. Não garanto muito conforto e nem mesmo
que irá dormir. Meus homens estão há muitos dias sem ter uma diversão adequada,
se é que me entendes.
Os olhos se arregalaram e lágrimas escorreram sem querer. Era virgem. Nunca
havia tido relação com homem algum. Mesmo quando esteve de paquera com um
garoto de sua rua e ele insinuou em apalpar seus seios, ela deu-lhe um tapa no rosto
de marcar os dedos e saiu correndo. Não era dessa forma que imaginava perder a
virgindade. Não violentada por um velho abominável e desprezível. Estava
determinada a resistir. Morrer afogada ou devorada pelas criaturas marítimas seria
melhor do que permitir ser violentada. Não deixaria que ele fizesse nada com ela.
O calor entorpecente do lugar a fazia suar exacerbadamente. Contemplava o
perímetro ao redor, lançando olhares sutis, buscando qualquer coisa que pudesse
usar para se defender até que os olhos se depararam com uma faca dourada em
cima da mesa.
— Vamos começar de novo, bonequinha — falava o capitão, deslizando na
direção da garota. — Qual seu nome?
— É... Manara... — Ela se esgueirava pela cabine, caminhando de lado em direção
à mesa, torcendo para que ele não notasse que avançava lentamente até lá.
— Ótimo, Manara. Parece que estamos nos entendendo. Eu sou Faldor, o capitão
desse navio, como deve ter percebido. Sabia que sei tratar muito bem as damas que
se deitam comigo?
— É mesmo? — questionou Manara, vislumbrando a faca cada vez mais perto.
Um olhar compenetrado entregou a estratégia da garota. Faldor parou no meio
do caminho e percebeu o que ela pretendia fazer. O capitão do navio avançou por
cima do sofá e Manara, correndo contra o tempo, correu até a mesa para alcançar
a faca. Os dedos estavam perto de agarrar o cabo de madeira quando as mãos
ásperas do velhote alcançaram os cabelos loiros da garota. A testa voou com tudo
em cima da mesa, num golpe desferido pelo capitão.
— Maldita! Está pensando que vai fazer o quê? Me esfaquear?
Faldor bateu a cabeça dela novamente contra a mesa. Atarantada, viu as cortinas,
o sofá e a cabine rodopiarem. Sentiu o vestido ser rasgado de cima a baixo e os
dedos do homem agarrarem seus seios. A cabeça girava com a dor lancinante; ouviu
um zíper se abrindo. Os olhos turvos vislumbraram a faca muito próxima de onde
fora jogada. Esticando a mão, alcançou a lâmina. Os dedos firmes sobre o cabo
viraram-se num golpe furioso e a adaga acertou o rosto do velho, marcando sua
face de um lado a outro.
Sangue jorrou sobre o colo de Manara, respingando em sua barriga, nos seios de
fora e sobre a mesa de madeira. O capitão deu um berro de dor. Rasgando um
pedaço da própria camisa, pressionou o pano sobre a ferida aberta. Atordoada, a
garota notou que a faca escapou de sua mão e foi parar próximo à armadura. Uma
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gargalhada inesperada ecoou pelo ar. Manara, ainda com a visão turva, contemplou
o capitão do corsário sorrindo e avançando em sua direção.
— Você gosta de brincar?
Um soco atingiu Manara na boca do estômago e em seguida seu rosto. As mesmas
mãos ásperas agarraram-na com brutalidade e a colocaram de bruços sobre a mesa.
Os golpes violentos provocavam ondas de dor lancinante em sua fronte; estava
prestes a desfalecer. Dedos puxaram seus cabelos com força ao mesmo tempo em
que outra mão agarrou seus quadris.
— Saiba que eu também adoro brincar, sua vadia. Vou comer esse seu rabo
gostoso até gozar o que não descarrego há um mês!
Um baque ensurdecedor eclodiu dentro da cabine. O vento gelado da noite
assoprou para dentro dos aposentos do capitão e fez as chamas das velas
tremularem quando Zakkar explodiu as portas de carvalho da entrada. O guardião
vislumbrou um velho magricela com o rosto ensanguentado, agarrando uma garota
seminua pelos cabelos, deitada de bruços em cima de uma mesa, na iminência de
estuprá-la.
Movendo os dedos num lance rápido, a mesma faca que Manara usou voou do
chão do assoalho e acertou o ombro do capitão do navio. Faldor soltou um urro
excruciante. Os olhos arregalados e carregados de medo contemplavam o invasor
e algoz desconhecido, adentrando a cabine. Zakkar mirou o estado deplorável da
garota estirada sobre a mesa, prestes a desmaiar. Ergueu-a e a colocou sobre a
poltrona, jogando uma toalha da mesa por cima de sua nudez.
— Guardas! Guardas! — berrava o capitão, aparvalhado. Aguardava a entrada de
seus escudeiros ou mesmo dos piratas sob seu comando para acudi-lo diante do
ataque surpresa.
— Sugiro que dê uma olhada pela janela — falou Zakkar, avançando até onde o
capitão agonizava, esforçando-se para retirar a faca encravada em seu ombro.
Faldor arrastou a pesada cortina de veludo e encarou o convés superior do
corsário. A escuridão da noite atrapalhava sua visão e os céus começavam a ficar
encobertos por nuvens cinzentas. A chuva não havia chegado, mas dava indícios
de que logo cairia. Uma trovoada ribombou e um relâmpago cortou os céus. Um
clarão esbranquiçado iluminou a escuridão dominante de súbito e revelaram algo
que fez o capitão arregalar seus olhos ainda mais. Cordas apareceram. Amarradas
sobre as cruzetas dos três mastros do navio, elas se precipitavam em direção ao piso
do convés. Tensionadas, sustentavam em suas pontas cada um dos piratas da
tripulação, enforcados.
Virando para encarar Zakkar, o capitão não deixava de exalar o terror, refletido
em seus olhos arregalados, externando um medo exacerbado, que jamais sentira na
vida. Erguendo uma das mãos, o guardião balançou a cabeça para Faldor e lançou
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uma magia. Uma luz reluziu da ponta de seus dedos e atravessou a cabine. A cabeça
do capitão rolou pelo assoalho de madeira no instante seguinte.
404
Capítulo Vinte e Nove
Insônia
Sob a vastidão do céu enegrecido, um elfo não conseguia dormir. As calças
estavam dobradas de qualquer maneira na altura dos joelhos e os pés enfiados sobre
as águas calmas e frias de um lago, podia sentir pequenos seixos rugosos
pressionarem seus dedos e calcanhar. Abaixou-se e arrebatou outra pedra. Era
levemente plana e nem um pouco pesada: perfeita para seu entretenimento
momentâneo. Segurou-a entre o polegar e o indicador, balançou a mão para frente
e para trás duas vezes, tomando o cuidado de manter o braço o mais paralelo
possível com a face das águas. A pedrinha escapou de seus dedos e ricocheteou
sobre o espelho d’água de aspecto leitoso pelos menos umas três vezes até sumir,
afundando no lago.
Nikolai Nodovra colocou as mãos na cintura, um tanto absorto e contrariado. A
noite era muito escura. Não havia estrelas no céu e tampouco a manifestação do
brilho da lua. Mesmo estando em época de lua cheia e sem uma razão plausível para
explicar o sumiço das costumeiras constelações sobre a abóbada celeste, ele
arrazoava sobre os muitos motivos desse mistério inexorável.
As Terras Distantes de Turmis eram recheadas de muitas lendas. Dentre as mais
famosas, estavam as histórias de que uma maldição antiga e poderosa circundava
especificamente aquele trecho do continente. Por esta razão, navios sumiam ao
navegar próximo dali e expedições de curiosos e exploradores de ouro não
retornavam de suas aventuras. Os motivos eram diversos: monstros inimagináveis,
criaturas das trevas que devoravam homens e mulheres, bestas que emergiam do
mar e engoliam embarcações por completo. Para Nodovra, pura baboseira de
contos infundados dos humanos mais ignóbeis. A malha do tempo de Turmis,
naquele pedaço conhecido como Terras Distantes, cujo nome fora adotado por
jamais uma única viva alma ter pisado essa região do continente após o fim da Era
das Trevas, sempre oscilou de um jeito muito esquisito. Desde o período em que
os elfos viviam reclusos nas florestas, antigos livros comentavam sobre agitações
incongruentes nessa região. Contudo, nada muito diferente do que acontecia em
regiões remotas de Eirin, como o extremo-norte congelado de Anlevor ou mesmo
as regiões montanhosas e inóspitas do oeste de Elstoen, cujas vibrações do tempo
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sempre foram grandes incógnitas desde tempos remotos. O fim da guerra que
culminou no término da Grande Era das Trevas trouxe consequências desastrosas
em particular para as ditas Terras Distantes em virtude de decisões nada acertadas,
muito mais políticas do que ponderadas ou consensadas. O exílio de monstros e
criaturas ali, além do pacto de desviar furacões e tempestades por vários ciclos para
exterminar as aberrações criou uma região de agitação descomunal na malha do
tempo.
Nikolai agachou-se e pegou uma nova pedrinha do lago. Diferente das demais,
essa era oval. Embora soubesse que não era das melhores para ricochetear sobre o
espelho d’água, arriscou mesmo assim. Arremessou-a como fez com as outras. Ela
bateu na água e afundou de imediato.
Como a pedra distinta que jogou, a malha do tempo nas Terras Distantes oscilava
de forma diferente há um tempo. Reverberava de um jeito impossível de se prever,
ela pulsava de modo ilógico, fugindo de quaisquer padrões estabelecidos desde os
tempos antigos da sacramentação. E Nikolai recordava muito bem o dia exato em
que tudo isto começara. Menfesis emitira um comunicado urgente, convocando os
Oito Octaedros para uma reunião emergencial em Purysia. Naquela manhã, as
oscilações na enseada de Zavir no trecho mais próximo das Terras Distantes
indicavam a aproximação de ondas gigantes. Os padrões se alteraram duas vezes.
O que poderia levar horas ou mesmo dias, ocorreu em questão de minutos.
Vibrações inconsistentes prediziam que maremotos monstruosos, vindos das
Águas Solídiras se aproximavam da costa. Ondas terríveis, capazes de inundar não
somente o sul do continente, mas Turmis por completo.
A carta de Menfesis ainda pairava em sua mão, quando seus sacramentadores o
informaram das oscilações. Terminava de ajudar Gavir Onobka a direcionar a
chuva para irrigar campos de trigo em Líria, quando leu a transcrição do que seus
ajudantes haviam detectado. Acreditou estar diante de alguma brincadeira e de
muito mau gosto e chegou a duvidar do alerta de seus sacramentadores. Partiu com
a comitiva imediatamente para o limiar de acesso às Terras Distantes, onde a malha
estava mais agitada. Refez a leitura das vibrações uma, duas, três vezes. A predição
era aterradora. Um maremoto inigualável, com ondas de até cinquenta metros de
altura, se aproximava em rápida ascensão. Escreveu um aviso para Onobka,
solicitando sua ajuda, mas considerava minimizar impactos do que seria o maior
tsunami de todos os tempos. Preparou os arcanos e sacramentadores para o pior.
Recordou que aquelas agitações eram todas de terra. Optou por contar com o
benefício da dúvida, antes que o pedido de auxílio ao Octaedro de Austeridade
fosse enviado, mesmo não havendo margem para desacreditar depois de tantas
leituras. Ao analisar a oscilação da malha nos oceanos, as vibrações não
apresentavam um espectro aterrador, indicando um prelúdio do caos. As Águas
Solídiras e de Crispoles se desenhavam como a mais pura calmaria. Ninguém
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conseguia entender. Suspendeu a carta para Gavir, mas manteve os
sacramentadores e arcanos na linha de frente, para o ponto onde as ondas
acertariam o continente primeiro. Na hora prevista do recuo do oceano e do choque
do mar sobre a enseada, nada ocorreu. As marés seguiam seu fluxo normal, como
a malha do tempo nos oceanos indicava. Despedindo sua comitiva, Nikolai foi
embora com uma dúvida que perdurava até os dias atuais. Semanas depois, em
Purysia, Menfesis teceu seu fatídico anúncio. Encerrou a era perpetatem
precipitadamente dos Oito e, desde então, nada mais fez sentido no Octaedro das
Trevas.
Absorto nas lembranças tenebrosas, Nodovra desistiu de jogar pedras sobre as
águas. Além do lago em que estava, contemplou o imenso Paredão. O Paredão era
como chamavam a gigantesca cordilheira que dividia as sombrias Terras Distantes
do resto civilizado do continente. Desde que assumira o Octaedro, era a primeira
vez que punha os pés do outro lado daquelas montanhas tenebrosas. Jamais ousou,
em sua carreira, ultrapassar os portões da face norte, ainda que sua missão como
líder de Trevas, fosse garantir a harmonia do tempo sobre a parte mais obscura do
continente. Nunca foi por medo que preferiu manter-se longe das Terras Distantes
por tantos ciclos. Entendia esse traço das emoções que considerava o mais
característico da cultura dos humanos e jamais o desprezou em qualquer que fosse
a sociedade que conviveu, mas um dos sentimentos que nunca se permitiu
experimentar era o medo. Considerava aquele um lugar abominável e digno de seu
desprezo, não pelas lendas e crenças de ser uma região amaldiçoada, tampouco por
abrigar temíveis criaturas exiladas, mas por ser o local em que alguém que tanto
admirou fora banido para sempre.
Não conseguia compreender o porquê ele fizera tudo aquilo. Por que se
corrompera pelo poder, visto que nunca dissimulou a nobreza e altruísmos de sua
missão, influenciando tantos sacramentadores com sua sabedoria ímpar e uma
liderança firme, prezando pelos princípios da religião dos elfos como nunca. O que
o motivou a cometer tamanho sacrilégio? Pior, por que nunca confessou nada?
Quando Menfesis e Alezeia adentraram o salão comum dos sacramentadores
naquela fatídica noite e contaram a respeito de seu pecado, de como regressou ao
passado para aniquilar desafetos pessoais e contrários ao seu governo, Nodovra
inflamou-se, incrédulo com o que acabara de ouvir. Adentrou o cômodo em que
repousava e foi o primeiro a confrontá-lo. A admiração e o respeito conquistados
ao longo de ciclos esvaíram-se com sua reação. Era verdade. Tudo verdade. No
julgamento daquele a quem tanto estimou, foi o mais incisivo e o primeiro a votar
a favor da punição máxima. Ele sequer ousou se defender. Aceitou a sentença de
bom grado e seguiu para a condenação obedientemente. Embora Nikolai relutasse
em querer admitir e desviasse as ponderações de sua razão para tal, com os pés
enfiados nas águas enregelantes daquele lago, era medo o que habitava seu coração.
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Medo não pelas bestas e outras aberrações que poderiam encontrar no trajeto, mas
por quem ele seria quando o encontrassem, o quanto teria mudado ao longo dos
ciclos.
— Devaneio comigo mesmo se poderia ousar questionar as razões pelas quais a
magnificência da razão e personificação da justiça, Nikolai Nodovra, encontra-se
distante de seus aposentos provisórios. Caístes de suas acomodações, nobre amigo?
A voz de timbre cristalino e agradável de Sisno Sannfrye ressoou no formato de
um questionamento pertinente. Trajando o costumeiro camisolão de seda branca
que utilizava para dormir, os dedos se cruzavam na altura do peito. Os olhos eram
como os de uma águia e, mesmo no escuro, perscrutavam cada expressão do elfo
contemplativo com os pés enfurnados na água.
— De todas as questões pertinentes ao longo de nossa humilde trajetória na
missão altruísta de abdicar das coisas terrenas em função daquelas que são perenes
relativos ao que tange a consolidação e perpetuação da harmonia do tempo, há uma
que considero, ao extremo, intrigante: por que Menfesis indicou-me para o
Octaedro das Trevas, tendo notório saber da parte dele que meu desejo era o de
Perspicácia? — questionou Nodovra, caminhando para fora do lago — Por tantos
ciclos, dediquei minha vida aos estudos das variadas vertentes pelos quais a malha
do tempo pulsa naquelas que, em minha perspectiva, considero as regiões de
notório saber quanto à ancestralidade de nossas tradições sacramentais. Ao longo
de ciclos, tendo o reconhecimento de toda comunidade élfica, tenho escrito teses e
composto enciclopédias não apenas sobre o tempo e as oscilações da malha ali, mas
também sobre a cultura e a política nos reinos que compõem o bloco de Perspicácia.
Não tenho por desejo desmerecer a capacidade e sabedoria de nossa inestimável
companheira Soobo, contudo, questiono-me: havia algum sentimento obscuro em
Menfesis que desmerecesse minha conduta para esta que considerei por tantos
ciclos como uma posição desejada?
Nodovra encarou Sisno, limitando-se a emitir o costumeiro sorriso confiante que
possuía a capacidade de encorajá-los, independente da ocasião. Nos últimos meses,
aprendera a dar ouvidos ao velho sacramentador como há muito tempo não o fazia.
Era um voto velado de confiança diante do desespero da letargia que se abatia sobre
a religião dos elfos.
— É, deveras, uma intrigante questão, nobre Nodovra. Na contramão de tal
arguição instigante, posso lhe afirmar que nunca houve sentimento atrelado às
decisões de Arturo quanto à sua indicação. É plausível, nesta interessante prosa em
que nos foi arrebatado o sono, ainda que tenhamos uma densa jornada a enfrentar
ao romper da manhã, que existiam duas motivações para que sua posição na Ordem
surgisse ao revés do desejo que externavas. A primeira delas, obviamente, era
política. Menfesis precisava acalmar os ânimos dos Etéreos. O último Octaedro
não fora bem quisto pela nobreza de nossa cultura élfica, e bem sabes a que me
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refiro; algo que foi motivo de calorosos embates com o antigo líder. A segunda
razão, motor da decisão crucial pela indicação, ainda que a teu contragosto, consiste
na estoicidade de teu caráter. És incisivo, imutável, não és dissuadido por vãs
filosofias ou crenças baratas como muitos de nossos amigos tornaram-se no
decorrer dos ciclos. Tuas decisões estão livres de hesitação, firmes como este
Paredão que se desenha para além do lago. Ninguém haveria de ser melhor do que
tu para liderar o Octaedro das Trevas.
Sisno abaixou-se de súbito e arrebatou uma pedra da margem do lago e admiroua
por alguns instantes, antes de lançá-la sobre o espelho d’água, fazendo-a quicar
três vezes até sumir. Abriu um sorriso satisfeito e mirou o olhar apreensivo do
colega elfo.
— Não haveria ninguém melhor do que antigo arcano daquele que ousou trair a
pureza da Sacramentação como garantia de que a justiça sobre sua sentença seria
conservada na região em que ele fora exilado pela eternidade.
O silêncio se seguiu entre os dois elfos, estacados à beira da água.
— Creio que bem sabes, Sisno, o quanto resisti à tua persona ao longo dos
últimos ciclos, desde o fatídico dia em que o maior dos sacrilégios fora cometido
— proferia Nodovra, com sobriedade e seriedade, encarando o olhar carregado de
esperança de Sannfrye. — Jamais fui favorável à aclamação precipitada de Arturo
ao posto máximo de nossa estimada Ordem. Muito do qual se deve ao altruísmo e
abnegação contraditória que sempre demonstraste e também à tua exacerbada
admiração injustificável por Menfesis, desde eras antigas. Nutri um sentimento
digno dos humanos por tantos ciclos, inconformado com tais ações de sua parte
para promover justamente aquele a quem queremos destituir, em razão das ações
livres de sabedoria, a nos conduzir rumo ao abismo.
— Se julgas, nobre Nodovra, ter mantido um sentimento iracundo ou, como
mesmo disseste, humano, creio que de minha parte considero haver a ausência de
um profundo e sincero pedido de perdão. Não desculpas, pois são formais e
superficiais como o espelho d’água que contemplamos. Mas, devo-lhe rogar o
perdão por minhas ações passadas. Julguei mal alguém a quem tanto estimava,
como sendo o elfo que poderia governar a Ordem com equidade e justiça, trazendonos
tempos gloriosos como nunca houve. Não há nada de terrível em ter
sentimentos dignos de humanos, Nikolai, se essas expressões nos trouxerem de
volta à luz do que prega nossa crença e ao recôndito de nosso propósito.
Outra vez o silêncio.
Nodovra abaixou-se para pegar uma nova pedra. Admirou seu formato esdrúxulo
por alguns segundos, mas não atirou. Optou por encarar Sannfrye parado ao seu
lado.
— Acreditas, Sisno, que esta incursão tão contraditória obterá êxito? Não que
esteja ousando arrepender-me de aqui estar com nossa comitiva até alcançá-lo,
409
porém, tenho arrazoado comigo mesmo se não teria sido prudente iniciarmos uma
sindicância pelo regime interno da Ordem para substitui-lo em razão de seus
pecados, assim como foi com... você sabe... Afinal, o Conselho está insatisfeito e
partilha de nossa motivação.
— A decisão que tomamos, naquela pocilga em Vandir-Lepit, foi acertada.
Contudo, considero tua sabedoria, Nodovra e tua argumentação é deveras
relevante. Mas que chance teríamos? De que o acusaríamos? Menfesis tornou-se
poderoso de uma forma que não podes sequer imaginar. O Protetorado de Purysia
é devotado a ele como uma guarda pessoal. Esqueceram o juramento de fidelidade
e o compromisso perpétuo com a proteção das terras que hoje abrigam o templo
da sacramentação. Mesmo havendo do quê o acusar, uma sindicância seria revelada
e desmanchada com o ímpeto do poder outorgado por nós de modo descabido a
ele nos últimos ciclos, confiando que usaria de tais domínios para resgatar os valores
perdidos em nossa religião. No que tange ao Conselho, a animosidade é crescente
quanto aos nossos assuntos e, pelo que consta no Tratado de Paragon, eles não
podem (e não querem) interferir entre poderes distintos. Bem, pelo menos não
diretamente. O marasmo de Menfesis após alguns eventos climáticos atingirem
alguns reinos e localidades de Eirin provocou um sentimento iracundo no líder do
Conselho. Sorte para a Ordem serem lugares menos importantes para os
Guardiões, como o extremo-Leste de Eurodian. Pois imagine o que teria
acontecido se Gradia fosse atingida por um maremoto e em seguida violentada por
um poderoso kraken? Por tal razão, Moronov nos procurou. A verdade é dura,
nobre Nodovra, mas somente um poderá impedir que uma Era do Caos atinja
nossos tempos. No entanto, para que tenhas paz nesta jornada, saibas que tomei as
devidas precauções e, tanto os Etéreos, o Concílio de Vaelfar e o Fulcro apoiam a
substituição imperativa de nosso atual líder.
— O Fulcro?
— No tempo certo, saberás.
O silêncio abrupto ocupou a hesitação dos dois elfos. Sannfrye e Nikolai
continuaram lado a lado ao pé do lago, até que o antigo sacramentador de
Hegemonia segurou o braço de Nodovra.
— Pois bem. Esta é sem dúvida uma formidável prosa, ainda que em uma hora
tão inoportuna, quando deveríamos estar repousando nossos corpos. Todavia,
necessito encontrar o chefe da Confraria para discutir a respeito de minhas
acomodações. O terreno em que assentaram minha cabana provisória não está dos
mais agradáveis.
— Certo, Sannfrye. Desejo-lhe sorte em tua empreitada.
Sisno acenou-lhe com a cabeça e, pé ante pé, saiu do lago em direção ao
acampamento. A meio caminho, estacou e virou-se.
— Não foi uma decisão de Menfesis, Nodovra.
410
— Como?
— A decisão de indicá-lo como Octaedro de Trevas não foi uma escolha de
Arturo.
— Não consigo compreender.
— Indicá-lo ao Octaedro de Trevas foi uma decisão minha.
Sisno seguiu seu caminho, deixando Nikolai com uma profunda expressão de
dúvida.
411
Capítulo Trinta
O Ano da Elegibilidade
O grande dia enfim chegara.
O evento mais aguardado de todos os tempos, não somente pelos guardiões de
Eirin, mas também pelas nações do mundo, em um momento inédito em toda a
história estava realmente acontecendo e era difícil acreditar que aquilo era real.
Após um ciclo conturbado em que sua vida fora virada de cabeça para baixo, Petr
sentia como se tivesse imergido em um sonho fantástico, depois de escapar com
vida de um terrível pesadelo. A saudade do avô, depois de sua morte inesperada,
ainda perturbava seu coração e, havia dias em que a dor por sua perda transbordava
pelos olhos e não impedia as lágrimas de jorrarem como cascatas. Eram dias difíceis
em que optava por se esconder, mesmo de seu melhor amigo, Chermont, para
poder chorar de tristeza e rememorar os dias em que o tinha tão perto. Relembrar
aqueles dias em que se sentia seguro, protegido e livre de ter de tomar duras
decisões sobre o próprio futuro ou o destino de uma nação inteira. Não obstante a
morte do avô, ainda tinha de aguentar a insanidade da avó, querendo a qualquer
custo forçá-lo a entregar o trono para ela. Essas não eram escolhas para um garoto
de treze ciclos ter de decidir. Mas a vida o ensinou, muito cedo, que as coisas para
ele não seriam tão fáceis. Depois de tomar a decisão correta, mesmo hesitante se
de fato havia feito a escolha certa, vivia para poder vislumbrar aquele momento
épico.
Desceu do navio sob um coro ensurdecedor de muitas vozes engroladas. A noite
dominava e o Mar de Ágata estava sereno quando a prancha do corsário se estatelou
contra as madeiras cintilantes das docas de Gradia. Um extenso corredor fora
montado, ladeado por grossos cordões de cânhamo, separando o estreito vão da
estrada de pedra das multidões alvoroçadas que se acotovelavam ao redor. Centenas
de milhares de pessoas se acotovelavam, sendo humanos, elfos, anões, centauros e
duendes misturados em uma única massa pulsante, brigando entre si, para poder
contemplar quem eram os que desciam das embarcações e rumavam do porto.
Saindo do cais, o caminho de lajotas conduzia até a majestosa construção se
assomando bem no centro da cidade. Imponente, aquele era o edifício que
chamavam de A Casa dos Guardiões, um gigantesco monumento no meio da praça,
412
iluminado por chamas mágicas que o faziam reluzir como ouro maciço. Além das
multidões alvoraçadas, a decoração enchia os olhos até mesmo dos possíveis
desavisados, se é que haveria algum no meio da aglomeração avassaladora. Cinco
bandeiras esplêndidas se estendiam do topo até o pé das colunas de mármore. A
primeira delas, azul e branca, exibia a figura de um majestoso grifo pronto para
atacar. Petr ouvira falar daquele estandarte e de seu reino de terras suntuosas, cujo
rei morrera quase na mesma época em que seu pai desapareceu: Badorian. Embora
jamais tivesse pisado lá, seu avô contava histórias formidáveis sobre o lugar. Ao seu
lado, uma bandeira verde e reluzente exibia um corcel de volumosa crina e grandes
asas prateadas. Era a insígnia do maior reino do continente ao sul de Snartria, a
Virtuosa Candorn. Petr possuía uma dívida de gratidão muito grande com o velho
Lorde Saldivar que, antes de retornar ao próprio reino para assumir a coroa, liderou
as buscas por seu pai nas Montanhas Congeladas. Um homem de grande coração e
que até lembrava o avô, no jeito de se portar. Ao lado de Candorn, a majestosa
Harpia Voraz se apresentava cintilante, sobre um bandeirão preto e prata. O
símbolo das terras serenas de Snartria, exibido assim de forma tão grandiosa fez
seus olhos lacrimejarem. Imaginava como o avô ou seu pai estariam orgulhosos em
vê-lo caminhar até A Casa dos Guardiões para sua nomeação pelo Conselho.
Infelizmente, estaria sozinho em todos os três eventos. A quarta bandeira da
sequência era vermelha e branca e uma fênix indomável surgia. Aquela era a flâmula
de Miliat, o intrépido reino adorado por seu avô. Ele vivia contando histórias das
temporadas de verão que passava caçando ao lado dos amigos guardiões de lá.
Histórias que ele já não lembrava tão bem e que logo, logo seriam meras e vagas
lembranças esquecidas ao longo do tempo. A última das bandeiras era dourada e
prata e um leão em pé se mostrava feroz, empunhando um machado, com uma
coroa sobre a sua cabeça. Era um dos reinos de guardiões pouco conhecido de sua
parte, embora conhecesse um de seus principais representantes, o homem que
liderava o Conselho dos Guardiões. Amistelar não tinha histórias muito
empolgantes, mesmo com o continente abrigando um dos maiores e mais
intrigantes mistérios que já ouviu na vida.
— Coloque o capuz, Lorde Bravior.
Uma voz interrompeu a excitada admiração de Petr com a beleza ao redor. Um
dos acompanhantes enviados pelo Conselho para trazê-lo até Gradia crocitou,
soltando a voz e gesticulando, mas sua frase saiu como um berro desesperado
tentando se sobrepor ao vozerio ao redor.
— O capuz? — questionou Petr e não conseguiu escutar as próprias palavras. As
multidões em frenesi gritavam muito alto e era quase impossível ouvir alguém falar
normalmente, mesmo essa pessoa estando logo ao lado.
— O CAPUZ?
— SIM!
413
— POR QUÊ?
— FAZ PARTE DA SURPRESA!
— OK.
Dando de ombros, Petr puxou o capuz preto para tapar o rosto, mas não sem
antes notar a extensão das docas ao redor, onde seu navio atracara. Outros barcos
estavam posicionados e não pode deixar de perceber os mesmos estandartes
desenrolados sobre a Casa dos Guardiões, afixados sobre as laterais das
embarcações. A fênix, o leão, a harpia, o corcel e o grifo repousavam pelos corsários
e galeões, balançando preguiçosamente com o impacto das ondas sobre o cais.
Aparentemente, era o último dos Cinco a chegar.
— POR AQUI!
O acompanhante deu a última ordem antes de seguirem pela estradinha de lajotas
cercada por cordas, contendo as multidões. Seguia com o rosto o mais abaixado
possível, a regra era não ser identificado na multidão, embora achasse muito difícil
alguém identificá-lo ali — até onde sabia, passaria despercebido por qualquer um,
já que as pessoas que o conheciam ficaram em Snartria, do outro lado do mundo.
Havia alguma espécie de mágica sobre as cordas porque, mesmo com a
aglomeração de gente se apertando umas contra as outras, ninguém avançava para
dentro do perímetro do caminho de paralelepípedos que conduzia até A Casa dos
Guardiões. Avançando pela estradinha, não conseguia deixar de tentar entender o
que as pessoas gritavam para ele.
— ... mas é claro que é, Petr Bravior, é ele.
— ... O neto de Maximo, obviamente...
— ... sim, sim. É ele, é a bandeira de Snartria no barco que chegou....
— ... nunca o vi. Dizem que é novinho. Deve ser ele mesmo, baixinho assim...
— ... Dizem que ele é muito novo...
Havia frases desconexas e coisas que Petr ouvia e não conseguia entender, ou
talvez não deveria entender por causa de sua idade, mas o fato de as pessoas
saberem seu nome era algo surpreendente para ele. Jamais saiu de Snartria e, mesmo
assim, tão distante, as pessoas repetiam seu nome e tentavam adivinhar quem
passava escondido sob o capuz.
— ... lógico. Óbvio que é ele, mulher. Eu aposto todos os meus candolins que o
Petr é quem vai ganhar.
— ... Mas você não é de Candorn? Não deveria apostar no seu Guardião?
— ... Eu aposto no mais forte. Preciso ver quanto tá valendo o câmbio de um
candolin por um peso gradiano. Pode anotar aí, vai dar Petr e eu vou sair rico desse
lugar.
— ... Eu aposto na de Badorian. Dizem que a garota é irmã da Lenda. Irmã da
Lenda, você já viu, né? É Lendinha!
414
— ... O mais forte. Sem dúvida. O líder vai ser o de Miliat. O cara é parrudão.
Subiu a rua pisando forte. Vai dar Miliat, sem dúvida!
As multidões não apenas torciam por seu guardião favorito, como também
apostavam dinheiro em quem sairia vitorioso dos três eventos. Embora não fosse
uma competição, até onde Petr sabia, pois os eventos eram para definir o novo líder
do Círculo dos Cinco, as pessoas estavam animadas com a ideia de uma disputa de
poder e ouvir seu nome como um dos favoritos o deixou bastante animado em
tentar fazer o melhor. Não tinha a pretensão de ser o líder dos Cinco, isso nunca
passou por sua cabeça. A responsabilidade de ser o Guardião de Anlevor era um
fardo bastante pesado que se inclinou a assumir. Em Snartria, teria total apoio de
Chermont, de Aldair e dos outros conselheiros reais, principalmente contra as
loucuras de sua avó. Para Anlevor, o próprio Salazar Stanhorne em pessoa garantiu
que ele teria total suporte do Conselho dos Guardiões. Mesmo duvidando de algum
apoio vindo da figura soturna e distante de seu avô materno, Petr confiava na
palavra de Stanhorne. Assim, o peso do cargo que assumiria a partir dali, não parecia
mais tão elevado. Ser líder dos Cinco era uma louca responsabilidade pela qual não
estava nem um pouco interessado, mas, se saísse vencedor das três provas, não
haveria como fugir dessa incumbência.
A Casa dos Guardiões era por dentro tão esplendorosa e imponente quanto por
fora. Quando os portões de carvalho se fecharam atrás dele, abafando os berros
tresloucados das multidões eufóricas, Petr ficou embasbacado com a suntuosidade
e o luxo daquele lugar. O saguão de entrada oval brilhava à luz de cinco grandes
archotes de chamas elementais, cada tocha representando a cor de um reino. As
flâmulas dos reinos guardiões também adornavam o lugar, repousando sobre as
pilastras circulares que sustentavam as galerias superiores. Bem no meio do saguão,
o piso de mármore que mais parecia um espelho de tão lustroso e chispante exibia
um enorme mapa-múndi, com todos os continentes de Eirin, seus reinos, mares e
ilhas. Era possível visualizar até mesmo o relevo, os acidentes geográficos, as
cadeias de montanhas, enseadas e vales de cada nação. Petr se perdeu em devaneios
ao contemplar um pedaço do mapa com uma monstruosa cadeia de morros e
montanhas em que se lia “Terras Distantes de Turmis”. Se tivesse a sorte de ter
nascido no continente banhado por Crispoles e Solídiras, visitar as misteriosas
terras distantes seria a primeira coisa que faria, independentemente de ser Guardião
ou não. Arrumaria um jeito de ir até lá e desbravar a geografia do lugar que nem
mesmo o mapa detalhava.
Admirando o requinte da majestosa decoração, Petr imaginava qual seria a
primeira coisa que faria quando retornasse como Guardião de Anlevor, isso se sua
avó não tivesse virado Snartria de cabeça para baixo. Não havia parado para pensar
nessas coisas. Sabia que a função do Guardião ia muito além de caçar monstros.
415
Como protetor do continente, tinha de matar as variadas bestas que surgiam e
importunavam os condados e reinos, ainda que não se ouvisse falar tanto em
criaturas abissais atacando cidades por aí em Snartria, mas também era função
proteger as nações de piratas, ladinos, assassinos, ladrões e qualquer outro lunático
que ameaçasse a paz e a harmonia; atuar como juízes, julgando pequenas causas —
as maiores e mais complexas, obviamente, tinham de ser levadas para os
magistrados, nomeados pelos condados dos reinos. A melhor coisa a se fazer seria
peregrinar pelo continente. Necessitava conhecer melhor seu próprio povo. Vivera
treze ciclos praticamente confinado no Palácio de Ônix. Conhecia alguns condados
graças ao avô e aos parentes distantes que moravam do outro lado do reino, como
seu primo Roben e alguns dos Wallensig — que preferia não ter muito contato
mesmo. Precisava explorar os vinte e cinco condados, conhecer suas terras, as
florestas, montanhas e vales, entender quais perigos e riscos as pessoas passavam,
compreender suas necessidades, se envolver com suas dores, seus anseios, ameaças
e dificuldades que enfrentavam. Era a melhor forma de, não apenas se consolidar
como o Guardião de Anlevor, mas regressar ciclos mais tarde para assumir a coroa
e governar com justiça, depois de ter conhecido os quatro cantos do continente.
A cabeça viajou para longe por alguns instantes, absorto com o vislumbre
coruscante daquele saguão de entrada opulento. Imaginava se deveria ou não insistir
em encontrar o pai em Gelor-Torine. O brilho que vira nas Montanhas Congeladas
e a magia esdrúxula de Conrod instigava Petr a retornar aos campos brancos do
deserto de gelo para descobrir o que havia além do platô em que foram obrigados
a retornar para salvar as próprias vidas. Um ótimo pretexto para regressar às suas
investigações, na esperança de encontrar o pai, mesmo depois de mais de um ciclo
sem quaisquer informações sobre seu paradeiro, seria os wargs invernais. Os lobos
colossais e de poderosas presas afiadas eram um bom motivo para garantir um
retorno às montanhas. Não somente para exterminar as criaturas das trevas, mas
também para explorar os mistérios rondando os arredores dos montes cobertos de
neve do extremo norte de Anlevor.
Avançando pelas escadas, sempre conduzido pelo acompanhante, ouvia os gritos
abafados do povo do lado de fora. A euforia das multidões histéricas não cessava
um minuto sequer. E isso era assustador e ao mesmo tempo excitante. Petr estacou
diante de outra porta de carvalho, menor e mais estreita do que os portões de
entrada, mas coberta de ouro e outras joias engastadas sobre sua superfície. O luxo
e o requinte marcavam cada centímetro do palacete e arrebatariam os ânimos de
qualquer curioso se pudesse contemplar o que estava diante de seus olhos.
— Lorde Bravior, peço que aguarde neste ambiente. Logo, Lorde Stanhorne
chamará os senhores para a anunciação que se dará na sacada principal do edifício.
— Senhores?
416
A porta se escancarou. Além do brilho ofuscante da decoração do salão diante de
seus olhos espantados, com luminárias artesanais feitas de cristal, poltronas e
amplos sofás de couro de dragão espalhados por todo o perímetro, uma lareira
aconchegante e uma espantosa mesa de jantar posta com as mais variadas
guloseimas e refeições de primeira qualidade, Petr contemplou, pela primeira vez,
os outros quatro guardiões e que em breve comporiam o novo Círculo dos Cinco.
Era estranho — e desagradável — notar como todos eram bem mais velhos e
mais altos do que ele. Ou estranho seria ele ser nomeado Guardião com apenas
treze ciclos de idade? Não sabia muito bem, não tinha uma resposta formada para
sua própria questão, mas o desconforto foi instantâneo quando quatro pares de
olhos focaram exatamente no ponto onde estava. As maçãs do rosto certamente
haviam corado com alguma violência, pois sentiu-as queimarem de imediato. Sorriu
meio sem graça, sem saber se deveria acenar ou cumprimenta-los com alguma
formalidade. Estava convicto de que não sabia como deveria agir. Ninguém lhe
passou instruções sobre o que fazer na Casa dos Guardiões. Na presença dos
demais, tinha de fazer alguma saudação conhecida? Deveria desafiá-los? Precisava
ser durão ou cortês? Se ao menos seu avô estivesse vivo, ele o orientaria a se mexer
e não ficar estagnado feito idiota contemplando quatro desconhecidos
provavelmente mais poderosos e experientes do que ele.
O primeiro olhar a desviar a atenção para um bolinho em cima da mesa foi de
um brutamontes. O nariz fino era desproporcional em relação ao tamanho do rosto.
Vestia-se de modo bastante elegante, trajando vestes de seda de um vermelho muito
vivo, ainda que no rosto sustentasse uma expressão de altivez — ou seria nojo?
Pouco importava para Petr, jamais gostou de caras muito altos, eram sempre
valentões e arrogantes, esse não devia ser diferente. Notou que no peito trazia uma
insígnia dourada, de uma fênix em seu renascimento. Aquele devia ser o Guardião
de Aladar.
Seguindo pelo salão, Petr não decidia se atacava uma guloseima da mesa ou se
sentava no sofá e aguardava o “Cara de Coruja” chegar. Queria poder fazer as
pernas pararem de tremer pela euforia e nervosismos com o anúncio iminente. As
multidões do lado de fora não cansavam de sua insana agitação, berrando e fazendo
os ecos ensurdecedores de suas vozes estremecerem as vidraças. Mas a fome
atacava sem pudor, fazendo o estômago roncar. Não quisera comer muita coisa ao
longo da viagem de navio; o nervosismo o atacava e inibia sua vontade comer.
Limitou-se a algumas avelãs, um punhado de amendoins torrados e um chá morno
indecifrável — uma nota de morango ou amora, era difícil definir.
Os cabelos ruivos do segundo guardião despertaram sua curiosidade. Eram
revoltos de uma forma bizarra, como se ele acabasse de acordar e não fizesse caso
de ajeitar o penteado. Ele definitivamente não parecia querer estar ali. Os olhos
azuis — ou eram cinzas? — denotavam tristeza, distantes. Mirava as portas de vidro
417
da sacada com independentemente um olhar perdido. As vestes pratas e a medalha
dourada não ofuscavam a desolação inquietante dominando sua mente e o levava
para algum lugar muito longe, em seu imaginário. Petr sentiu um pouco de pena do
rapaz, que não parecia tão jovem assim quanto o brutamontes de vermelho. Será
que o obrigaram a aceitar essa missão? Será que ficou entre o punhal e a espada,
assim como ele próprio, tendo de decidir se entregava o reino para avó ou assumia
a responsabilidade de Protetor de Anlevor? Sentiu-se tentado a puxar assunto com
ele e perguntar se queria conversar sobre o que o atormentava. Ninguém deveria
ficar sozinho com seus próprios demônios. Agradecia muito por ter Chermont ao
seu lado quando sua vida desmoronou, após o sumiço do pai e a morte do avô —
e as loucuras de sua avó. Comprimiu os olhos tentando decifrar na medalha em seu
peito se aquele animal era de fato um leão ou um grifo. Decidiu que parecia mais
um leão, pela juba volumosa e as patas ameaçadoras segurando um machado. O
Leão Indômito era o símbolo da Austera Amistelar e ele devia ter algum parentesco
com o líder do Conselho dos Guardiões. Só sabia disso porque Salazar Stanhorne
usava um broche parecido em suas vestes negras no enterro de seu avô, Maximo.
Aquele era então o Guardião de Turmis, mesmo que contra vontade.
A fome era maior do que a curiosidade de descobrir o motivo da tristeza do
guardião ruivo de olhar penoso. Meteu a mão na mesa e agarrou um bolinho de
chocolate. Devorou num instante. Estava delicioso, ainda mais pelo recheio de
creme de avelãs. Pegou mais um e mais outro. Vislumbrou umas bandejas de prata
vazia a um canto. Agarrou uma e foi colocando tudo que podia e estava ao alcance
de seus olhos. Bolinhos, quitutes de queijo, carne, tortinhas de frango e camarão,
bolos de carne, pudim de leite, manjar. Era doce e salgado dividindo espaço na
mesma bandeja. E, como não queria saciar a fome em pé, avançou pelo salão,
avaliando em qual sofá ou poltrona deveria sentar.
Notou no sofá mais amplo — e que julgou parecer mais aconchegante — um
terceiro guardião sentado. De cútis da cor do ônix, ele estava irrequieto. Sustentava
entre os dedos da mão direita uma tortinha de camarão e dividia as mordidas na
guloseima com as dentadas de nervosismo nas próprias unhas. O estado dele era
bem similar ao seu, embora ainda conseguisse manter o autocontrole, sem deixar
transparecer a inquietação para os demais. Preferia descontar na comida a ter de
demonstrar a ansiedade que o consumia. Mordeu mais um pedaço da tortinha e se
demorou um bom tempo mastigando. As pernas não paravam de balançar e Petr
sentiu-se desconfortável com a inquietação daquele rapaz — que não parecia ter
mais do que uns dezoito ciclos de idade — vestindo roupas de um tom verde
chamativo e com um cavalo alado estampado no broche. Seria ele o filho mais velho
do Lorde Saldivar, o antigo protetor de Elstoen? Uma vez seu avô comentara sobre
as regras rígidas de primogenitura na Virtuosa Candorn. Deveria ser ele. Mas havia
entendido que seu filho mais velho não era tão novo assim. Decididamente, sentar
418
ao lado dele não faria bem ao amontoado de guloseimas sobre a bandeja e seguiu
para outro sofá, no lado oposto.
— Isso tudo é fome ou uma profunda crise de ansiedade, como nosso amigo ali
do outro lado?
Uma voz meiga, porém, firme atrapalhou sua concentração em devorar cada item
da variada lista aglomerada de petiscos e doces. Uma jovem de cabelos vermelhos
tão vivos quanto a roupa do primeiro guardião que encarara estava sentada
exatamente ao lado de onde escolhera repousar e comer. A fome era tanta que
sequer reparou na presença de uma menina ali. Uma menina, não, uma mulher. Não
era assim tão novinha, embora não fosse uma velha. Estranhara o fato de ter notado
apenas mais três guardiões, além de si próprio. Ainda faltava o representante de
Eurodian. A surpresa que o dominou foi tamanha que ficou uns bons segundos
admirando o belo rosto da jovem, pensando jamais imaginar que a Guardiã do
continente mais famoso do mundo seria uma mulher. O longo vestido azul dela era
exuberante e brilhava à luz das luminárias de cristal
— Imagino ser nervosismo mesmo, porque não para de me encarar!
Petr enrubesceu.
— Me... desculpe — falou Petr, desviando os olhos, sentindo as bochechas
arderem. — Eu não vi que você estava sentada aqui. Vou procurar outro lugar e...
— Deixa de bobeira! — falou Ivyna, metendo a mão em um bolinho de chocolate
com avelã e o devorando quase que instantaneamente. — Efes bofinhos esfão uma
delífia!
Petr arregalou os olhos para ela, admirado.
— Imagino que você seja a Guardiã de Eurodian, certo?
— Exatamente. O que me entregou? A medalha com o Grifo Inquietante em
meu peito ou essas roupas cafonas com as cores do meu reino para que todos daqui
a pouco possam nos reconhecer?
— Na verdade — Petr enfiou uma tortinha quase que inteira na boca — as duas
coisas. Eu fui contando os presentes no salão, deduzindo pelas cores e por esses
broches.
— Boa forma de reconhecer cada um. Não me passou pela cabeça fazer isso. É
uma boa sacada para quando a gente não quiser falar com algum guardião irritante.
Tomara que no Baile do Anúncio, todos estejam assim também. Muito bem
identificados com as cores de seus reinos. Assim será fácil desviar dos mais chatos
e ficar só com os mais legais.
Petr riu.
— Agora é minha vez — Ivyna pegou outro petisco da bandeja de Petr, uma
tortinha de frango dessa vez — pelos meus poderes telecinéticos, acredito que você
seja Petr Bravior, das nobres e serenas terras de Snatria, do interessante continente
de Anlevor. Acertei?
419
Petr arregalou os olhos.
— Você tem poderes telecinéticos?
Ivyna desembestou a rir.
— Claro que não!
— Como sabe tanto sobre mim, então?
— Todos os reinos-guardiões sabem sobre o lendário e poderoso menino
prodígio de Anlevor. E pode ser que eu também tenha pesquisado um pouco sobre
cada um dos novos Cinco. Quando você nasceu, sua história percorreu os quatro
cantos de Eirin. Você é filho dos dois maiores guardiões que eu já conheci. Hanna
Zanotchka era minha grande inspiração de guardiã. É uma pena que... bem... você
sabe...
— É... — Petr sentiu-se desconfortável. Seu avô nunca dissera que era famoso a
tal ponto. Enquanto ela conhecia muita coisa sobre ele, sequer descobrira qual era
o nome da jovem de pele pálida e longos cabelos vermelhos como chamas a crepitar
e que irritantemente roubava bolinhos e tortinhas de sua bandeja a todo momento.
— Você parece saber tudo sobre mim, mas ainda não me disse seu nome, nem
quem você é...
— Sou Ivyna Heinhardt, do Trono Branco da Suntuosa Badorian.
Ela estendeu a mão, abrindo um largo sorriso. Tímido, Petr também sorriu,
abraçado por uma confiança quase instantânea, algo que jamais sentira na vida.
Apertou a mão da guardiã com efusividade.
— Heinhardt... — ponderou Petr, encucado — Esse nome não me é estranho...
Ivyna olhou para o alto, como se a frase de Petr subitamente a entendesse.
— Deve ser por causa do meu irmão... Heidlich... ele era o último Guardião e
teve de abdicar quando...
— Você-é-irmã-da-Lenda-de-Eurodian?
A pergunta de Petr saiu engrolada e de uma vez só. Ivyna encarou novamente o
teto, diante da animação repentina do garoto e de seus olhos arregalados. Então,
sorriu.
— Sim, sim, é. Mas não venha me chamar de lendinha porque se não, eu...
— Meu pai sempre contava histórias sobre ele. Como ele era extraordinário, que
o poder dele...
— Parecia não ter fim, blá, blá, blá. É, ele mesmo.
Petr emudeceu. Quem parecia desconfortável naquele instante era ela.
— Desculpe...
— Não, tudo bem, Petr — falou Ivyna, parecendo menos chateada. — Posso te
chamar de Petr, não é? Ou você prefere Lorde ou algum título nobre?
— Acho que Senhor dos Guardiões seria bacana.
Ivyna e Petr riram.
— Pois bem, Senhor dos...
420
— Petr é suficiente.
Ivyna riu e roubou outro bolinho de chocolate.
— Sabe, Petr, é que... bem... eu sempre vivi à sombra do meu irmão. E era um
saco. Quando era criança e fazia algo que meu pai não gostava, ele dizia ‘seu irmão
não faria isso, porque o Heidlich, blá, blá, blá’. Era sempre um sermão infindável
sobre as qualidades do perfeitinho do meu irmão mais velho. Toda vez que minha
mãe vinha me repreender, ela falava: ‘você tem que seguir o exemplo do seu irmão,
porque o Heidlich, blá, blá, blá’. E eu cresci ouvindo sobre tudo isso a respeito dele,
mas ele quase não aparecia no palácio. Ele vivia por Eurodian e quando aparecia
em casa, era como se um ser mitológico superpoderoso e intocável tivesse surgido.
Era uma babação de ovo, um bando de puxa-saco, lambendo o chão por onde ele
passava. Eu criei um ódio por aquela figura quase etérea de perfeição, mas não havia
nem porquê, pois ele passava mais tempo longe de Badorian do que com a família.
— Mas você sentia raiva porque... todos te comparavam com ele?
— Exato. Você é novo, mas não é bobo, Petr. Queriam que eu fosse perfeita
como eles pensavam que ele era. Mas eu mal o conhecia. Quando Heidlich vinha,
a gente mal se falava e ele sempre me tratava como uma criancinha necessitando de
proteção. Então, eu cresci tentando ser o oposto do que todos achavam que ele era.
Sempre que me diziam para ser como ele, eu perguntava onde o Heidlich estava.
Ele pouco se importava com a própria família, raramente aparecia. Se estivesse
morto, nós provavelmente só descobriríamos quando encontrassem seu cadáver
em decomposição. Eurodian era seu verdadeiro lar.
— Mas se você está aqui, é porque alguma coisa mudou... não é?
— Sim... O problema era esse: eu não o conhecia. Minha imagem de senhor
perfeitinho, exemplo de moral e integridade, acima dos meros mortais se desfez
completamente quando nosso pai faleceu...
Houve silêncio entre ambos interrompido somente pela algazarra externa ao
salão. Petr reparou uma lágrima rolar dos olhos da jovem ruiva e ela parecia reunir
forças para continuar a falar.
— Meus sentimentos, Ivyna.
— Obrigado. Eu nem sei porque estou falando tudo isso para você, eu acabei de
te conhecer. Talvez fosse o desejo de desabafar. É difícil para mim falar do meu pai
sem chorar. Mas, enfim, quando Heidlich assumiu o Trono Branco, eu vi que ele
não era nada daquilo. Minha mãe não queria que eu estivesse aqui, neste lugar. Meu
irmão insistiu. Heidlich me ensinou muitas coisas e, mesmo quando eu achei que
ele tinha me traído, ele me ajudou. As coisas nem sempre são do jeito que achamos,
Petr. Ainda me irrita viver à sombra dele e estou aqui para escrever minha história,
ter meu próprio destino desenhado com minhas ações, mas eu aprendi a amar meu
irmão e ver que, sim, ele é A Lenda de Eurodian. Não somente pela força ou
421
poderes quase ilimitados, que ele realmente tem, ou pelos atos extraordinários feitos
ao longo da sua carreira, mas ele é uma lenda porque me ama.
— Então parece que Eurodian terá uma nova Lenda a partir de hoje...
— Espero fazer por onde, Senhor dos Guardiões.
Ambos riram e Petr segurou o último bolinho de chocolate. Partindo-o no meio,
dividiu com Ivyna.
— Você é um cavalheiro, Senhor dos Guard...
— Pode me chamar só de Petr mesmo, sabe.
Ivyna riu.
— Ok, ok. É que estava gostando desse lance de Senhor dos Guardiões. É uma
pena.
O Guardião de Aladar caminhou em direção a um espelho e atraiu a atenção de
Petr e Ivyna, acompanhando com os olhares o jovem brucutu gastar um bom
tempo arrumando as madeixas ralas e douradas, tentando manter um fiapo
desobediente no lugar, no topo da cabeça.
— Eu espero realmente que, no Baile da Anunciação, as pessoas estejam divididas
em cores bem chamativas. Assim, a gente vai poder se esquivar de pessoas usando
roupas vermelhas ridículas como as dele.
Petr riu, terminando de comer sua metade do bolinho. Subitamente, passou por
sua cabeça que não tinha companhia para o Baile. Não tivera tempo de convidar a
prima como companhia — e duvidava bastante que os pais dela deixariam ele a
levar como acompanhante para o baile. Ninguém de sua família viera e não tinha
muitas esperanças de ter alguém presente na anunciação do novo Círculo dos
Cinco. Estava sozinho, somente acompanhado da comitiva do Conselho que o
levou até ali. Veria Chermont, seu amigo, somente nos três eventos que
aconteceriam nos próximos dias. E não imaginava pegar bem levar Chermont como
acompanhante. Ele era um desastre na dança. Costumava dizer que tinha os dois
pés esquerdos. Conseguia realizar a incrível proeza de tropeçar andando, imagine
dançando. Precisava descolar alguém e uma ideia mirabolante brotou em sua mente.
— Escuta... é... você mencionou o Baile da Anunciação. Você... tem
acompanhante?
Ivyna abriu um sorriso para o garoto. Não era um sorriso de felicidade, mas uma
reação à sua pergunta, como se lembrasse de algo que deveria ter feito e não fez.
— Infelizmente, não. Quem eu esperava me convidar ou quem eu convidaria,
não sei exatamente, não estará em Gradia na noite do Baile. Acho que não fui rápida
o suficiente, talvez eu deveria ter tomado a atitude...
O olhar perdido em ponto algum, ela pareceu desolada por alguns instantes.
Provavelmente rememorava o convite que deveria ter feito. Petr decidiu que era o
momento propício para tomar uma atitude, mesmo parecendo uma loucura total.
— Bem, você... gostaria... de... ser... minha acompanhante?
422
— Senhor Petr, isto é um convite formal? Está me convidando para ser sua
acompanhante no Baile da Anunciação?
Petr sentiu a orelha esquentar. Imaginava se não estaria da cor de um tomate.
— Bem, eu pensei... Mas se você não quis...
— Para mim seria uma imensa honra poder ser sua acompanhante no Baile da
Anunciação.
O garoto abriu um largo sorriso, aliviado.
— Mas espero que você saiba dançar, hein?
Ele arregalou os olhos. Sabia alguns passos de dança, sim, mas não era lá um
exímio pé de valsa.
— Porque eu sou um desastre total.
Ivyna e Petr riram juntos mais uma vez.
As portas do salão se escancararam e os cinco guardiões se colocaram de pé,
prontamente. Acompanhado de dois guardas, o “Cara de Coruja” adentrou o
recinto. Não importava qual fosse o evento, para Petr, Salazar Stanhorne parecia
ter sempre a mesma roupa: o sobretudo negro era idêntico ao que usara no enterro
de seu avô. A maior variação nesse dia era a expressão em seu rosto. Não havia luto
ou tristeza marcando sua cara de coruja velha. Mas tinha sobriedade e o que Petr
acreditou ser uma pitada de emoção, uma euforia extremamente contida com o
evento histórico inédito.
— Senhores, lhes saúdo no desejo de que estejam tendo uma boa noite —
proferiu Salazar, sempre sério e cordato. — Acompanhem-me, por favor.
Um a um, os cinco guardiões seguiram o líder do Conselho por um corredor. Ao
final dele, cortinas foram recolhidas e pesadas portas de vidro se abriram. A brisa
salgada da noite adentrou o ambiente cálido de antes, bem como o vozerio histérico
de milhares de pessoas na praça contígua à Casa dos Guardiões. Salazar avançou
para a sacada externa juntamente com os cinco. Uma explosão de vozes berrando
a plenos pulmões ribombou pelos tímpanos de todos. Fogos de artifício pintaram
os céus, bandeiras e estandartes dos cinco reinos flamulavam em meio à multidão.
— Hoje, fazemos história — proferiu Salazar, fazendo sua voz reboar pelos ares
com um vórtice de vento elemental. — Estamos preparados. Esta casa anuncia um
evento inédito, uma esperança a ecoar pela eternidade. Rumo à glória das próximas
eras, vivemos ciclos de paz, igualdade, justiça e equilíbrio entre as nações. Nunca
antes, em toda a nossa história, houve tamanha harmonia como nos tempos atuais.
Somos hoje brindados com um acontecimento lendário que chancelará por toda
eternidade a unidade de todos os poderes pelo bem maior, pela proteção de nosso
mundo. Estou pronto. O Círculo dos Cinco está pronto. Que o Ano da
Elegibilidade comece!
423
Capítulo Trinta e Um
Histórias Ocultas
A mata era densa e escura. A trilha em que seguia era unicamente visível graças
aos pequenos flocos luminescentes do pólen de alguma flor nativa ali por perto.
Sisno Sannfrye seguia pela tortuosa carreira de chão batido de terra pelos muitos
pés que passaram ali em direção ao lago, sentindo o peso do cansaço sobre o corpo.
Pé ante pé, caminhando preguiçosamente, porém com redobrada atenção, agarrava
os dois lados de seu robe de dormir de seda. Cuidava para não agarrar em um
arbusto qualquer e estragar suas vestes. Dois acampamentos foram montados na
mata, relativamente distantes um do outro, sabia-se lá por qual motivo. As
acomodações não eram das melhores e ele imaginava que, de fato, em uma incursão
no meio da floresta, passando por terrenos acidentados, montanhas e florestas, não
haveria de esperar uma cama confortável, com travesseiros de plumas de ganso,
lençóis de linho fino e cobertores de algodão. Contudo, o lugar em que sua cabana
fora montada não era nada agradável e, desde o momento em que a fogueira fora
apagada, quando os olhos pesavam pelo sono, o chão abaixo de seu saco de dormir
revelava-se um intragável terreno coberto de pedras incômodas que o machucavam.
Era imperativo ter de resolver essa desagradável questão e exigir dele melhores
cuidados.
Caminhando entre a vegetação hostil, guiado pelos pontos luminescentes, não
tinha a menor sombra de dúvida quanto a decisão de substituir Menfesis e tal
consenso, como uma grata surpresa desde o término da reunião às escondidas em
Vandir-Lepit, era unânime entre os demais sacramentadores. Mesmo o mais difícil
deles e sua maior preocupação até então, Nikolai Nodovra, se dobrou ante aos seus
argumentos. As memórias da noite anterior corroboravam para que suas certezas
se solidificassem ainda mais. Haviam acabado de atravessar um poderoso rio de
águas cristalinas, porém revoltas como o mar em uma tempestade. Três dos
alquimestres que os acompanhavam utilizaram de seus poderes para poderem
atravessar sãos e salvos, mesmo sem conseguirem evitar que saíssem daquela
aventura completamente encharcados. Como o lusco-fusco dominava os céus ao
terminarem a travessia, decidiram acampar entre as árvores, antes do breu da noite
impedir de descobrirem se o lugar em que estavam era seguro para descansarem.
424
Acenderam uma fogueira e se livraram da roupa molhada para evitar que fossem
tomados por uma pneumonia. Ao cair da alta madrugada, depois de haverem
jantado, assim que os alquimestres da Confraria se retiraram para dormir, os oito
sacramentadores permaneceram ao redor da fogueira. Mãos esticadas para o calor
das chamas, alguns com canecas de chá de erva-doce e camomila fumegando, mas
com os olhos compenetrados no crepitar da lenha e drapejados com seus pijamas,
conversavam animados, como se a árdua travessia até ali tivesse sido um mero
passeio no jardim.
— Confesso que não era exatamente desta forma que imaginava as famigeradas
Terras Distantes de Turmis — comentou Nelis Naziv, enchendo uma caneca com
chá. — As lendas e histórias que habitam o imaginário dos humanos descreviam
essas redondezas como um local tremendamente hostil. Entrementes, jamais ousei
conjecturar que as bestas e criaturas de tais contos vãos sobreviveram ao longo de
todos esses ciclos, mas vislumbrava este território muito mais ermo, inóspito até
mesmo de quaisquer insetos.
— Há mistérios que rondam este lugar em que nossa vã filosofia não consegue
compreender, nobre Nelis — comentou Poledores, ressabiado, bebericando de seu
chá. — Ao longo de minha carreira, jamais fui agraciado com a sorte de obter uma
literatura a abordar os enigmas que rondam estas regiões emblemáticas.
— Afirmo-te, estimado Früg, que sou afortunado nesse ínterim — proferiu
Rodris Rannidge, mordendo um pedaço de charque que puxou de dentro da bolsa.
— Compreendo que nossas relações divergem a respeito da crença e da forma com
o qual tratamos os assuntos relativos à sacramentação do tempo, mas há instigantes
escritos dos centauros abordando esta latente questão.
— Perdoe-me, Rannidge — falou Soobo, meneando a cabeça, contrariada. —
Estás a dizer-nos que consideras as bibliografias advindas de criaturas tão hostis e
selváticas como os centauros? Devo lembrá-lo de que eles são amantes
contundentes da violência?
— Concordo veementemente — inferiu Nelis, colocando-se de pé. — Ignóbeis
criaturas como os centauros não consideram nada de nobre na vida a não ser suas
próprias bravatas, carregadas por uma selvageria ímpar.
— Senhores, acredito estais esquecendo que devemos muito de nosso
conhecimento a respeito da malha do tempo, das interpretações de vibrações e
oscilações complexas, à sabedoria da magia dos centauros — proferiu Gavir,
tomando um longo gole de chá. — Ou devo rememorá-los de que, até o fim da
Grande Era das Trevas, éramos singelos eremitas, abrigados no coração das
florestas, resguardados dos perigos iminentes pela força e coragem dos centauros?
— Há controvérsias, nobre Onobka — retrucou Yanui, ficando em pé para
encher a caneca mais uma vez. — Não há provas cabais que sejam categóricas para
tal afirmação. A interpretação das antigas oscilações é um conhecimento de eras,
425
cujas origens divergem em variados aspectos. Há literaturas que afirmam não haver
vibrações desvendadas por centauros, cabendo a eles unicamente o dever da
proteção para com aqueles que carregavam a sabedoria do tempo em suas mãos.
Havia uma relação de troca: a proteção de suas lâminas e vetores pelo dom élfico e
sacramental da predição do tempo. O que me diz, nobre Sisno?
Sisno encarou Soobo e Gavir com um olhar que parecia voltar de uma longa
contemplação. Bebericou um pouco mais de sua caneca e devorou um pedaço de
carne de forma comedida.
— Estamos engolfados por uma intensa discussão de eras, do qual opto por me
abster — comentou Sisno. — Rememorava os dias de Adryan Varnor, antes de ser
consumido pelo sacrilégio que o derrubou de sua perene posição.
— Recordo-me dele como se fosse ontem — falou Gavir Onobka,
contemplando o fogo com grande atenção, ainda que a mente estivesse vidrada na
lembrança prestes a contar. — Apesar de tantos ciclos, lembro-me da primeira vez
que ouvi sobre ele. Confesso que não me despertou qualquer curiosidade. À época,
estava colaborando e aprendendo com minha maedor Naesir, em Amistelar.
Ouvíamos as histórias a respeito da praga se avizinhando sobre Sananzaria, mas,
em virtude de quem liderava Perspicácia naqueles ciclos, confiávamos que não
haveria grandes problemas.
— De fato — comentou Poledores. — No entanto, desafortunadamente, houve.
— Deveras — continuou Gavir, assentindo. — A praga devastou centenas de
campos, não somente em Sananzaria, mas em Aralyart, Boralioch e Vaelfar e
provocou uma pestilência de proporções catastróficas nos muitos condados dessas
regiões.
— Recordo-me disto — inferiu Sisno. — Inclusive, fui levado a acreditar que
uma nova vibração da malha estava ocorrendo. Passei intermináveis horas que se
converteram em dias estudando os Antigos Escritos para descobrir se algo não
estava passando desapercebido a nossos olhos.
— Mas quando um arcano desconhecido despontou em Sananzaria, não apenas
desviando a praga para uma tempestade nos confins de Solídiras, e trazendo uma
chuva serôdia que recuperou as terras devastadas daquela região, a atenção de todos
se desviou para ele.
— Sim — comentou Soobo, abrindo um sorriso. — Esta proeza fez a fama dele
em toda Eirin. Dentro da Ordem, todos queriam descobrir quem era o arcano que
conseguira reverter uma tragédia em tão pouco tempo e de forma tão brilhante. Os
Yanui e os Alcobar o buscaram com célere expectativa para discorrer sobre os feitos
notórios que não apenas impediram o pior, mas provocaram a melhor colheita das
últimas quinze eras.
— Ele não somente descobriu como conter a praga, — disse Malik, sorridente
— mas discorreu uma tese brilhante sobre como a mesma oscilação que provocou
426
a pestilência e o desastre sobre àquelas terras, poderia ser substituída por oscilações
de mesma magnitude das Ilhas Fortinatis, se combinadas a uma série de vibrações
irrisórias de Anvor-Elíada. Essa substituição e combinação deram tão certo que se
provaram a melhor solução no caso do advento de pragas em nosso mundo.
— Não obstante, quando ascendeu a sacramentador, o dom de prever o futuro
era um ponto fora da curva.
— A visão que tinha sobre combinações de eventos climáticos em cadeia era
fascinante. Sem dúvida, nunca houve um sacramentador que pudesse enxergar de
uma forma tão majestosa como as Virações Cristalinas em Elstoen poderiam
influenciar incêndios nas florestas de Miliat, por exemplo.
— De fato, meus nobres amigos. A inteligência dele me espantava — acrescentou
Rannidge. — Embora a oportunidade de conhecê-lo se deu apenas quando sua
fama era consolidada na Ordem, sendo nosso líder, assombrava-me como sua visão
era além do alcance. Apesar do infortúnio de ter cometido um sacrilégio sem
precedentes, não me recordo de eventos desastrosos como os que temos visto após
a interrupção de nossas eras.
— Uma dura e cruel verdade, Rodris.
— Sem sombra de dúvidas.
— Não somente pela inteligência, mas a liderança e influência que exercia eram
primordiais para que tivéssemos eras tão formidáveis, sem catástrofes ou eventos
manchando a honra dos sacramentadores — falou Soobo, mexendo nos cabelos.
— Quanto ao Octaedro de Hegemonia, ele sempre manteve um diálogo aberto
com nossa família e uma incomparável relação com o Conselho.
— Foi ele quem iniciou uma aproximação entre a Ordem e o Conselho,
permitindo um incremento de nossas relações com os poderes dos Guardiões na
sociedade da época.
— O que perdura até hoje, felizmente.
— Todavia, os esforços de Arturo têm provocado indeléveis fissuras nesta
estreita relação.
— Faço um adendo ao recordar — falou Gavir — a despeito de sua muita
sabedoria e influência, o segundo maior erro de sua carreira, infelizmente, foi forçar
a nomeação de um Octaedro despreparado, o que foi motivo de intensa discussão
por tanto tempo.
— Sim, é verdade, nobre Onobka.
— De fato.
— Questiono-me, — inquiriu Nelis Naziv, curioso — o que se deu de sua
família?
— Eram conhecidos?
— Até onde me lembro, não — respondeu Soobo — Não pertenciam ao clã dos
Etéreos, pelo menos.
427
— Tampouco possuíam representantes no Concílio.
— Ouvi boatos de que viviam em algum lugar isolado de Achmat, consumidos
pela vergonha do pecado dele.
— Sumiram do mapa! — exclamou Nodovra, o único que ainda permanecia em
silêncio e estava notoriamente desconfortável com aquela conversa à luz
incandescente das chamas. — Desde a condenação de Adryan por seu execrável
sacrilégio, os Varnor desapareceram de Eirin para sempre.
Um silêncio constrangedor se instaurou ao redor da fogueira. Os elfos se
entreolharam, curiosos e assombrados com as palavras de Nikolai.
— Como podes afirmar tal coisa?
— Fui incumbido de devolver os pertences remanescentes de Adryan aos seus
parentes, após sua fatídica execução. Atravessei Eurodian até alcançar Fahur, onde
tinha por conhecimento a residência de seus pais e irmãos. Quando lá cheguei,
ninguém sequer havia ouvido falar sobre os Varnor.
— E o que eles faziam? Eram artesãos?
Nikolai meneou a cabeça, franzindo os lábios, bebendo de seu chá em seguida.
— Banqueiros?
— Escritores?
— Eram historiadores, não?
— Simples camponeses.
— Acredito que estejas equivocado, nobre Nodovra. Os Varnor eram
historiadores, viviam em Sananzaria e...
— Adryan escondeu por toda uma vida suas origens — interrompeu Nikolai,
revelando a verdade. — Ele queria que acreditassem haver nobreza em sua família,
assim como notadamente há em vossas raízes. Ascender como um sacramentador
brilhante, despontando com maestria e sabedoria entre tantos elfos de relevância
em nossa sociedade exigia, em sua concepção, uma origem mais nobre.
— Considero esta uma infeliz decisão — falou Sisno, balançando a cabeça. — A
nobreza não está no advento de insurgir em uma família notadamente reconhecida
na sociedade e tampouco nos bens possuídos ou influência que provocam sobre a
cultura de nossos dias. A nobreza se externa quando dedicamos nossas virtudes em
favor daqueles que mais precisam. A nobreza está na sabedoria, no propósito de
nossos corações, no altruísmo a motivar nossas ações. A nobreza não é e tampouco
pode ser um título, um bem, um cargo. A nobreza é a chama que arde em nossos
corações pela busca de um bem maior.
— Faço das suas as minhas palavras, meu nobre Sannfrye — completou Onobka.
— A nobreza habita nossos corações quando, a despeito de tudo o que está
acontecendo em nossos dias, empenhamos as vidas de cada um aqui em buscar
aquele que garantiu por tantos ciclos a harmonia entre elfos e humanos.
428
— Que, apesar dos pecados cometidos, empenhou a própria vida em nome de
um bem maior. E, quando do castigo por seus atos ilícitos, aceitou a penalidade
sem qualquer objeção.
— Que uma nova era se inicie e se perpetue por muitos ciclos, em que o bem
coletivo, acima do individual, seja uma constante.
Rodris se levantou e ergueu sua caneca de chá.
— A Adryan Varnor.
Os demais elfos se colocaram de pé, imitando o gesto do elfo.
— Que sua vida possa, mais uma vez, conduzir-nos à esperança que arde
incessantemente em nossos corações por dias melhores.
Alcançou o acampamento dos alquimestres que ficava na outra ponta da trilha.
Nem mesmo as brasas haviam restado da fogueira deles. O breu dominante só era
interrompido pelos luminares irrisórios de vagalumes e do pólen cintilante
carregado pelo vento e que o acompanhou até ali. Dormiam um sono profundo,
evidenciado pelos roncos retumbantes, como um coro fantasmagórico que
manteria afastado até mesmo as mais temíveis criaturas da floresta daquelas
redondezas. Entrementes, o lugar era um verdadeiro chiqueiro, sem um pingo de
assepsia ou o mínimo de organização, já que a estadia era provisória. Canecas de
metal e pratos de madeira se empilhavam perto das barracas, varais foram
montados a esmo e as calçolas e meias esvoaçavam com a brisa da madrugada e o
que sobrou do jantar — os ossos lambidos até o último fiapo de carne de um bode
assado — se espalhava pelo entorno. Restava a Sisno descobrir, vasculhando pelo
acampamento imundo, qual era a barraca do capitão da expedição.
Não gostava de pensar em arrependimentos em sua vida, afinal, as decisões que
tomava, ao longo de sua vasta caminhada através dos ciclos, sempre foram
permeadas por ponderações dentro de sua própria razão. Era isto que adorava
chamar de sabedoria. No entanto, se havia algo que podia dizer ser um amargo
arrependimento era de não ter questionado Moronov sobre quem os acompanharia
nessa viagem ou mesmo ter a opção de escolher os protetores de sua jornada. A
notoriedade de que oito elfos não tinham condições de embrenhar-se nas Terras
Distantes para irem ao encontro de um velho conhecido era quase palpável. Não
possuíam mínimas condições de enveredar rumo ao desconhecido. Não sabiam
manejar armas, nem espadas, lanças ou qualquer outra lâmina. Sacramentadores,
diferentes dos centauros, eram avessos à violência. Necessitavam da cooperação de
desbravadores experientes, com o mínimo de conhecimento sobre incursões no
meio da mata. Confiar essa decisão a um guardião talvez tenha sido o maior erro
dos últimos ciclos. Uma semana havia se passado desde que partiram de Zavir.
Eram memórias que se esforçava para apagar da mente, embora relutassem em
insurgir entre suas lembranças recentes.
429
Partiram de Cruisand na calada da noite, quando o último convidado ingressou
em sua carruagem, encerrando o Baile de Inverno e as luzes do palacete do
governador se apagaram. Aproveitaram as ruas vazias e o sono profundo da cidade
e rumaram para o porto, com Moronov à frente da comitiva. Uma corveta luxuosa
entre tantas outras muito mais singulares os aguardava. Zarparam em máxima
velocidade, singrando os mares revoltos de Crispoles, rumo à missão mais difícil da
vida dos oito elfos.
Dez homens, enfurnados em pesados capões de couro de dragão, os aguardavam
nas docas de Frandar, em Turmis. As águas despencavam do céu em uma chuva
torrencial de lavar o convés do navio. Não se vislumbrava qualquer outro barco nas
docas quando o deles atracou. Sisno imaginava que Moronov fizera questão de
cuidar de cada detalhe. Não podiam cometer erros e tampouco levantar suspeitas
sobre o que iam fazer ali. Iluminados pelas luzes incandescentes de lampiões
mágicos, Moronov reuniu os elfos e os homens que os esperavam em uma
choupana no extremo mais distante e escuso do porto. Sisno encarou os rostos
hostis e molambentos dos dez homens ao redor. Denotavam facetas carrancudas e
de descontentamento, abaixo das cicatrizes e marcas de expressão por causa do
peso dos ciclos. Estava habituado a embarcar em missões em nome da Ordem em
que dependiam do auxílio do Protetorado ou mesmo de contratarem humanos para
fazerem a guarda ou os acompanharem por terras desconhecidas. Eram em geral
soldados asseados, de rostos limpos e bem armados. Mas aqueles indivíduos os
esperando, não pareciam nada amigáveis ou animados pelo que estavam prestes a
fazer. Poderia relevar um possível descontentamento em virtude da fama do lugar
para onde rumavam. Decidiu relaxar e confiar que Moronov cuidara de tudo. O
ouro tirado de seu cofre pessoal deveria estar remunerando aqueles guerreiros
muito bem.
— Não contava com todo esse aguaceiro na nossa chegada — comentou
Moronov, sobrepondo a voz além do estrondoso som da chuva, cerrando a porta
de madeira atrás de si. — Essa chuvarada toda não é comum nessa época do ano,
é, Sisno?
— Considero, nobre Moronov — crocitou Sisno, numa tentativa de prover
alguma animação ao ambiente carregado — que, em nosso meio, aquele que pode
nos apresentar as hipóteses a respeito dessas intempéries é o...
— Que seja, que seja. — Moronov interrompeu, afobado, apontando para um
velho sustentando um enorme chapéu preto e desengonçado, acima do rosto
macilento e do cavanhaque grisalho. — Cavalheiros, sem mais delongas, quero
apresentar a vocês o líder dessa expedição. Alto Coldrar é o comandante da
Confraria de Zavir, há o quê? Vinte ciclos?
430
— Vinte e nove ciclos, Lorde Moronov! — pronunciou o homem, fazendo uma
longa reverência, embora sua boca não parecesse sequer se mover. A voz dele era
esganiçada e marcada por uma profunda rouquidão irritante.
— Vinte e nove? — Moronov levou a mão à testa. — Puxa, estou desatualizado
mesmo. Coldrar é comendador em Zavir e desfruta de total confiança do Conselho
no que diz respeito ao zelo e à proteção no entorno do Paredão, desde Zavir até as
terras aqui de Frandar. A Confraria dos Bravos Alquimestres de Zavir mantém a
harmonia desse lado de cá das Terras Distantes desde o fim da Era das Trevas,
estou certo Coldrar?
— Mais do que certo, milorde. Somos fiéis conservos do Conselho.
— Certo, certo — falou Moronov, esfregando as mãos — Pois bem, Coldrar este
é o ilustríssimo Sisno Sannfrye, o contratante. Acredito que os detalhes da missão
já foram esclarecidos. Necessito voltar imediatamente para Gradia. Os eventos do
Ano da Elegibilidade começarão em breve e preciso me certificar de que tudo sairá
conforme o combinado. Sabe como os outros conselheiros são atrapalhados sem a
minha presença por lá, não é?
— Claro, milorde — respondeu Coldrar, assentindo e sorrindo sem graça. —
Partiremos assim que o sol raiar e abriremos os portões do Paredão para que sigam
em sua busca do lado de lá.
Sobrancelhas arquearam imediatamente e os olhares de Soobo, Poledores, Rodris,
Nelis, Nikolai, Gavir e Malik miraram no mesmo instante em Moronov e dele para
Sisno. O silêncio pesou dentro do casebre peculiar e, antes que Moronov pudesse
se retirar e voltar às docas, Rodris atravancou o caminho até a porta.
— Não ficou esclarecido ante minha percepção — Soobo tomou a dianteira, o
rosto sereno e livre de expressões carregadas — a sentença de vosso comendador,
Lorde August Moronov.
Moronov emitiu um sorriso amarelado e arregalou os olhos. Coldrar comprimiu
os olhos assim que tirou o chapéu e exibiu sua vasta cabeleira grisalha presa em um
rabo de cavalo. Os demais alquimestres lançavam olhares desconfiados para os
elfos ao redor.
— Se bem me recordo, nobre Moronov, — falou Malik, caminhando na direção
do guardião — despendi uma exorbitante quantidade de ouro de minhas finanças
pessoais, depositadas ante sua custódia depois de nos reunirmos em Vandir-Lepit,
para o cumprimento de acordo bilateral que contemplava uma incursão pelas Terras
Distantes até lograrmos êxito em nossa missão.
— Como é? — questionou um dos alquimestres, parecendo alarmado. — Se
estou entendendo direito, vocês estão querendo que nós... atravessemos o
Paredão... junto com vocês?
— Milorde, não foi esse o acordo entre nós! — exclamou Coldrar, avançando até
o cerne da discussão.
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Moronov se encolhia perto da porta, mas Rodris Rannidge continuava estacado
junto à maçaneta; o rosto lívido do elfo observava a expressão apalermada do
guardião. Os alquimestres avançavam para perto deles, com uma faceta carrancuda
indicando que as coisas não estavam bem esclarecidas como eles imaginavam.
— Estou convencido de que há um irrisório equívoco quanto ao que foi alvo de
nosso contrato nesta jornada inoportuna — falou Sisno, aplacando os ânimos que
começavam a se alterar, pondo-se entre Moronov, os sacramentadores e os
alquimestres. — Nosso acordo não se limita ao perímetro excludente das Terras
Distantes. Há um eminente anseio por transpormos a cordilheira elevada que divisa
este continente de leste a oeste para atingirmos o êxito de nossa destacada
incumbência. Contudo, para tal, há de se trazer à luz o fato de que não passamos
de oito elfos, desprovidos de qualquer defesa ou notório saber a respeito do que
permeia o cerne para além das cadeias de montanhas. Por nossas vidas, como
humildes servos seus, rogo-vos que assumam o encargo de se estabelecerem como
nossos guias nesta aventura, por mais insólita que possa parecer. Mesmo que para
tal, ofereçamos o dobro ou o triplo do montante creditado aos senhores para
cumprir o acordo até aqui estabelecido.
— Não há dinheiro, ou ouro, ou o que vocês queiram oferecer para nós
atravessarmos esses portões — falou um dos alquimestres, arregalando os olhos,
de medo. — Aquela terra é amaldiçoada. A razão da existência dessa Confraria é
justamente impedir as criaturas funestas do lado de lá ultrapassarem para o lado de
cá e vem vocês me dizer que querem ir lá dentro?
— Seja lá o que vocês querem ou o que perderam lá dentro, esqueçam —
comentou outro alquimestre, atarracado e mais assustado do que o anterior. —
Aquela terra lá tem uma maldição antiga, de muitas eras. Não há bem algum nessa
vida que me faça querer entrar lá!
— Queremos o quíntuplo do que foi pago até agora!
Coldrar exclamou, exibiu um sorriso malicioso. Moronov, que até aquele
momento permanecia calado e sobressaltado, arreganhou os dentes para a sentença
do comendador. Os demais membros da Confraria arregalaram os olhos para seu
líder.
— De acordo, de acordo — disse Moronov, pressuroso, correndo para apertar a
mão de Coldrar.
Com o novo acordo feito, sendo o restante do pagamento uma dívida que o
próprio Moronov arcaria, depois de uma longa conversa entre ele e Sisno, o grupo
partiu quando os primeiros raios solares brotaram entre as nuvens. O chanceler do
Conselho ingressou às pressas no mesmo barco que viera, ainda na alta madrugada,
em meio ao forte temporal no litoral de Frandar. Tanto Sisno quanto os demais
sacramentadores, e até mesmo alguns membros da Confraria, conjecturavam que o
432
catalisador de uma partida tão imediata foi o medo de não ser linchado pela
comitiva enquanto estivesse dormindo.
A viagem seguiu sem maiores problemas até se virem diante dos portões do
Paredão. Os portões que davam acesso ao outro lado das Terras Distantes de
Turmis eram os últimos resquícios do que um dia fora um grandioso túnel que
atravessava a montanha. Com o advento do fim da Era das Trevas, o exílio dos
monstros e bestas que castigaram Eirin obrigou a encerrar as entradas até o lado de
lá com pesadas grades de uma liga mágica reforçada, o aço-amitur. Desde então,
nunca havia se ouvido falar de alguém ousado o suficiente para transpor tais
portões. Coldrar desceu de sua montaria e enfiou a chaves dentro dos cadeados do
único caminho que levava até o outro lado da montanha. As coisas ficaram muito
esquisitas e nem um pouco fáceis a partir daí. O medo permeando o imaginário dos
dez alquimestres a respeito das coisas além do túnel sombrio era muito pior do que
o que realmente encontraram quando chegaram lá. Sisno tinha a esdrúxula sensação
de que Coldrar tomava decisões acintosas quanto a ele e seus demais amigos
sacramentadores. Reservara a eles lugares abissais para descansar, com colchões
mais finos do que os lençóis usados para dormir, o que lhe causara uma terrível dor
nas costas esses dias todos; quando algum dos elfos lhe fazia perguntas diretas sobre
o caminho a percorrer ou a respeito dos mantimentos e guarnições do
acampamento, ele e os demais não se importavam em ignorar, mantendo o silêncio
e prosseguindo pelo meio da mata. Mas quando se prestavam a falar, eram rudes e
grosseiros nas respostas, como se o serviço que estivessem fazendo fosse um favor
de bom grado a eles. Não fosse pelo acordo com Moronov e a destreza dos dez
alquimestres em lidar com os perigos de uma floresta desconhecida, Sisno teria
seguido sem eles até chegar onde queria.
Desvencilhando-se da montoeira de ossos esturricados, Sannfrye tentava
descobrir em meio ao negrume do acampamento, qual deveria ser a barraca de
Coldrar. Imaginava que haveria de ser a maior, mas considerando o tamanho da
bagunça do lugar, deveria ser a mais emporcalhada. Ainda sondando qual delas
seria, vislumbrou um luzeiro bruxuleante em um ponto próximo à margem do
riacho. Dois alquimestres caminhavam aos passos preguiçosos, carregando uma
lamparina sem muito ânimo. Deviam estar fazendo a ronda da noite. Abandonando
sua busca infrutífera pelo líder da expedição, caminhou ao encontro dos dois
homens carregando a lanterna.
— Saudações, nobres cavalheiros! — cumprimentou Sisno, seguindo na direção
dos alquimestres.
Na penumbra do fogo elemental, Sannfrye divisou o rosto marcado e carrancudo
do líder da Confraria. Inspirou o ar fresco da noite e tentou sustentar a calma e o
humor moderado que o conduziram até ali, embora, por dentro, estivesse a ponto
433
de ter uma longa conversa com o comendador a respeito do tratamento para com
ele e seus demais amigos elfos.
— O senhor deveria estar dormindo, não? Partiremos logo que...
— Nobre Coldrar, tentarei ser o mais breve e sucinto possível. Minhas
acomodações não estão à altura de um mínimo conforto adequado para uma noite
de sono recuperadora. Acredito ser de notório conhecimento entre nós, nesta
lúgubre clareira, que não há a menor condição de se ter um descanso no local em
que minha barraca foi assentada. Com isto, solicito a troca imperativa do lugar de
meu alojamento para outro mais apropriado.
Acima das profundas olheiras do rosto encovado de Coldrar, ele revirou os olhos
e passou os dedos sobre o rosto, demorando-se um pouco mais na ponta de seus
bigodes curvados.
— Ragor, vê o que esse digníssimo aí está te pedindo e volte imediatamente para
cá.
Embora o “digníssimo” soasse com um tom carregado de deboche, o alquimestre
atendeu à solicitação de Sisno, acompanhando-o até o lugar de seu alojamento. E
o líder da Confraria contava cada segundo para regressar ao seu lar, com intensa
expectativa. Não pelos perigos e mistérios que rondavam as Terras Distantes, mas
para se ver livres desses malditos elfos sacramentadores.
434
Capítulo Trinta e Dois
O Baile da Anunciação
O Salão de Bailes da Casa dos Guardiões era uma coisa descomunal e fez Ivyna
perceber o quanto aquele lugar era ao mesmo tempo gigantesco e exagerado.
Duvidava se as proporções não haviam sido alteradas por alguma magia, mas não
haveria uma magia forte e duradoura o suficiente para realizar tamanho feito. Era
o que ela pensava, pelo menos. O lugar podia caber, em suas percepções ao adentrar
o recinto, pelos menos umas três mil pessoas de forma confortável, o que era um
baita exagero para qualquer salão de festas dos variados palácios de Eurodian por
onde passou, até mesmo os mais badalados. Mesmo no Salão de Vidro, em
Cruisand, quinhentas pessoas era considerado uma lotação desconfortável. Se as
quinhentas estivessem presentes, não haveria espaço para o buffet ou uma
orquestra razoável. Mas ali, caberia facilmente seis vezes essa quantidade — com
espaço para os músicos e uma boa mesa de jantar.
O requinte do monstruoso salão era um absurdo, fato que comprovava para
Ivyna que o Conselho era o melhor anfitrião de festas do continente, quiçá de Eirin,
mas só poderia afirmar com convicção quando estivesse em bailes e cerimônias dos
cinco continentes, e ainda faltavam três para conhecer, em suas contas. A decoração
do salão estava recheada das cores dos reinos-guardiões, com muito brilho e
pomposidade. Grifo, Leão, Corcel, Harpia e Fênix se espalhavam por todo canto,
em várias flâmulas que se estendiam pelas colunas e paredes, drapejando também
as cortinas e toalhas de mesa do buffet montado.
E por falar em buffet, o Conselho dos Guardiões devia estar querendo que todos
saíssem dali rolando de tanta comida espalhada ao longo das vinte mesas recheadas.
Havia todo tipo de receita que podia contar. Umas bem conhecidas, como bolos
de carne, leitões assados, tortas doces e salgadas, ponchos, vinhos, cidras, cervejas,
sucos e algumas bastante duvidosas, das quais preferia manter distância. Era meio
enjoada para comer alguns tipos de pratos, se aproximar daquelas de gosto e
aparência duvidosas estava fora de cogitação.
Aparecera radiante para o baile, vestida para causar. Laurie e suas outras primas
passaram vários dias escolhendo o vestido ideal para a ocasião. Com o longo
vestido azul encantado por uma magia que fazia parecer correrem pequenas ondas
435
de um mar calmo e as inúmeras joias madrepérolas descansando em seu pescoço,
mãos e punhos, não tinha como passar despercebida. O cabelo vermelho com uma
poderosa trança criava um contraste arrasador com a roupa. A Lenda de Eurodian
seria sucedida à altura e, como disse Petr no dia anterior, o continente teria uma
nova lenda para chamar de sua.
Num arroubo de lucidez após o êxtase com a beleza do salão, percebeu que
precisava encontrar seu acompanhante do grande Baile da Anunciação.
Embora tivesse treze ciclos de idade, falava como um homem de mais de trinta.
As experiências dolorosas recentes vividas talvez o tivessem ensinado a ter uma
maturidade precoce, mais do que deveria para alguém que acabou de entrar na
adolescência. Deu-se por conta estar afeiçoada a ele de uma forma engraçada, como
se o garoto fosse um irmão mais novo. Quando teve idade para começar a discernir
as coisas à sua volta, Heidlich já era um Guardião famoso e o contato com ele
sempre fora algo extremamente raro. Essa amizade inesperada com Petr foi uma
grata e imprevista surpresa.
Caminhou pelo extenso salão, seguindo as infindáveis regras de etiqueta que
aprendera ao longo dos ciclos: cabeça elevada, nariz empinado, ombros retos, perna
ante perna, como se estivesse desfilando. Diferente dos eventos em Badorian,
queria chocar positivamente os presentes. Queria todo mundo falando e
cochichando sobre a nova Guardiã de Eurodian. Procurando entre os convidados
recheando o salão, em bandos ou sozinhos, fosse comendo, conversando ou
admirando a beleza do lugar, vislumbrou figurões conhecidos. Avistou Salazar
Stanhorne com sua feição de poucos amigos. Segurava uma taça de vinho que
balançava com os dedos. Nunca sabia se ele estava desconfortável, embora seus
trejeitos sempre denotassem isso, ou se apenas entediado com a conversa ao seu
redor. Mas uma coisa era certa, e não era a primeira vez que percebia isso, toda vez
que a via em qualquer evento e o olhar de ambos se encontrava, ele sempre reagia
da mesma forma: acenava a cabeça levemente duas vezes e abria um ínfimo e tímido
sorriso, sem jamais mostrar os dentes, arqueando os cantos dos lábios. Por
educação — ou medo, nunca definiu muito bem — abria um sorriso para seu
cumprimento à distância. Ivyna sabia, em seu íntimo, Stanhorne não era essa figura
sombria e detestável que muita gente achava, era somente um cara reservado e na
dele, fazendo de tudo para manter as coisas no Conselho no lugar.
Os Moronov também estavam lá, em seu bando soturno e execrável. Aduladores
e espalhafatosos, viviam acampados ao redor da figura máxima de sua árvore
genealógica: August, o chanceler do Conselho. O velho urubu intragável era o pior
deles. Alguém que Ivyna precisava manter bem longe. Se ele fosse para a esquerda,
ela iria para a direita. Rogava que ele não quisesse fazer nenhum tipo de
apresentação mirabolante, a anunciando como algum destaque de Badorian — até
porque ele adorava fazer esse tipo de coisa. Ainda não havia avistado nenhum
436
Heinhardt, nem Borovit, tampouco suas primas Lohntrak. Suspeitava ter se
arrumado cedo de mais. Ou seus outros familiares estavam muito atrasados
mesmo?
Procurando seu parceiro do baile, notou o Guardião de Elstoen em um elegante
traje verde-musgo. Conversava com um homem corpulento e de cabelos grisalhos.
O rosto dele não era estranho, mas não conseguia recordar de onde o conhecia.
Muito provavelmente, se ele fosse o rei de Candorn, com certeza já teria participado
de algum evento em Badorian, Cruisand ou Paragon. Pelas caretas desesperadas do
mais novo e os trejeitos acalentadores do mais velho, deviam ser pai e filho em uma
prosa sobre como reagir e se comportar naquele ambiente apavorante e inédito. No
fundo, Ivyna se sentia um tanto receosa e, ao ver Moronov, o medo crescente de
ele querer aprontar alguma emanou de um modo aterrador. Mas, confiava que
Heidlich logo estaria no salão e não deixaria esse tipo de coisa acontecer.
Avistou a figura agradável de Lorde Argus Norhein, o rei maravilhoso da
Magnífica Mistral e antiga paixonite de sua infância e adolescência e também das
outras meninas de sua idade de Badorian. Os cabelos grisalhos começavam a tomar
o lugar das antigas madeixas loiras e impecáveis, mas ele ainda era a sensação entre
as garotas do reino. O porte pujante dele sempre impressionava, até mesmo as
mulheres mais velhas de Badorian, mas o sorriso era a tentação, todas se derretiam
por aquele sorriso perfeito, cheio de dentes muito bem alinhados e brancos.
Estranhamente, ele não estava rodeado de elfos sacramentadores. O rei de Mistral
era um fã de carteirinha dos belos elfos que sempre marcavam presença nos
principais eventos reais. Ele tinha uma devoção pela sabedoria e pela magia
incompreensível dos sacramentadores. Vivia aos papos com Alezeia Turim e Sisno
Sannfrye e eram sempre chamados de “trio intrínseco” pois viviam grudados,
independente do evento. Naquele dia, os tradicionais elfos, acostumada a ver em
eventos assim, não se faziam presentes. Nada de Alezeia, Sisno ou o excêntrico
Poledores Früg. Os sacramentadores espalhados pelo salão eram todos muito belos
e majestosos, mas completos estranhos.
Vislumbrou um monte de gente desconhecida e que sequer fazia noção de quem
eram, mas uma coisa era certeza naquele lugar: deviam ser reis, guardiões,
magistrados, convidados ilustres selecionados a dedo, tanto pelo Conselho quanto
pelos novos integrantes do Círculo dos Cinco. Era o evento do ciclo, quiçá das eras.
O Ano da Elegibilidade constava nos estatutos mais antigos das legislações dos
Guardiões, mas jamais aconteceu. Nunca na história cinco Guardiões deixaram
seus postos em tão curto espaço de tempo. Orgulhava-se de poder marcar a história
de Eirin, representando o continente que considerava o mais importante, por
abrigar os Pilares da Magia, a Casa dos Guardiões e tantos outros monumentos
maravilhosos.
437
Avaliando os rostos conhecidos pelo perímetro, enfim enxergou Petr surgindo
numa das entradas principais do salão, no momento em que o lugar começava a
encher ainda mais. Elegante, avançava um tanto intimidado e meio perdido,
trajando um belo sobretudo preto com detalhes prateados e o que parecia ser uma
rosa vermelha em suas mãos.
— Até que enfim. Achei que tinha desistido de mim.
Petr estacou por alguns segundos. Boquiaberto, contemplou a beleza de Ivyna
dos pés à cabeça. Ela, afinal, conseguira o que tanto almejara: impressionar.
— Não... eu... fiquei... procurando isto.
O garoto estendeu a mão e entregou a rosa para Ivyna.
— Uma belíssima flor!
— Meu avô sempre me dizia que, toda vez que se convida uma dama para um
baile, é preciso presenteá-la com uma flor. Ele era muito fã de rosas...
Ivyna prendeu a rosa nos cabelos com uma magia simples.
— Que tal estou?
— Fantástica. Gostei dessas ondinhas. Mas acho que devia ter trazido uma rosa
azul. Eu esqueci que as cores de Badorian são azul e branco....
— Que nada! Você lembrou dos meus cabelos. Combinou perfeitamente.
— Se você gostou, fico mais tranquilo.
Uma música tocou de súbito, enchendo o salão com uma melodia agradável vindo
da orquestra de cordas a um canto. Os convidados se formaram em duplas
vagarosamente e foram ocupando o centro do salão, dançando valsas conhecidas.
— Acho que é o momento de você me mostrar se é tão bom quanto diz na dança.
Petr sorriu e, educadamente, mas ainda sem jeito, conduziu-a até o meio do salão.
Como um verdadeiro cavalheiro, segurou uma de suas mãos e apoiou a outra na
cintura. Por sorte, apesar da pouca idade, ele não era tão mais baixo assim do que
ela, mesmo com a carinha quase infantil denunciasse que ele não tinha atingido a
maioridade.
— Não sou um pé de valsa, mas aprendi a me virar.
— Estou percebendo. Você tem muita atitude. Cheguei a pensar que eu teria de
tomar a iniciativa e te arrastar aqui para o meio do salão.
— Esse ciclo tive que aprender a tomar a iniciativa... além do que, aprendi que o
homem deve conduzir uma valsa lenta.
— Seu avô era um homem bastante sábio.
— Isso eu aprendi com meu pai, no caso. Passamos pouquíssimo tempo juntos,
mas quando estava em Snartria, ele me levava para passear por lugares fantásticos,
sempre no dorso de um grifo. Aprendi muita coisa com ele, inclusive a voar.
— Seu pai foi um homem muito sábio também.
— Ele é.
— É?
438
— As pessoas acham que ele morreu. Mas lá no fundo, eu não acredito nisso.
Algo dentro de mim insiste em crer que ele está vivo, perdido em algum lugar do
Norte, tentando encontrar o caminho de volta para casa.
— Bem, se é o que você acredita, ouça a voz do seu coração. Contudo, se essa
crença desvirtuar seus caminhos, separar você do que ainda importa e está junto de
você, não definhe perseguindo algo que foi embora. É difícil, é doloroso, mas às
vezes é necessário.
— Eu entendo.
Ivyna notou os olhares de Petr, enquanto a conduzia na dança, para os outros
pares. Algumas pessoas ao redor arregalavam os olhos, espantadas com ambos e
cochichavam entre si coisas inaudíveis, por causa do som alto da música.
— Você acha que essas pessoas estão... falando da gente?
— Devem estar, sim. Principalmente do meu cabelo, que contrasta
maravilhosamente bem com esse vestido azul, as joias brancas e essa rosa vermelha
exuberante.
Os dois desembestaram a rir.
— Acho que é do meu espetacular sobretudo preto com essas linhas prateadas.
Repara minha careta e me diga com quem pareço.
Petr contorceu as feições do rosto, ficando muito parecida com as facetas
insípidas de Salazar Stanhorne. Se as pessoas já olhavam para os dois no meio do
salão, arregalaram ainda mais os olhos, ficando em destaque, quando Ivyna soltou
uma gargalhada do fundo da alma, se sobrepondo à melodia dos violinos.
— Salazar, Salazar Stanhorne.
— Você não acha que ele tem uma... Cara de Coruja?
Ivyna soltou mais uma gargalhada e alguns casais se afastaram dos dois.
— Sim, sim. Parece uma coruja velha e sem sal.
— Ele não sabe disso e espero que nunca saiba. Mas eu sempre o chamei de Cara
de Coruja. Digo, para mim mesmo, sabe? E outra, não importa o que ele faça ou
onde vai, a roupa dele é sempre a mesma: o sobretudo preto.
— É verdade. Agora que você falou, faz todo sentido: ele nunca muda esse traje.
Deve ter um armário recheados de sobretudos negros iguais, um para cada dia da
semana.
Ambos desataram a rir outra vez.
— Até que você está dando para o gasto, Petr. Não pisou no meu pé, não apertou
minha mão, não fez peso na cintura.
— Falei para você que era um pé de valsa.
— Você disse que sabia se virar...
— Estou me autodenominando Pé de Valsa agora. Aprovado pela Nova Lenda.
— Nova Lenda?
— É... não?
439
— Detestei esse apelido... Acho que Mítica de Eurodian fica melhor, o que acha?
— Acho que Lenda é melhor. É mais exagerado, mentiroso e dá a maior pompa!
— Bem, preciso pensar mais um pouco... Talvez a Espetacular de Eurodian.
— Não gostei. Parece coisa de teatro.
— A Fenomenal?
— Parece coisa de outro planeta.
— A Estupenda?
— Me lembra estúpido...
— Mas sabe que não é, né?
— Já sei! Sublime!
— O que é sublime?
— Não, Ivyna. A Sublime de Eurodian.
— Soa meio arrogante, até prepotente... mas eu gostei. Agora é convencer as
pessoas a me chamarem assim a partir de agora.
A música terminou e uma salva de palmas dos casais ao redor encheu o salão.
Ivyna e Petr se afastaram. Como manda o protocolo, se cumprimentaram e outra
canção começou. Ambos voltaram a dançar e papear.
— Mas... me diz... Você sempre quis ser Guardião?
— Não... ou sim? Bem, não sei ao certo. Mas era isso, ou deixar a louca da minha
avó assumir o trono.
— Como assim?
— Uma longa história... Mas, resumindo, depois que meu avô morreu e meu pai
sumiu, minha avó queria porque queria assumir o trono. Os conselheiros de
Snartria não deixaram. Tinham medo dela virar o reino de cabeça pra baixo. Eu
fiquei dividido. Enquanto eles insistiam para eu assumir a coroa, o Conselho lutava
para que eu fosse Guardião. Foi uma decisão muito complicada.
— De fato...
— E você? Sempre quis ser Guardiã?
— Esse sempre foi meu sonho, desde garotinha. Desde que conheci a Academia
dos Guardiões (e jamais me deixaram estudar lá) eu quis ser a Protetora de
Eurodian. Sempre li tudo a respeito, tudo sobre magias, técnicas de golpes mágicos,
magia elemental, transformações, a história de grandes Guardiões, etc. Mas, desde
que fui nomeada, eu me sinto confusa.
— Confusa?
— Sim, confusa por causa de uma pessoa que mal conheço e que sequer está
aqui.
— Roben?
— Hã?
Sem se dar conta, Ivyna notou os olhares saltados de Petr para um canto do salão.
Um homem de ombros largos e cabelos ruivos bem curtos caminhava na direção
440
do garoto. Deixando a valsa para trás, Petr correu para abraçar o homem, largando
Ivyna sozinha, contemplando a cena sem compreender nada. Ela não podia
esquecer que o garoto só tinha treze ciclos de idade — e, entrementes, havia
esquecido desse pequeno detalhe — e pela efusividade com que conversava com o
sujeito, parecia ser algum tipo de amigo ou parente que Petr não via fazia algum
tempo.
Parada ali, ouvindo a valsa melancólica irradiando pelo salão, Ivyna ficou um
tanto pensativa com o que acabara de proferir. A mente estava confusa desde a
última luta em Badorian. Não por causa do embate em si ou pela tragédia que se
sucedera com o primo, na arena, mas por causa de uma pessoa em especial, que
vira pela primeira vez no alto da tribuna real. Ropher, o moreno alto e elegante da
Austera Amistelar, embaralhava sua mente. Desde que soubera sobre o casamento
arranjado por sua mãe, deixou com que um ódio crescente e mortal dominasse seu
ser, detestando de forma execrável a ideia de ter de casar com alguém que jamais
vira, tudo para agradar os ideais tresloucados de sua mãe. Lutara com todas as
forças para jamais conhecê-lo, insistindo e brigando com a mãe para poder ser o
que realmente almejava. Mas quando o viu em Badorian, surgindo de surpresa, o
velho sentimento de detestá-lo com todas as forças desapareceu. Relutava em
querer aceitar e não queria se convencer, mas era impossível ignorar um sentimento
confuso surgindo em seu âmago. Era paixão. Estava apaixonada por aquele rapaz
desconhecido, que não foi prepotente ou mesmo galanteador, mas cordato, simples
e nem um pouco avesso à sua luta violenta no meio da arena. Pelo contrário, vibrava
a cada novo golpe.
— Será que me concederia a honra desta dança?
Ivyna não percebera que a música havia acabado e outra iniciava, quando uma
voz grave ecoou atrás dela. O coração gelou por um instante e, quando se virou
para ver quem a convidava para a valsa, deparou-se com seu irmão, Heidlich, num
estonteante terno azul-marinho, abaixo de sua barba e cabelos dourados.
— É claro, meu rei.
— Sabe... ainda não me acostumei com esse título. E é ainda mais estranho ser
chamado de ‘meu rei’ pela minha própria irmã.
— Acostume-se. Você vai ter de me chamar de ‘minha Guardiã’ a partir de agora.
Heidlich sorriu.
— Isso será um prazer, minha Guardiã. A propósito, percebi que estava
dançando com...
— Petr Bravior!
— Nossa, como esse garoto cresceu. Acho que estou ficando velho. Estou
perdendo meus poderes de jovem.
— Heidlich Heinhardt perdendo poderes? Isso é uma coisa que não existe.
— A idade chega para todo mundo, Dona Ivyna. Você vai chegar lá também.
441
— Até chegar na sua idade? Ih, ainda faltam algumas eras!
Heidlich dançava muito bem, mas eram notórias as diferenças entre ele e Petr. O
garoto era mais delicado, talvez por ser muito novo e não estar tão habituado a
danças a dois assim. Poderia estar intimidado também. Não sabia se ele havia
dançado com alguma mulher em uma festa. O irmão mais velho era um pouco mais
rude, com passos de dança mais cadenciados e decorados. Não dividia a valsa com
ela. Ele conduzia sem se deixar influenciar. Ivyna se pegou imaginando por quantos
infinitos bailes e festas, quantas valsas e outras danças ele já não teria passado na
vida. Aquilo era mais do que corriqueiro para ele.
— Será que serei uma boa Guardiã, Heidlich?
— Será que eu serei um bom rei, Ivyna?
Riram um para o outro.
— Você é uma lenda viva, meu irmão. Se protegeu o continente por vinte ciclos
com maestria, domar as rédeas da Suntuosa Badorian será feito com facilidade.
— Eu não tenho dúvidas de que você será maior do que eu em Eurodian. Eu
nunca fui de dar conselhos, muito mal segui os que nosso pai e mãe me deram,
mas, se aceita um, aqui vai: ser Protetor não é uma tarefa fácil. Você vai querer
desistir, isso é certo. Haverá dias em que estará rodeada de pessoas te bajulando, te
chamando de ‘A Lenda’ e haverá dias em que estará só, sem amigos, sem abrigo, às
vezes com fome ou frio, mas saiba que, mesmo nesses momentos difíceis, você
deve insistir. Ser Guardiã é fazer algo maior do que você mesma. Proteger aqueles
que mais precisam é deixar o maior de todos os legados, é transcender a si mesma
por um bem maior. Acima de tudo, seja Ivyna Heinhardt sempre. Não se corrompa,
não se deixe esmorecer, cultive e se agarre aos seus valores, dê o seu melhor e você
será lendária até o final da sua vida.
Ivyna sentiu uma lágrima escorrer, mas aparou a tempo, antes de borrar a
maquiagem.
— Obrigada, meu irmão. Eu não tive tempo de te agradecer pelo que fez por
mim lá no Torneio. Eu estava com raiva e achei que você ia...
— Não me agradeça por isso. Eu só corrigi um erro. Você provou seu valor.
Provou ser a melhor na arena e agora está aqui. Foi uma vitória mais do que
merecida e...
— Com licença?
O coração de Ivyna parou por um infinitésimo de segundo, quando arregalou os
olhos e sentiu o ar fugir dos pulmões. A fala de Heidlich foi subitamente
interrompida por uma voz serena e simpática, igualmente enérgica e que pertencia
a um jovem de terno grafite. Era Ropher, postado entre os dois irmãos, sorrindo
abertamente enquanto a música ainda irradiava pelo recinto.
— Pois não?
442
Heidlich empostou a voz, fazendo-a parecer mais grossa e ameaçadora do que
realmente era. Ropher não se intimidou, continuou firme entre a dupla, sorrindo
de um jeito confiante.
— Gostaria de saber se esta dama poderia me conceder a oportunidade de dançar
a próxima valsa.
Heidlich e Ivyna se entreolharam.
— Somente a próxima?
— E tantas quantas mais ela puder me conceder.
Ivyna riu baixinho.
— Não sei se a jovem dama poderá. Deixe-me consultá-la.
Heidlich virou-se para Ivyna, como se ela não tivesse ouvido a pergunta.
— Senhorita, este jovem petulante me arguiu, questionando se a ilustríssima dama
gostaria de conceder-lhe uma demonstração de valsa a dois. Não me deu garantias,
mas a confiança do mesmo parece-me apropriada. Quanto à petulância, afirmo ser
digna de uma morte lenta.
Ivyna riu sem parar.
— Para de bobeira. Podemos dançar, sim, Senhor Ropher.
Heidlich depositou a mão da irmã nas mãos de Ropher, mas não sem antes
apertar a mão do rapaz com uma força exagerada.
— Cuide bem da minha irmã, ouviu? Não me chamam por aí de ‘Lenda’ à toa.
Ah, e ela sabe seu nome, orgulhe-se disso.
Ivyna estava estupefata. Tentava evitar encarar Ropher nos olhos, mas era
impossível. Ele emitiu um sorriso sem graça para Heidlich, que seguiu pelo salão a
papear com outros presentes. Voltando-se para ela, o jovem guardião de Amistelar
segurou seus dedos com delicadeza, mas de um jeito firme que a deixou
descompassada. Não achava mais estar se apaixonando por ele. Estava
perdidamente apaixonada por esse desconhecido amistelarense que chegara de
mansinho e, sem se esforçar muito, conquistou seu coração. Sendo conduzida por
ele, curtia cada segundo, mesmo em silêncio, apenas para poder contemplar sua
beleza e aproveitar os momentos mágicos e inesperados ao seu lado.
— Você lutou muito no Torneio. Eu não sabia que o negócio era tão sério assim.
— Obrigada. As lutas da Academia sempre foram muito profissionais.
— Mas porque você só lutou no final? Eu não entendi muito bem, achei essa
regra um tanto confusa...
— Bem, está na legislação da competição. Eu não participei das outras lutas
porque minha mãe nunca deixou eu estudar na Academia. Sempre foi meu sonho
me tornar Guardiã, mas ela queria que eu...
Ivyna sentiu o rosto corar. Lembrou de repente que a mãe ainda tinha um
contrato de casamento assinado e o pretendente era o rapaz que a conduzia na
dança pelo salão.
443
— Mas eu acho que, se você tivesse lutado cada etapa da competição, teria
escorraçado todos eles. Aquele último era o mais soberbo. A arrogância dele estava
me dando nos nervos. Derrotava um oponente e saía se vangloriando pelo campo.
Se você não desafiasse ele, eu ia lá arrebentar a cara dele.
Ivyna riu.
— Você acha, é?
— Claro. Você tem técnica, um poder monstruoso, uma sagacidade sem igual.
Acho que se você lutasse contra meu amigo ali, o Louk, ganhava dele fácil, fácil. —
Apontou para Louk, próximo à mesa de doces. — Ele é todo lerdão, devagar. Falou
para mim que não queria ser Guardião, que tinha se apaixonado, não sei o quê. Do
nada, mudou de ideia e agora está aí.
Ivyna virou os olhos e contemplou o rapaz de expressão triste do dia anterior.
— E o que você acha dessa função?
— Guardião? Sinceramente, eu nunca tive esse sonho, não. É muita
responsabilidade, muito peso para uma pessoa só. Você já viu o tamanho de
Turmis?
— Você já viu o tamanho de Eurodian?
— Quer comparar qual continente é maior, senhorita? O seu pode até ser grande,
mas o meu é muitíssimo melhor. Aposto que o seu não tem uma área desconhecida,
cheia de criaturas das trevas devoradoras de gente. Morro de medo só de pensar.
— Você não conhece as histórias e lendas do meu continente. É cada uma de
arrepiar. Seria uma aventura poder descobrir se é tudo verdade ou não.
— Eu viveria uma aventura ao seu lado, com o maior prazer!
Ivyna emudeceu. O coração acelerou no mesmo instante.
— Digo... — Ropher apressou-se em falar, percebendo o constrangimento entre
os dois. — Já que você é a Protetora de Eurodian, vai ter que garantir minha
segurança durante toda viagem. Sabe como é: garantir a segurança do mais fraco e
tudo mais...
— Você gosta de aventuras? Até parece. Falou que fica cheio de medinho de um
lugar lá onde você mora.
— Não fique se achando, não. Você teria medo se ouvisse as histórias de lá
também. E se eu gosto de aventuras? Vou te contar de quando eu pixei as Torres
da Magia!
— Foi você?
E Ivyna e Ropher seguiram dançando, contando histórias e rindo sem parar,
enquanto o Baile da Anunciação transcorria tranquilamente.
444
445
Capítulo Trinta e Três
O Rei Elfo
Descalçando as botas, Coldrar encarou a unha encravada no topo de seu dedão
do pé esquerdo. Aliado aos terríveis calos nos dedos mínimos, era a segunda vez
em dois dias que arrumava alguma ferida nos pés. A unha do dedão do pé direito
também estava encravada e, graças a sua pressa por chegar logo onde quer que
estivessem indo, não teve tempo de cuidar do ferimento, então pustulento e
cheirando mal. Observando por cima dos ombros para averiguar se não havia
ninguém por perto, praguejou baixinho e enfiou os dois únicos dentes que não
eram postiços em sua boca sobre a unha encravada e cuspiu-a para as águas do
riacho. Antes arrancada à força dali do que ter os dois pés doloridos por lesões não
tratadas.
Largou as duas botas a um canto e enfiou os pés nas águas geladas do riacho. O
conforto das águas correntes fez ele esquecer por alguns instantes que havia sete
dias estavam enfiados naquela floresta amaldiçoada, do outro lado do Paredão.
Maldita hora que foi confiar na esparrela de Moronov. Detestava ter de tratar
assuntos com ele. Preferia dialogar com Lorde Leoris ou mesmo com Lorde Flynn,
que não tinha erro: o combinado era o combinado, sem surpresas no caminho e
com muita grana no fim da missão. Fizera acordos com inúmeros guardiões sem
grandes problemas, até mesmo com os desprezíveis dos Stanhorne, mas toda vez
que tinha de tratar com Lorde Moronov representando o Conselho, sempre saíam
prejudicados de alguma forma. Depois do discurso do elfo que parecia ser o líder
dos demais, Moronov chamou os alquimestres em um canto, sem a presença de
seus contratantes.
— Respeito seus cabelos grisalhos, comendador Coldrar, mas eu não estou
confortável de ir até... bem, vocês sabem... até lá, não.
— Ora, Stevuer — comentou Coldrar, segurando o ombro do amigo alquimestre.
— Seremos muito bem pagos. Nós já recebemos uma boa quantia. Quem te pagaria
oitocentos mil pesos de ouro élfico para se aproximar do Paredão? Nós vamos
receber cinco vezes isso para entrarmos lá.
— No retorno da missão, obviamente — inferiu Moronov.
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— Como é? — contestou Coldrar, fuzilando o guardião com os olhos. — O
combinado era receber antecipado. Ouro agora, missão depois.
— Ora, Coldrar, vocês já receberam uma quantia razoável. Eu não tenho um
navio carregado de ouro élfico estacionado lá no cais para dar a vocês. Isso não
estava no acordo.
— Tampouco estava no acordo atravessarmos o Paredão. Você foi muito
enfático, Lorde Moronov, que o combinado era levá-los até os portões e eles
seguiriam dali em diante.
— Coldrar, releve e mantenha a discrição. Eu falei que vocês vão receber o
restante, mas quando voltarem da missão. Cinco vezes o que vocês receberam são
quatro milhões de pesos de ouro. São pelo menos dois galeões carregados. Eu
preciso de tempo. Já conversei com os oito ali fora e eles disseram que vão pagar
assim que encontrarem o que eles procuram.
— E quem garante que voltaremos com vida de lá?
— Ora, Rogar, o que você espera encontrar lá? Há quanto tempo não se ouve
falar de ogros atravessando a montanha ou de gnolls invadindo as aldeias do
entorno?
— Bem, é... Realmente, a última vez que ouvi algo do tipo, foi numa história do
meu bisavô...
— É óbvio que não há perigos mais do lado de lá, mas as pessoas ainda têm
muito medo. A fama em si causa mais medo do que o próprio lugar. Se não
aceitarem a oferta, vocês nunca mais terão a chance de ganhar tanto ouro na vida.
E, gente, é muito ouro de mão beijada. É ouro para vocês se aposentarem dessa
vida de confraria. Basta acompanhá-los nessa viagem. Vai ser mais fácil do que
roubar passarinho em feira de rua.
— Ok, Lorde Moronov, você me convenceu. Se esses elfos aí vão pagar no
retorno, nós os levaremos até lá.
Sorte que sairiam muito bem remunerados dessa missão, porque não havia uma
alma viva sequer disposta a aceitar menos do que cobraram para se aproximarem
do Paredão. Nem todo ouro de Eirin seria capaz de tornar alguém rico o suficiente
a ponto de adentrar os portões cerrando a única passagem para o outro lado.
Ninguém era louco suficiente para atravessar a monstruosa escarpa da cordilheira
de montanhas dividindo o continente de Turmis de um lado a outro. Era suicídio
ousar fazer tamanha idiotice. Desejar descobrir o que havia do outro lado era a
única curiosidade que os turmisianos sensatos não possuíam. Num vislumbre de
sua juventude, lembrou que a menor menção às Terras Distantes de Turmis era
capaz de lhe provocar intensos calafrios. As muitas histórias ouvidas sobre as
criaturas que lá habitavam, desde trolls assassinos aos execráveis elfos sombrios, e
as coisas obscuras do outro lado tinham o poder de mantê-lo o mais afastado
possível daquele lugar. Naquele momento, depois de uma semana dentro da mata,
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observando um céu sem estrelas, encontrava-se questionando sua sanidade mental
em aceitar tal tarefa.
Nada daquele lado fazia sentido. As coisas não aconteciam como manda a ordem
natural do mundo. Esperava se deparar com criaturas infernais ou no mínimo feras
selvagens típicas das florestas, mas o que encontrou colocava em xeque a lógica de
qualquer um, até mesmo dos filosóficos elfos que os contrataram. Recordou-se da
travessia, mais precisamente do momento em que alcançaram a outra extremidade
do túnel nunca aberto. Trotavam aos passos preguiçosos sobre uma estrada de
lajotas muito antigas, sem qualquer esforço ou pressa em encarar os mistérios do
outro lado. Os demais alquimestres estavam receosos, agarrados às suas montarias
como se prestes a encontrar um bando de ogros sanguinários, armados até os
dentes, na iminência de arrancar e comer suas cabeças. Mas o que encontraram do
outro lado era ainda mais esdrúxulo do que poderiam imaginar.
As patas dos cavalos afundaram de chofre sobre um tapete branco e gélido de
neve acumulada. Uma ventania enregelante golpeou as faces de todos ao redor,
carregando os chapéus para longe. As temperaturas negativas quase congelaram o
comboio no mesmo instante. Os dentes batiam involuntariamente com o frio
extremo, enquanto elfos e alquimestres pulavam de suas montarias e enfiavam as
mãos dentro das bolsas à procura de casacos, mantas, lençóis e qualquer coisa para
afugentar a friagem mortificante, numa corrida contra o tempo por suas vidas. Um
dos alquimestres acendeu uma tocha com fogo elemental, mas a intensidade da
ventania a assoprar do topo da montanha não permitia as chamas durarem pouco
mais do que segundos. Um verdadeiro pandemônio se instaurou. Enrolado com
mantas, peles de urso, casacos e até os colchões que levou para o acampamento,
Coldrar ordenou que instigassem os cavalos a correr, mesmo sem definir um rumo
certo. Seguindo a esmo por um caminho que rogava aos céus ser o certo, liderando
a fila cavalgando pela neve, questionava como poderia estar nevando daquele lado,
com temperaturas abaixo de zero, o suficiente para matá-los de frio em questão de
minutos, se do outro lado da mesma montanha o sol imperava, em uma manhã
quente e abafada? Cavalgaram por um caminho tortuoso coberto por um tapete
branco, desviando de pedras lisas e igualmente congeladas, com a visão turva por
causa da cerração cinzenta, trazendo flocos esbranquiçados em suas direções.
Inesperado da mesma forma como se viram em meio ao gelo, Coldrar ouviu as
patas dos cavalos estalarem sobre terreno sólido. Abrindo os olhos, antes
comprimidos pela força dos ventos, alquimestres e sacramentadores se viram
enfurnados entre frondosas árvores de grandes troncos e raízes altas de uma
floresta tropical. Nada parecido com a mata do entorno das montanhas do lado de
lá, mas quente e úmida como as densas florestas de Elstoen. Descendo dos cavalos,
livraram-se do montante de roupas e cobertas pesando em seus ombros e que
naquele instante os sufocava com o calor. Coldrar caminhou até o limiar do mato
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verdejante da floresta que alcançaram e encarou o sopé da montanha congelada e
os ventos impetuosos ainda a assoprar lá de cima. Era a primeira vez que o
arrependimento por estar ali sacudiu sua consciência.
Além da inquietação por seguir em um território agourento, que clientes de merda
foi arranjar. Antes tivesse cobrado dez vezes mais o valor inicial, se soubesse o quão
chatos e frescos eles eram. Oito elfos estranhos, vestindo-se de maneira esdrúxula
e falando como se vivessem em outra realidade. Ouvira falar sobre eles inúmeras
vezes, embora raramente os visse de perto. Era um homem das florestas,
alquimestre da água habituado a enfrentar serpentes, leões e panteras nas matas
fechadas de Zavir e Frandar e raramente se deparava com sacramentadores em sua
rotina selvagem. Obviamente, conhecia seus feitos e sabia do dom peculiar de
prever acontecimentos do futuro como catástrofes da natureza, embora nunca
entrou na sua cabeça que raios de magia era essa. Afinal, se tinham esse poder, por
que não avisaram o que enfrentariam do lado de lá? Além de seus devaneios e
questões, Coldrar sabia que estavam em busca de alguma coisa perdida daquele lado
da montanha. O que eles tanto buscavam, pouco interessava. Não fosse pelo ouro
élfico, que costumava ter muito mais valor do que o ouro convencional por seu
grau elevado de pureza, certamente teria mandado aquele bando de elfos para o
raio que os partisse ao meio.
Nada para esses elfos frescos estava bom. A comida era sem gosto, como
comentou um deles certa noite a respeito do sopão: “estava deveras sem variações
de sabor e nuances de condimentos”. O que eles queriam? Um banquete à luz de
velas com cordeiro assado e vinho? Aquilo era a selva, uma floresta hostil e
desconhecida, na iminência de se depararem a qualquer instante com alguma besta
maldita. O acampamento não era apropriado, os colchões eram muito duros — e
perdeu a conta de quantas vezes teve de trocar os cobertores e colchonetes do tal
de “Cismo” ou “Siso”, sabia lá qual era o nome dele. As selas eram muito duras, a
água era muito fria, as mantas não aqueciam, o fogo não era quente o suficiente, a
barraca não estava montada de forma adequada, os alquimestres falavam muitos
palavrões, etc e etc e etc. Tudo, absolutamente tudo estava ruim e era motivo para
reclamações.
O ápice dos absurdos na relação delicada entre alquimestres e elfos aconteceu na
travessia do Rio das Pedras. Antes uma majestosa cachoeira que se precipitava de
uma das faces do Paredão e fazia suas águas cristalinas e torrenciais serpearem de
Frandar, passando pela região sudeste de Amistelar até alcançar o oceano em Líria
nos contos antigos e nas memórias mais longínquas de seus ancestrais, o que se via
atualmente era um grandioso vale íngreme, tortuoso e inóspito de pedras colossais
e nem um pingo sequer de água. A região frutífera e paradisíaca deu lugar a uma
longa estrada de rochas empilhadas. Muitos atribuíam o cenário distópico à
maldição recaída sobre Turmis após o exílio dos monstros e a crença popular dizia
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que nada vindo do outro lado do Paredão, desde então, poderia ser bom ou trazer
algum benefício. A grama verdejante e as árvores suntuosas que ladeavam as
margens do rio desapareceram para sempre e o que se via era um grande ermo
cinzento, melancólico, sem vida. Era o único caminho, porém, até a pequena
estrada que conduzia aos portões do Paredão.
Coldrar desmontou de seu passofugaz-Benit e alisou a crina do animal. Os demais
imitaram o gesto do comendador, aguardando por suas próximas ordens. A essa
altura, já tinha ouvido todo tipo de reclamação dos sacramentadores, encarando as
pedras com um misto de nojo e espanto, o que se repetia a cada novo lugar
desconhecido por onde passavam. Somente um dos elfos, loiro e com cara de
poucos amigos, permanecia impassível e taciturno por todo o trajeto. O único
denotando insatisfação e raiva em vez de surpresa. Os alquimestres aproveitaram a
parada para distribuir maçãs a todos e alimentar os cavalos com um pouco de feno.
O líder da Confraria encarou por um momento a trilha de rochas pitorescas,
tentando raciocinar qual seria a melhor estratégia para chegarem ao topo. O calor
do dia queimava seu cocuruto. Até pensou em enfiar o chapéu novamente na
cabeça, mas o couro quente fritava seus miolos sempre que o colocava e o deixava
com uma dor de cabeça insuportável. Avaliando o caminho, era impossível
prosseguirem dali em diante montados nos cavalos.
— E então, chefe, qual vai ser? — Tarluso, um dos três alquimestres brutamontes
da equipe parou ao lado de Coldrar, admirando o tamanho das rochas empilhadas
morro acima. — São umas pedrinhas e tanto, hein?
— Não tem como seguirmos nos cavalos — ponderou Coldrar, esfregando os
olhos. Uma gotinha de suor invadiu seu olho esquerdo e ardeu de forma
causticante. — Merda, merda!
— O que foi, chefe?
— Nada, Tarluso, nada. Chama o Dimdom e o Crispel. Fiquem na retaguarda da
comitiva e subam esses cavalos com vórtices de vento. Eu vou na frente com os
demais. Vai dar trabalho, mas como vocês três tem mais carcaça pra aguentar,
acredito que se subirem um animal de cada vez, vão conseguir chegar lá no topo!
— Ok, chefe. Pode deixar com a gente.
Virando para a multidão que o aguardava, Coldrar encarou os rostos enfezados
dos elfos e ansiosos dos alquimestres. Não havia um sequer que não estivesse
atarantado, suando em bicas e com as mãos acima dos olhos, protegendo-se dos
raios ultravioletas queimando suas cútises.
— É o seguinte: não dá pra seguirmos nos cavalos — anunciou o líder da
Confraria, observando com redobrada atenção a expressão dos sacramentadores
mudar de repente. — Teremos de escalar essas rochas a partir daqui. Preparem suas
bolsas e o que mais conseguirem carregar e sigam-me.
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Acostumados a seguir ordens, os membros da Confraria atenderam ao pedido de
imediato. Juntaram o máximo de bagagens que conseguiram, apertaram cintas e
fivelas nas mochilas sobre as costas e estavam prestes a iniciar a jornada acima,
enquanto Tarluso, Dimdom e Crispel reuniam os cavalos e atiravam as bolsas e
outras bugigangas sobre o chão. Os primeiros alquimestres se encarrapitavam sobre
o cume das rochas, lançando as malas e colchões para cima quando Coldrar
percebeu que alguém resolveu não seguir suas ordens. Deslizando para a sombra
dos resquícios de um salgueiro ressecado, a única elfo da comitiva, de olhos
puxados e aspecto soberbo, descalçou as sandálias douradas dos pés e sentou-se
sobre a terra como se nada estivesse acontecendo. Com o sol escaldando seu
cérebro e a paciência atingindo o limite, o comendador caminhou aos passos largos
e pisadas fortes até o salgueiro. Ao redor, os olhares de todos se desviavam das
enormes pedras no caminho para a cena prestes a acontecer embaixo da sombra da
árvore.
— Você pode me explicar o que é que você está fazendo? — vociferou Coldrar,
cuspindo ódio para a elfo descansando na terra sem vida. — Eu dei uma ordem
expressa aqui. Nós temos que subir essas pedras!
A sacramentadora de olhos puxados e longos cabelos castanho-claros e lisos
limitou-se a sorrir para ele, acenando brevemente com a cabeça, o que o deixou
ainda mais possesso de raiva.
— Nobre comendador, — interveio o elfo que aparentemente era o líder dos
demais, parando na frente de Coldrar no exato momento em que ele estava prestes
a cuspir uma meia dúzia de palavrões — tenho plena certeza de que há uma
explicação plausível para nossa colega Soobo Yanui estar assentada sobre a terra,
visto que ouvimos suas diretrizes para nossos próximos passos.
— Certamente, meu adorável amigo Sisno — falou Soobo, com sua voz singela,
quase etérea. — É evidente que não despendemos de nosso tesouro particular uma
considerável fortuna para que eu me submeta às indelicadezas deste inculto que,
desde o prelúdio de nossa jornada, não fez o menor esforço sequer para cativarnos
com o mínimo de cordialidade esperada. Outrossim, afirmo que, sob nenhuma
hipótese, esforçar-me-ei, desgastando meus dedos, mãos e pés, na tentativa de
galgar posições nessa desafortunada e arriscada expedição.
— Olha, eu não entendi metade do que você falou nessas suas palavras aí. —
Coldrar explodiu: — Mas você vai subir essas merdas dessas rochas aqui, sim, ou
então eu...
— Então você o quê? — interveio o elfo loiro e de poucas palavras, ficando entre
ele e Soobo.
Os demais alquimestres cercaram seu líder quase de imediato. Alguns fizeram
pequenas chamas e rodamoinhos elementais surgirem em suas mãos. Comprimindo
451
os olhos e apostos para qualquer disputa, encararam os elfos rodeando Soobo
Yanui, unindo-se à amiga sacramentadora.
— Damas e cavalheiros, por favor — crocitou Sisno, mais uma vez abrandando
o conflito iminente formado em torno do salgueiro. — Não há porquê deixarmos
que a luz causticante deste dia de sol acirre a tensão que nos rodeia. Possuímos um
objetivo comum e lograremos êxito em alcançá-lo. Não deixemos açular nossos
ânimos por discordâncias irrisórias. Nobre Coldrar, como especialista na trajetória
que havemos de seguir, cumpriremos cada ordem emitida pelo senhor sem
questionamentos. Quanto a esta pequena divergência, não tenhas por presunção
crer que há de ser uma insurreição de nossa parte. Reafirmo que, de minha parte e
de meus estimados colegas, obedeceremos às suas ordens sem pestanejar.
Coldrar encarou os elfos por alguns instantes, pensando se deveria dizer alguma
coisa. Por fim, girando nos calcanhares, ordenou que retomassem a subida de
imediato. Sisno reuniu os oito uma última vez e nenhum dos sacramentadores
reclamou ou emitiu qualquer palavra durante a árdua subida pelo Rio das Pedras.
Um estampido diferente afugentou as amargas lembranças do comendador e o
fez apurar os ouvidos. Esvaindo-se dos desvaneios que se esforçava para esquecer,
recolheu os pés de dentro das águas frias e enfiou-as nas botas, colocando-se de pé
em um movimento rápido. Vozes angustiadas berraram de desespero na direção do
acampamento, quando outro estrondo ensurdecedor estremeceu a terra ao redor.
Alerta, os cinco sentidos mais do que aguçados e o coração pulsando em cada parte
do corpo, Coldrar pôs-se a correr da margem do rio para alcançar a clareira onde
as barracas estavam montadas.
Embrenhando-se desabalado por entre as árvores e o matagal, um urro
aterrorizante ecoou em seus tímpanos e o fez estacar na hora. Uma criatura das
trevas surgira, sem sombra de dúvida. O brado atroador era carregado e longo. De
todos os timbres de berros de criaturas infernais que estudara em seu próprio
bestiário e considerando o local onde estava e a fama por trás dele, aquele se
assemelhava muito ao de um ogro-dos-pântanos. Sacou a espada que sempre
carregava a tiracolo e a velha foice de cortar mato, galhos podres e cipós presa na
panturrilha. Desvencilhando-se dos arbustos e raízes protuberantes, diminuiu a
distância entre ele e as barracas e se lançou no meio do acampamento.
Um ogro de três metros de altura, pele verde-acinzentada e corpo coberto de
pústulas brandia um poderoso porrete feito do tronco retorcido de uma árvore
velha qualquer contra quem tentasse se aproximar. A bocarra de dentes afiados e
amarelos estava manchada de sangue, escorrendo para os lábios protuberantes. Um
corpo dilacerado pendia da mão esquerda.
— Rogar? — balbuciou Coldrar, de olhos arregalados, estupefato.
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Em meio à escuridão dominante, os outros alquimestres se espalhavam pelo
arraial, tentando combater a terrível criatura. Stevuer e Adamer lançavam bolas de
fogo no ogro, mas as chamas elementais não pareciam sequer fazer cócegas.
Dimdom e Tarluso arremessavam vórtices de ventanias que atingiam o monstro
como se fossem uma brisa suave num fim de tarde. Recuperando-se do baque de
vislumbrar o corpo ensanguentado e despedaçado de seu amigo alquimestre,
Coldrar percebeu, na penumbra das labaredas mágicas, a presença dos elfos ao
redor. Acuados e temendo pela própria vida, escondiam-se atrás das árvores ou
debaixo de alguma barraca mais distante. Praguejou baixinho pelo fato de seus
clientes terem tanto poder, dominando uma magia que afetava o tempo e não
conseguirem fazer nada para ajudar.
O monstro berrou outra vez e as árvores ao redor balançaram. O vislumbre nos
rostos dos alquimestres ao redor era de um terror cavalar intensificado,
principalmente pelos dentes afiados da aberração e pela figura moribunda de seu
velho amigo da Confraria, agitado como um pedaço de papel de um lado para o
outro. Coldrar bradou aos ventos úmidos e quentes da clareira, tão alto quanto seus
pulmões aguentaram e avançou pelo meio do acampamento com as duas lâminas
em riste. Mais rápido do que se esperava para um ogro daquele porte, o porrete em
suas mãos girou por entre as barracas. Stevuer se lançou ao chão, assim como
Adamer, mas os demais não foram rápidos o bastante. O pedaço de tronco
retorcido atingiu Coldrar e os outros alquimestres, esmagando seus crânios como
quem destrói uma abóbora madura. Miolos e sangue jorraram pela terra, cobrindo
os resquícios das barracas ao redor. Foram atingidos em cheio por um segundo e
rápido ataque brutal do ogro.
Sisno, Soobo e Malik Mavrio estavam paralisados diante da cena. Estáticos, não
conseguiam se mover, nem correr para se esconder ou fugir para o mais distante
possível. Era a primeira vez que estavam diante de uma aberração tão ameaçadora.
Com os membros da Confraria mortos de forma hedionda diante de seus olhos,
estavam à mercê da própria sorte, sem os protetores contratados para os livrarem
daquele tipo de perigo.
O ogro largou o corpo mutilado de Rogar. Arrastando o porrete pela clareira, a
criatura agarrou o líder da Confraria pelas pernas e abocanhou o alquimestre na
altura de seu tronco, partindo-o ao meio. O barulho execrável das costelas sendo
partidas em migalhas pelos dentes afiados e mastigadas junto às tripas do
alquimestre, ecoava pela floresta.
— SISNO! SOOBO! SAIAM JÁ DAÍ! — berrava Gavir do alto de uma árvore.
Contemplava a cena igualmente atarantado.
O grito do sacramentador alertou o monstro, terminando de engolir o que antes
eram as pernas de Coldrar e partir para sua terceira refeição da madrugada. Nelis
arregalava os olhos, contemplando a cena detrás de um salgueiro no limiar do que
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antes fora o acampamento, incapaz de emitir som algum. Poledores Früg e Rodris
Rannidge alcançaram o topo de outra árvore e berravam sem cessar para Sannfrye,
Soobo e Malik Mavrio escaparem depressa do raio de ação da criatura. Nikolai
Nodovra, ofegante, não conseguia olhar para a cena, escondido atrás de uma pedra.
O ogro virou-se. Arreganhando os dentes com uma felicidade assassina, ergueu o
porrete em uma investida ameaçadora, pronto para esmagar os três elfos em uma
tacada só. Gavir, Poledores e Rodris não paravam de gritar para os amigos saírem
da inércia provocada pelo temor que os impedia de escapar do iminente golpe
brutal. Nikolai balançou a cabeça, tampando os ouvidos e fechando os olhos para
não ter de testemunhar a morte de seus colegas sacramentadores.
Uma brisa gélida assoprou de chofre e as tochas ao redor se apagaram
instantaneamente. Imersos em completa escuridão, os gritos dos elfos no topo das
árvores cessaram, mas os urros atroadores da criatura ribombavam pela floresta.
Um brilho inusitado cintilou em meio ao negrume. Uma lâmina prateada surgiu nas
trevas dominantes da mata densa. Avançando em meio às sombras avassaladoras,
um guerreiro misterioso brandia sua espada. Dilacerando o temível ogro, a criatura
berrava de dor, balançando o poderoso porrete contra o algoz que o cortava e fazia
jorrar seu sangue verde sobre os cadáveres dos alquimestres, no que restara do
acampamento devastado. Era impossível vislumbrar o rosto do herói enfrentando
a criatura infernal, mas os brados poderosos do monstro ecoavam pelos ares.
O silêncio da madrugada imperou abruptamente. Os gritos intensos
desapareceram. Um baque se ouviu e o chão estremeceu. A monstruosa besta
estava caída, inerte e banhada pelo próprio sangue. O brilho da lâmina desapareceu,
quando a espada fora novamente embainhada. Emergindo das trevas, o dono da
espada revelou-se. Estupefato, Nikolai ergueu-se de seu abrigo e notou os olhares
arregalados de seus amigos elfos para a figura oculta a se manifestar naquele
instante.
Acendendo uma tocha que iluminou com um brilho incandescente as expressões
surpresas de todos, um elfo de longos cabelos prateados se apresentou. Coberto
por uma capa dourada, trazia um arco cruzando suas costas e um alforge carregado
de flechas. A espada que dilacerara o ogro repousava na cintura e uma coroa
cravejada de rubis reluzia no topo de sua cabeça. Ninguém arriscou dizer nada,
tampouco questionavam quem ele era. O reconheceram assim que o viram: era
Adryan Varnor, o Rei Elfo.
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Capítulo Trinta e Quatro
Duelo de Cavalheiros
O sol ainda não havia surgido no horizonte e a escuridão dominava a imensidão
dos céus nos limiares de Cruisand com um tom lúgubre e melancólico. Os luzeiros
mágicos do porto da cidade iam ficando cada vez mais visíveis e cintilavam ao
longe, revelando trabalhadores braçais correndo de um lado a outro pelas docas,
em mais um dia de labuta se iniciando. Do horizonte das águas calmas e negras
daquele pedaço de Crispoles, era possível entrevir as plataformas robustas e
fortificadas do extenso píer. As variadas embarcações, de inúmeros tamanhos e
formas, balançavam num ritmo sonolento, como se embalando os tripulantes a
dormir no interior dos navios.
No topo do mastro mais alto, agarrado às muitas cordas de cânhamo, Zakkar
comprimia os olhos para ter um vislumbre de uma doca livre qualquer,
preferencialmente o mais distante possível das plataformas centrais e do controle
de entrada e saída da alfândega. Seria difícil explicar o que um navio sem registro,
com cinco moças e um rapaz, fazia numa das mais famosas cidades do mundo, sem
uma mercadoria plausível para entregar. Sorte ter decidido livrar-se da tripulação
moribunda e de seu capitão sem cabeça ainda em alto-mar. Senão, teria mais uma
série de explicações a dar ao controle portuário. Não sabia onde estava com a
cabeça quando decidiu ouvir uma das garotas e seguir até Cruisand. Deveria ter
virado o navio, deixado as garotas em Namit e partido sozinho até Gradia. Mas
uma delas afirmava ser muito perigoso retornar para Miliat. Poderia haver outros
traficantes de meninas na região. Embora Zakkar tivesse tentado convencê-las a
retornarem para suas famílias, todas foram unânimes em seguir para a casa da tia
de uma das meninas em Cruisand e ficar por lá até pelo menos a poeira abaixar.
Uma das garotas afirmou que o ambiente na cidade portuária estava instável, desde
a invasão à capital. As histórias narradas por elas só confirmaram o que ele ouvira
dos soldados inimigos no coração da floresta. Navios estranhos e homens
repugnantes desembarcavam com frequência, geralmente no meio da madrugada.
Piratas e ladinos espreitavam pelas ruas de Namit, com atitudes suspeitas e olhares
misteriosos. Ouviram falar do desaparecimento de outras garotas na cidade,
geralmente adolescentes, mas jamais imaginariam que poderia acontecer com elas.
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Durante a viagem, Zakkar imaginava se não haveria um prêmio por sua cabeça,
alguém o caçando ou algo do tipo. Era o filho desaparecido do Rei Bartel, o
herdeiro da Intrépida Miliat. Se o Conselho dos Guardiões armou uma emboscada
para destronar e assassinar seu pai, com certeza o estariam caçando uma hora
dessas. Torcia para que ainda estivessem procurando-o pela Floresta Demoníaca,
vasculhando cada centímetro pela mata profunda. Mas, mesmo assim, manter-se
longe das atenções e evitar confusão era imperativo. Não queria atrair atenção para
si numa cidade tão visada quanto Cruisand. Precisava ficar o mais distante possível
de qualquer autoridade portuária ou de alguém que o reconhecesse como sendo de
uma linhagem real.
Não sabia muito bem o que pensar sobre Selena e, particularmente, sua mente
estava em um turbilhão de dúvidas e questionamentos sempre que pensava na
garota. Se ia se casar com o crápula de seu tio Bernat, ela provavelmente estava
metida até o pescoço com os assassinos dos Ayarza. Mas, se era uma das
conspiradoras, por que o ajudou a fugir? Esforçava-se para afastar da mente a ideia
de uma Selena dissimulada, tão mentirosa e ardilosa a ponto de enganar sua família
para se aliar a algo tão hediondo. Preferia esquecer o que ficou para trás. Queria
manter na memória a figura intocada da amiga guardiã, mas as revelações em Namit
arranhavam a imagem que ainda guardava dela.
Desvencilhando-se das cordas e dos pensamentos soturnos, desceu até a popa do
navio. O silêncio perturbador do fim da madrugada abraçava o navio e só era
interrompido pelo barulho das ondas rechaçando contra o casco da embarcação,
conforme avançava pelas águas. Quatro meninas se entregavam a um sono
profundo, mas uma permanecia acordada. Apoiada sobre o timão, o olhar pesaroso
se perdia em ponto algum das marés, mas Manara se recusava a dormir durante as
madrugadas. Os pesadelos constantes não a deixavam repousar em paz. Preferia
manter-se de olhos bem abertos à noite, contemplando o oceano e só dormir
quando perdesse as forças, entregando-se ao cansaço e exaustão. O lado direito de
sua testa ainda estava inchado e alguns cortes, mesmo que cicatrizados, eram
visíveis em seus braços. Sempre que a via, os questionamentos a respeito de Selena
desapareciam da mente de Zakkar. As memórias perturbadoras do que fora
obrigado a ver na cabine o dominavam com uma cólera sem fim. Inspirava
profundamente, sem deixar de impedir correr em suas veias um ódio crescente pelo
velho decapitado e pelo que ele estivera prestes a fazer.
— Não é melhor você dormir? — indagou Zakkar, vendo as pálpebras da garota
ficando pesadas.
Manara se recompôs imediatamente e agarrou o timão com firmeza como se
nunca o tivesse soltado.
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— Não é melhor você dormir? — Manara encarou-o nos olhos, esforçando-se
para manter a sobriedade de alguém de prontidão. O sono, contudo, era notório,
mesmo insistindo em se mostrar lúcida.
Zakkar sorriu para ela. Havia algo em Manara que o lembrava muito Selena. Por
mais que os cabelos estivessem malcuidados e sujos e no rosto oval com sardas
discretas espalhadas pelas bochechas, as marcas da agressão fossem evidentes, era
nos detalhes que enxergava sua antiga paixonite. A forma como Manara sorria pelo
canto da boca; o jeito petulante, empinando o nariz pequeno para encará-lo toda
vez que conversavam; a força sobre-humana que tentava transparecer, mesmo com
a dor e agonia latente pelo que sofreu: eram tantas coisas que ele sentia uma dor no
peito só de observá-la. A saudade de casa, a saudade dos beijos de Selena, de ter o
corpo dela colado no dele, tudo isso o fazia querer derramar-se em lágrimas. Não
podia deixar-se esmorecer. Era necessário esquecer o passado. A única coisa
importante dessa vez era seu desejo de vingança pelos traidores do Trono dos
Ayarza. Pagariam com a vida pelo que fizeram ao seu pai, à sua mãe e ao reino.
— Cruisand está à vista — pronunciou Manara, voltando a olhar para frente —
À estibordo, há uma vaga nas docas. Um píer bem ao centro do cais principal.
Seguimos para lá?
— Não acho ser uma boa aportarmos ali. Não podemos chamar atenção das
autoridades.
Zakkar procurava algum lugar a um extremo para aportar sem serem percebidos.
— Se você acha que não devemos atrair os olhos da alfândega, não podemos
atracar em píer algum. O ideal é seguirmos para uma praia à bombordo,
abandonarmos o navio à beira-mar e seguirmos em um barquinho. Somos seis
tripulantes, o navio preso nos flancos da popa suporta todos nós, não será tão
difícil. Devemos aproveitar o movimento ainda fraco no porto. Logo, o sol
desponta e será impossível esconder um barco desse tamanho.
Zakkar perdeu o olhar no horizonte por um segundo. A mente cansada não
queria raciocinar. Mesmo denotando contrariedade, balançou a cabeça,
consentindo. Manara rodou o timão do navio todo para a esquerda e a embarcação
guinou bruscamente rumo à praia distante. Os primeiros raios de sol brotavam em
algum lugar onde céu e mar se tocavam, pintando a abóbada celeste com raios
amarelados e intensos.
— Onde aprendeu a navegar tão bem assim? — inquiriu Zakkar, notando a
habilidade da garota na manobra do navio.
— Meu padrasto era timoneiro. Embora ele não gostasse muito da ideia, me
ensinou bastante coisa sobre como conduzir um barco desse tamanho. Ele dizia
que a vida no mar não era algo para mulheres, por causa dos perigos desconhecidos
nos oceanos. Mas sempre afirmou que a maior de todas as ameaças não eram os
monstros habitando os mares, mas sim os homens que habitam os navios.
457
— Seu padrasto é um homem sábio.
— Foi um homem sábio.
— Ele... morreu?
— Quem sabe? Um dia ele seguiu por Crispoles, num cargueiro de algodão até
os limites entre Frandar e as Terras Distantes e nunca mais voltou.
— Eu sinto muito.
— Não precisa sentir, não. Nos últimos ciclos, ele se tornou um idiota. Virou um
beberrão e passou a bater em mim e na minha mãe. Sinceramente, foi bom que não
tenha voltado. Mas... você não falou quase nada sobre você. Quem é? Como veio
parar nesse navio? Eu te devo a minha vida e sequer sei o seu nome...
Zakkar mirou o horizonte outra vez e notou a praia deserta crescendo à medida
que diminuíam a distância. Arrazoava se deveria contar a verdade ou não. Para sua
sorte — ou talvez pela penumbra e escuridão do navio — nenhuma das garotas o
reconheceu como o príncipe de Miliat. A barba volumosa e os cabelos mais
desgrenhados e revoltos do que jamais tivera, podem ter contribuído para disfarçálo
também. Não acreditava que Manara fosse uma traidora de Miliat, mas jurou a si
mesmo não confiar em mais ninguém. Não estava pronto para essa conversa, não
queria falar a verdade e correr o risco de expor a si mesmo e a ela.
— Vou acordar as outras garotas e preparar o barquinho — falou Zakkar, sóbrio
— Estamos bem perto da faixa de areia.
Largando os lemes do pequeno barquinho, Zakkar pulou para fora. A água estava
terrivelmente gelada e as ondas arrebentando com violência sobre as areias da praia.
As cinco garotas aguardavam sentadas, plenamente agasalhadas com cobertores e
mantas, com os cabelos esvoaçando pela força dos ventos agitando as ondas. O
olhar de cada uma delas ainda denotava medo, mas não havia mais o terror de
quando as libertou no navio pirata. Encarceradas e amarradas dentro das cadeias
da embarcação, essa era outra lembrança que o jovem guardião também queria
esquecer. Miravam naquele momento extensão de areia da praia de Cruisand,
ansiando em pôr os pés em terra firme de uma vez.
Puxando o bote, Zakkar sentia as conchas e pedras da orla pressionando a sola
de seus pés, seguindo passo a passo até a areia. A sensação de liberdade era
reconfortante e nem mesmo a água gelada e a leve bruma no perímetro estragavam
esse sentimento. O sol ainda não havia aparecido em sua totalidade e o dilúculo não
passava de um borrão ainda cinzento com poucas nuances pálidas do dia.
Comprimindo os olhos, não conseguia distinguir muito bem nada na praia. A
silhuetas dos coqueiros era a única coisa que sabia afirmar sem titubear. O restante
eram sombras difusas do romper da manhã. Não havia diálogos ou burburinhos.
O silêncio das palavras, interrompido unicamente pelo barulho dos ventos
458
marinhos e das ondas quebrando, trazia uma sensação reconfortante de calmaria e
perene paz. Ninguém precisava dizer nada, a natureza falava por eles.
As sombras indistintas foram tomando forma e se apresentando tão nítidas
quanto a luz do dia, conforme o sol assumia seu lugar no dilúculo. A cerração da
madrugada se dissipava, revelando espectros e figuras ocultas. O silêncio foi
subitamente quebrado e o barulho da ventania e das águas na rebentação se juntou
ao coro dos suspiros de desespero das cinco garotas dentro do barquinho.
Sobressaltadas, emitiam um grunhido abafado, demonstrando outra vez o terror de
quando os piratas as sequestraram em Namit. Zakkar não titubeou um segundo
sequer. Seguiu firme até o pequeno bote atracar em terra firme. Não precisava mais
comprimir os olhos para distinguir o que vislumbrava sobre a areia cristalina da
praia.
— Muito bom dia, senhoritas! Obviamente, muito bom dia para o senhor,
cavalheiro que as trouxe com tamanha educação até esta maravilhosa praia. Eu
saúdo a todos e dou as boas-vindas para as famosas terras de Cruisand. Um destino
turístico fascinante. Um chamariz internacional para os amantes de grandes
aventuras. Claro, não poderia deixar de mencionar ser uma das principais cidades
mágicas de Eirin, o abrigo de um dos Pilares da Magia.
Um grupo de dez rapazes cercava o bote. O sorriso nos lábios de dentes
amarelados ou podres não escondia a expressão nada amigável na face de cada um.
Usavam roupas esdrúxulas, remendadas, algumas com aspecto surrado e um ou
outro exibiam braceletes e cordões de ouro. Um deles até tinha um ou dois dentes
de ouro. Pelo menos três sustentavam espadas amarradas na cintura e dois
sacudiam um pequeno porrete de madeira com pregos na ponta. Eram notórios
ladrões e trombadinhas de subúrbio, do tipo que surrupiam e roubam com mãos
leves, sem ninguém perceber. Zakkar fechou a cara e comprimiu os olhos. Sabia
que eles não estavam ali como um comitê de boas-vindas, para recepcioná-los em
sua chegada à cidade e serem seus guias turísticos. O medo era sua desvantagem.
Dez contra um. Cansado como estava, não sabia se daria conta de proteger as
garotas contra um grupo inteiro de trombadinhas, armados e sem escrúpulos.
— O que querem? — perguntou Zakkar, presunçoso, adiantando-se sem vacilar.
Um moleque carregando uma centena de quinquilharias presas às roupas,
braceletes, brincos e um dente de ouro adiantou-se. Seguiu desfilando pela areia,
abrindo os braços e sorrindo de um jeito cínico que desagradou Zakkar. Parou a
poucos centímetros do guardião e alisou o pequeno tufo de cabelo abaixo do
queixo.
— Joias, ouro, pepitas, lingotes, diamantes, pedras preciosas, colares, braceletes,
pingentes, brincos, broches, rendas, fardos de seda, algodão, tudo que valha algum
dinheiro!
459
— Não temos nada disso — respondeu Zakkar, sucinto e impassível. — Agora,
deixe-nos em paz para podermos ir.
O garoto espalhafatoso do dente dourado soltou uma gargalhada bastante
audível. Os demais em volta emitiram risadas igualmente altas e forçadas. Zakkar
não gostou nada da reação. Cerrou os punhos e mirou cada rosto dos trombadinhas
em seus risos debochados. As garotas no bote se apertaram ainda mais,
aconchegando-se umas nas outras, temendo por suas vidas.
— Vocês ouviram? Ele quer que a gente deixe eles em paz.
A risadaria exagerada ficou ainda mais alta e encheu os ares cálidos do início da
manhã.
— Escuta aqui, meu nobre. Você realmente achou que poderia aportar em
Cruisand clandestinamente, deixar o navio à beira-mar e vir remando nesse bote
com cinco garotas sem sequer pagar uma taxa aos donos da cidade? Achou que não
avistamos sua embarcação se aproximando das docas e, de súbito, mudar o curso
para a praia? Aí não, patrão. — Ao som das gargalhas persistentes de seus amigos,
o garoto do dente dourado chegou muito próximo do rosto de Zakkar, dessa vez
com uma expressão de hostilidade estampada na face. — Ou você paga nossa
exigência ou ficaremos com as garotas como pagamento!
Não houve nem tempo para o menino espalhafatoso tomar fôlego após sua
sentença hostil. Zakkar agarrou as duas orelhas dele em um golpe instintivo e
arrancou os brincos com a fúria abissal que o dominou naquele instante. Sangue
manchou a areia branca e pedaços de orelhas dilacerados agarrados às argolas
douradas despencaram no chão. Acabrunhado e uivando de dor, o garoto
despencou aos pés do guardião. Os outros nove ladrões ao redor desembainharam
espadas, sacaram suas facas e ergueram os porretes, avançando na direção de
Zakkar.
— FUJAM! CORRAM PARA LONGE!
O grito desesperado ecoou do fundo da alma de Zakkar. Aguardando o iminente
golpe de lâminas, paus e pregos, o coração estava a mil e apertado, preocupado com
as meninas sobre o bote. As cinco garotas se agitaram. Lançaram os cobertores no
mar e não precisaram ouvir a súplica de seu protetor outra vez: pularam sobre a
areia e seguiram a ordem expressa para escaparem, correndo à beira-mar para longe
do palco da iminente batalha.
Uma adaga passou voando próximo à orelha esquerda do jovem guardião.
Movendo a cabeça com destreza, conseguiu evitar de ter o olho perfurado por uma
fração de segundos. Um porrete zuniu pelos ares no segundo seguinte e ele só ouviu
o zunido da madeira pesada acertando o ar. Esquivando-se a tempo, Zakkar
rodopiou sobre o próprio eixo e acertou o joelho do moleque segurando o pedaço
de madeira com pregos na ponta. Um barulho de ossos quebrados retumbou e
uivos de dor do ladrão eclodiram. Uma série de socos acertou o peito de Zakkar e
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ele se viu perdendo o equilíbrio, caindo sobre a areia em seguida. Outro porrete
surgiu em seu campo de visão — esse com o que pareciam ser pedaços de facas
quebradas no lugar dos pregos. Na iminência de estourar seus miolos, Zakkar rolou
sobre o chão e conseguiu colocar-se de pé outra vez. Acertou um gancho de direita
muito bem colocado no maxilar de um deles e um cruzado de esquerda no nariz de
outro.
O embate sobre a areia parecia uma dança sincronizada e instintiva. Quem
passasse pela praia e avistasse a luta de um jovem maltrapilho e barbudo contra dez
garotos de roupas esquisitas, acreditaria estar diante de um espetáculo decorado de
artes marciais. Zakkar reagia aos golpes, desviando-se das investidas e acertando
chutes ou socos nos erros dos oponentes. Um dos trombadinhas agitou sua espada,
desferindo golpes a esmo em sua direção. Desviou do primeiro, do segundo, mas
o terceiro acertou seu ombro. Um filete de sangue jorrou e Zakkar estremeceu com
a dor. Tentando desviar de outro ladrão correndo em sua direção com uma adaga,
percebeu que somente quatro lutavam com ele. Notou, de esguelha, pelo menos
dois dos ladrões avançando na direção das garotas em fuga.
Ainda relutante em demonstrar a própria magia, não havia o que fazer. Não podia
deixar que elas fossem capturadas por um bando tão execrável quanto o dos piratas
que as sequestraram em Namit. Justo quando tinha acreditado ter alcançado a
liberdade. Sabia que poderia estar colocando a própria vida em risco, mas esse era
o dever de um Guardião. Mesmo não sendo o escolhido de Aladar e longe de talvez
um dia ser, esta era a obrigação descrita nas Leis Primazes. O mais forte tinha de
proteger o mais fraco.
Uma luz azul coruscou. Como se o tempo transcorresse lentamente, Zakkar
vislumbrou os rostos encolerizados dos bandidos ao seu redor. Os porretes,
espadas e facas em riste, vinham com toda fúria para cima dele. As ondas se
ergueram de repente. Mais alto do que antes da rebentação, subiam e subiam e
formaram um paredão monstruoso de água salgada. Os olhares maléficos se
converteram de chofre em uma visão aterradora. A luz azul ficou mais forte,
ofuscante. Brilhava das mãos de Zakkar. As ondas abandonaram sua forma e
convergiram para uma poderosa espiral. Indomável e com a força de marés em
veementes tempestades, elas acertaram em cheio cada um dos ladrões prestes a
golpeá-lo.
Os quatro ao seu redor caíram sobre o chão, agonizante de dor, com a pancada
intensa do vórtice de água elemental que se formara. Zakkar vislumbrou a rota de
fuga que as meninas tomaram e, no encalço delas, os cinco ladrões remanescentes.
Na iminência de um deles alcançar a retardatária, o guardião agitou as mãos e a
espiral de ondas voou em alta velocidade até eles, derrubando-os sobre a areia.
— Muito bem. Vamos com calma.
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Girou nos calcanhares quando uma voz grave e sóbria ecoou. Zakkar estacou
próximo à orla, sentindo o coração acelerar mais do que o normal. O rodamoinho
mágico aninhou-se ao seu redor como uma serpente e as águas assumiram,
bruscamente, uma tonalidade escarlate. Além dos ladrões abatidos sobre a areia, um
rapaz segurava uma das meninas. Para surpresa de Zakkar, era justamente Manara,
mantida refém ante a ponta de uma pequena adaga. Cabelos negros e volumosos
como a juba de um leão e sem nenhum adorno espalhafatoso ao redor dos pulsos,
no pescoço e nas orelhas, ele caminhou sem pressa até postar-se frente a frente
com Zakkar. Diferente dos outros, esse usava roupas mais refinadas e poderia
muito bem se passar por um cidadão da nobreza da cidade. Os trajes eram de linho
e seda pura. A pele morena era semelhante à dos pescadores de Miliat, queimada
pela exposição ao sol de alto-mar. Havia uma cicatriz tortuosa, começando em seu
nariz aquilino e morrendo pouco abaixo da maçã esquerda do rosto. Os olhos eram
grandes, negros e enigmáticos. Uma capa vinho com detalhes dourados repousava
em seus ombros, presa no pescoço por um broche de prata com uma chama
curvilínea entalhada.
— Solte ela! — ordenou Zakkar. As ondas escarlates ao seu redor se
avolumavam, tão revoltas como o mar em fúria.
— Vai depender, meu caro — falou o rapaz da capa vermelha. A voz dele era
serena, cristalina e, estranhamente, transmitia paz, mesmo em um momento de
guerra.
— Depender do quê?
— Do seu poder de negociação. Acreditei ser um exímio lutador, mas você tem
uns poderes bacanas. Parece saber controlar os elementos. Pela intensidade e
rapidez com que abateu meu bando, eu não diria que é um alquimestre. Um
alquimestre com esse poder não estaria traficando garotas na calada da noite e
trazendo-as para cá.
Os outros dez ladrões iam se recuperando. Levantavam do chão, tomavam os
porretes, espadas e adagas novamente nas mãos, evidenciando os hematomas e as
marcas da surra que levaram. As outras quatro garotas haviam conseguido fugir.
Sumiram no horizonte, depois do último golpe do guardião. Um a um, cada
bandido tomou sua posição em um círculo que rodeou os três: o homem da capa
vermelha, Manara e Zakkar.
— Escuta, — proferiu Zakkar, visualizando a expressão de terror no rosto de
Manara — eu te suplico: solte ela, deixe as outras garotas em paz e faça o que quiser
comigo.
— Sabe, rapaz, esse é o mal das pessoas honradas. Elas querem proteger a todos,
mesmo aqueles que não conhecem. Mas você sabe quem não tem honra? Piratas!
Piratas são sujos, inescrupulosos, sem moral ou ética, gananciosos e hediondos.
Nós não temos piedade com essa estirpe em Cruisand. Mas se você tem honra e a
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demonstra numa situação como esta, em que faço refém uma garota qualquer,
então fica a incógnita: quem é você?
— O que é que você quer? — inquiriu Zakkar, mirando a ponta da lâmina
pressionando o pescoço de Manara e as lágrimas escorrendo dos olhos da garota.
— Uma luta — respondeu o rapaz, esboçando um sorriso. — Mas uma luta justa,
sem magias. Uma luta de espadas, como em um antigo e bom duelo de cavalheiros.
Se você vencer, eu a soltarei e vocês dois podem ir embora, sem olhar para trás.
Nós fingiremos que nada disso aconteceu e este será apenas mais um dia comum
de sol nesta praia esquecida de Cruisand.
— E se você vencer? — questionou Zakkar, comprimindo os olhos.
— Se eu ganhar o duelo, tanto você quanto esta jovem terão de ficar com nosso
bando na cidade por pelo menos uma semana, que considero ser tempo suficiente
para arrumarem o dinheiro para pagar a taxa de vivência em nossa belíssima
Cruisand.
— E se eu não aceitar?
— A garota sangra até morrer aqui na sua frente. E, mesmo que você mate um
por um deste bando após isso, toda sua honra não valerá de nada porque ela foi
morta diante dos seus olhos, quando suas opções para mantê-la viva eram apenas
as duas que acabei de lhe dizer.
Zakkar ponderou, a fúria implacável tornando a dominá-lo. Encarou o homem
da capa vermelha e sua expressão impassível, prendendo os braços de Manara com
uma das mãos e com a outra pressionando a faca em seu pescoço. Avaliou as
opções disponíveis. Poderia tentar desferir um golpe com a serpente elemental, mas
a ponta da lâmina apertava a garganta da garota. Seria um risco muito alto a correr
e se não conseguisse atacá-los e ela morresse, jamais se perdoaria por ter sangue
inocente em suas mãos. Não queria carregar o peso de uma vida ceifada por uma
tentativa frustrada, manchando sua consciência. Como seu oponente afirmara, não
haveria honra se ela morresse por uma escolha errada.
— Tudo bem — respondeu Zakkar, resignado. — Eu aceito o desafio.
O ladrão da capa vermelha entregou Manara para um dos ladrões, que continuou
apertando a lâmina contra o pescoço da garota. Em seguida, desembainhou duas
espadas. Balançou uma delas no ar, como se experimentasse o equilíbrio e o peso
da arma. Arremessou a outra na direção de Zakkar, que agarrou o cabo da espada
sem vacilar. Desabotoando a capa, o líder do bando caminhou alguns passos para
trás e se posicionou em frente ao jovem guardião, pronto para o duelo.
A lâmina de Zakkar se ergueu e refletiu a luz do sol. Correndo pela areia com a
arma em riste e com o ódio inexorável o consumindo, desferiu golpes em seguida
na direção de seu adversário. O líder dos ladrões desviou de todas as investidas em
sequência com uma destreza maestral. A agilidade espantosa do rapaz acirrou ainda
mais a fúria dominante no corpo cansado do guardião. Deslizando pela areia, o
463
ladrão de longos cabelos encapelados tocou o ombro machucado de seu oponente
com a ponta da espada. Zakkar soltou um urro com a dor lancinante que
estremeceu seu corpo por inteiro. Os dez moleques ao redor vibraram com a
vantagem de seu líder.
— Você me intriga, sabia? É poderoso como um guardião, tem a destreza de um
verdadeiro guerreiro, comporta-se com honra e fala como alguém de alguma
nobreza. Mas há um ódio incontido, tentando se libertar em seu interior. Diga-me,
quem é você?
— Não te interessa quem sou ou deixo de ser. Depois que derrotá-lo, você nunca
mais verá sequer a luz do dia.
Os dois se encararam, caminhando passo a passo na direção de seus flancos, com
os dez bandidos e Manara ao redor. Traçavam um círculo sobre a areia da praia,
espadas levantadas, punhos fechados e comprimindo os olhares um para o outro.
Estudavam os movimentos com paciência, avaliando as possibilidades, a forma e
melhor hora para atacar. Lâminas em riste, ladrão e guardião esperavam,
aguardando o momento certo.
— Não há possibilidade de haver tanto ódio guardado por um alguém como eu,
a quem você mal conhece. Confie em mim e fale, o que é que você busca?
O líder do bando avançou até Zakkar. As espadas se chocaram com estrépito e
as lâminas cantaram de um jeito agudo, estridente. Uma, duas, três, quatro, cinco
vezes. Depois mais três e mais seis vezes. Agitando sua arma, o guardião conseguiu
acompanhar as investidas do adversário, atacando e defendendo, sem que ambos
conseguissem acertar um ao outro em algum ponto vital.
— Eu busco vingança — crocitou Zakkar; as palavras soaram como um desabafo
carregado de aflição e cólera. Os olhos se encheram de lágrimas, a angústia da perda
acertando-o com ímpeto. A cabeça latejou, mas ele continuou firme com a espada
na mão. — Quero vingança contra os traidores da minha família. Eu busco
vingança contra o Conselho dos Guardiões.
O líder dos ladrões estacou, arregalou os olhos e sorriu.
— É ousado pensar deste modo, meu caro. Vingança contra o Conselho dos
Guardiões?
— O Conselho tirou tudo de mim, tudo que eu mais amava. Obliterou minhas
esperanças, esmagou minhas alegrias e destruiu minha vida para sempre.
Novas investidas cortaram os ares. Descarregando a raiva que o dominava,
Zakkar partiu para cima com violência, desferindo mais golpes de espada a esmo.
As lâminas tilintaram e estremeceram com a intensidade das batidas de ferro contra
ferro. Ladrão e guardião mais uma vez se encaravam, pressionando suas armas uma
na outra em uma disputa de força e espaço, voltando a andar em círculos sob os
olhares de dez trombadinhas e uma garota assustada.
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— Vejo que partilhamos do mesmo sentimento e da mesma sina — pronunciou
o líder dos bandidos, esvaindo a tensão de sua voz grave e calma. — Nutrimos e
comungamos de um ódio mortal pelo Conselho dos Guardiões. E como você
pretende obter êxito em sua vingança?
— Invadindo as cerimônias do Ano da Elegibilidade e matando um por um.
O líder dos ladrões forçou sua espada e recuou. Como uma serpente à espreita,
caminhou lentamente pelo centro do círculo desenhado na areia pelos pés de
ambos. Zakkar ergueu sua lâmina e berrou. O ombro latejou com a dor do corte,
mas estava pronto. Era o momento de desferir o derradeiro golpe, a investida
mortal que acabaria de vez com a luta, fazendo a cabeça do rapaz à sua frente rolar
pela areia em direção ao mar.
A lâmina do guardião cortou os ares carregados de sal e fincou-se sobre a areia.
Zakkar sentiu as pernas vacilarem, quando os pés do líder do bando acertaram seus
joelhos. Ficara tão concentrado na arma do oponente que não se deu conta do
golpe surpresa. Perdendo o equilíbrio, caiu de cara no chão. Ouviu o som de uma
espada zunindo e, quando achou que perderia a vida diante do mar cristalino de
ondas revoltas, à luz do sol nascente de Cruisand, vislumbrou a lâmina prateada
fincar-se próximo ao seu campo de visão.
— Existe uma maneira de ser indestrutível, mas de forma inteligente.
A voz serena do rapaz da capa vermelha ressoou. Zakkar virou-se para cima,
limpando os grãos de areia impregnando suas roupas e cabelos. Entre os raios
ofuscantes de sol, o jovem guardião vislumbrou uma mão estendida em sua direção.
Os outros dez ladrões se achegaram para o cerne do duelo e Manara estava livre,
fora de perigo e longe da mira de uma adaga.
— Existe uma forma de destruir o Conselho dos Guardiões — falou o líder dos
ladrões, embainhando as duas espadas do confronto, apertando firme a mão de
Zakkar. — Uma forma silenciosa. Uma forma estratégica. Atacar o Conselho em
um dos eventos mais vigiados e guardados de todos os tempos é tolice, é
simplesmente decretar sua sentença de morte. Para ter sua vingança contra os
homens que destruíram sua família e seus sonhos, você necessita implodi-los.
Precisa destruir o Conselho de dentro para fora. Não com magias ou ataques
poderosos, mas usando do mesmo artifício utilizado por eles há centenas de
gerações. É necessário desacreditar cada um daqueles velhos guardiões. Mas, antes,
precisa ganhar a confiança deles. Desafiá-los não é a melhor estratégia. Aceite
minha oferta. Fique comigo e com meu bando em Cruisand e eu o ensinarei. Eu o
ajudarei a conquistar sua vingança.
Zakkar não se movia. Balançou a cabeça, encarando o rapaz no fundo de seus
olhos saltados e serenos. Havia no olhar carregado dele alguma coisa que inspirava
confiança e o fazia querer descobrir, querer aprender a como atingir seu principal
objetivo desde a fuga apressada do palácio em chamas, na fatídica noite em que
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perdera tudo. O desejo irrefreável de obliterar o Conselho dos Guardiões era
comungado com aquele sujeito misterioso e que não aparentava ser tão mais velho
do que ele próprio. Mesmo sem saber se podia acreditar nas palavras dele, algo em
seu íntimo o impelia a segui-lo para absorver todo conhecimento possível.
— Aceito sua oferta.
O rapaz sorriu mais uma vez, transmitindo uma confiança que fez Zakkar sentirse
repentinamente seguro.
— E como devo chamá-lo?
— Zakkar — respondeu o jovem guardião, confiante. — E como eu devo chamar
você?
— De príncipe — proferiu o sujeito, limpando a areia da capa escarlate e
colocando-a sobre os ombros outra vez. — Príncipe dos Ladrões.
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Capítulo Trinta e Cinco
Lógica
A atmosfera ao redor da arena era pulsante. Cada espectador, com os olhos
vidrados no centro do grande palco montado para o primeiro evento do Ano da
Elegibilidade, vibrava e pulava sobre as arquibancadas, flamulando bandeiras com
os brasões dos cinco reinos-guardiões, berrando os nomes de seus guerreiros
favoritos, estourando fogos de artifício e sacudindo incontáveis bilhetes de apostas
de quem seria o grande vencedor do primeiro desafio.
Enfurnada no interior de uma cabine que parecia ter sido preparada às pressas,
Ivyna não conseguia controlar o desejo insaciável de roer cada uma das unhas da
mão. A cada pedaço arrancado, arrependia-se amargamente de ter gastado o tempo
e dedicação das primas em pintar unha por unha com as cores do reino. Imaginava
o quanto elas iriam reclamar depois, quando a vissem com as pontas dos dedos
desfiguradas, cheias de falhas — e com filetes de sangue em algumas delas,
provocado pela ansiedade irrefreável dominando a cabeça da jovem guardiã,
desfigurando os tons de tinta azul e branco fluorescente. Aliás, era outra coisa
bastante incômoda desde a chegada na cidade: por que tudo tinha de ser das cores
do reino? Era bem óbvio que os cinco guardiões presentes nos eventos do Ano da
Elegibilidade tinham suas origens nesses reinos, mas havia tamanha necessidade de
espalhar as cores desses reinos em tudo que viam pela frente? Não podia dar um
passo sequer em Gradia desde que chegou à Casa dos Guardiões, sem vislumbrar
alguma coisa nas cores dos reinos. O quarto em que ficou hospedada brilhava em
azul e branco, com uma infinidade de brasões da Suntuosa Badorian em tudo que
se podia imaginar. Já não aguentava mais ver o Grifo Inquietante estampado em
cada centímetro de seus aposentos. Como se não bastasse, a roupa obrigada a usar
para o primeiro desafio tinha de “refletir as nuances do reino que a enviou”.
Enfiaram-na dentro de um conjunto de calças de algodão azuis, botas altas de couro
de dragão reforçado da Mondrária e amarradas com fivelas, uma camisa de linho
branco que ia até os cotovelos e um colete de seda chispante azul por cima da
camisa — e obviamente, a insígnia do animal-símbolo de seu reino presa no peito.
Eram vestes muito confortáveis e de bastante elasticidade. Ficou por alguns
momentos avaliando que não eram roupas apropriadas para nenhum tipo de
467
batalha ou luta corporal. Se o desafio fosse algo envolvendo embates armados ou
mesmo mágicos, as roupas não resistiriam.
Caminhando de um lado para o outro, arrancando mais pedaços de unha e vendo
outro filete de sangue emanar de chofre, Ivyna levou o dedo mindinho à boca e
pressionou os dentes sobre ele. O gesto fazia a dor parar, mas percebeu como era
idiota e sofrível ficar roendo unhas. Não ajudava em nada a mantê-la mais calma.
A qualquer momento, as trombetas soariam e teria de sair da cabine abafada para
encarar seus oponentes, bem como o desafio iminente — pelo menos foi isso que
a orientaram depois de ser obrigada a usar aquela roupa brega e se enfiar sobre a
minúscula cabine. No esforço sofrível que fazia para encontrar alguma paz e
tranquilidade, Ivyna mirou o desconfortável banquinho de madeira posicionado a
um canto e caminhou até lá sem a menor pressa, para sentar e tentar relaxar. Mais
cedo, fora sentada ali que recolheram o necter de sua aura mágica. Uma jovem, toda
de branco e de cabelos escorridos e azulados entrou com alguns frascos de vidro e
explicou o procedimento a ser feito. Era uma formalidade exigida pelo Conselho,
toda vez que um novo Guardião ascendia ao cargo. Embora Ivyna achasse isso uma
tremenda idiotice, afinal, a miscigenação de guardiões, mestres e alquimestres era
uma coisa corriqueira, ela sabia que parte das famílias de Guardiões e até do
Conselho consideravam uma abominação esse tipo de relação. Diziam que
manchava a magia dos guardiões e enfraquecia seu poder. Os próprios Moronov
eram totalmente contrários ao que chamavam de “mistura de raças” e até
influenciavam os Heinhardt e os Borovit a manterem essa tradição imbecil em
nome dessa suposta pureza. Sempre gostou mais dos Lohntrak por esse motivo:
eles nunca ligaram para essas coisas, prova disso eram suas tias e primos que
casaram com mestres, alquimestres, não-mágicos. Ivyna nunca fez objeção a isso e,
se tivesse se apaixonado por alguém que não fosse guardião, lutaria por esse amor
até o fim, embora soubesse que sua mãe não tinha o mesmo pensamento.
— Espero que não tenha comido a própria mão!
Ivyna tomou um susto, quando a figura imponente de Heidlich adentrou a cabine.
Embora achasse brega o negócio da combinação de cores, o irmão mais velho
ficava bastante chamativo trajando os tons de Badorian. Menos cerimonial e
pomposo, ele vinha um tanto despojado em seu gibão azul aberto e calças e botas
de couro. O peitoral e abdômen definidos estavam de fora no visual mais informal
que vira desde sua ascensão ao trono.
— Peitinho de fora, roupa descolada. Você é mesmo o rei da Suntuosa Badorian?
— O próprio, minha Guardiã.
Heidlich girou sobre o próprio eixo e curvou-se, por fim, em uma longa
reverência. Ivyna bateu palmas de forma efusiva e também reverenciou o irmão.
— Pelo visto, você não está nada tranquila... — Heidlich mirou as mãos da irmã
outra vez. — Tem até sangue ao redor das suas unhas.
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— Nem um pouco. — Ivyna sentou-se novamente no banco desconfortável e
esfregou as palmas das mãos. — Essa expectativa vai me fazer começar a roer os
dedos. Estou com medo. Não sei como serão essas provas. E se eu não for bem?
E se eu for a última colocada? E se eu não conseguir concluir o desafio?
Heidlich franziu os lábios e parou ao lado da irmã, cruzando os braços.
— Muitos ‘e se’ em uma mesma frase. Nem começou o evento e você já está
sofrendo por antecipação. Faça o que sabe, demonstre a força e inteligência
apresentada nos nossos treinamentos. Se aceita um conselho, finja que não tem
ninguém nas arquibancadas e dê o seu melhor.
— Não dá para fingir, Heidlich. Há uma multidão gritando e pulando lá fora.
Está sentindo o chão? Ele está tremendo com esse povo batendo os pés. Ouvi dizer
que fizeram até apostas.
— Ah, sim. — Heidlich assentiu. — Eu mesmo apostei no Petr Bravior. Mil e
quinhentas libras badorianas no moleque. Ele tem um potencial incrível. Um poder
quase infinito. Acho que ele vai te dar uma surra inesquecível hoje.
— Seu idiota! — Ivyna deu um soco de punho fechado no braço do irmão. —
Devia ter apostado em mim. Sou sua irmã!
— Prove que é boa e eu posso pensar se você vale meu dinheiro no próximo
evento...
Ivyna deu mais dois socos no irmão e os dois riram juntos.
— Enfim, acho que preciso sair. Logo, logo a trombeta vai soar e você terá de
encarar o desafio. Mas, antes, já fizeram a coleta do necter mágico?
Ivyna franziu o cenho.
— Já. Tem alguns minutos. Por quê? Algum problema?
— Não — respondeu Heidlich, sorrindo pelo canto da boca. — O problema é
ainda fazerem esse teste de pureza mágica.
— Nem fala. Também acho.
— O Conselho diz que nunca se contrapôs em admitir o que eles chamam de
mestiços, mas insistem com essa bobeira. Mas só o fato de chamá-los de mestiços
é uma contradição. Até hoje, jamais se comprovou que a mistura de raças pode
provocar algum tipo de fraqueza no poderio de alguém.
Heidlich ergueu a irmã do banco, deu um beijo em sua testa e segurou as mãos
dela firmemente.
— Eu acredito em você, Ivyna. — Ele a encarou no fundo dos olhos, com uma
expressão de seriedade ocupando seu rosto. — Apostei quatro mil libras badorianas
na sua vitória. Você já viu quanto está o câmbio para o peso gradiano? Pois é.
Então, faça valer a pena... e o meu dinheiro render, claro.
A trombeta ressoou, estremecendo o interior da cabine. Com os brados
retumbantes das multidões de espectadores na arena e os pés batendo forte contra
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o chão, Ivyna se aprumou e caminhou para fora. A hora mais esperada finalmente
chegara. Com os dedos marcados pela fúria de seus dentes, a jovem ruiva se
empertigou. Conferiu se não havia nada de esquisito em sua própria roupa, ajeitou
alguns fios teimosos nos cabelos bem presos num coque tão apertado quanto se
podia e irrompeu pelas cortinas azuis para a luz do dia.
Era fim de tarde e o céu estava tomado por nuvens cinzentas lançando uma
penumbra melancólica sobre a gigantesca arena. O estádio pulsava com as
multidões em polvorosa, aos berros, vestindo as cores dos reinos de seus guardiões
favoritos, lançando fogos de artifício em direção aos céus, fitas de variadas cores e
flamulando bandeiras com grifos, leões, fênix, harpias e corcéis para todos os lados.
Contemplando o ambiente ao redor, Ivyna estava extasiada com vislumbre a sua
frente. As vibrações da imensa torcida eram latentes, reverberando em seu corpo
estacado em um dos extremos. Esqueceu por um breve momento o nervosismo
contumaz que a perturbava dentro da cabine.
Luzes mágicas se acenderam numa sequência pirotécnica eletrizante, iluminando
a arena por completo em um espetáculo de cores à parte, quando um conjunto de
trompetes e outros instrumentos de sopro ressoaram uma bela canção. Os
torcedores abarrotando as arquibancadas foram à loucura, se colocando de pé e
balançando ao som da música animada. Iluminado por um brilho mágico chispante,
Ivyna entreviu o palco do primeiro teste do Ano da Elegibilidade ao seu redor.
Cinco pequenas plataformas douradas se espalhavam, descrevendo um círculo
perfeito sobre o chão de terra batida da arena. Não havia mais nada no cerne do
primeiro evento além das plataformas brilhantes. Ao pé das cabines de cores
marcantes iguais à que estava anteriormente, Ivyna contemplou os demais
guardiões, tão admirados quanto ela com a visão estonteante em volta e trajando
roupas caricatas, semelhantes às suas. Avistou Petr no lado oposto ao seu da arena
circular. O garoto balançava a palma da mão, acenando para ela, com entusiasmo.
Devia estar há algum tempo assim, pela forma como agitava o braço. Ivyna sorriu
para ele e o garoto em um gibão preto fez um segundo sinal, apontando para a
plataforma em que ele já se posicionava. Ivyna mirou o palanque próximo e correu
para se posicionar acima dele.
— Senhoras e senhores!
Uma voz trovejante ribombou na arena, fazendo as multidões emudecerem de
imediato. O som fora tão alto que chegou a estremecer os tímpanos de Ivyna, talvez
retumbando assim propositalmente. Com o dedo nos ouvidos, a garota identificou
de onde a voz potente ressoava. Bem ao norte da imensa arena, uma tribuna de
honra fora montada. Contendo os cinco bandeirões dos reinos-guardiões, ela
conseguiu vislumbrar os principais integrantes do Conselho, todos em pé,
enfileirados, com as mãos para trás e os sorrisos arreganhados em seus rostos
cobertos de rugas e barbas grisalhas. Ao centro, na frente dos demais, estava August
470
Moronov. Às vezes, Ivyna esquecia que ele era o porta-voz do Conselho. Ladeado
por Salazar Stanhorne e Hamm Zanotchka, ele era todo sorrisos e gesticulava com
uma energia abissal. Estava elegante, com vestes azuis e grossas peles brancas de
urso ao redor do pescoço, como as de um rei.
— Aos presentes neste evento tão significativo de nossa história recente. Aos
humanos e mágicos, homens e mulheres, elfos, centauros, faunos, anões, duendes.
A todos espalhados ao longo das arquibancadas e que se assentam sobre essa
tribuna. Eu os saúdo nesse dia especial.
Salvas de palmas eclodiram por todo canto. Ivyna bateu palmas tímidas. O
nervosismo regressava outra vez, tentando dominá-la. As pernas queriam vacilar e
tremiam de forma involuntária. No topo da tribuna, Moronov se demorava batendo
as palmas das mãos com efusividade, como se a aclamação pelo início do evento
fosse para ele.
— Chegou o grande momento. O primeiro, dos três eventos do Ano da
Elegibilidade, começa agora. Os cinco guardiões estão posicionados, na expectativa
do teste que lhes será anunciado.
Ivyna contemplou de soslaio os outros oponentes. O guardião de Elstoen roía as
unhas também e, entrementes, não parecia se importar com o que poderia pensar
sobre seu estado de nervos. Os olhos estavam tão arregalados que pareciam querer
saltar das vistas. A ansiedade perturbadora do rapaz era ainda maior do que a sua
e, de repente, Ivyna sentiu um alívio de não ser a única apossada pelo nervosismo.
O guardião de Turmis externava um tédio notório. Batia um dos pés e cruzava e
descruzava os braços. Talvez Petr tinha razão quando disse, no início daquela
manhã, que o rapaz ruivo de Amistelar não parecia de fato querer estar ali. Teria
Salazar o obrigado? Seria livre e espontânea pressão de sua família? O brutamontes
de Aladar socava a palma da mão direita. Comprimia os olhos e sorria de um jeito
nada amigável, alternando os olhares de Petr para o guardião de Elstoen. Parecia
muito confiante. Será que ele queria socar um dos outros quatro ao seu redor? Era
bem provável. Petr permanecia de olhos vidrados na tribuna, sem piscar, agitando
as mãos e pernas, na expectativa de Moronov explicar de uma vez por todas qual
era o raio da tarefa que deveriam realizar.
— Hoje, a Lógica de cada um dos cinco será colocada à prova. Ao ressoar da
trombeta, nossos amados competidores terão de deixar o topo de suas plataformas
e correr para alcançar este magnífico troféu resplandecente.
Uma luz brilhou no centro da arena, tomando todos de surpresa. Uma sexta
plataforma brotou do chão de terra. Brilhando diante dos olhares curiosos dos
espectadores, uma belíssima salva dourada com rubis, diamantes e outras pedras
preciosas engastadas materializou-se magicamente, flutuando e girando a meio
metro de altura. Ivyna se demorou nas figuras entalhadas sobre o troféu. Diferente
do normal, desde sua chegada à Gradia, não eram os animais que representavam os
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reinos. Os símbolos esculpidos se assemelhavam a uma chama ardente, uma gota
de água, curvas sinuosas parecendo representar os ventos e um galho — ou seriam
raízes de uma árvore?
Contemplando o suntuoso prêmio no centro da arena, Ivyna não compreendia.
Sem entender os símbolos dos elementos e seu significado, questionava-se que raios
de prova de lógica era essa. Correr por uma arena até alcançar uma espécie de
mandala brilhante lá no meio? Não era uma prova de inteligência, mas sim de
aptidão física. Quem corresse mais rápido, chegaria primeiro. Se fosse pela idade e
vigor entre os cinco ali, Petr seria o grande campeão dessa prova sem sombra de
dúvidas. Era uma prova de lógica sem lógica alguma.
— Contudo, estejam atentos — prosseguiu Moronov, passada a admiração
momentânea pelo troféu, fazendo a voz rimbombar outra vez, magicamente. —
Nem tudo é o que parece. Não se iludam. Sobre esta salva dourada, muito além de
suas joias preciosas, estão representados cada um dos principais elementos da
natureza. Em condições normais, um guardião tem o poder para manipular os
elementos, mas também conjurá-los do nada e trazê-los à existência. Os elementos
são primordiais para a vida. Primordiais para a harmonia e o equilíbrio. Primordiais
para a serenidade do tempo e a ordem de todas as coisas ao nosso redor. Tudo se
compõe e se sustenta com base nesses elementos básicos: o fogo que arde e brilha,
mas também consome todas as coisas; a água, presente em nossa vida e em nosso
mundo; o ar, que nos garante vida e assopra pelos quatro cantos; a terra, firmando
nossos pés e dando-nos condições de sobreviver. Todavia, ao mesmo tempo que
os elementos se completam, eles também se opõem. A força de um elemento, pode
ser a fraqueza de outro. A força e a destreza são sim de vital importância na
trajetória de um Guardião, porém, o fator mais notório e relevante, que tem o poder
de acabar com guerras, instituir a paz e angariar os louros e as vitórias nesta vida é
a inteligência, a lógica de nossas mentalidades.
Ivyna gravou cada palavra de Moronov. Um discurso tão misterioso,
inesperadamente falando sobre os elementos não podia ser à toa. Colocando-se em
posição e esquecendo a ansiedade, fazendo suas pernas tremularem, ela aguardou
o toque das trombetas.
— Guardiões, estejam prontos! Em nome deste estimado e eterno Conselho, eu
lhes desejo sorte e que o mais perspicaz saia daqui hoje com a vitória.
A trombeta tocou num longo silvo assim que Moronov tomou assento ao lado
de Stanhorne e Zanotchka. As arquibancadas estremeceram outra vez em um
frenesi avassalador. Sobre o coro de vozes histéricas, Ivyna saltou de sua
plataforma, mirando unicamente o brilho dourado do disco engastado de joias bem
no centro da arena. Imitando o gesto da guardiã, os demais ao redor avançaram o
mais rápido que seus corpos tomados pela adrenalina conseguiam.
472
Raízes protuberantes como o tronco de um velho pinheiro, emanaram do chão
num assomo inesperado, fazendo Ivyna derrapar em sua corrida desesperada.
Como serpentes gigantes emergindo de águas profundas, as raízes ásperas
brotavam sem cessar, obstruindo o caminho da guardiã em direção ao seu alvo.
Retomando os passos fugazes, a jovem ruiva correu desabalada pelos flancos, no
objetivo de contornar os gigantescos cardos que se convertiam em galhos
inflamados por centenas de folhas verdejantes, como as de ciprestes em plena
primavera.
Arfando sem parar, Ivyna corria o mais rápido que seu corpo aguentava, tentando
desvencilhar-se dos galhos, folhas e raízes em polvorosa brotando magicamente do
chão. Quanto mais forçava as pernas a galgar posições pelo caminho, mais ainda
era impedida pelas plantas mágicas emanando ao redor. Avançando por onde
conseguia, notou pedras cinzentas surgindo e se aglutinando, misturando-se aos
galhos e raízes. Correndo em zigue-zague, perdera o troféu de vista e, tanto à direita
quanto à esquerda, mais pedras e vegetação selvagem brotavam, formando um
verdadeiro paredão sem fim.
Estacou onde estava, de repente. Obviamente, se era um teste de lógica, as coisas
não seriam tão simples assim. Fora um ledo engano acreditar que bastava correr até
a mandala e arrebatá-la primeiro. Notou um certo padrão nos galhos e rochas
tortuosas que não paravam de subir em direção aos céus. Eles seguiam, surgindo e
serpeando pela arena, dobrando à esquerda e à direita, sempre avançando em um
estardalhaço retumbante. Nada daquilo era à toa. As raízes mágicas, folhas de
ciprestes e pedras ásperas não estavam ali unicamente para atrapalhar de alcançarem
a salva de ouro. Pelo padrão com que seguiam, em frente e fazendo curvas em
ângulos retos, sem parar de subir e subir, estava percorrendo a trilha de um labirinto
mágico. A maior pergunta martelando em sua cabeça naquele instante era, que tipo
de teste de lógica haveria de enfrentar dentro de tais corredores tortuosos. O
labirinto por si só não deveria ser o único teste. Embora encontrar um caminho até
o prêmio em um labirinto, fazendo e refazendo caminhos poderia ser uma coisa
desafiadora e demorada, Moronov não citaria os elementos da natureza sem um
propósito.
Ivyna voltou a correr outra vez, seguindo as curvas e caminhos ladeados pelos
paredões de rochas e galhos de ciprestes, avançando sempre alerta, na expectativa
de que qualquer coisa esdrúxula iria aparecer, desafiando seu intelecto. Com o
tamanho das paredes do labirinto, a luz irradiava de uma forma bruxuleante lá
dentro e era difícil observar exatamente por onde seguia, mas os gritos e a agitação
dos espectadores ainda ecoavam de um jeito alucinante além das paredes de mata
selvagem.
Os olhos encararam quatro figuras distintas e reluzentes e a jovem ruiva foi
obrigada a parar mais uma vez. Ofegante, imaginando o quão perto do troféu os
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outros guardiões deveriam estar, ela vislumbrou cada símbolo e os reconheceu de
imediato. Atrás de cada um deles, havia um caminho a seguir. Brilhando num tom
escarlate, a figura de uma chama a crepitar; em um azul cintilante, identificou a gota
de água, a mesma do troféu; o símbolo dos ventos coruscava em nuances
esbranquiçadas; o galho de árvore era marrom chispante.
— Tenho de fazer uma escolha...
Ivyna colocou as mãos nos quadris, tentando raciocinar. O que Moronov havia
dito mesmo? Os elementos da natureza se completam, mas também se opõem. A
força de um pode ser a fraqueza de outro. O que isso queria dizer? Se seguisse pelo
corredor do fogo, teria de encarar o fogo ou usar o fogo contra o que havia além?
Torcendo para ter de usar o fogo contra algum monstro naquele sentido, avançou
pelo corredor da ponta, com o símbolo da chama a brilhar.
O caminho era escuro. O cérebro a mil e o corpo pulsando, os sentidos ficaram
aguçados de imediato no negrume dominante. O barulho ensurdecedor da torcida
desapareceu. Ivyna avançou, diminuindo o passo, aguçando a vista e esperando o
perigo iminente se apresentar. O suor escorria em cascatas por suas costas. Tentou
conjurar uma chama elemental para iluminar o perímetro, mas, estranhamente, não
conseguiu. Sentia a aura mágica fluir pelos dedos, contudo nem uma única faísca
emanava. Das têmporas, as gotas invadiam seus olhos e empapavam a camisa e
colete. Ficava mais irritadiça a cada instante e angustiada. O calor fritava seus
miolos. Não era impressão, estava mais quente do que o habitual ali. Esfregou as
palmas das mãos sobre o rosto e limpou o suor.
Um clarão escarlate surgiu de chofre e Ivyna girou nos calcanhares para encarar
a fonte da luz. Uma imensa e viva labareda de fogo consumia os galhos e folhas de
ciprestes dos muros do labirinto, como uma intensa parede de fogo, bem atrás dela.
Sem pensar duas vezes, fez a primeira coisa que veio à cabeça: correr o mais rápido
que podia. Seguiu desabalada pelo caminho, tendo a luz das chamas como farol ao
longo da trilha.
Não havia um perigo para enfrentar usando o fogo, como desejava. O fogo era o
próprio perigo a encarar. Dobrou à direita e depois à esquerda, com as chamas
mágicas quase a alcançando. Como poderia vencer aquele fogaréu infernal? Forçouse
novamente a usar a magia para conjurar um jato de água, mas, outra vez, seu
poder falhou. O que estava acontecendo? Será que havia algo de errado consigo
mesma? Moronov mencionara algo sobre isso: um guardião tem poder de
manipular e conjurar os elementos, em condições normais. Não estava em uma
condição normal, não conseguia conjurar chamas para iluminar a escuridão e nem
água para deter o fogo. Correndo e sentindo as pernas apresentarem seus primeiros
sintomas de cansaço, forçava a pensar que isso era parte do teste. Mas, se não havia
como usar a magia para fazer água elemental e impedir o fogo de torná-la um
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pedaço de carvão, como impediria as chamas avassaladoras consumindo os
corredores do labirinto logo atrás dela?
As gotas de suor não davam trégua, descendo como cachoeiras. Percorrendo o
trajeto, virando à esquerda e à direita sem rumo certo, sentindo-se cada vez mais
lenta enquanto as chamas não diminuíam sua intensidade e velocidade, Ivyna
passou as duas mãos sobre rosto e contemplou as palmas molhadas com sua
transpiração exacerbada. Uma ideia tresloucada brotou em sua mente, como uma
luz no fim do túnel. Conjurar água podia não ser permitido, afinal, num teste de
lógica, diante de um fogaréu daquela magnitude, qualquer um poderia pensar em
jatos elementais de água para extinguir as chamas. Mas e se usasse o próprio suor a
para apagar o incêndio? Lembrou que aprendera uma magia para usar qualquer
elemento ao seu alcance e fazê-lo aumentar de volume. Seria possível fazer com o
suor? Puxando pela memória a forma como conjurar, agitou os dedos e mãos do
jeito certo — pelo menos era a forma como recordava.
O suor impregnado sobre as mãos em formato de concha tomou forma no
momento em que terminou os movimentos e padrões da mágica. Aninhou-se no
formato de uma esfera e dobrou de volume. Ivyna sorriu, sem parar de correr — e
suar. Quanto mais se lançava pelas curvas tortuosas do labirinto, mais as gotas se
avolumavam e por um instante agradeceu por suar tanto. A poucos metros de ter
as chamas elementais esturricando suas roupas, a jovem ruiva virou-se e arremessou
jato de suor mágico, torcendo para sua ideia maluca funcionar.
Um choque instantâneo entre fogo e água fez as paredes de pedra e galhos
estremecerem. O ruído fragoroso do vapor invadiu os ouvidos de Ivyna e logo, os
olhos da garota vislumbravam o fogo se extinguir, recuando em seu trajeto,
diminuindo de tamanho até finalmente desaparecer.
A jovem ruiva apoiou as mãos sobre os joelhos e pôde finalmente respirar em
paz, sem precisar fugir para manter-se viva. As informações do que acabara de
acontecer iam se encaixando aos poucos em sua mente. Os elementos eram o
perigo e também a forma de escapar. Encarou o fogo usando água, mas sem
conjurar, usando apenas o que tinha nas mãos. Um peso diferente brotou de
repente no bolso direito de sua calça. Sobressaltada, ela enfiou a mão para ver o
que estava ali e puxou um pequeno artefato em forma de fogo. Por que aquilo
estava ali? Haveria de ser um pequeno troféu por ter vencido o primeiro elemento?
Prendeu-o entre os dedos, sorvendo o ar com vontade. Podia, afinal, respirar mais
aliviada. Enfurnou o objeto outra vez dentro do bolso.
— E agora? Para onde devo ir?
Não havia se dado conta, pois continuava descansando da correria urgente pela
vida, mas os olhos começaram a reparar o entorno: não havia caminho a seguir.
Estava num beco sem saída. Tratando-se de um labirinto, certamente não deveria
ser por ali que precisava seguir. Recompondo-se e refazendo o caminho por onde
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o fogo consumira os galhos — somente as pedras permaneciam firmes e fortes
sobre as amuradas do percurso, Ivyna notou que algumas rochas estranhas e
perfeitamente redondas caíram sobre o chão, revelando alguns buracos nas paredes.
Curiosa, aproximou-se de uma delas para espionar. Eram grandes o suficiente para
poder passar por ali. Quem sabe não facilitariam seu caminho até o troféu? Estava
determinada a sair vencedora de pelo menos um dos três eventos do Ano da
Elegibilidade. Gostaria muito que fosse este, uma vez que adorava testes de lógica
e de raciocínio.
Aproximou-se do buraco na parede, ainda receosa de conter algum tipo de
armadilha. Eles não estariam ali por acaso. Abaixou-se para poder espiar melhor e
no momento em que ia enfiar a cabeça para bisbilhotar, um jorro de água como de
uma poderosa cascata molhou seu rosto e invadiu suas narinas, fazendo-a engasgar.
Respirou fundo, recuperando o fôlego interrompido pela água a brotar, notou que
dos demais buracos redondos nas paredes do entorno, fontes de águas surgiam,
cuspindo litros e mais litros sem parar.
Correu para a extremidade por onde havia entrado e ouviu o estrépito dos galhos
e pedras se entrelaçando outra vez. O caminho estava fechado. Acima de sua
cabeça, raízes e outras rochas se amontoavam em um emaranhado só, fechando a
única saída daquele retângulo inundado por torrentes de águas. Estava presa num
caixote mágico, com cascatas fluindo das paredes, inundando o lugar.
O desespero mais uma vez ia tomando seu corpo. Ivyna contemplava as seis
saídas de água inundando o pequeno espaço em rápida velocidade. Enfiou a mão
no bolso outra vez e encarou a ínfima insígnia em formato de labareda. Haveria
forma de evaporar toda aquela água com fogo elemental? Bem, se conseguiria
multiplicar a quantidade de suor até se tornarem jatos que apagaram as chamas,
porque não tentar fazer o mesmo com o amuleto de fogo?
Mal começara a iniciar os movimentos para conjurar as chamas do objeto
recebido, sentiu o chão estremecer de repente. Agitando-se de uma forma
descomunal, Ivyna contemplava os pés encharcados através da lâmina de água
transparente, batendo na altura de seus joelhos. O chão de lajotas da arena
balançava. Sem querer acreditar no que estava diante dos seus olhos, confiando ser
algum tipo de ilusão através do espelho d’água, observou as lajotas desabarem uma
a uma, a começar da extremidade de onde viera.
Outra vez, lançou-se numa corrida alucinada para o extremo onde o chão
permanecia firme. Mirava cada canto do retângulo cercado por galhos e pedras,
sendo inundado pelas torrentes em seis pontos distintos. Escalar as paredes era
inútil, não havia saída pelo alto. Usar o fogo poderia ser uma saída, mas tinha
dúvidas se, mesmo com a magia de multiplicação, toda aquela água abundante seria
evaporada. E se fosse evaporada, para onde escaparia. Havia algo que estava
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deixando passar. Qual era a lógica a seguir? Como sairia com vida de todo esse
aguaceiro?
Duas coisas aconteceram de supetão. O último resquício de terra firme embaixo
de Ivyna desmoronou e ela se viu engolfada pela profundidade da água abaixo de
seus pés. Parecia um poço sem fim. Com os olhos arregalados abaixo da lâmina
d’água, a visão turva não conseguia enxergar muito bem o final daquele abismo
inundado. Nadando para a superfície, quando a água estava a poucos metros de
atingir o teto de galhos e pedras, a jovem guardiã teve uma ideia no mesmo instante
em que os pés não estavam mais firmes sobre o chão. A frase de Moronov, de que
os elementos se completavam e se opunham, ribombava em sua mente. Só havia
um jeito de escapar dali e evaporar o fogo não seria a solução. Somente escaparia
com vida se tivesse ar para respirar.
No ínfimo espaço ainda não inundado entre sua cabeça e o teto, Ivyna encheu os
pulmões e assoprou com toda a força que conseguiu. Movimentando as mãos,
mantendo-se acima da linha da água, repetiu a magia de multiplicação e o oxigênio
circulando no espaço limítrofe converteu-se em uma bolha de ar tão grande que a
envolveu por completo.
Ivyna mergulhou. Não sabia quanto tempo a magia de multiplicação aguentaria,
fornecendo oxigênio para respirar embaixo d’água. Precisava encontrar uma saída
urgente. Nadou para baixo o mais rápido possível, tentando entrevir nas oscilações
provocadas pela água, se havia um caminho para escapar. Agitando braços e pernas,
respirando normalmente através de sua mágica, ela vislumbrou uma luz,
acompanhada de um vórtice agitando as águas em um extremo. Torcendo para
aquilo não ser um mero acaso e sim, uma saída, balançou as pernas e nadou de
braçadas até o lugar.
O turbilhão de ar fazendo as águas se agitarem como num rodamoinho poderoso
apoderou-se do corpo de Ivyna, conduzindo-a por um caminho tortuoso pelas
águas. Deixando-se conduzir, a jovem guardiã grudou os braços sobre o corpo,
percorrendo um trajeto em alta velocidade, temendo que o suprimento de ar mágico
se esgotasse antes de conseguir alcançar o destino, escapando daquela profundidade
inundada. O corpo inclinou-se repentinamente e o vórtice submerso descreveu uma
curva ascendente, iniciando um caminho quase vertical. Prendendo a respiração
para poder economizar o pouco de ar restante, Ivyna fechou os olhos, sentindo o
coração pulular no fundo do peito.
Uma luz muito forte brilhou e o rodamoinho cuspiu Ivyna para terra firme.
Acabrunhada sobre um novo chão de lajotas, vislumbrou o perímetro ao redor,
contemplando outra rede de túneis cercada por paredes de galhos e raízes retorcidas
com rochas calafetando cada centímetro do piso ao teto. Algo pesou no bolso
encharcado, dessa vez o esquerdo. Ofegante, a guardiã retirou de lá uma gota
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azulada, semelhante à insígnia em formato de fogo. Vencera mais um dos
elementos, mas ainda temia pelo que poderia enfrentar no próximo desafio.
O caminho no labirinto era uma incógnita, os desafios a seguir é que exigiam
raciocínio rápido. Embora não tivesse a menor noção de onde estava, Ivyna seguiu
o próprio instinto e escolheu o segundo corredor da esquerda para a direita.
Lançou-se sobre ele, correndo pelas vielas tortuosas ladeadas por galhos e rochas.
Seguiu por caminhos sinuosos, sempre espreitando, olhando por cima dos ombros,
na iminência de encarar o próximo elemento. Se seu entendimento estivesse certo,
o próximo teste seria...
Parando no meio do caminho, notou que as roupas estavam estranhamente secas.
Não havia um pingo d’água sobre elas. Apalpando os cabelos para prendê-los em
um rabo de cavalo, percebeu que eles estavam armados, de um jeito esquisito, como
se uma corrente de vento os tivesse agitado. Só então se deu conta da presença de
um fluxo de ar intenso, mais do que o normal, correndo por ali.
E a correnteza de ar ficou ainda mais forte. E mais forte. Uma ventania veemente
e catastrófica invadiu os ares do corredor, girando como um ciclone abissal. Assim
como o vórtice, a correnteza de ventos tonitruantes seguia um trajeto específico,
arrebatando galhos, pedregulhos menores e folhas de ciprestes em um movimento
giratório em direção ao teto. Segurando-se como podia, Ivyna levantou a cabeça.
As lascas de madeira e pedrinhas arranhavam seu rosto e braços com a força dos
ventos. Lá no alto, lâminas giravam em alta velocidade, decepando e triturando
tudo o que era arrastado para cima.
Arregalando os olhos, a guardiã cravou os dedos sobre um galho protuberante
enquanto sentia o corpo se desprender do chão. Como escaparia da força do ciclone
de ar e de ser triturada pelas lâminas lá no alto? Como faria para manter os pés
firmes sobre o chão?
O ruído de “crec” estalou a um canto e Ivyna viu-se arrastada pela força dos
ventos em ciclone. O galho em que se segurava rompeu-se, mas seus dedos
continuavam firmes sobre as lascas de madeira áspera. O corpo era agitado
involuntariamente, rodopiando no fluxo contínuo de ar em alta velocidade, batendo
sobre as paredes de ambos os lados. Vislumbrou as lâminas a poucos centímetros
de fatiar seus pés e pernas na coluna de vento, então usou sua magia sobre o pedaço
de galho firme em seus dedos.
Raízes brotaram do pedaço de madeira como cordas tensionadas, lançadas em
direção ao chão. As raízes criaram mais raízes e que geraram outras raízes e foram
fincando com estrépito sobre as lajotas do corredor do labirinto. Ivyna estava firme,
mesmo com a ventania fazendo-a colidir com os quadris contra os muros. Quebrou
um pedacinho do galho e dele fez brotar mais ramificações que se arraigaram às
pedras das paredes e também ao chão. Estava envolvida numa ampla teia mágica
de madeira, deixando-a firme.
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Agarrando-se às raízes esticadas, Ivyna desceu, galgando posições até o chão. O
barulho ensurdecedor das lâminas girantes no teto tornava-se um cicio quase
imperceptível à medida que se lançava em direção ao chão. Firmando-se entre
galhos e raízes tensionadas, a guardiã conseguiu escapar do corredor de vento
mortal e dobrar à direita.
Os braços latejavam de dor quando ela percebeu, finalmente, estar livre do perigo.
Deitou sobre o chão, contemplando fogos de artifício nos céus, além do
emaranhado de galhos lá no topo. Será que um dos outros quatro guardiões
conseguira encontrar o troféu? Se sim, por que ainda estava ali? O teste só
terminaria se todos chegassem ao destino. Exausta, marcada por vários cortes
provocados por pedras, galhos e arbustos, com os cabelos desgrenhados e sentindo
um forte cheiro de queimado em algum lugar da roupa, Ivyna só queria que tudo
aquilo acabasse logo. A determinação de antes ia esfriando e não tinha tanta certeza
se queria ganhar esse evento. De repente, os dois próximos seriam mais tranquilos.
A jovem ruiva sentou-se e abraçou os joelhos. As articulações estralaram e a
coluna doeu. Um dos bolsos estava mais pesado do que antes. Ela enfiou a mão e
puxou outro objeto reluzente. Branco, possuía linhas sinuosas como as de correntes
de vento. Indicava que conseguira vencer mais um elemento da natureza. Contava
mentalmente quais deles ainda precisava enfrentar e se chegaria na salva dourada
antes de precisar passar por tudo isso. Ou seria obrigada a encarar um por um até
que conseguisse chegar ao troféu?
O corpo foi ficando molenga. Ia aos poucos entregando-se ao cansaço, embora
soubesse que ainda tinha mais vielas a percorrer até chegar ao centro da arena.
Precisava encontrar uma boa estratégia para poder identificar para que lado estava
o troféu. O desafio da água a fizera perder completamente a noção do caminho.
Mas era difícil conseguir se levantar, com as pernas ficando mais relaxadas e o chão
se tornando tão fofo e macio.
Fofo e macio?
Ivyna sobressaltou-se e pulou de imediato. Não era ela que estava ficando
molenga, era o chão se dissolvendo. Como areia movediça, as lajotas pareciam
derreter e se aglomerar umas nas outras, fazendo a jovem escorregar lentamente
para baixo, sendo engolida em passo de tartaruga pelo chão.
— Terra! Era óbvio — berrou Ivyna, vendo os pés ficarem soterrados pelas
lajotas movediças. — Eu usei galhos e raízes para me segurar ao chão e escapar do
vento. Agora o chão vai me devorar.
Ivyna fez uma força descomunal para erguer as pernas, mas era humanamente
impossível. Não conseguia mover os pés e vislumbrava o chão avançar em direção
aos joelhos. Precisava ser rápida. Como venceria a terra? Qual elemento seria capaz
de fazê-la soltar dali? Olhou tudo ao redor e percebeu um galho protuberante
saindo da parede. Esticou a mão para pegá-lo, mas no instante em que os dedos
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tocaram a madeira, ele se dissolveu como areia de praia. Encarando o entorno,
reparou não haver mais nada que pudesse ajudá-la a escapar.
A mão alcançou o bolso. Uma ideia maluca, mas que poderia funcionar, brotou
em sua mente. Com a mão direita, encarou a figura azulada parecendo uma gota de
água e com a mão esquerda, agarrou o objeto imitando o vento a soprar.
— Espero que vocês não sejam apenas figuras inanimadas de mérito por cada
elemento vencido. A hora de me ajudar é essa.
A aura mágica irradiou de cada uma das mãos e as insígnias estremeceram. O
chão movediço havia alcançado os quadris da jovem Heinhardt e ela não parava de
escorregar. Uma ventania se formou e encontrou um poderoso jato de água
elemental a jorrar da insígnia. Aumentando sua magia ao máximo, tanto quanto
seus esforços e vigor conseguiam, Ivyna viu a junção de água e vento ao extremo
formarem irrisórios flocos de neve. Sem interromper seu poder, berrando com a
intensidade da magia, uma avalanche esbranquiçada surgiu. Como estalactites de
uma montanha congelada, ela direcionou seu poder para as lajotas movediças,
transformando o chão e as paredes ao redor em gelo.
Assoprando baforadas enregelantes, Ivyna fechou os olhos. Abriu-os em seguida,
vislumbrando a brancura avassaladora do perímetro. Absolutamente tudo estava
congelado e ela permanecia estática, não escorregava mais. Galhos, pedras, lajotas,
tudo era o mais puro gelo.
— Ok. Beleza — proferiu Ivyna; os lábios tremulavam sem querer e o cérebro
estava cansado de pensar e agir com tamanha rapidez para poder sobreviver. —
Agora, como eu saio daqui?
No bolso da calça, ouviu um tilintar baixinho. Seguindo a lógica, outra insígnia.
Mas um dos lados já não pesava tanto. Imaginou que, por ter usado o do vento e
da água para fazer gelo, perdera ambos. Pelas contas, ainda possuía o de fogo e,
provavelmente, o da terra. Mas uma coisa não estava resolvida: como sairia dali?
Lembrou da chama reluzente e haveria algo melhor que o fogo para derreter gelo?
Mas, por alguns instantes, pensou que faltava um elemento a encarar, justamente o
utilizado para escapar da terra. E estava fácil de mais para seu gosto. O gelo não
surgira do nada, ela mesma utilizara para escapar do desafio da terra movediça.
Que outra forma havia para escapar do gelo?
Presa pela cintura, forçou os dois braços contra os blocos congelados, tentando
desprender-se da camada enregelante prendendo-a. Percebeu que onde sua mão
encostara, uma pequena rachadura havia se formado.
Ivyna abriu um largo sorriso.
A jovem guardiã cerrou os punhos. Com o máximo de força restante, bateu
contra o gelo. A rachadura dobrou de tamanho no mesmo instante. Ivyna golpeou
novamente e mais uma vez. Começou a socar o gelo freneticamente, com as
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energias que ainda possuía. Outras rachaduras surgiram. Estalos estrepitosos
ressoaram e a imensa camada congelada cedeu.
Ivyna se viu despencando de um precipício de gelo. Caiu sentada sobre uma
grossa camada congelada e escorregadia e o corpo deslizou por uma espécie de
escorregador de neve. Dando piruetas e rolando pela superfície enregelante, a
guardiã não distinguia muito bem por onde seguia, a única coisa que sabia era estar
seguindo por um declive vertiginoso, rolando e escorregando ladeira abaixo.
O chão ficou plano outra vez. A garota rolou algumas vezes até colidir contra
uma parede. A cabeça girava sem parar e cravou as duas mãos sobre o chão para
ver se a sensação perturbadora passava. Sobre os dedos ainda marcados por galhos
e pedras, apalpou uma camada fofa e macia de gelo. A superfície embaixo dela era
igualmente mole e friorenta.
Ainda gelo?
Abriu os olhos e contemplou o lugar em que finalmente havia parado. Ficou
alguns segundos tentando compreender se aquele lugar era real ou mais uma
armadilha do evento. Vislumbrava uma grandiosa caverna congelada. O chão estava
forrado por um tapete de neve branquinha. No centro da caverna, o troféu cintilava.
Reluzindo em ouro polido, a salva dourada se apresentava com sua destacada
imponência, entretanto, dentro de uma redoma de gelo.
— Você está bem?
Ivyna balançou a cabeça. Ainda atordoada, tentou entrever quem era a pessoa a
lhe fazer a pergunta. A pele morena com variados ferimentos — certamente
oriundos do labirinto, usando vestes verdes, com um corcel alado tremeluzindo no
peito e os cabelos negros bastante bagunçados, ele olhava com curiosa atenção para
ela.
— Ivyna, não é?
— E você é Rudi. Dos Wullith. Acertei?
— Sim.
— Você chegou primeiro ou junto comigo? — questionou Ivyna; a visão
voltando a focar o ambiente ao redor.
— Primeiro — falou Rudi, acanhado. — Vi você rolar por ali e bater contra essa
parede. Sinceramente, pela pancada, achei que ia... quebrar a cabeça.
— Ah, sim. — Ivyna contemplou uma espécie de tobogã congelado, apontado
pelo guardião. — Quebrei bastante a cabeça no labirinto, não ia ser uma parede de
gelo que ia abrir meu crânio. Mas, enfim, você ganhou, certo? Chegou primeiro ao
troféu...
— Infelizmente, não. Ele está preso dentro do gelo. E eu gastei minha insígnia
de fogo, me descongelando no corredor antes daqui. Estou tentando descobrir
como descongelar essa parede. Mas só me sobrou a terra, nem o gelo tenho mais.
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Conjurei estacas congeladas, mas não funcionaram. Essa redoma protegendo a
salva é muito resistente...
Ivyna colocou-se de pé.
— Você disse que usou o fogo para se descongelar... Por que precisou usar o
gelo?
— Para escapar da terra movediça. Sabe, o chão começou a...
— Ceder sobre seus pés... — sibilou Ivyna.
— Isso — falou Rudi. — Qual sequência você seguiu?
— Fogo, água, ar, terra e gelo — falou Ivyna, esfregando o cocuruto ainda
latejando.
— Eu também — disse Rudi, coçando a cabeça. — Mas você usou sua insígnia
de fogo para se descongelar, não é? O que não entendo é a salva estar congelada.
Isso não faz sentido.
— Não, Rudi — falou Ivyna, apontando para outro escorregador, idêntico ao
que ela descera, no lado oposto da caverna. — O gelo foi conjurado por nós
mesmos e não um desafio gerado pelo labirinto.
Rudi ficou absorto.
— É claro — crocitou o guardião, batendo na própria testa. — Por que não me
dei conta disso? Mas se você quebrou o gelo e seguiu os mesmos passos que eu,
você ainda tem...
— Sim — disse Ivyna, sorridente.
Agarrando a insígnia em formato de chama, Ivyna conjurou uma labareda que
irradiou pelos quatro cantos da caverna. Soltando sua magia contra a redoma, viu
o gelo protegendo a salva dourada se converter em água, derretendo no mesmo
instante.
— Venha! — Ivyna deu a mão para Rudi, que seguiu a guardiã.
Tocando os dedos sobre o troféu, Ivyna ouviu uma explosão de fogos de artifício
eclodir de forma ensurdecedora. A voz empolgada de Moronov invadiu a arena e
os gritos das multidões nas arquibancadas ao redor ressoaram, declarando a
Guardiã de Eurodian como a vencedora do primeiro evento do Ano da
Elegibilidade.
Sob o coro alucinante dos espectadores aclamando Ivyna como a grande campeã
do teste de Lógica, Heidlich caminhava a passos largos e pressurosos. Obstinado,
rumava para a tenda dos testes de pureza mágica. Não podia deixar ninguém
descobrir o que estava indo fazer. Numa busca rápida e silenciosa, aproveitando o
frenesi de todos no exterior pelo término da primeira competição, vasculhou entre
os frascos e identificou o necter com o nome de sua irmã.
Com o polegar e o indicador, puxou do interior das vestes outro frasco de vidro,
idêntico ao que repousava sobre o armário com o nome de Ivyna. Trocou as
482
etiquetas e arquivou cada necter para ficar exatamente da mesma forma como os
encontrou. Ainda era inacreditável para ele ter de correr tamanho risco, fazendo
uma loucura como essa, sem precedentes, mas amava sua irmã mais do que tudo e
acreditava em seu poder e potencial. Contudo, era perturbador ter descoberto que
Ivyna era meio-guardiã, fruto de uma traição de sua mãe.
483
Capítulo Trinta e Seis
Liberdade Cerceada
O brilho esplendoroso da lua cheia irradiava suas nuances leitosas contrastando
com a imensidão negra do céu, pontilhado de estrelas. Diferente da noite anterior,
não havia nuvens carregadas se amontoando, prestes a precipitar torrentes de
aguaceiro sobre a terra. A noite, assim como o dia, estava quente e úmida, abafada
o suficiente para fazer Alezeia sentir-se sufocada e igualmente ansiosa onde estava,
na expectativa por respostas que pareciam nunca vir. Nunca, em toda a sua vida, o
tempo passara tão devagar quanto naqueles dias.
Com a cabeça encostada contra a parede de pedra fria e abraçada aos joelhos, a
sacramentadora contemplava os tons melancólicos e esbranquiçados da luz do luar
por entre as grades do topo do calabouço execrável em que fora jogada. Ainda era
difícil de acreditar que tudo aquilo era real. Encarcerada, na masmorra mais distante
e esquecida do Oráculo do Tempo, acusada de alta traição. Nas noites em que
conseguiu pegar no sono, movida pela exaustão a afligir seu corpo, depois de passar
dias inteiros refletindo, deitada no chão de pedra fria e coberta de musgo, pesadelos
tenebrosos enchiam sua cabeça. Quando acordava, os olhos vislumbravam as
paredes reforçadas de pedra fria e a triste realidade abatendo sobre ela de que, sim,
estava vivenciando esses momentos angustiantes. Nada era fruto de sua
imaginação. Não eram delírios de sua cabeça. Atordoada, Alezeia tentava puxar pela
memória como foi que tudo isto aconteceu.
O questionamento de Sisno Sannfrye enquanto a conduzia ao longo da valsa no
Baile do governador de Cruisand ainda ribombava no fundo de sua mente, quando
Alezeia pôs os pés em Purysia. Era uma interrogação incisiva, uma pergunta que a
colocava em rota de colisão com o Primeiro-líder da Ordem dos Sacramentadores.
Por tudo que mais amava, pelo juramento à sacramentação ao qual decidiu, um dia,
dedicar a própria vida, e também pelo respeito e carinho devotado ao amigo de
longa data, Arturo Menfesis, ela não tinha respostas para aquela indagação. Mesmo
discordando veementemente das inúmeras ações infundadas do Supremo-
Chanceler de Purysia, ela jamais ousaria cometer tamanha atrocidade em relação à
sua posição na Ordem. Conhecia as legislações e para boa parte delas contribuíra
ao longo dos ciclos, fosse escrevendo ou revisando-as, e tinha pleno conhecimento
484
de que atentar para depor Arturo, sem haver acusação fundamentada, era cometer
uma traição sem precedentes. Era uma heresia execrável, como deturpar o caminho
sagrado de um sacramentador. Na noite do baile, ela sabia que deixara Sisno
frustrado, sem respostas. Não tomaria lados e, mesmo insistindo em tentar
convencer o antigo líder de Hegemonia, sabia como ele era obstinado e não
desistiria do plano traçado, com o apoio em peso dos ex-Octaedros, em uma
jornada insólita, permeada por incertezas, na tentativa de trazer à tona um elfo que
maculou a honra da Ordem, nos dias mais obscuros vividos por eles, depois da
grande Era das Trevas.
Sobre Adryan, Alezeia sentia calafrios só de pensar. Poucas coisas faziam-na
sentir um temor real e uma dessas era a menção ao nome do antigo líder dos
Sacramentadores. Embora concordasse quanto a Varnor ter sido um dos mais
brilhantes sacramentadores a ocupar a mais alta cadeira na ilha, angariando para si
a confiança dos maiores clãs de elfos e também o respeito dos guardiões, o
sacrilégio por ele cometido quase dividiu a Ordem e trouxe o desatino de sufocar
as responsabilidades dos sacramentadores dentro das Leis Primazes. Ainda assim,
Alezeia tinha consciência em seu íntimo, perdurava a certeza de que Menfesis se
tornara poderoso de mais, assim como Sisno afirmava, tendo os exércitos do
Protetorado de Purysia ao seu lado, fruto de uma relação antiga e fortalecida com
o rei de Corínio, dispostos a matar ou morrer por ele, além de influentes famílias
de Vaelfar, ainda sustentando apoio à sua liderança. O único que de fato poderia
enfrentá-lo, arrogando para si todo suporte necessário, com a notória influência de
Sannfrye junto às pessoas certas, mesmo depois de cometido tamanho pecado
contra a pureza do tempo, seria Adryan Varnor.
Irrompeu as portas do Oráculo de Purysia, atormentada pelos pensamentos das
possíveis consequências à Ordem, e deparou-se com um cenário esdrúxulo diante
de seus olhos. Ao pé das escadarias principais do castelo, Menfesis a encarava.
Empertigado, o queixo enrijecido e o nariz empinado, se apresentava dentro de um
longo sobretudo marfim. Segurava as mãos atrás das costas e, embora a expressão
em seu rosto denotasse um tom soturno, os olhos comprimidos demonstravam um
ar de desaprovação. Malas e bolsas de couro se empilhavam no chão de forma
organizada. Mas, ao redor do elfo, uma comitiva expressiva de soldados do
Protetorado empunhava espadas e lanças, mirando Alezeia assim como seu líder,
sem manifestar um pingo de sentimento ou respeito. No entorno, arcanos e
sacramentadores observavam a entrada do palácio com um terror descomedido em
suas faces.
— Bom dia, Ada — proferiu Menfesis e sua voz ecoou pelo saguão,
interrompendo o silêncio mortificante do lugar. Assim como a expressão insípida
de seu rosto, não havia qualquer emoção em sua fala.
485
— O que está acontecendo, Menfesis? — perguntou Alezeia, atarantada, mirando
os soldados e a bagagem ao redor. Notou os sacramentadores e arcanos da ilha se
contraindo, enfiando-se pelos corredores e escondendo-se atrás das portas do
entorno.
— Se, em sua indagação, há curiosa expectativa quanto ao que está diante de seus
olhos, informo que estou incursionando de Purysia rumo a uma viagem importante
neste exato momento.
— Para onde vais, Arturo?
— Não é de interesse público o que hei de fazer — disse Menfesis, impassível.
— Somente é de interesse informar-lhe o que acabei de proferir. Estou partindo,
não ouso por presunção externar a data de meu regresso.
— Menfesis, pela prerrogativa de minha autoridade dentro desta Ordem, afirmo
que intimo sua mercê a me informar o que está acontecendo! — vociferou Alezeia,
o esgotamento mental refletido em sua voz alterada. — Não escondo em minha
inteireza de espírito o quanto sua soberba alcança o vitupério e arranha meu âmago.
Esvaziei-me das vestes de arcana há eras, Arturo. Exijo, pelas virtudes eternas da
sacramentação, como Segunda-líder da Ordem e Superiora Chanceler, que me digas
o que pretendes fazer!
Arturo não moveu um músculo da face. Encarava Alezeia com a mesma altivez
de antes.
— Não tendes por privilégio poder algum a mais dentro desta Ordem, Ada
Alezeia Turim. Os poderes que um dia lhe pertenceram e tuas responsabilidades no
cerne de nossa religião foram revogados no instante em que foste conivente com
uma alta traição em relação à minha abnegada posição neste Oráculo. Apunhalado
por meu antigo maedor, Sisno Sannfrye, na intenção de outorgar outra vez o poder
àquele que um dia trouxe trevas e caos para nossa fé, teus pés não se empenharam
em apressar-se a me informar o que estava na iminência de se suceder. Agora,
retornas à ilha como se nada estivesse acontecendo, ousando questionar minha
autoridade quanto ao que tange às minhas decisões?
Alezeia arregalou os olhos. As palavras de Menfesis a atingiram como adagas
afiadas encravando em seu peito. Como ele poderia saber o que havia acontecido
em Cruisand? Ainda mais de uma conversa tão íntima com Sisno, durante uma
dança. A sacramentadora sentiu os olhares dos elfos ficando cada vez maiores e
mais arregalados em sua direção e as expressões hostis dos protetores, encarandoa
como se fosse uma criminosa.
— O silêncio que perdura neste recinto somente corrobora para o que me foi
apresentado — continuou Menfesis, diante da reação de Alezeia. — Eu a acuso,
Alezeia, de alta traição contra a Ordem. Pelos poderes a mim investidos, declaro
tua sentença na presença desta tão grande nuvem de testemunhas: seus poderes de
Segunda-líder e Superiora Chanceler estão revogados e venho anuir com a sentença
486
de seu encarceramento, até meu retorno a este templo, quando hei de decidir o
destino de sua vida.
— Arturo, você não pode...
Como uma cobra deslizando por detrás de Menfesis, Klaus Trishnann surgiu. A
expressão em seu rosto era diabólica, como se regozijasse com o que estava
acontecendo no hall de entrada. Trajando vestes douradas como as que o Primeirolíder
usava no dia a dia, o jovem sacramentador postou-se ao lado de Arturo, sem
deixar de encarar Alezeia um minuto sequer, com as sobrancelhas arqueadas e um
sorriso de deleite demoníaco nos lábios.
— Ao conhecimento de todos, torno por decreto verbalizado neste local que o
nobre e altruísta Klaus Trishnann, única figura a não hesitar em alertar-me sobre o
ocorrido tão logo tomou ciência, está nomeado como o mais novo Segundo-líder
da Ordem dos Sacramentadores e Superior-Chanceler do Oráculo do Tempo. Nos
dias de minha ausência, ele também estará incumbido das minhas atribuições
interinamente, até meu regresso para poder consagrá-lo em definitivo ao novo
cargo que ocupa, oficialmente.
Menfesis virou-se sem hesitar e caminhou, em passos lentos, rumo à saída.
— Arturo! — chamou Alezeia, aflita. Menfesis sequer moveu o pescoço. Seguiu
caminhando, com uma comitiva em seu encalço, carregando malas e bolsas.
— Não ouses incomodá-lo, Alezeia — vociferou Klaus, arreganhando os dentes
— És uma traidora da sacramentação. Um embaraço sem precedentes para esta
eterna instituição.
Alezeia avançou em direção a Trishnann, que logo se escondeu atrás dos guardas.
— Encerrem no cárcere esta desvairada — crocitou o novo líder da Ordem, com
a voz esganiçada. — Prendam-na sob a acusação de traição e insubordinação.
Conduzida pelos soldados, Alezeia seguiu rumo às masmorras, sob uma mescla
de olhares temerosos e inquisidores dos arcanos e sacramentadores residentes na
ilha e a expressão satisfeita no rosto arrogante de Klaus Trishnann. Ao longo do
caminho, manietada pelos guardas do Protetorado, conjecturava sobre como o
enxerido sacramentador havia descoberto a respeito da conversa com Sisno, se
somente ela e o elfo sabiam das informações. Não acreditava numa traição de
Sannfrye. Pela índole do antigo sacramentador, ele jamais faria tal coisa, mesmo
dominado pelo temor da informação chegar aos ouvidos de Arturo.
Passou dias enfurnada na cela mais úmida e desprezível do calabouço mais
pútrido do castelo, pensando sobre o assunto, encucada se Trishnann teria poderes
escusos para descobrir tais coisas. Até uma manhã de sol escaldante, em que achou
que morreria de desidratação e sufocada pelo calor, um rosto perene e turquesa
surgir por entre as grades da cela na direção das Águas de Argúrius. Como num
passe de mágica simples, suas inúmeras cogitações fizeram sentido de repente.
487
— Que fazes por aqui? — questionou Alezeia, observando a face serena de uma
ninfa das águas. As filhas das águas costumavam passear pela orla de Purysia.
Muitas delas deslizavam pelas torres altas em dias chuvosos e de altas marés.
— Passeando pelos mares, entre ondas e corais, percebi que há vida onde não se
via mais. Presa nesta masmorra, posso sentir sua dor. Haveria algo a fazer, para que
venham em seu favor?
— Há sim, minha querida ninfa. Peço que encontres o nobre rei Argus Norhein
e entoe para ele sobre minha liberdade cerceada e que estou encerrada nas grades
do calabouço da décima torre ao nordeste da ilha. Clame que venha em meu
socorro na calada da noite, na virada do turno do protetorado.
Sem dizer mais nada, a ninfa assentiu. Sorrindo de modo afável, retornou às águas
revoltas dos mares. Alezeia a viu partir pelas marés, tornando-se uma com as águas
salgadas de Argúrius, rumo ao destinatário da mensagem.
488
Capítulo Trinta e Sete
Mestre e Aprendiz
— Ei, Cob, fala sério, por que chamam ele de Príncipe?
O olhar compenetrado de Zakkar não se desviava, nem por um segundo, da figura
enigmática do príncipe dos ladrões, parado na única abertura para o mundo do lado
de fora daquela torre abandonada. Deitado em uma das muitas redes de um
emaranhado confuso de lençóis e rendas usados como camas para dormir pela
gangue do príncipe, o jovem guardião se balançava preguiçosamente, quase
encostando em Cob, um dos integrantes do bando de trombadinhas, conhecido
por ser o mais falador. Havia mais de uma semana, decidira se unir ao grupo de
ladrões, quando fora interpelado pelo misterioso rapaz a desafiá-lo para um duelo
de cavalheiros na praia, mas que sequer revelou seu verdadeiro nome. Questionava
a si próprio se fizera a escolha certa. Confiar em um sujeito enigmático, denotando
ser poucos ciclos mais velho que a maioria e fazendo uma promessa de ensiná-lo a
destruir o Conselho, “de dentro para fora” seria realmente uma decisão acertada?
Mas havia algo nele, no cara de cabelos selvagens, capa escarlate e aparência
misteriosa de alguém conhecedor de segredos escabrosos que o fazia querer ficar
ali. Algo o impelia a estar em meio àquele bando improvável de ladrões de rua para
descobrir o que precisava fazer para ter sua vingança pessoal.
Eram altas horas da noite. Adentravam o coração da alta madrugada,
possivelmente. Ali dentro, era difícil saber dizer qual era a hora do dia ou da noite.
Mas o centro de Cruisand não parava. A cidade mágica parecia não querer se render
ao sono. Não era possível ver muita coisa, da torre abandonada em que
repousavam. Aquele era o dormitório dos ladrões. Havia uma escala estabelecida
para quem faria a guarda. Contudo, os luzeiros intensos da cidade coruscavam pelas
frestas dos tapumes sobre as janelas e pelos buracos nos rebocos das paredes. O
turno esta noite era do próprio príncipe, ou qualquer que fosse seu nome.
Empertigado sobre um buraco estratégico na parte mais alta do edifício
malcuidado, ele observava cada ponto das ruas e vielas no exterior.
Embora fosse tarde e os roncos ensurdecedores ribombassem pelo interior da
torre, Zakkar não estava com o menor sono. Diferente do dia anterior, em que
tivera de ajudar a descarregar fardos de algodão de um navio e levar para a entrada
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do palacete do governador e de dois dias antes quando, a mando do príncipe, fora
obrigado a recuperar uma carga roubada nos limiares da região central de Cruisand
— e encarar outra gangue de pivetes infernizando os territórios por lá sem muita
dificuldade, nesta noite, a mente fervilhava com um cordel infindável de
questionamentos e mirabolantes planos sobre mil e uma maneiras diferentes de
destruir a vida dos conselheiros em Gradia e, especialmente, dos principais algozes
de sua família.
— Cob, estou falando com você!
Zakkar tomou um impulso na rede e cutucou o esgalgado Cob com o dedão do
pé. A unha gigantesca, como a garra afiada de um gavião espetou a perna do garoto
do bando, despertando-o num susto. Arregalou os olhos e esquadrinhou o negrume
da torre ao redor. Vislumbrou os outros amigos dormindo no emaranhado de redes
e o rosto encucado do guardião bem próximo do seu.
— Acorda, animal. Estou te fazendo uma pergunta. Por que chamam ele de
príncipe?
Cob esfregou os olhos e fez um muxoxo. Esquadrinhando o interior da torre,
percebeu que Zakkar apontava com a cabeça para a janela do topo da torre.
— Sério mesmo, Zakkar? Você me acordou para isso?
— Sei que você é um dos mais antigos nessa gangue. E, pelo que me contaram,
o mais fofoqueiro. Deve conhecê-lo há mais tempo que todos os outros.
— Essa sua informação de mais fofoqueiro está equivocada. Mas, sim, talvez eu
conheça há mais tempo que o resto. Mas por que quer saber?
Zakkar deu de ombros.
— Não consigo dormir. Essa curiosidade está me matando.
— Você não consegue dormir e resolver me acordar? — respondeu Cob,
revirando os olhos. — Você sabe como foi dureza cobrar o dinheiro hoje lá no
cais? Aquele velho maldito do Rebber sempre dá um jeito de me enrolar e...
— Cob, Cob. — Zakkar cutucou o garoto com o pé outra vez. — Foca na minha
pergunta.
Cob encarou a escuridão do teto assolado da torre e encarou o guardião.
— Ninguém sabe ao certo. A história mais antiga, e que me parece a mais verídica
até o momento, é que ele era o filho do filho de um importante rei de Eurodian.
Um dia, o Conselho dos Guardiões simplesmente decidiu que sua família precisava
ser destruída. Seu pai conseguiu fugir da emboscada, obviamente, mas ficou louco.
Passou a viver como um mendigo, refugiado nas ruas de Cruisand, mas ele como
era criança, pequeno e magricela, aprendeu a se virar nas vielas e becos dessa cidade.
A partir daí, passou a ajudar outras crianças iguais a ele até, bem... até virarmos essa
irmandade de ladrões, tentando descansar um pouco depois de um dia atribulado.
Entendeu, saracura?
490
Zakkar balançava a cabeça. Observou novamente a figura do príncipe e sua
sombra em pé, estacada no topo da torre, de vigilância constante.
— Mas olha só — prosseguiu Cob, com o dedo em riste. — Nem ouse perguntar
nada para ele sobre seu passado. Tudo sobre ele é envolvido em muito mistério. A
gente tá aqui no bem-bom por causa dele. Se a gente hoje tem um teto sobre as
nossas cabeças, mesmo que caindo aos pedaços e descola um dinheiro maneiro
nessas ruas, é por causa dele. Ah, nem pense em contar a ele que eu te falei essa
história. Agora, vê se me deixa dormir. Amanhã tem mais cobrança pra fazer. —
Cob virou-se sobre a rede e cobriu o rosto com um lençol velho.
O jovem guardião cruzou os dedos atrás da cabeça e desfrutou do silêncio do
interior da torre interrompido pelo matraqueamento de roncos nas outras redes e
pelas várias vozes escandalosas retumbantes no lado de fora. Perdeu-se em
devaneios por alguns momentos, divagando a respeito do que ouvira. Se era
verdade, suas histórias comungavam de um jeito inesperado. Se ele fora realmente
um príncipe e perdera a família por obra do Conselho, havia nele o mesmo desejo
que habitava seu íntimo. A vontade irrefreável de obliterar essa organização
demoníaca alimentava ainda mais o ódio crescente emanando em seu peito. O
Conselho era uma força implacável, soturna, estabelecida para garantir uma
harmonia entre os poderes que na verdade era uma utopia delirante. Eram um
reduto sombrio de homens malignos, detentores de um poder imerecido. Um
poder que utilizavam para o mal, decidindo sobre vidas inocentes, estabelecendo
juízos sobre quem merecia morrer e quem merecia viver. Essa ufania tinha de
terminar. O Conselho dos Guardiões tinha de ser impedido imediatamente.
Zakkar se colocou de pé sobre a rede. O sono não viria de qualquer forma, muito
menos naquele momento, sabendo de tantas coisas sobre o príncipe, mesmo que
nada daquilo fosse verdade. Pulou para as escadarias tortuosas de pedra gasta.
Estava decidido a bater um papo com o príncipe dos ladrões naquela noite.
Os degraus de cimento batido, além de desgastados pela ação do tempo, do que
antes supostamente fora um hotel dentro da torre velha e caindo aos pedaços,
estavam recheados de diversas armadilhas. Aprendera isso da pior forma logo no
primeiro dia, quando pisou em falso e quase quebrou a perna em um dos muitos
buracos ao longo da escadaria. Depois disto, passou a prestar mais atenção onde
pisava. Seguiu avançando de dois em dois degraus, arregalando os olhos na
escuridão para se certificar de que não iria enfiar o pé onde não devia. Seu alvo
estava no ponto mais alto, numa abertura retangular onde a luz do mundo exterior
era mais intensa.
Observou os inúmeros lençóis se cruzando por toda a extensão da torre, do chão
ao teto. Os integrantes do bando do príncipe de variadas partes de Cruisand
voltavam todas as noites, depois de labutarem de variadas formas pela cidade, e
encontravam abrigo ali. Não tinha sequer tanta certeza se conhecia todos os
491
“hóspedes” de seu esdrúxulo hotel formado por uma teia de redes abissais. Mas ele
não parecia um mau sujeito. Acolhia qualquer um em busca de refúgio. Era uma
pena que, desde o convite na praia, Zakkar não parava de fazer serviços braçais.
Carregar e descarregar coisas pesadas no porto, cobrar pagamentos e dívidas,
vender comida nas minas da periferia, fazer pequenos favores para algumas famílias
abastadas da cidade, entregar encomendas no palácio do governador e tantas outras
tarefas pesadas e sem sentido. Nada ainda dos ensinamentos que o líder da gangue
prometera quando se enfrentaram à beira-mar. A paciência vinha se esgotando, mas
algo indefinido o mantinha seguindo na equipe improvável. Não sabia exatamente
o quê, mas tinha esperança de que logo, logo descobriria.
Vislumbrou, com a ajuda de uma nesga de luz irradiando de um buraco na parede,
a única garota ainda ao seu lado nesta jornada inconsequente. Manara, a menina
que salvara no navio pirata, dormia tranquilamente ao lado de outra garota, uma
das duas meninas que integravam o bando de ladrões. O príncipe havia dito que ela
poderia ir embora se quisesse, seguir as outras cinco fugitivas na praia. Mas ela
escolheu ficar. Preferiu permanecer junto ao grupo a ter de retornar para sua casa.
No fundo, Zakkar acreditava que essa permanência da garota estava associada a ele.
Quando recebeu a notícia da liberdade, lançou olhares profundos para o guardião,
como se ponderasse a respeito. Emitiu um breve sorriso tímido e exclamou sua
sentença: continuaria ao lado deles pelo tempo que achasse necessário; até a poeira
abaixar em Miliat, segundo ela. Esperava que Manara não pensasse ter uma dívida
com ele e que precisaria pagar. Fez o que fez porque sabia ser o correto. Proteger
o mais fraco era uma das Leis Primazes mais ferrenhas a martelar em sua cabeça.
Se o Conselho não conseguia — ou não queria — fazer isto, ele estaria pronto
sempre que necessário.
— Perdeu o sono?
Zakkar se aproximava da abertura no topo quando ouviu a voz do Príncipe
irradiar da pequena plataforma engastada na torre que dava para o lado de fora. Ele
sequer virou a cabeça para dentro. O olhar de gatuno passeava em diversas direções
distintas, esquadrinhando cada canto do majestoso centro de Cruisand, avaliando
tudo o que poderia considerar uma ameaça dentro de seu campo de visão.
— Cabeça cheia. Não consigo dormir.
— Humm.
Zakkar irrompeu a abertura do topo e contemplou a mesma vista apreciada pelo
Príncipe. A torre abandonada, apesar de velha e desleixada, ficava numa posição
bastante estratégica. Era possível observar, dali, os principais pontos da região
central da cidade. O grande mercado, o porto e a praia ficavam à esquerda e era
possível ver navios chegando à quilômetros de distância — por isso não foi tão
difícil descobrir como eles sabiam de sua chegada sorrateira. Mais à direita, tinha
um vislumbre do grande Pilar da Magia, uma das torres gêmeas incandescentes que
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irradiavam da terra, apontando para os céus. Próximo a ela, a bela praça da torre e
os vilarejos de mansões e palacetes dos mais ricos e abastados moradores da cidade,
dentre eles, o suntuoso casarão do governador de Cruisand. Ao centro, percebeu
uma grande construção sendo erguida, com enormes estandartes expostos em
postes monstruosos de madeira enfileirados. Reconheceu a bandeira de Miliat e a
Fênix Indomável estampada sobre ela. O coração deu cambalhotas no peito quando
avistou a flâmula de seu reino.
— Cabeça cheia, então? — indagou o Príncipe, desviando os olhos pela primeira
vez desde que Zakkar se apresentara.
— É... eu...
Zakkar não conseguia tirar os olhos da enorme construção com as bandeiras. Era
uma espécie de arena quase terminada e, mesmo sendo altas horas da noite, dezenas
de homens armando vigas e colunas, ajustando estruturas e lançando lonas,
andavam de um lado a outro, finalizando os últimos detalhes do grandioso estádio,
cercado de seguranças e muito mistério.
— Deve estar se perguntando o que é aquilo tudo ali — falou o Príncipe,
apoiando-se sobre as grades enferrujadas do parapeito da sacada. — Embora
tentem manter segredo, é uma arena para...
— O Ano da Elegibilidade — completou Zakkar; na voz, um tom iracundo
disfarçado de displicência.
O Príncipe encarou o jovem guardião por um instante, com os olhos
comprimidos como se estudasse Zakkar, apoiado sobre o braço cruzado em cima
da grade. Ele tinha esse costume e era uma das poucas coisas que detestava no líder
do bando. Isto e o fato de estar obrigando-o a fazer intermináveis serviços braçais
sem motivo algum. Era como se tivesse a capacidade de analisá-lo de alto a baixo e
desvendar os pensamentos escondidos na mente de cada um. Quase sempre, estava
certo sobre o que raciocinava.
— Você é cheio de surpresas, Zakkar. Tão enigmático quanto você pensa que eu
sou.
— Eu tive uma vida antes de vir para cá. Não estou aqui porque quero. Aquele
— Zakkar apontou para a bandeira vermelha e branca a um canto — é o estandarte
de minha nação. Um reino desfigurado pelos interesses obscuros do Conselho dos
Guardiões.
O Príncipe balançou a cabeça. Absorvia as palavras ditas pelo guardião, com se
ponderasse sobre suas próximas. Não ousou falar nada. Virou-se para frente, por
fim, apoiando os dois braços no corrimão, voltando os olhos para as ruas.
— Você me prometeu — inferiu Zakkar, imitando o gesto do líder dos ladrões,
parando a seu lado e contemplando um grupo de bêbados vomitando próximo à
entrada de uma taverna lá embaixo. — Prometeu me ensinar. Mas tudo que tenho
feito nesta última semana é trabalhar de graça para você, fazendo todo tipo de
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serviço que qualquer pivete deste seu bando poderia executar, enquanto espero
pacientemente algum ensinamento de como derrotar esses malditos velhos
conselheiros que destruíram minha família.
— Pacientemente? — O Príncipe não moveu os olhos, permanecia estático em
sua posição de vigia. — O que tenho feito com você nestes últimos dias é habituar
o seu rosto a esta cidade, nos trabalhos que ninguém dá a mínima. Você não vê um
duque reparando se conhece as feições de um jovem maltrapilho e barbudo,
simplesmente carregando sacos de cereal para a abastada dispensa que ele possui
no luxuoso palacete onde ele mora. Não há um dono de adegas sequer notando seu
rostinho jovial quando você está puxando mulas, com odres carregados de vinho,
rumo ao centro comercial. Para essas pessoas fascinadas com a riqueza e o requinte,
você é só mais um na multidão. No meio desse povo deslumbrado com as façanhas
do Conselho dos Guardiões, com as histórias dos maiores reinos da terra ou com
os poderes místicos dos sacramentadores, nós, os renegados dessa sociedade
hipócrita, somos meros lacaios que não prestam para mais nada, a não ser realizar
tarefas corriqueiras e dispensáveis do dia a dia por alguma prata qualquer.
Zakkar emudeceu. As palavras o atingiram como um soco na boca do estômago.
— A paciência é uma virtude, Zakkar — continuou o Príncipe, encarando o
guardião no fundo dos olhos com uma dor e um desespero contido do fundo de
sua alma. — Eu estou nessa empreitada há um bom tempo. O Conselho dos
Guardiões também tirou tudo de mim e desses garotos roncando como maritacas
aí no interior da torre. Se você está mesmo disposto a aprender, eu estou pronto a
ensinar. Basta saber se você vai conseguir me acompanhar. — E arrancando um
pedaço de ferro da grade da sacada, ele pulou para uma grossa corda amarrada à
torre e deslizou até o telhado de outra edificação, metros abaixo.
Zakkar vislumbrou o líder dos ladrões aterrissar suavemente sobre as telhas de
barro do prédio e fazer um sinal para ele arrancar uma segunda barra da grade. Sem
pestanejar, puxou com força o pedaço de ferro e reparou que ele não estava preso,
mas encaixado ali de propósito. Imitando o gesto do Príncipe, ele se lançou sobre
a corda e escorregou por ela até o telhado contíguo.
Correndo pela laje, por entre telhas gastas e assoladas pelo sol, o Príncipe dos
Ladrões avançou para um parapeito e dali pulou para outro telhado, de um terceiro
edifício, grande e largo, onde funcionava um mercado durante a manhã. Zakkar
seguiu em seu encalço, ainda que temesse pisar em falso numa das telhas e
despencar dali. A queda era dureza. Eram alguns metros de distância entre o teto e
o chão e poderiam provocar umas boas fraturas expostas, quiçá a morte.
— Conheço cada uma das vielas e becos dessa cidade. Decorei cada telha em que
piso, cada laje por onde corro — falou o Príncipe, parando para encarar Zakkar
próximo a um buraco no meio das telhas. — Cada esconderijo, cada homem e
mulher de influência, cada passagem secreta, cada viela e cada beco. As prostitutas
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eu chamo pelo nome. Algumas até pelo sobrenome. Os bardos e cancioneiros
ouvem minhas histórias para se inspirarem. Cada vendedor deste mercado sabe
quem sou e pagam muito bem pelos meus serviços. E você sabe por que, Zakkar?
O jovem guardião deu de ombros, prestando atenção em cada palavra do
Príncipe.
— Influência — falou o rapaz de capa vermelha e cabelos rebeldes, abrindo os
braços. — Agora, veja aquele homem ali.
Zakkar observou pelo buraco no telhado e notou um senhor de meia idade, calvo
e barrigudo, guardando inúmeros papéis amarelados em uma bolsa de couro,
escondido atrás de uma pilha de caixas. Parecia irrequieto, olhando para todos os
lados, como se não quisesse ninguém reparando no que estava fazendo.
— Aquele é o velho Piti, o mercador de couro e peles de animais. Um dos mais
antigos vendedores do curtume dessa cidade. Poderia afirmar sem titubear que ele
é um dos pioneiros nesse tipo de produto por essas bandas. Toda noite, ele adentra
secretamente o mercado por uma passagem que começa lá nos olivais e segue pelas
galerias de águas subterrâneas até aqui, unicamente para conferir se suas
promissórias de vendas continuam intactas, antes de trocá-la pelo ouro que lhe é
devido ao final de cada mês. E você sabe por que ele faz isto?
— Não tenho a menor ideia.
— Piti possui um rival tão antigo quanto ele nos negócios: Calero, outro curtidor
no mercado mais ao norte. Um dia, dizem, foram sócios, mas a ambição, o desejo
de poder melou uma parceria que estava rendendo bons frutos para ambos.
Viraram ferrenhos concorrentes. Mas Piti contratou meus serviços para espionar
Calero. Meu bando passou a realizar pequenas atividades braçais para o rival do
velho Piti e, enquanto seus rostos passavam despercebidos, eles descobriam
segredos, como a lista de clientes de Calero, os preços por tipo de couro e pele de
animal, fórmulas secretas para produção de couros variados e etc. Um dia, quando
Piti conseguiu uma boa vantagem sobre seu concorrente, tentou me passar a perna.
Mal sabia ele que eu também conhecia seus segredos. Num dia, troquei as
promissórias de quase um ciclo por ouro e ele quase entrou em parafuso. Agora,
Piti confere todos os dias seus pagamentos e realiza o câmbio mensalmente. Até
hoje, ele nunca descobriu quem roubou suas economias e eu continuo prestando
serviços para ele e para o seu concorrente, lucrando de ambos os lados.
O Príncipe pôs-se de pé de um pulo e correu pelo meio dos telhados do mercado.
Escalou a torre de um palacete e subiu no topo das ameias de uma luxuosa mansão
e depois se lançou para o interior de uma das torres de vigia. Zakkar seguia no seu
encalço, mas não tão rápido quanto gostaria. Ainda estava se habituando a essa
coisa de passear por telhados e muros das casas e edifícios.
— O que eu quero ensinar com tudo isto, Zakkar, é que você precisa conhecer
seus oponentes. Você precisa saber com quem está lidando. Conhecer todos os
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seus segredos, seus pontos fortes e fracos, saber o nome de cada um deles. Mas,
acima de tudo, ganhar a confiança daqueles a quem pretende obliterar. — O líder
dos bandidos convidou Zakkar a sentar-se ao seu lado, na varanda vazia da torre
de vigia da mansão.
O guardião sentou-se em uma poltrona acolchoada e macia, achando estranho
uma torre de vigia não ter uma viva alma.
— Ah, sabe por que não tem ninguém aqui, de guarda? — questionou o Príncipe,
sentado ao seu lado, com os braços cruzados atrás da cabeça e reparando a
curiosidade estampada no rosto de Zakkar. — Porque eu conheço o dono desse
palacete: um conde muito rico de Vervaz. Ele me paga para vigiar aqui também.
Uma vez um gambá entrou num dos quartos de sua filha e foi um verdadeiro
pandemônio. Mas ladrões, sequestradores ou enxeridos? Jamais!
Zakkar arregalou os olhos, impressionado.
— Veja. — O Príncipe apontou para o belíssimo palacete do governador,
iluminado com archotes em nuances azuladas. — Há cinco ciclos tenho um acordo
firmado com Lorde Bovir, o governador de Cruisand. Um acordo secreto de
cooperação e proteção da cidade. Meu grupo de garotos não apenas trabalha com
atividades que ninguém vê, eles também são responsáveis por uma silenciosa rede
de informações estratégicas que chegam até o governador, para que possa tomar as
medidas cabíveis quando necessário. Ah, e você sabe por que uma cidade como
Cruisand não tem um rei e sim um governador?
— Não... — respondeu Zakkar, curioso.
— Porque o Conselho, apesar de achar que precisa de uma cidade só para eles,
tem forte influência na decisão dos líderes dessa cidade. Não apenas de Cruisand,
mas também de Paragon. Como cidades mágicas proeminentes, eles não poderiam
deixar de meter o bedelho aqui. Se uma família real governasse esta cidade, que tipo
de ações eles poderiam tomar? Ficariam impotentes ante as decisões dos nobres do
trono de Paragon e Cruisand. Por isto, ambas cidades têm governadores. Políticos
indicados a dedo. Toda vez que o poderoso Conselho decide que precisam de um
novo representante, ou o atual não está seguindo a cartilha e obedecendo a eles
como humildes cordeirinhos de um rebanho domesticado, eles simplesmente
trocam. É por isto que temos um acordo de cooperação com Bovir. Ele quer saber
de tudo, ouvir tudo, ver tudo através dos olhos dos meus liderados. Bovir não quer
ser descartado pelo Conselho e teme ser substituído por motivos desconhecidos.
Por essa razão, ganhamos algum dinheiro com esse acordo de cavalheiros junto ao
governador.
Zakkar assentia, estupefato com cada palavra que seu cérebro ia processando.
— É por isto, Zakkar, que, antes de qualquer coisa, você precisa ser influente.
Você pode ser um rosto conhecido em Miliat. Até para os guardiões que tramaram
a destruição de sua família, você pode ser reconhecido. Mas eu te afirmo, com o
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tempo, será apenas mais um. Um rosto qualquer no meio de uma multidão
qualquer. Irreconhecível até para os homens que ceifaram as vidas de seus parentes.
Um dia, eles sequer saberão quem é você.
O jovem guardião vidrava o olhar no Príncipe, mantendo os ouvidos apurados
para tantos ensinamentos de uma única vez.
— O Conselho dos Guardiões é um câncer neste mundo. Uma organização
obscura que não está nem aí para a harmonia dos poderes ou a proteção dos mais
fracos. A eles, só interessa o poder e a hegemonia da instituição da qual são donos.
Eles só se importam com o luxo, a riqueza, a consolidação do próprio nome como
uma entidade com poder infinito e influência para mandar e desmandar sobre as
nações de Eirin, decidindo sobre seus futuros, sobre quem ascende ao poder. O
que o Conselho quer é os reinos deste mundo a seus pés, obedecendo cada regra
ditada por eles sem titubear. Quanto aos desgarrados de suas leis, eles invadem, se
apoderam e obliteram com mãos de ferro. Se você quer destruí-los, é preciso
primeiro conquistá-los. E para conquistá-los, é preciso tempo e paciência. Você
terá primeiro que dominar a arte da trapaça, a arte do engodo, comportando-se
como um exímio ladrão e um distinto trapaceiro, versado em refinados
procedimentos intrincados de como fazê-los acreditar nas suas esparrelas, ao ponto
de confiarem suas vidas a você.
“Cruisand nunca esteve tão cheia. Comerciantes, cambistas, apostadores,
vendedores de todos os tipos e gostos abarrotam essas ruas com suas bugigangas.
Uma festa sem precedentes se aproxima. O Conselho acredita que estão vivendo o
auge de seu tempo, o ápice de uma falsa paz e de uma harmonia forjada por eles.
Mas te digo, meu amigo, tudo isto é apenas o prelúdio do caos”.
O Príncipe virou-se e encarou o guardião nos olhos, com uma expressão
impassível e soturna escancarada em seu rosto.
— Eu te afirmo, Zakkar, e esta é uma promessa pessoal, uma dívida de gratidão
por ter encontrado alguém com quem partilhar de meu ódio mais profundo e
pessoal para com essa instituição tenebrosa: eu o ajudarei com sua vingança. Juntos,
faremos o Conselho dos Guardiões implodir, destruído de dentro para fora, sem
descobrir o que os atingiu. O mundo conhecerá quem de fato eles são. Neste dia, a
verdade será apresentada a Eirin e nós poderemos emergir das sombras, como uma
chama de revolução, trazendo à luz toda a podridão que um dia o Conselho tentou
ocultar.
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Capítulo Trinta e Oito
Fuga de Purysia
Os ventos fortes assopravam do oceano, fazendo o encapelado mar lançar
vigorosos borbotões de água gelada, arremetendo-se contra os doze hipocampos
azuis e verdes, rechaçando em suas carcaças cobertas de escamas rígidas como aço,
tão resistentes quanto a couraça de um corsário. Seguiam implacáveis, singrando as
Águas de Argúrius em alta velocidade. Independentemente do tamanho das ondas,
atravessavam cada uma delas com o vigor de um mustangue e a rapidez de uma
hidra, impulsionados pela força arrebatadora dos ventos, como lanças afiadas
cortando os ares em um campo de batalha.
Argus Norhein apertava as rédeas de sua montaria aquática, com o olhar
apreensivo e obstinado. Os cabelos loiros, meio grisalhos, esvoaçavam pelo efeito
da ventania alentada. Os dedos doíam, tanto quanto as fortes dores em sua cabeça.
Conseguia vislumbrar seu destino afinal. Absorto, mas engolfado pelo silêncio
intercalado com o estrondoso som das ondas revoltas, respirou fundo e soltou o ar
dos pulmões, numa tentativa de espantar sua estafa. Passara boa parte da viagem
pensando que a incursão rumo à Purysia estava demorando de mais. Culpava-se em
seu interior, sem jamais externar isto de forma alguma, pelo atraso em partir
imediatamente de Cruisand quando recebeu a notícia.
Era o Baile da Anunciação. Os principais líderes do mundo estavam reunidos em
uma festa para comemorar o maior evento de todos os tempos em Eirin. Condes,
Duques, Marqueses, Reis, Príncipes e Lordes de todos os cantos dos cinco
continentes se arrumaram com suas melhores roupas e confraternizavam em
celebração ao Ano da Elegibilidade, na Casa dos Guardiões. Jamais vira tamanho
requinte e luxo e, ao mesmo tempo, tantas ausências de rostos conhecidos.
Cumprimentou cada um dos nobres ao longo do extenso salão decorado assim que
adentrou o local. Apertou a mão de Lorde Heidlich dos Heinhardt, o antigo
Guardião e então rei do reino vizinho ao seu. Embora ele lembrasse bastante o
velho rei Cench, no rosto largo e queixo duro, tinha bastantes traços de sua mãe, a
rainha Falla. Mas havia nele um ar de quem não estava muito à vontade naquele
tipo de evento. O primogênito de Badorian não era uma figura tão comum em
498
eventos reais. Era inegável que ele fora um grande Guardião em Eurodian, sua
bravura e intrepidez eram lendárias e jamais seriam esquecidas, principalmente na
luta contra os Oderobs, que atormentaram o sul de Mistral, vindos de
Sombroceano. E, particularmente, duvidava que o continente teria alguém tão
brilhante, poderoso e proeminente quanto Heidlich. Mas sempre foi de
conhecimento tácito o quanto ele era avesso a condecorações e festas reais. Preferia
tomar uma caneca de rum numa espelunca qualquer a ter de se enfiar em vestes de
nobreza e fazer política com outras figuras reais. Devia estar sendo bem difícil para
ele ter de se habituar, de uma hora para outra, com essa nova função.
Cumprimentou Salazar Stanhorne e deu um aperto de mão em Hamm Louis
Zanotchka. Embora Moronov não estivesse junto para quebrar o gelo das feições
militares dos dois guardiões, não deixou de fazer uma saudação aos líderes máximos
do Conselho. Simpatia não era o forte de ambos, mas até que, naquela noite,
estavam bastante cordiais e falantes. Rememoravam histórias antigas de grandes
feitos dos últimos Guardiões de Turmis e Elstoen com uma animação incomum.
Estacara a um canto para bebericar de uma taça de vinho e, como sempre fazia,
esquadrinhou o ambiente à procura dos velhos amigos de sempre. Havia elfos
sacramentadores espalhados pelo salão, cercados de arcanos, sempre elegantes,
brilhantes e sorridentes, mas notou que todos eram completos estranhos, à exceção
de dois. Dhara Lovrens, a nova sacramentadora de Hegemonia, a quem conhecera
em uma visita dela a seu reino, conversava com o governador de Paragon e os
trigêmeos de Vaelfar e Isail Mankic, o sacramentador que substituiu Poledores, no
pilar de Serenidade, o octaedro que abarcava Mistral. Mesmo com a música
enchendo os ares e as expressões descontraídas estampando os rostos dos
convidados ao redor, as ausências de Sisno e Alezeia eram gritantes. Passara boa
parte do ciclo desfiando longas conversas com sua amiga elfo, aproveitando essas
oportunidades para pedir seus sábios conselhos, mas de um tempo para cá, ela
abrira o coração e revelara coisas incômodas acontecendo na Ordem. Mas, ainda
assim, sempre a via com um sorriso no rosto, por trás dos trejeitos aflitos, nos
eventos em que tinha a oportunidade de participar. Na Festa de Bovir, sequer teve
tempo de conversar com Sisno. Este, sim, estava pressuroso e irrequieto. Embora
cordato e expansivo como de praxe, com uma oratória invejável, não ficou mais do
que poucos minutos na companhia dele e do governador de Cruisand. Convidou
Alezeia para uma dança e, depois disto, desapareceu. Não vira qualquer um dos
dois, desde então.
Na terceira taça de vinho, em um papo bem descontraído entre ele, sua esposa e
Lorde Flamir, o rei de Boralioch, alguém interrompeu sua conversa.
— Lorde Argus Nohrein? — O homem usava as mesmas roupas dos empregados
da festa e demonstrava aparente preocupação em seu rosto.
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— Sim — respondeu, fazendo-se ouvir acima da música irradiando pelo salão,
envolvendo a todos em valsas animadas.
— Temos uma mensagem para o senhor. Poderia me acompanhar?
Pediu licença à esposa e a Lorde Flamir e se retirou. Seguiu o homem para fora
do local do evento e parou próximo a uma fonte dos jardins externos. Não havia
uma alma viva sequer. Estavam acompanhados pelo brilho tímido da lua, por trás
de grandes nuvens nos céus. Aguardando o remetente da mensagem, notou uma
agitação diferente sobre as águas da fonte. Aninhando-se magicamente, de chofre,
formaram uma figura elemental e corpórea, de nuances azuis como o oceano. Uma
ninfa das águas, de semblante acabrunhado, saudou a ambos.
— Das vagas de Argúrius, me movo assim. Entre vapores e gotas, me transformo
enfim. Segui por mares, rios, ribeiros e fontes. Jorrando entre jarros e cascateando
entre montes. Em Purysia suplica com tímido clamor, uma elfo aflita em mazelas
de dor.
— De Purysia? — indagou Argus, alarmado. — De quem está falando?
Então, ele ouviu.
A ninfa moveu os lábios mais uma vez e sua voz se transformou. Converteu-se
no timbre firme, porém combalido de Alezeia. Era um chamado de socorro, com
instruções sucintas sobre sua posição, suplicando por sua ajuda. Diferente do
imaginado, a situação na ilha devia estar muito pior do que sua amiga
sacramentadora transmitia. Prender Alezeia num calabouço era o ápice dos
absurdos cometidos pelo líder da Ordem. Deveria ter percebido como as
circunstâncias a transtornavam, mas não foi capaz disso. Estava ocupado demais
em pedir conselhos sobre o reino, sobre julgamentos e outras coisas irrisórias que
não percebeu o quanto ela precisava de sua ajuda. O momento exigia medidas
extremas. Medidas urgentes.
— Comunique ao general Oganda que estarei de volta dentro de dois dias —
falou Argus falou à ninfa, decidido. — Diga-o para me aguardar na península de
Bara ao entardecer com dez dos melhores soldados de Mistral. Avise a ele que o rei
está voltando e o encontrará por lá.
A ninfa assentiu e, desfazendo-se em um rodamoinho, disparou pelas águas da
fonte.
Correndo contra o tempo, na decisão que deveria ter tomando havia meses, Argus
se desfez das vestes formais e badulaques do festival. Enfurnou-se sob um casaco,
cota de malha e calças de couro. Comunicou à esposa que precisava resolver
assuntos urgentes. Sem questionar, ela assentiu e desejou-lhe boa sorte. Partiu
imediatamente de Gradia no dorso de um hipogrifo.
Atravessou os céus de Eurodian sem ousar realizar uma pausa. Sobrevoou o Pilar
da Magia de Paragon e o de Cruisand, admirando a beleza do brilho de ambos,
voou pelos céus límpidos do extremo-Sul de Badorian e aterrissou com o lusco-
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fusco de tons alaranjados sobre as Águas de Argúrius banhando as terras da
Magnífica Mistral. A careca morena do general Oganda cintilava à luz do sol e sua
expressão carrancuda de olhos injetados permanecia imutável. Ponderava por
quanto tempo seu mais antigo e destemido soldado estava imóvel e em posição de
sentinela. Bogad, Elmes, Ludobic, Dedosdemoça, Fahin, Pé Pequeno, Jimes,
Alcanedes, Sals e Godin, os melhores guerreiros do reino estavam a postos logo
atrás dele, enfileirados e em guarda, em pé sobre as docas da península do condado
de Bara, aguardando seu rei e as próximas instruções.
— Nosso destino é Purysia — comunicou Argus, pulando do dorso do hipogrifo
para as madeiras lavadas do cais — A parte mais ao norte da ilha. O mais
importante: ninguém pode saber que estivemos lá.
— Vamos embarcar em Estrela da Manhã e partir imediatamente!
— Não, general — proferiu o rei, caminhando até a ponta do píer. — Seremos
fantasmas singrando os mares. Não usaremos o melhor corsário do reino.
Cruzaremos esse oceano sobre o lombo de nossos hipocampos.
A um assobio do rei, uma figura equina despontou das águas. Colossal e
esplêndida, arrebatava o coração de qualquer um, independente de quantas vezes a
tivesse visto. No lugar das patas dianteiras de um alazão, poderosas nadadeiras
agitavam as vagas. Escamas intransponíveis em vez de pelos. Uma longa cauda
como a de um tubarão ocupava a parte traseira do animal. Veio serpeando por entre
ondas, relinchando como um cavalo e nadando igual a um peixe até encostar
próximo a Argus.
Ninguém questionou nenhuma ordem do rei. Outros onze hipocampos surgiram
e cada soldado assumiu sua montaria. Agarrados às rédeas, seguiram
obedientemente as palavras do soberano de Mistral. Taciturnos, carregando
escudos, espadas e arcos e flechas a tira colo, Argus e os soldados zarparam da orla
da península quando a lua tomava seu lugar sobre a abóbada celeste e as sombras
da noite dominavam as terras do reino.
Era alta madrugada. A lua cheia se unia a uma constelação de estrelas pontilhando
uma imensidão negra sobre suas cabeças. Argus puxou as rédeas de seu hipocampo,
forçando a parada brusca do animal. Os soldados acompanharam o movimento de
seu rei, puxando o cabresto de suas montarias, descrevendo um arco sobre as águas
negras do coração de Argúrius. Ajuntaram-se em um semicírculo no meio do mar.
Dedosdemoça e Jimes acenderam tochas com fogo mágico, revelando as faces
impassíveis e concentradas de doze homens em uma incursão insólita. Num
extremo, o rei e o general observavam os rostos de cada guerreiro.
— Homens, vocês foram convocados a essa missão porque são os mais valentes
soldados a servirem nossa Magnífica Mistral — falou Norhein, empunhando o
capacete real. — Peço aos senhores que não questionem o porquê do que iremos
501
fazer nessa ilha. Ordeno que, como leais servos de nossa nação, estejam ao meu
lado até o fim. Nesta noite, resgataremos uma alma inocente de uma prisão injusta.
Se eu pedir para avançarem, sigam minhas ordens. Se ordenar que recuem,
obedeçam. Se pedir para matar, não hesitem em fazer.
Os homens no semicírculo bateram o punho contra o peito, em sinal de
obediência.
Os doze hipocampos estagnaram a poucos metros do extremo mais distante da
ilha. O brilho da lua cheia iluminava a colossal estrutura da fortaleza que era o
palácio dos sacramentadores. Suntuosos archotes sobre as ameias do grande
Oráculo do Tempo lançavam um brilho incandescente ao longo da muralha
fortificada de pedra. Algumas tochas se locomoviam de um lado a outro,
empunhadas pelos soldados do Protetorado de Purysia, realizando a ronda noturna.
Argus sabia que os protetores da ilha eram exímios assassinos, versáteis na arte da
guerra e que, se soubessem de sua presença clandestina ali, não hesitariam em matar
ou morrer pela religião dos elfos. Eram treinados para isso. Educados e adestrados
para combater qualquer ameaça aos sacramentadores. Neste dia, ele colocaria à
prova a destreza e habilidades desses soldados.
— Apaguem as tochas! — ordenou Argus, tomando cuidado para não serem
identificados pelo Protetorado. — Sigam-me.
Mergulhados na escuridão sorumbática da madrugada, Argus e seus soldados
pularam sobre as águas e seguiram o restante do caminho a nado, desbravando as
ondas revoltas de Argúrius, quebrando na orla da ilha. Braçada por braçada, os doze
homens galgavam posições, avançando pelo oceano de vagas impetuosas, como
sombras numa noite serena.
Alcançaram a terra firme quase ao mesmo tempo. Próximo às pedras da areia da
praia, era possível ouvir o som das botas dos soldados passeando pelos corredores
nas ameias do castelo. O rei Argus colocou o capacete e desembainhou a espada.
Empunhou a lâmina com a mão direita e fez um sinal para seus soldados o
seguirem. Se não estava enganado, a décima torre da ala nordeste do palácio era
logo adiante.
Seguiram pela areia e atravessaram um paredão de rochas infestadas de algas e
molhadas pela rebentação. Erguendo o punho, Argus fez um sinal para os soldados
pararem. Enfileirando-se sobre as pedras banhadas pelas águas do mar, cada um
dos homens vislumbrou o que havia além. Caminhando pela areia, dois protetores
conversavam, descontraídos. O general Oganda fez um aceno para o rei e em
seguida para os soldados inimigos. Argus assentiu, confirmando ter compreendido
o que precisava ser feito.
Dois guerreiros de Mistral pularam das rochas para a areia, fazendo o mínimo de
ruído possível. Esgueiraram-se sorrateiramente à beira-mar, com o ruído alto das
ondas a quebrar disfarçando seus passos. Puxaram lâminas presas às coxas e sem
502
titubear, cortaram as gargantas dos dois protetores da ilha. Caindo e agonizando
sobre a areia, sangue jorrava como cascata de seus pescoços. Caíram sobre a orla,
sem vida, sendo arrastados pelas águas do mar.
Argus e seus homens avançaram. Correram pela areia, com a força dos ventos
cobrindo seus rastros. Lançavam olhares apreensivos para o topo das amuradas da
fortaleza, atentos à novas tochas surgindo pelo caminho. Estacaram em frente ao
que ele acreditava ser a décima torre, conforme as orientações de sua amiga
sacramentadora. Mostrando o punho em um novo sinal silencioso, os guerreiros ao
seu redor se posicionaram em um círculo, cobrindo cada um dos flancos do rei,
vigiando o perímetro, enquanto ele caminhou até uma pequena grande no chão.
— Alezeia?
A voz de Argus reverberou pela masmorra.
Silêncio.
— Alezeia, você está aí?
A voz grave e cansada reverberou em um eco lúgubre, intercalado ao som
fantasmagórico dos ventos assobiando pelo pináculo das torres do castelo.
— Argus? É você?
O timbre do outro lado era fraco, quase inaudível. Se uma tempestade os
assolasse, não seria possível ouvi-la. Exalava uma surpresa incontida na voz abatida,
mesclada a um tom de alívio. A escuridão dominante do calabouço não permitia
que Argus vislumbrasse o rosto da sacramentadora. O buraco profundo era apenas
trevas intensas. Mas só de ouvir sua voz reverberando pelas paredes frias, deixouo
mais aliviado. O senso de direção que o guiou até ali estava calibrado.
— Sim, Alezeia. Seu pedido de socorro chegou até mim e vim atendê-lo de
imediato. Como faremos para tirá-la daí?
— Meu nobre amigo, não há forma menos constrangedora para lhe dizer isto. Só
há uma forma de tirar-me daqui, uma vez que as saídas deste cárcere foram seladas
por encantamento baseado em antigas runas élficas...
O silêncio instaurou-se. Os olhares atentos dos onze homens ao redor eram quase
palpáveis. A expectativa de seus guerreiros com a conclusão da frase dita no que
parecia um sussurro quase inaudível, refletia sua própria ansiedade em tirar a amiga
do fundo da masmorra. Argus mantinha os olhos bem abertos para dentro do
buraco, como se tal gesto pudesse ajudá-lo a compreender melhor as próximas
palavras da sacramentadora
— E qual seria esta forma? — indagou o rei de Mistral, impaciente.
— Explodindo esta torre com magia.
Argus fechou os olhos. Respirou fundo. Inspirou e expirou repetidas vezes. O
coração acelerou de um jeito involuntário. Molhou os lábios ressecados e o gosto
acre de sal da água do mar invadiu seu paladar. A pretensão de escapar dali
furtivamente, sem serem descobertos, ia por água a baixo.
503
— Farei o que for preciso, Alezeia. Juro pela minha vida e pela lealdade que tenho
em nome da nossa velha amizade: hoje você sairá dessa prisão. Agora, proteja-se!
Argus fez sinal aos seus soldados. Gesticulando, explicou o que precisava ser
feito. Um dos soldados lançou-se ao mar, na incumbência de posicionar os
hipocampos, aguardando obedientemente o retorno de seus donos. Os demais
posicionaram-se para observar suas instruções. Mesmo diante da escuridão
avassaladora, o rei observou as expressões sobressaltadas transformarem os rostos
dos guerreiros ao seu redor. Mas, sem vacilar, todos assentiram, em concordância
com sua decisão.
Argus afastou as pernas e os pés afundaram na areia. Girou os braços e
movimentou as mãos em círculos, invocando a magia dos ventos, o elemento que
dominava como alquimestre. Conforme os dedos rodopiavam em um gesto
constante, a brisa ao redor se convertia em tufões implacáveis. As lufadas de vento
logo se fundiram em um ciclone indomável pelo entorno, fazendo as ondas se
levantarem, agitando as roupas molhadas dos soldados ao redor. Alguns deles
perdiam o equilíbrio e tinham de se esforçar para ficar de pé. Outros cravaram as
espadas sobre a areia e se agarraram a elas.
O rei de Mistral moveu outra vez as mãos e os ventos agitaram seus cabelos loiros
com tons grisalhos e vestes encharcadas uma última vez. Fundiram-se em uma
esfera de poder contida entre seus dedos. Como quem arremessa um balaço de
canhão na direção de um navio, ele lançou a magia contra as paredes da torre.
O estrondo eclodiu pelos ares. O impacto da magia fora intenso em proporções
catastróficas, lançando Argus e os soldados contra a areia no mesmo instante. As
estruturas da fortaleza estremeceram de um jeito aterrador. Pedras, tijolos e grades
voaram para todos os lados e uma nuvem de poeira se formou no ar.
Luzeiros incandescentes brotaram nas ameias das muralhas da fortaleza. Vozes
aterradoras irradiaram pelos ares da madrugada. Homens do Protetorado surgiam
de vários pontos, empunhando tochas e espadas. Flecheiros brotaram de repente,
tensionando seus arcos, preparando para lançar flechas para o que viam na orla lá
embaixo. Elfos deram as caras entre os escombros e partes não explodidas da ala
nordeste do palácio, assombrados com o ataque repentino que haviam acabado de
sofrer.
Argus se pôs se pé, ainda atordoado com o choque, cambaleando pela areia com
um zumbido incomodando o ouvido. Irrompendo da cratera formada, Alezeia
emergiu da escuridão das masmorras. Abatida, estava mais magra e acabrunhada do
que ele se lembrava, com profundas olheiras embaixo dos grandes olhos castanhos
e as roupas manchadas e esgarçadas. Sob o som de flechas cortando os ares, o
soberano de Mistral correu para amparar a amiga elfo e a tomou em seus braços,
socorrendo-a.
— NOBRE REI, VENHA!
504
Os doze hipocampos aguardavam à beira-mar. Pé Pequeno, Bogad, Elmes e
Godin erguiam os escudos, protegendo-se como podiam das flechas certeiras dos
protetores no topo dos muros. Alguns dos soldados do Protetorado se lançavam
em cordas, descendo de rapel, pelo que sobrara das ameias ao redor da torre
explodida. Jimes, Dedosdemoça, Fahin, Sals e Alcanedes empunhavam suas
espadas em embates violentos com os protetores que desceram até a orla. Oganda
e Ludobic seguiam no encalço do rei e da sacramentadora, correndo para as
montarias aquáticas, entre a chuva de flechas desviadas pelos dois soldados de
Argus. Posicionando Alezeia em seu estado debilitado sobre o animal marinho, o
rei de Mistral assumiu as rédeas e zarpou pelo mar em alta velocidade.
Lançando um último olhar para a ilha, Alezeia vislumbrou os guerreiros de Argus
correrem a salvo para os demais hipocampos e escaparem por entre as ondas. O
rosto estarrecido de Klaus Trishnann surgiu de um buraco da muralha,
contemplando os escombros do que antes fora a torre fortificada de um calabouço.
Arrebatado pela obsessão irrefreável por poder, no fundo de seus olhos carregados
e incrédulos, o jovem sacramentador exalava um ódio irracional, sem parecer
acreditar no que acabara de acontecer ao Oráculo do Tempo.
505
Capítulo Trinta e Nove
Poder
A grama verdejante e bem aparada do lado de fora do vestiário tremulava com a
leve brisa correndo pelo interior da arena. Petr se demorou um pouco mais do que
deveria, admirando o tapete esmeralda à sua frente. Era incrível como o gramado,
revestindo o palco do evento, cintilava em um tom verde deslumbrante. Talvez o
verde mais verde que já vira em sua vida. Não sabia ao certo se essas nuances
espetaculares eram obras de alguma magia para encantar as multidões se
acotovelando ao redor do estádio, impressionar os ilustres convidados aguardando
com ardente expectativa sua participação na prova ou se era um tipo de grama
específica, de alguma região de Eirin. A única coisa notória era que seu estado
absorto, com o olhar perdido e impressionado com um gramado exuberante,
apenas escondia o nervosismo e a ansiedade o consumindo por dentro.
Caminhando de um lado a outro, Petr aguardava ser anunciado. Logo, logo, teria
o nome ecoando pelos quatro cantos da arena em Paragon e ele entraria para
encarar o segundo dos três desafios do Ano da Elegibilidade. A inquietação era tão
grande que ele sequer conseguiu assistir à luta de Ivyna, recém-saída do campo.
Rudi dissera que a jovem ruiva enfrentara um basilisco de água gigantesco, quase
da altura do estádio e levara apenas quinze minutos para derrotar o monstro.
Quinze minutos.
As lembranças da última prova voltavam com frequência à sua cabeça. Os galhos,
raízes e pedras se fundindo e serpeando, formando os muros de um extenso
labirinto. Os desafios dos elementos. O desespero para não ficar para trás e ser o
último colocado. A verdade é que fora um completo desastre no primeiro evento
em Gradia. A começar pela charada de Moronov. A preocupação com o desafio a
enfrentar era tanta que sequer conseguiu entender o discurso do velho guardião.
Decorar então? Esquece. Quando o labirinto começou a se formar e a cercá-lo de
todos os lados, a única coisa de que se lembrou foi de correr o mais rápido possível,
sempre mirando o prêmio no centro da arena. Conseguiu abrir boa vantagem sobre
os demais, disparando em direção ao troféu, mas os muros o cercaram em algum
ponto e o fizeram perder a noção de onde estava. Acabou preso pela cintura, por
506
fim, atochado no meio da terra, depois de conseguir escapar de um corredor de
vento.
Caiu em si que lógica não era muito o seu forte. Afinal, como ia descobrir que
havia uma sequência certa a seguir e que, se não o fizesse, não havia como
continuar? Não era uma prova do mais rápido, pois, se fosse assim, qual era a
lógica? Chegou a acreditar ter perdido os poderes quando tentou conjurar uma
chama mágica e nada além de fagulhas crepitaram sobre as pontas dos dedos. Mas
era tudo parte do teste do primeiro evento. Ivyna explicou para ele em detalhes que
prestar atenção no discurso de Moronov foi essencial para conseguir vencer o
desafio. A jovem guardiã, juntamente com Rudi, passou a viagem de carruagem
toda, de Gradia até Paragon, explicando haver uma única sequência correta. A
sequência do discurso inicial era a dica fundamental para poder completar o evento
com sucesso, embora, no final, houvesse uma pegadinha. A guardiã explicou que
um sexto sentido a fez decidir quebrar o gelo e não gastar a insígnia de fogo. Petr
só conseguia refletir em como fora estúpido em não pensar em combinar água e
vento para escapar da terra. Aos altos papos, com Ivyna explicando cada perigo
enfrentado e qual foi sua decisão — sempre baseada nas dicas do Chanceler dos
Guardiões, Petr ponderava o quanto Rudi também era inteligente e perspicaz.
Depois de ficar em segundo lugar e ter seguido o mesmo caminho de Ivyna, o
Guardião de Elstoen ficou muito próximo da jovem ruiva. Os três decidiram seguir
na mesma diligência até o local do segundo evento em vez de cada um na sua — o
Conselho disponibilizara carruagens individuais para os cinco. Desde a premiação,
os dois só andavam juntos. Ficavam de altos papos sobre o primeiro evento,
conversavam a respeito de golpes e combinações de magias e durante todo o trajeto
até Paragon, Ivyna explicava os detalhes de sua saga pelo labirinto — com uma
riqueza de detalhes absurda, com Rudi completando suas frases. Petr ouvia as
palavras da guardiã, rememorando cada etapa de seu próprio percurso e
ponderando se não era burro demais para aquele tipo de prova. Os dois à sua frente,
falando com tamanha naturalidade, faziam o primeiro teste parecer tão trivial, como
se fosse óbvio escolher o fogo diante dos quatro corredores. O desespero se abatia
sobre Petr. E se não conseguisse vencer nenhuma prova? E se saísse dos eventos
em último lugar? Havia tanta gente apostando nele, tinha muito medo de
decepcionar os que acreditavam nele.
As multidões se apertavam ao redor de um enorme quadro, quando as carruagens
finalmente chegaram a Paragon. Era uma manhã de sol a pino e, mesmo com o
calor escaldante, os apostadores estavam em êxtase. Sacos de dinheiro eram jogados
sobre inúmeras mesas montadas abaixo do quadro. Apostavam de tudo que era
possível: moedas, cédulas, braceletes, cordões de ouro, espadas e outros artefatos
mágicos, alguns tentavam emplacar animais lendários — Petr jurava ter visto um
filhote de cérbero numa jaula, embora as cabeças da direita e da esquerda
507
parecessem muito suspeitas. Aguçando melhor a visão, conseguiu identificar o que
estava pregado sobre o quadro abissal pendurado numa parede da arena. Os nomes
de cada guardião e seu respectivo continente cintilavam sobre a lousa. Despontando
na primeira posição, com as apostas concentradas em seu nome, Ivyna havia se
tornado a favorita. A jovem Heinhardt virou uma celebridade depois de ter
conquistado a salva dourada em Gradia. Rudi era o segundo, por motivos óbvios.
Os dois haviam pensado quase a mesma coisa, mas o guardião candorniano falhou
no último obstáculo. Varrendo a lista até o final, Petr reparou que era o terceiro
colocado, com pouquíssimas apostas em seu nome. Guilloch, o bizarro indicado de
Miliat, ainda estava na lanterna da competição e, antes dele, o tal de Louk com sua
cara amarrada e esquisita.
A ansiedade e o medo de ficar mal nessa segunda prova davam uma sensação de
vazio no estômago. Não havia se dado conta, mas a inquietação o consumia por
dentro e impeliu o garoto a andar em círculos. As mãos tremulavam
involuntariamente e não era por medo pelo desconhecido a encarar do lado de fora,
assim que fosse anunciado, mas sim de fazer vergonha diante de uma multidão de
espectadores, com o agravante de ter parte de sua família e amigos em peso e o
observando, sentados em lugares de honra sobre as tribunas e camarotes. Uma
comitiva partira de Anlevor sem ele saber ou sequer imaginar que estariam nos
eventos, o prestigiando. A ideia fora de Roben, que queria fazer uma surpresa para
ele em Gradia, arrastando consigo boa parte dos Zanotchka e Bravior — os
Wallensig não se deram o trabalho de sair do continente, além de Lorde Aldair,
representando os demais condes de Snartria. O primo avisou que Chermont não
pôde ir, ainda estava resolvendo as questões com a avó Asturias, azucrinando e
dando seus chiliques pelo reino. Petr não queria decepcionar nenhum deles.
Uma voz bradou do lado de fora e o nome do garoto reboou pelos ares do
estádio. Era tudo ou nada naquele instante. Marchando pelo corredor de acesso ao
gramado suntuoso, as pernas pareciam se arrastar, pesando toneladas como balaços
de chumbo. Não era uma boa hora para o medo começar a falar mais alto e tomar
conta da situação. Respirou fundo e lembrou das palavras do avô para situações
assim: finja que não tem ninguém lá. Mas era muito difícil com multidões
tresloucadas, pulando sobre os bancos, berrando e assoprando cornetas
escandalosas. Ainda assim, sorveu o ar cálido da noite e soltou-o bem lentamente.
Sabia o que tinha de fazer e acreditava ser forte o suficiente para obliterar qualquer
perigo adiante.
Caminhando devagar, respirando compassadamente, Petr pisava a grama fofinha
da arena. Observava tudo ao redor. Sendo um teste de força, imaginava que tipo de
oponente teria de enfrentar. Dragões? Minotauros? Gigantes? O que o Conselho
dos Guardiões estava preparando? Os espectadores não paravam um instante ao
seu redor. Levantou os olhos e não pôde deixar de notar a nada modesta tribuna
508
de honra. Os bandeirões dos cinco reinos estendidos tremulavam com a intensidade
do vento, embora ele suspeitasse que fosse alguma magia para fazê-los se agitarem
com tanta perfeição. Havia um troféu, gigante e dourado, reluzindo lá em cima. Ao
redor do prêmio, Petr avistou os principais conselheiros dos Guardiões, incluindo
um de feições duras, cabelos curtos e vermelhos como fogo. Impassível em suas
expressões, Hamm Louis Zanotchka mirava-o com sobriedade e indiferença. O
sangue subiu de chofre. Teve vontade de voar até o camarote de luxo adiante e
confrontá-lo. Questionar se ele não lembrava que sua filha deixara um herdeiro em
Snartria, cuja única esperança era ter um pouco de sua atenção. O avô que sempre
o desprezou, nesse momento também o encarava como quem observa a um
desafeto ou um completo estranho, cujas feições não agradaram. Respirou fundo
outra vez, reprimindo os sentimentos avassaladores aflorando. O momento em que
o confrontaria um dia iria chegar e, nesse dia, falaria tudo o que estava em seu
coração.
Esquadrinhou cada canto do palco da batalha, da entrada da arena. Percebeu a
presença de alguns alquimestres, numa parte mais baixa, no limiar do espaço
gramado em que estava. Agitavam as mãos em supervelocidade, como se
estivessem atrasados com suas responsabilidades. Petr mantinha a respiração
controlada. As pernas voltaram ao peso normal e estavam levemente menos
retesadas do que antes. Os dedos se agitavam com intensidade, na iminência do
surgimento de seu oponente.
As multidões silenciaram gradativamente. Vislumbravam alguma coisa que ele
ainda não tinha percebido no lado mais próximo da tribuna de honra. Caminhou
alguns metros à frente, quase chegando ao centro da arena, quando então seus olhos
identificaram um brilho diferente, algo que fez os espectadores emudecerem.
Uma névoa enregelante emanava da extremidade oposta do gramado. Uma
criatura de gelo se formava do outro lado, pronta para atacar. Petr ergueu os punhos
em riste e arqueou as pernas. Não iria se afobar de forma alguma. O teste não era
de rapidez, nem de lógica, mas de poder e poder ele tinha de sobra. Se o que quer
que estava se formando por lá esperava dele um primeiro golpe, teria uma grande
decepção. Decidira aguardar o primeiro intento do oponente.
Apurando melhor a visão, esperando com paciência — mesmo com a respiração
começando a ficar mais ruidosa, Petr notou as feições do monstro tomando forma.
Em pé como um soldado de algum exército, a criatura revelava um focinho
protuberante. A boca exibia um sorriso maléfico, de dentes afiados. Uma lança de
gelo estava firme entre os dedos, sobre as mãos de garras enormes. Comprimindo
os olhos, o garoto reconheceu a fera como um gnoll elemental.
A lembrança dos wargs invernais foi imediata, quando o gnoll saltou de sua posição
e avançou pela arena na direção de Petr. O jovem guardião sorriu na mesma medida
cínica e ameaçadora de seu rival. Estagnado sobre a grama, ele aguardava. Via a
509
distância entre ambos diminuir a cada instante. As multidões ao redor se erguiam,
mas ninguém ousava emitir um único som. O silêncio imperava sobre o estádio, na
iminência do que estava prestes a acontecer.
Duas esferas de fogo surgiram e envolveram as mãos de Petr. A lança congelada
como uma verdadeira estalactite se posicionava para atravessar o coração do garoto.
Aguardando o primeiro ataque de seu oponente, ele permanecia imóvel. O gnoll
diminuiu a distância entre os dois e no momento em que a ponta da lâmina ia tocar
o tórax de Petr, ele se abaixou e soltou um gancho cruzado de direita. A labareda
escarlate revestindo o punho do garoto brilhou, cortando os ares, partindo a
criatura de gelo em mil pedaços.
As arquibancadas entraram em êxtase com o vislumbre da besta congelada partida
em minúsculos cubos de gelo pelo soco poderoso de Petr. O guardião de Anlevor
levantou-se num pulo, observando os restos pitorescos de seu oponente.
Regozijava-se por tê-lo derrotado tão depressa. Erguia os braços para o público,
comemorando a vitória. Mas, tão rápido quanto berraram pelo feito do garoto, as
multidões se calaram de revertendo repente.
Atento ao silêncio súbito, Petr ficou alerta. O punho ainda levantado e em
chamas, observava o que se desenrolava no entorno. Uma segunda criatura surgiu,
outro gnoll, tão ameaçador quanto o primeiro. Empunhava uma lança assim como
seu antecessor. Uma voz esganiçada gritou, alertando-o. Um terceiro monstro
surgiu. Depois um quarto, um quinto, um sexto. Uma legião de gnolls de gelo
brotava da grama verde. Empunhavam lanças, espadas, arcos e flechas. Sobre as
faces esbranquiçadas e de focinhos proeminentes, exibiam um esgar assassino,
como se desejassem vingança pelo primeiro gnoll derrotado. O garoto mirava de
uma criatura para outra, atônito, esperando qual atacaria primeiro e como faria para
enfrentar tantos monstros ao mesmo tempo. O exército de gnolls era assombroso,
colossal. Uma falange com centenas, milhares, enchendo cada centímetro da arena,
concentrados no alvo posicionado no cerne da batalha. Petr tinha convicção de que
não seria assim tão fácil. Mas não imaginava ter de enfrentar algo dessa magnitude.
Os pés congelados marcharam pela arena. Saindo da inércia de suas posições,
logo faziam o chão tremer, avançando para o centro como uma legião, pronta para
trucidar sua presa. Petr não sabia para qual direção olhar. Vinham de todos os lados,
centenas e centenas de monstros com todo tipo de arma nas mãos, na iminência de
destruí-lo. Não tinha outra alternativa. Estava impelido a fazer o que martelava em
sua mente.
Os espectadores, do alto das arquibancadas, prendiam a respiração e avistaram as
legiões de gnolls congelados avançarem sem dó para cima do garoto de treze anos.
Como uma multidão de soldados, eles se atracaram, caindo um por cima do outro,
desferindo golpes de espadas, lanças, adagas, facões, atirando flechas e batendo
escudos. A única coisa que se via era um monte enregelante de criaturas com cabeça
510
de hiena tentando alcançar o alvo em algum lugar, soterrado sobre um monte
abissal de feras mágicas.
Uma luz cintilou, quando todos acharam não haver mais esperança. Atraindo os
olhares arregalados da multidão, um brilho incandescente eclodiu e um
estardalhaço, como de uma bomba explodindo, estremeceu as estruturas das
arquibancadas. Os gnolls de gelo voaram pelos ares, desfazendo-se em grandes
blocos congelados sobre a grama. Esfregando os olhos, os espectadores tentavam
entender o que diabos estava acontecendo.
Uma figura envolta em chamas voava ao redor da arena, obliterando os monstros
de gelo restantes. Desvencilhando-se da legião de gnolls que caíra sobre ele, Petr se
transformara. As chamas elementais serpearam de seus punhos e o cobriam por
completo, dos pés à cabeça, protegendo-o das investidas de seus algozes. Explodira
os oponentes congelados em milhares de pedacinhos que iam derretendo sobre o
chão naquele instante.
O público foi à loucura. Fogos de artifício iluminaram os céus de Paragon. Da
tribuna de honra e dos camarotes, os nobres e reis imitavam as arquibancadas e
aplaudiam de pé. Absolutamente todos estavam encantados com o tamanho do
poder e a rapidez com que Petr destruíra uma legião de gnolls ao seu redor.
Petr parou, arfando ruidosamente. Observava o que sobrara das criaturas
congeladas converterem-se em poças d’água, absorvidas rapidamente pelo gramado
em volta. Arquejando, o garoto finalmente parecia ter impressionado todos ao
redor. Impressionara tanto que, subitamente, o vozerio tresloucado desaparecera.
Deviam estar estupefatos com o tamanho do seu poder.
O silêncio perdurou por mais tempo do que devia. Suspeitando da ausência
misteriosa da agitação dominando as arquibancadas, Petr levantou o rosto para
entender o que estava acontecendo afinal. As multidões arregalavam os olhos.
Encolhidos sobre os assentos, contemplavam algo numa extremidade da arena com
um esgar esquisito estampado em suas faces. Petr não conseguia traduzir as caretas
estranhas do público. Mas, pelos olhos tão abertos e bocas escancaradas, só podia
ser temor por algo surgindo no campo da batalha. Girando lentamente sobre o
próprio eixo, Petr mirou o exato ponto em que todos pregaram os olhos.
Uma hidra mágica se assomava na extremidade oposta. Maior do que a torre mais
alta da arena, crepitava em chamas escarlates, com o corpo esguio coberto por
escamas ardentes. As três cabeças se erguiam ameaçadoras, mostrando dentes
afiados e exibindo línguas bifurcadas. Comprimia os olhos como fendas na direção
de Petr.
Ocorreu uma ideia louca assim que bateu os olhos no temível monstro de fogo
na iminência de desferir um golpe mortal contra ele. Era ousado e até arriscado,
pois conjurar as chamas para abater os gnolls consumiu muito de sua energia.
511
Contudo, algo lhe dizia que ainda tinha forças suficientes para realizar mais esse
intento, por mais perigoso que fosse.
Voou pela arena até conseguir encarar a poderosa hidra nos olhos. Uma das
cabeças do monstro se agitou e desferiu o primeiro golpe de súbito. Petr deslizou
pelos ares e se esquivou da sequência de golpes com destreza. Outra cabeça se
adiantou, sem dar tempo para seu oponente respirar, desferindo um novo golpe.
Contorcendo o cenho, as multidões esfregavam os olhos, arregalando-os mais
ainda, observando os céus no centro da arena, imaginando se não estavam vendo
coisas. Um segundo Petr surgiu nos ares. Idêntico ao primeiro, ele também voava
ao redor do longo pescoço da hidra. A criatura avançou outra vez, tão confusa
quanto a multidão de espectadores. Um terceiro Petr surgiu. Então, diante dos
olhares embasbacados fixos no centro da batalha, sete Petrs sobrevoavam o entorno
do estádio.
As cabeças da hidra se embaralhavam, atacando as sete réplicas sobrevoando a
arena. A ideia de Petr estava funcionando. Conseguiu criar seis versões elementais
suas, cercando a poderosa criatura por todos os lados. Um novo golpe a esmo do
monstro e o oitavo Petr apareceu. Os oito garotos se alinharam sobre a arena mais
rápido do que os três pares de olhos de seu rival conseguiam ver. Das mãos
esticadas de cada um deles, ao mesmo tempo, jatos de água emanaram como
cascatas a jorrar de vertiginosas montanhas e acertaram a hidra de fogo.
Uma coluna de vapor subiu em direção aos céus. As multidões se levantaram
outra vez, pulando e dando cambalhotas sobre os bancos. A criatura de fogo
definhava devagar, desfazendo-se junto à fumaça branca, unindo-se às nuvens. O
primeiro Petr desapareceu, bem como uma das cabeças da hidra. O segundo e o
terceiro Petr se desfizeram nos ares, assim que mais duas cabeças foram
extinguidas. O quarto, quinto, sexto e sétimo Petr sumiram, até restar somente o
original. A monstruosa hidra de fogo desaparecera. O garoto foi descendo
lentamente até o gramado, ovacionado pelas multidões, aplaudindo-o de pé em um
êxtase ensandecido. O Guardião de Anlevor pousou com delicadeza sobre o chão
e ergueu os braços. Vencera o último oponente em questão de segundos e sem
muito esforço.
512
Capítulo Quarenta
Acordo Selado
Era inacreditável ter de admitir que tal situação era mesmo realidade. Até
pouquíssimos dias antes, ninguém acreditava de fato obterem êxito na missão mais
desprovida de inteligência que um grupo inexperiente de exploradores poderia
encarar. E, tratando-se de um lugar obscuro e mergulhado em uma infinidade de
segredos, poderia-se inferir ser uma tremenda imbecilidade aceitar enveredar em
uma incursão tão absurda. Contudo, não apenas encontraram o que tanto
procuravam, mesmo pagando um preço exacerbado como as vidas de pessoas
inocentes, que nada tinham a ver com a finalidade obstinada de seus propósitos,
como também descobriram revelações surreais que, nem mesmo o mais criativo
dos bardos ou cancioneiros e contadores de histórias poderia inventar.
Poledores Früg contemplava, embasbacado, a suntuosidade do Salão do Trono
do palácio de Adryan Varnor, ou melhor, Rei Adryan Varnor, o líder de um império
bizarro, governando no alto de um imponente e pitoresco castelo no coração das
Terras Distantes de Turmis. Ninguém jamais teria acreditado, nem ele próprio se
alguém o contasse, mas os olhos refletiam o brilho de imensos cristais formando
as principais colunas e vigas do palácio e contemplavam o esgar altivo e
despretensioso de um elfo esgalgado, com uma peculiar coroa cravejada de rubis
repousando sobre as longas madeixas prateadas, enquanto se deliciava com algumas
uvas, colocadas em sua boca com ternura, por uma criada bizarra e de aspecto
execrável. Com um jeito irreverente jamais visto, uma perna apoiada no chão e a
outra no braço do trono de ouro maciço, Varnor exibia um sorriso brilhante, cheio
de dentes e bastante confiante para uma comitiva de elfos assustados e se
acotovelando bem à sua frente.
Não dava para ignorar o vislumbre e a presença das hordas das criaturas que tanto
combateram e provocaram uma era de trevas, guerras e mortes ocupando cada
centímetro do palácio. Não só estavam vivas, como também eram serviçais e
protetores no monstruoso castelo do Rei-elfo. Trolls e gigantes eram guardas de
primeiro escalão. Brutamontes e de aspecto hostil, postavam-se na entrada, perto
das principais colunas, agarrados à enormes lanças de pedra lascada e espadas
abissais. Um único golpe deles era capaz de obliterar qualquer humano, elfo ou
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monstro metido a invadir a fortaleza. Gnolls resignados carregavam bandejas,
abarrotadas de uvas, maçãs, amendoins, avelãs, abacaxis, laranjas e frutas de todos
os tipos e cores. Carregavam grossas coleiras de ferro atadas aos pescoços. No
caminho da floresta até ali, Adryan explicara que eles eram os tipos mais difíceis de
lidar desde o começo de seu exílio. Rebelavam-se com frequência e não admitiam
servir de bom grado a um elfo. Tinham de ficar aprisionados assim para não criarem
confusão. Ao redor do trono, várias drows se exibiam, de olhares lascivos e ao
mesmo tempo assassinos, como se pudessem oferecer sexo à vontade e também
tirar sua vida após proporcionar o tanto de prazer desejado. Früg se encolhia de
medo quando seu olhar cruzava com uma delas: não imaginava ainda existirem elfos
sombrios vivos em Eirin. Não ouvia relatos sobre eles há eras. Mas ali estavam eles
— ou elas, no caso. Eram esbeltas, de rostos e corpos encantadores, donas de uma
beleza particular, embora o tom de pele arroxeado fosse uma coisa esquisita de se
ver. Vestiam roupas provocantes e atiçavam Adryan de várias maneiras, sem se
importar com a presença dos visitantes assustados ao pé do trono. Muito
confortável em seu antro de luxúria e bizarrice, Varnor jogava algumas frutas para
elas, vez ou outra, falando coisas em um dialeto irreconhecível de seu runasmagiam.
— Certo — falou Adryan, deliciando-se com um cacho de uvas depositado por
um gnoll serviçal sobre o braço do trono. — Inconformados com a excomunhão
imposta a vocês pelo execrável Arturo, decidiram unir forças, atravessar metade de
Eirin e vir até as distantes terras da maravilhosa Turmis para encontrar um exilado,
dado como morto. É isto?
Ninguém ousava proferir uma palavra sequer. O terror e o medo eram latentes
nos rostos dos oito sacramentadores com tudo o que viram e passaram até
chegarem ali. As mortes sanguinolentas dos alquimestres da Confraria de Zavir
ainda perturbavam suas mentes. As bestialidades abomináveis dominando o
perímetro eram a segunda coisa mais chocante. Embasbacados, os exsacramentadores
dos Octaedros se limitavam a manter o compasso da respiração,
tomando cuidado para não errarem o passo e acabarem virando comida de troll,
gigante, drow ou gnoll. Sisno, estranhamente, não parecia impressionado como os
demais. Ainda era o mesmo elfo político e simpático, como se estivessem rodeados
pelos reis, rainhas, condes e duques de Eurodian, numa festa qualquer em Cruisand
ou Paragon.
— Fazes, através de tal sentença, tudo parecer deveras egoísta, nobre Adryan
Va...
— Sem formalismos, Sisno — crocitou Adryan, puxando uma das drows deitada
no chão para seu colo. A elfo sombria começou a beijar a orelha e o pescoço do rei
no mesmo instante, sem se importar com os demais. — Te conheço há tantas eras.
Sei bem que sabes falar como qualquer humano deste mundo devasso.
Sannfrye sorriu.
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— Uma oratória impecável sempre me instigou, Adryan. Sabes muito bem disto
e o porquê. Os homens deste mundo, principalmente aqueles a ocuparem as mais
altas posições, são facilmente impressionados por um discurso eloquente, movido
pelo intelecto, recheado por uma razão transparecendo sabedoria.
— Os humanos são completos idiotas, Sisno — falou o rei elfo, beijando com
ferocidade os lábios da drow em seu colo. Ela mordiscava sua orelha e lançava
olhares de desejo para Sannfrye. — São desprovidos de razão, movidos pela
arrogância, prepotência, presunção, altivez e luxúrias de suas vidas medíocres.
Ainda bem que seus ciclos não duram nem uma era. Infelizmente, a religião dos
elfos, a pureza da sacramentação, foi corrompida há muito tempo, quando aqueles
que deveriam por ela zelar decidiram unir forças com um certo conselho para
dominar uma harmonia utópica, em prol de um dito ‘bem maior’.
Adryan lascou outro beijo lascivo, correndo dos lábios até os seios de sua
concubina e colocou-se de pé. Deixou a elfo sombria sobre seu trono, desceu os
degraus do púlpito e caminhou até postar-se frente a frente com Sisno Sannfrye.
Os demais sacramentadores se encolheram ainda mais atrás de Sisno e recuaram,
contemplando o aspecto ameaçador dos trolls no entorno. O rei elfo mirou outra
vez o bando de sacramentadores com curiosa atenção, movendo os lábios sem
pronunciar uma palavra, como se os estivesse contando, um a um.
— Onde está Alezeia? — questionou Adryan, preciso — Não quis vir com vocês?
— Sinto informar que Ada não pode nos acompanhar até aqui — respondeu
Sannfrye, gentil. Parecia o único a não ter medo naquele reduto de devassidão. —
Receio que os ideais propostos por nós não a tenham convencido ser os melhores
para a resolução de nossa problemática.
Varnor assentiu, exibindo um sorriso pelo canto da boca.
— Sabe, eu passei muitos ciclos me perguntando como poderia sobreviver em
um lugar tão hostil como esse. — Adryan colocou uma das mãos no ombro de
Sannfrye. — Foram tempos tenebrosos, meu velho amigo Sisno. Depois que você
e sua corja me condenaram, fui impelido a ter de aprender a sobreviver. Aprendi a
arte da guerra e tornei-me seu amante mais fiel. Digo e repito: os sacramentadores
deveriam desvencilhar-se desta aversão às batalhas e abraçar os embates com mais
afinco.
— Mas assim seríamos tão selvagens quanto os centauros.
O rei elfo crispou os lábios para a frase inesperada de Soobo, contemplando a
elfo de cima a baixo, com um olhar libertino.
— Doce Soobo Yanui, dos lendários Etéreos, as seis famílias mais influentes a
prover sacramentadores para Purysia. Continuas tão atraente quanto na época em
que te conheci. Um corpo impecável que adoraria poder experimentar.
As maçãs esbranquiçadas do rosto da sacramentadora coraram violentamente. Os
ombros se contraíram de chofre. Era visível o desconforto em sua face, bem como
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dos outros elfos, com a frase inesperada do rei elfo. Ela encolheu e se acotovelou
novamente junto aos demais sacramentadores, arrependida de ter dito o que disse.
— Há uma sabedoria ímpar na filosofia dos centauros.
Gavir Onobka contraiu o cenho e estremeceu. O gesto não passou despercebido
pelos olhares atentos e curiosos de Adryan.
— Minhas palavras te incomodam, meu velho amigo Gavir? Embora presumo
acreditarem que falo de execráveis heresias, os centauros encontraram um
equilíbrio ainda ausente em nossa raça. São devotos do tempo e ardentemente
apaixonados pela guerra. Se nós, elfos sacramentadores, seguíssemos seus
exemplos, não teríamos de nos dobrar obedientemente ante a força implacável dos
guardiões.
— Não nos dobramos aos guardiões, nobre Adryan — falou Sisno, sem perder
do rosto o sorriso simpático. — Dividimos a carga de uma grande responsabilidade
na vastidão deste mundo. Somos aqueles que levarão a luz da harmonia do tempo
a todas as nações.
Varnor sorriu pelo canto da boca.
— Se levarão a luz, o que fazem neste lugar de trevas?
Sannfrye emudeceu.
— Vieram me fazer ver a luz?
— Viemos pedir a sua ajuda!
Nikolai tomou a dianteira de Sisno, escapando do amontoado amedrontado de
elfos atrás do antigo sacramentador de Hegemonia. Com uma expressão
desafiadora estampada em sua face, a voz de Nodovra era cristalina, sem titubear
um instante sequer. Permanecia firme, como se estivesse disposto a encarar Adryan
diante daqueles espectadores hostis.
— Nodovra, Nodovra.
Adryan rodeou o sacramentador, esquadrinhando-o dos pés à cabeça. Diferente
do que fez com ardentemente Soobo, Varnor comprimia os olhos num esgar de
raiva e indiferença. Denotava um certo desprezo e uma mágoa reprimida em seu
íntimo, quando aproximou-se do rosto do antigo sacramentador.
— Convém a ti que te supliques também? — interrogou Nikolai, presunçoso —
Achas que incursionamos por estas terras amaldiçoadas até o antro de sacrilégios
repugnantes que aqui jaz de bom grado, porque somos misericordiosos e lhe
abençoaremos com o perdão por um pecado crasso cometido por ti há eras? Sei
que não há motivos convincentes o suficiente a ponto de torná-lo favorável a nossa
causa e que te façam desvencilhar-se das regalias angariadas por ti, baseado em sua
própria sabedoria e esforço. Contudo, esquecendo-me do nosso orgulho, rogamoste
que nos auxilie, Adryan.
Varnor transformou o semblante de repente. A surpresa inoportuna ocupava o
aspecto antes invasivo do rei elfo. Ele moveu os braços e, estendendo as palmas
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das mãos, aplaudiu efusivamente. Os aplausos ecoaram pelo pé direito alto da
fortaleza e assustaram tanto os sacramentadores quanto as demais criaturas.
— Deixe-me adivinhar: Arturo Menfesis tornou-se tão forte e implacável que
trouxe a desgraça à Ordem. Vislumbrando o destino traçado por nossa religião
rumo ao colapso iminente, vocês se dispuseram a seguir as lendas que correm o
mundo a meu respeito e me encontrar para, neste instante, suplicar minha ajuda.
Estou correto?
Nodovra, como os outros sacramentadores, arregalaram os olhos.
— A Ordem dos Sacramentadores ainda resiste aos intentos de Menfesis em
afundá-la sobre um infortúnio incomensurável — pronunciou Sisno, aproximandose
de Nikolai e Adryan. O sorriso e a simpatia desapareceram do rosto do líder da
comitiva. — Contudo, não podemos sequer conjecturar a dimensão do estrago que
há de ser provocado, caso Arturo persista na liderança de nossa amada religião.
Adryan comprimiu os olhos na direção de Sisno, como se ponderasse sobre as
palavras ditas pelo elfo.
— Estou disposto a retornar e atender a este pedido de socorro, visto que se
dispuseram a encarar toda sorte de perigos, unicamente para me encontrar. No
entanto, haverá algumas condições para meu regresso à Purysia.
Nikolai e Sisno se entreolharam, com uma tensão repentina no rosto.
— Condições? — inquiriu Nodovra.
— Sim — respondeu Varnor. — A primeira: Maihin e Sicária, minhas doces —
Ele lançou um olhar impudico para as duas elfos sombrias ladeando o trono, que
sorriram para ele de imediato — ajudantes, virão comigo nesta viagem.
Sisno estremeceu. Nikolai engoliu a seco. Os outros sacramentadores arregalaram
os olhos, estupefatos para a sentença de Adryan. Os elfos sombrios eram um mau
agouro para a cultura élfica tradicional, eram amaldiçoados de nascença. Ainda pior
do que isto, foram inimigos mortais da paz em Eirin, durante a Era das Trevas.
— Ok, nobre Varnor. — Sisno se adiantou e assentiu. — Condição aceita.
— A segunda — continuou o rei elfo — quero o perdão por todos os crimes do
qual fui acusado e condenado a este exílio. Exijo a purificação pelos sacrilégios,
atribuídos por vocês a mim.
— Uma cerimônia de purificação será realizada, meu amigo Varnor —
concordou Sannfrye, sem hesitar. — Estarei encarregado de tal evento e,
pessoalmente, tratarei de conceder-lhe o sempiterno perdão sacramental. Será uma
honra para minha pessoa poder conduzir esta dádiva.
— Por fim, — falou Adryan e seu semblante alterou-se novamente, ficando
muito mais sombrio e funesto. — Quero minha vingança particular contra
Menfesis. Desde os mais inocentes arcanos até os experientes sacramentadores e
líderes dos Octaedros, quero todos presentes no dia em que eu julgar Arturo diante
da multidão de testemunhas de nossa religião.
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Nodovra segurou a respiração, aterrorizado com as exigências de Varnor.
Sannfrye exalava plenitude, como se falassem de uma manhã de sol ou qualquer
assunto corriqueiro. O antigo líder de Hegemonia balançou a cabeça, com a
serenidade ímpar estampada no rosto.
— Terás seu julgamento, Adryan — falou Sisno. — Representando este corpo
sacramental, afirmo-te que a justiça atingirá Menfesis com a balança de poder que
terás para tal. Mas, ratifico, somente poderás lograr este êxito se garantir sua ida
para depor o atual líder da Ordem de sua posição.
Adryan sorriu, satisfeito. Arrebatou a espada de prata usada para dilacerar o ogro
na floresta e guardou-a em seu alforje. Tomou uma capa dourada repousando em
um dos braços do trono e ajustou o arco, cruzando-o sobre as costas. Apertou a
mão de Sisno com vigor e o encarou no fundo dos olhos.
— Tens a minha palavra: farei Arturo Menfesis despencar do topo do trono de
Purysia.
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Capítulo Quarenta e Um
Ataque Noturno
Esgueirou-se pelos corredores, sorrateiramente. Tentava manter a displicência
em seu rosto tenso e nada convincente, como se estivesse apenas fazendo sua ronda
noturna de um dia qualquer. Ninguém poderia descobrir o que estava indo
realmente fazer. Era sigilo absoluto e ganhara uma prata violenta para realizar o
serviço solicitado por sua contratante, o qual ela não tinha coragem de fazer. Ele a
entendia. Uma pessoa da alta sociedade, tendo título de nobreza, jamais sujaria as
mãos com uma tarefa tão violenta e vergonhosa. Ceifar a vida de alguém, a sangue
frio, sem ninguém ver, não era um serviço para qualquer um. Sorte a sua ter alguma
experiência com assassinato. Tudo bem, nunca arriscou matar um ser humano,
somente animais menores e um ou outro mais parrudo. Certa feita, encarou um
urso-silvestre. Era enorme, monstruoso. Dois dele em altura e três em largura,
praticamente. Sacou a espada com destreza e perfurou o bicho tantas vezes quanto
pôde, impulsionado pelo medo dominante. Afobado, estava desesperado para não
virar comida de urso. O animal agonizava, mas resistia. Vociferava, arreganhava os
dentes e agitava as patas poderosas contra ele. Mas fora mais perspicaz e inteligente
do que o urso e conseguiu exterminá-lo. Os parentes e amigos não acreditaram
quando contou a história, sorte a sua ter trazido a cabeça e a pele do urso para
provar.
As luzes do castelo começavam a diminuir. Lembrava dos anos em que o palácio
vivia abarrotado de gente. Eram os Bravior, os Wallensig, os Zanotchka. Todos
juntos, crianças, adolescentes, jovens. Uma algazarra preenchendo os corredores,
torres e salões de um vozerio silenciado somente altas horas da madrugada. Nas
festas, viam o dia virar tarde e depois noite e outra vez manhã, sem pregarem os
olhos. Havia dias em que só queria um momento de paz, depois de assumir seu
turno como soldado com uma baita ressaca do dia anterior. Com o passar dos
ciclos, o silêncio mortificante passou a tomar conta do castelo muito cedo. De uns
meses para cá, depois da morte de Lorde Elliotr e do rei Maximo, a quietude era a
única coisa a reinar. Obviamente, havia suas exceções. A rainha Astúrias ficara
levemente mais escandalosa. Antes, sequer abria a boca pelos corredores ou falava
com os empregados do palácio. Os embates com o neto, Petr, se tornaram
519
corriqueiros pelo castelo. E não havia hora para acontecer. De dia, de tarde, de
noite e até de madrugada, as vozes alteradas berravam uma com a outra, por temas
muitas vezes insignificantes e idiotas. Como mero guarda da realeza, fingia
demência, agindo como se nada estivesse acontecendo. Eles, nobres, que se
entendessem. Depois que Lorde Petr nomeou Chermont, o antigo mordomo,
como o novo Príncipe Regente e partiu para Eurodian, Lady Astúrias vivia trotando
pelos corredores, sempre com a cara amarrada e resmungando. Na última semana,
a rainha não deixava de lançar olhares para ele, sempre que o via estático na entrada
da ala norte, exatamente o caminho para seus aposentos. Ouvira certa vez uma
história sobre Lady Janisi e um soldado que fora seu amante, cujo romance
começou assim, com troca de olhares e gestos disfarçados. Claro, a maior parte do
conto era boato. Esse dito cujo em especial adorava contar vantagem, mas ninguém
jamais percebera esses tais olhares libertinos por parte da duquesa, como ele tanto
afirmava. Mas começou a suspeitar das intenções da antiga rainha e que talvez ela
estivesse a fim de seus serviços masculinos, afinal, seu ex-marido morrera havia um
tempo, podia estar sentindo falta. Apesar de ser coroa, ela ainda dava para o gasto.
Estava bem inteirona, com peitos durinhos e uma boca bem carnuda. Ia adorar
poder se gabar para os outros amigos, nas conversas de bar, que dera umas boas
estocadas na rainha de Snartria. Ia ser um triunfo inigualável.
Uma noite, após o jantar, depois de uma longa discussão com o Príncipe
Chermont, Lady Astúrias o abordou no corredor. Olhou para ambos os lados até
se certificar de que não havia mais ninguém além de ambos. Tentou de todas as
formas, mas era impossível desviar os olhos dos seios bacanas da rainha.
— Escuta aqui, soldadinho. Eu tenho uma missão para você!
Assentindo prontamente, apurou os ouvidos.
— É claro, minha rainha. Em que posso ser-lhe útil?
— Você já matou alguém?
Sobressaltou-se no mesmo instante com uma pergunta tão direta e quase deixou
a espada empunhada cair. Arregalou os olhos e titubeou para responder.
— Anda, traste. Te fiz uma pergunta. Já matou ou não?
— Na-não... mas se-sei o que pre-precisa...
— Estou te pedindo isto porque você é o soldado mais antigo da guarda da parte
norte. Reparo em você há muito tempo. É sempre o mesmo rosto de prontidão no
turno da noite. Então, presta bastante atenção no meu pedido. Pedido, não. É uma
ordem, uma intimação. Quero que acabe com a vida de Chermont.
Quicou onde estava no mesmo instante. A espada caiu no chão, reverberando
pelas paredes do corredor silencioso e atrapalhou-se com o capacete.
— Ma-mas, rainha, e-ele é...
— Não me interessa o que ele é, ou o que o inútil do meu neto o transformou.
Chermont é um plebeu desprezível e não merece ter o poder que detém e tampouco
520
assentar-se sobre o trono de Snartria. Quem deveria estar sobre aquele lugar era eu!
Ouviu? Quanto você quer para assassiná-lo?
Outra vez, hesitou. Era um pedido maluco de uma senhora tresloucada. Uma
coroa gostosa, mas perturbada. Mas ela era a rainha ainda, pertencia à família real
e, entrementes, jamais foi com a cara de Chermont. Sempre o achou muito lerdo,
como se fosse bobão propositalmente para poder chegar onde chegou. Se Lady
Astúrias confiava tanto assim nele para fazer um pedido como este, quem sabe o
que não poderia conseguir através dela? Não esperava poder comer a rainha,
embora essa fosse a recompensa que transitava em seu imaginário. Mas, se
conquistasse sua confiança e ela se sentasse no trono para governar o reino, ele
poderia ter outros benefícios, como uma pequena fortuna vinda direto dos cofres
reais.
— Cem mil moedas de ouro.
— Feito — respondeu Lady Astúrias de imediato e puxou uma pequena adaga
do vestido. — Vê essa lâmina? Está enfeitiçada com magia venenosa. Se atingir
qualquer minúsculo vaso sanguíneo daquele embuste, ele morre em frações de
segundos. Não vai dar tempo nem mesmo dele clamar por socorro. Você espera
ele cair num sono profundo e crava essa faca nele. Depois, dá um jeito de sumir
com o corpo. Sem deixar rastros. Me entendeu?
— Sim, minha rainha.
— Certo. Ah, e se ousar falar para alguém que fiz este pedido a você, juro pela
minha vida, eu arranco tuas bolas e faço você virar um eunuco em Priotier.
— Não, minha rainha. Cumprirei com o combinado.
O silêncio da madrugada reinava pelo castelo em mais um turno sorumbático.
Até mesmo os outros guardas cochilavam em seus postos sem medo de represálias.
Sabiam que ninguém iria até lá conferir se estavam de prontidão ou não. Deslizando
com a faca agarrada à sua mão, tomando o máximo de cuidado para não encostar
na lâmina envenenada, aproximou-se da porta do dormitório do Príncipe
Chermont. Não havia ninguém por perto. Conseguira elaborar uma boa esparrela
para assegurar que não haveria um soldado sequer no corredor leste àquela noite
— nada como alguns barris de rum com um poderoso sonífero para dar conta do
recado.
A porta estava entreaberta. A única luz dentro do aposento era de uma vela
consumida até a metade, queimando num extremo, em cima de um guarda-roupas
com uma porta escancarada e várias roupas emboladas dentro dele. A respiração
compassada de Chermont era pesada. Devia estar possuído por um cansaço
descomunal. O ruído de sua inspiração e expiração era bem audível, embora não
roncasse. Sobre a cama, vislumbrava a silhueta do príncipe regente debaixo das
grossas cobertas de algodão amontoadas. A situação era propícia. Não havia como
errar. Não havia testemunhas e o quarto era abafado o suficiente para impedir um
521
mínimo ruído sequer escapar para os corredores. Um único golpe certeiro, em
qualquer região de seu corpo, seria suficiente para provocar uma morte rápida,
cirúrgica, sem que ninguém percebesse. O jovem tampouco saberia quem o matou.
Se o veneno agia rápido como narrado pela rainha, uma única perfuração seria
suficiente.
Aproximou-se do pé da cama e ergueu a lâmina. Respirou fundo e contou até
três. Iria desferir o golpe e aguardar. Depois, enrolaria o corpo do príncipe nos
próprios cobertores e o levaria nos ombros, como um fardo de algodão, até um
buraco escavado na masmorra mais profunda do castelo. Seria rápido e fácil.
Ninguém notaria.
Contrariando suas próprias expectativas, uma mão surgiu de chofre. Outra lâmina
reluziu com o brilho bruxuleante da vela. Atarantado, o soldado sentiu uma dor
lancinante atingi-lo na altura do estômago. A lâmina brilhou outra vez. Sangue
jorrou dos braços e do peito. A faca envenenada caiu no chão e rolou para debaixo
da cama.
— Você por acaso acha que sou idiota?
Tentando sorver o ar, o guarda ouviu o timbre enérgico e soturno de Chermont
ecoar pela penumbra do quarto. O rosto do jovem príncipe se iluminou, quando
outras velas espalhadas pelo perímetro se acenderam a um estalar de seus dedos.
— Você realmente achou que conseguiria invadir meu quarto e tirar minha vida
assim, tão facilmente? — Chermont moveu a adaga firme em seus dedos e perfurou
a artéria do guarda. — Acreditou que eu não saberia de sua tramoia com aquela
megera? Ouça pela última vez, porque sua vida está se esgotando: eu mando neste
palácio. Essas paredes agora têm ouvidos. Os traidores de minha linhagem serão
severamente punidos. Todos os que se unirem aos Bravior, serão considerados
inimigos da minha realeza.
Pisando o chão com passadas firmes, estatelando os chinelos sobre o piso
lustroso dos corredores da ala norte, o pijama de seda de Chermont esvoaçava,
conforme ele ia avançando, determinado, até um dormitório específico, o maior e
mais imponente daquelas bandas. Uma expressão enfezada ocupava seu rosto,
marcado por filetes de sangue que respigaram do soldado moribundo jazendo então
em seu quarto. A faca usada para matá-lo permanecia segura, com a lâmina
devidamente limpa, agarrada aos seus dedos como se tivesse criado raízes em sua
mão direita.
Cumprimentou alguns guardas do corredor com simpatia exacerbada e um longo
sorriso na face. Eles retribuíram, sorrindo de forma afável, sem conseguir esconder
um indelével bocejo. O estupor em seus rostos era visível e as olheiras profundas
denotavam o cansaço de quem ainda não estava habituado ao turno da noite. Mal
haviam notado os detalhes por trás da expressão simpática do príncipe regente; o
522
estado pressuroso era notório, quando passou por eles como quem está atrasado
para um evento muito importante, mas sem deixar de demonstrar alguma
cordialidade.
Escancarou a porta do quarto e vislumbrou o rosto alarmado de Astúrias,
despertada com o safanão inesperado de Chermont. Os cabelos grisalhos estavam
armados e, no rosto, uma máscara de um creme esverdeado impregnava as
bochechas, nariz e testa. A alça do robe escarlate pendia para o lado, revelando o
ombro marcado por variadas sardas avermelhadas de tamanhos e formatos
distintos.
— Mas o que é isso? Como você ousa...
A faca de Chermont cravou-se no instante seguinte sobre as costas da mão de
Astúrias. Os olhos se esbugalharam e vidraram na ferida, começando a escorrer
sangue. Escancarou os lábios na iminência de emitir um longo uivo de dor, mas foi
rapidamente interrompida e abafada pela mão do príncipe regente, tapando sua
boca.
— Escuta bem, sua megera maldita — sibilava Chermont, próximo do ouvido da
rainha. — A partir de agora, as coisas vão ser um pouco diferentes aqui nesse
palácio. Eu não sou o imbecil do seu ex-marido, muito menos o ingênuo do seu
neto. Ou você dança conforme a minha música, ou sofrerá graves consequências
por sua insubordinação. Me ouviu bem, sua velha?
Astúrias não conseguia pronunciar uma única palavra. Balançou a cabeça
repetidas vezes, confirmando ter compreendido muito bem o que o antigo
mordomo dissera. Lágrimas de dor escorriam de seus olhos e a ferida da lâmina
encravada em sua mão latejava, fazendo-a sentir espasmos atroadores percorrerem
o seu corpo. Chermont puxou a faca de uma vez e, virando-se, saiu do dormitório
sem olhar para trás, batendo a porta com força.
523
Capítulo Quarenta e Dois
Amor Bestial
Olhando as próprias mãos, Louk estava transtornado. Transtornado talvez não
fosse o termo correto, embora fosse o único adjetivo a perambular sua mente
cansada desde o instante em que pôs os pés para fora da arena. Decepcionado seria
a palavra adequada para a forma como se sentia. Era difícil acreditar que perdera
mais um desafio. Não estava nem entre os três primeiros. Embora não fosse o
último — felizmente, o derradeiro colocado era uma verdadeira mula, um completo
imbecil. Admirava-se de o dito cujo conseguir andar, respirar e falar ao mesmo
tempo, para ele era um feito excepcional. Não conseguia entender porque Aladar
enviara um cara tão presunçoso e idiota para ser o novo protetor do continente.
No primeiro teste, teve de ser socorrido por guardas do Conselho: teria morrido
afogado quando a água inundou o trecho do labirinto em que estava. No desafio
de Poder, o tal Guilloch foi atingido na cabeça pelo porrete de um ogro e desmaiou.
Isso em dez segundos de prova. Mas, ele próprio, era apenas o quarto colocado,
atrás de uma dondoca ruiva, um fedelho de treze ciclos de idade e um rapaz que
mais parecia um nerdão de escola.
Penara para derrotar um monstro elemental de pedra e quase fora esmagado umas
três vezes pela criatura. Cansou mais rápido do que qualquer um dos outros quatro.
Também pudera, teve de correr mais do que todos pela arena para escapar da morte.
Depois de muito custo e mais de uma hora fugindo e se esquivando, para sua sorte,
conseguiu conjurar uma serpente de terra que se enroscou em seu oponente e o
despedaçou. O mais inacreditável desse desafio ainda era o fato de um garoto de
trezes ciclos tem derrotado uma legião de gnolls e uma hidra abissal em questão de
segundos. Quando relembrava, ficava abismado. E se podia ficar pior, para
humilhar sua condição física e seu nível de poder, o moleque ainda se multiplicou
em vários para obliterar o monstro. Mas Bald já havia comentado sobre ele. Petr, o
menino-prodígio do clã dos Bravior. Dizia-se que sua força mágica se igualava a do
lendário Hazer Gundorf. Estava mais do que provado, diante de uma multidão e
de todo o Conselho: o garoto tinha um poder assombroso. Começava a questionar
se deveria ter se oferecido como Guardião de Turmis, quando teve de voltar com
524
o rabinho entre as pernas para casa e suplicar o perdão de seus pais, tios e tias, bem
como do conselho real, que fazia jus à alcunha de austera do reino de Amistelar.
Que lembranças terríveis tinha daquele dia. Uma data para lançar no
esquecimento. Depois de ter o coração amassado, atropelado, rasgado,
despedaçado, triturado, moído e pisoteado por Dhara, perdera completamente o
rumo de sua vida. Até respirar parecia não fazer muito sentido mais. Brigara com
os pais e com os nomes mais importantes do reino por causa de um amor
considerado por eles uma coisa execrável. Abdicara da herança, da fortuna e da vida
de luxos e confortos no palácio para viver um amor inimaginável, mas que o
arrebatou com uma intensidade implacável como o mar de Aerogner em fúria. Mas
aquela elfo que ainda perturbava seus sonhos, tornara-se frígida de uma hora para
outra. Obliterando seus sentimentos, limitou-se a dizer que havia um abismo entre
eles e terminou de enterrar seu coração ao afirmar não o amar. Sequer correspondeu
os beijos, quando a tomou nos braços, pressionando os lábios nos dela com a força
da paixão o impelindo a prosseguir. Sem amor, sem paixão, nem um pingo de
sentimento. A bela elfo que conhecera em uma loucura em Paragon, a quem beijara
num baile em Cruisand, tornara-se um ser obscuro, desprovida de emoções.
Retornara para Amistelar três dias depois, tentando compreender o ocorrido, onde
foi que errara. O olhar inquisidor de seu pai, aguardando-o no porto, foi a primeira
coisa a vislumbrar. Foram dias intermináveis tendo de ouvir os sermões
causticantes do pai e da mãe, explicando cada detalhe de cada palavra a ser dita aos
demais Savya, Ottonis, Gundorf e Stanhorne em seu discurso de perdão. Tim-tim
por tim-tim. Até mesmo o tom de voz a usar para os familiares e conselheiros reais.
Não poderia parecer arrogante, de forma alguma. Mas ao mesmo tempo, tinha de
denotar imponência, como um verdadeiro nobre e herdeiro da coroa. Assim como
uma ovelha rumando para o abatedouro, ele seguiu até o anfiteatro, onde todos já
estavam reunidos. Os narizes em pé e um menosprezo estampado em suas faces,
eles se espalhavam pelo recinto, com papéis e lápis nas mãos, prontos para anotar
tudo o que estava disposto a dizer e com uma infinidade de questionamentos
enfurnados em suas cabeças. Quase cinco horas de preleção e perguntas e respostas
depois, Louk cumpriu com seu dever, seguindo à risca o protocolo de seus pais.
Nem presunçoso, nem fraco. Atacado diversas vezes, decidiu não dar vazão às
palavras cuspidas, carregadas de ódio. Não permitiu que o sangue fervesse e
perdesse a cabeça. Como mandava o roteiro, todos concordaram ao final que ele
ainda era a melhor opção para Guardião de Turmis. Todos, menos ele próprio.
Contudo, faria o que precisava ser feito. Seguiria os protocolos. Nada mais
importava.
Os dedos machucados doíam e a cabeça latejava. A balbúrdia do lado de fora
ribombava nas vidraças de seu aposento, no palacete do governador, em uma ala
especialmente reformada para abrigar o novo Círculo dos Cinco, durante os dias
525
do evento em Paragon. Uma singela confraternização, promovida pelo próprio
Salazar, fora marcada para o fim da noite. Iriam beber e jantar no Salão Principal,
juntamente com os reis, rainhas e outros nobres que vieram à cidade acompanhar
o segundo evento. Sinceramente, desejava mesmo era deitar naquela cama
confortável, de travesseiros macios e dormir. Fingir que nada daquilo estava
acontecendo. Que sua vida maluca e essa sina maldita eram um intragável pesadelo
e logo, logo acordaria para uma realidade em que estaria plenamente feliz e
satisfeito, ao lado de Dhara.
Toc, toc.
Duas batidas suaves na porta fizeram Louk despertar de seu estado sorumbático.
Percebeu ainda estar enrolado numa toalha. Vestiu uma calça qualquer largada pelo
caminho e caminhou sem muita pressa até a entrada do dormitório. Imaginava ser
algum empregado do Conselho, transmitindo uma mensagem provável de Lorde
Moronov para não se atrasar. Ainda era cedo para juntar-se aos demais guardiões
no andar de baixo. O céu estava claro, com o fim da tarde transitando para a noite
numa velocidade de lesma. Stanhorne fora categórico sobre o horário: quando a
noite reinasse e a lua estivesse plena sobre os céus de Paragon.
— Pois não?
— Olá, Louk.
O guardião ficou alguns segundos estático, segurando a maçaneta da porta,
embasbacado com o que via diante de seus olhos. Era impossível acreditar que,
parada a sua frente, Dhara Lovrens o encarava, com seus belos, brilhantes e grandes
olhos castanhos em um rosto angelical denotando acentuada preocupação, mas o
arrebatava para um mundo onde tudo aquilo só poderia ser um sonho. Os longos
cabelos ondulados pareciam ter brilho próprio. Não conseguia deixar de notar os
lábios esculpidos tremulando, ainda que tentasse exalar uma sobriedade sem muito
sucesso. As lembranças do dia em que a bela elfo diante dele destruiu seus
sentimentos, atropelaram o fascínio arrebatador, puxando-o outra vez para a
realidade aterradora.
— Veio rir da minha cara ou o quê? — questionou Louk, ríspido, largando a
maçaneta. Era difícil manter-se por muito tempo encarando Dhara nos olhos. Mais
difícil ainda era controlar o coração acelerado.
— Sabes que jamais ousaria me utilizar de algum escárnio contigo.
— Então o que quer aqui? — Louk cruzou os braços, conseguindo erguer a
cabeça para mirar a sacramentadora.
— É imperativo que conversemos, eu...
— Conversar o quê, Dhara? — Louk sentiu uma ponta de raiva incidir sobre o
tom de voz. — Você deixou tudo muito claro aquele dia. Parece que minha
felicidade floresceu em Paragon, evoluiu em Cruisand e foi assassinada em Gradia.
Não há nada a dizer.
526
— Poderias ao menos convidar-me para adentrar este recinto e conversarmos
civilizadamente?
Louk esticou o braço e a sacramentadora entrou no aposento. Elegante em seus
trajes de seda fina de tons azul-turquesa, a elfo postou-se próximo à janela,
respirando compassadamente.
— Não tenho a presunção de ter seu perdão ou mesmo que venhas a dar-me
razão diante do que hei de expor. Nós, elfos, somos educados ao desenvolvimento
da racionalidade, fazer ouvir a voz da razão acima da emoção. Contudo, não há
como se desvencilhar por todo sempre dos sentimentos que possam aflorar ao
longo de nossas jornadas. Mas fomos educados a compreender como o caminho
dos sentimentos, das emoções pode conduzir a trágicos encerramentos.
Aprendemos ao longo das eras com o exemplo dos humanos, que deram ouvidos
às emoções e traçaram uma rota de incertezas e de levianos pecados, lançando
nosso mundo, por diversas vezes, à ausência completa de harmonia, às guerras,
fomes, embates e toda sorte de desgraças.
— Onde você quer chegar, Dhara?
Louk observava a elfo e sua postura imponente dentro do quarto. Contudo, algo
em sua expressão denotava desconforto, uma resignação esdrúxula, impossível de
se esconder em seus trejeitos, por mais livres de emoções que eles pudessem
parecer. Encará-la, para ele, provocava uma dor lancinante, difícil de se conter.
— Há um profundo abismo entre nós, Louk. Nasci com um propósito que
suplanta a sina desta singela vida e está além do que sua mente pode compreender.
O destino do meu caminho até a consumação de meu destino está entrelaçado com
as vias tortuosas e incertas do tempo. Contudo, sei que nossas vidas não deixarão
de se encontrar ao longo do percurso dos ciclos. Como protetores em Eirin,
cabendo a mim a sacramentação do tempo em Hegemonia e a ti, o dever altruísta
de defender a harmonia sobre Turmis, haveremos de nos esbarrar nos eventos e
formalidades da alta sociedade. Rogo-te que haja entre nós, ao menos respeito e...
— Respeito? — questionou Louk, exasperando-se. — Você vem até meu
dormitório, depois de ter acabado com minha vida, pedir respeito?
Dhara sustentava um olhar aflitivo, mas não abaixava a cabeça.
— Eu não acabei com sua vida, Louk. Não consegues compreender minhas
palavras? Há um abismo entre nós. Um sentimento bestial que jamais poderia ter
sido despertado.
— Eu abdiquei de tudo por você, Dhara. Eu te amei de verdade, como nunca
ninguém jamais vai te amar.
— Não compreendes: eu nunca quis ser amada. Por toda minha vida, minha mais
ardente expectativa era poder me tornar serva da sacramentação do tempo e dedicar
os meus ciclos à minha religião com meu intelecto, por um bem maior. Mas você
surgiu e sorrateiramente provocou uma oscilação inesperada na malha do tempo
527
de minha vida, fazendo brotar um sentimento que embaralhou a minha mente. Um
sentimento que eu nunca experimentei.
Louk estacou onde estava. Arfava ruidosamente. Podia sentir a pulsação acelerada
de seu coração. Lágrimas rolavam dos olhos de Dhara, mas ela não baixou a guarda
um instante sequer. O olhar petulante e o queixo duro permaneciam estáticos, mas
o choro era inevitável.
— Eu quero, mas sei que não devo. Nós, elfos, vivemos quinhentos ciclos e
vocês, próximo de uma era, no melhor dos casos. O que farei quando você se for?
Quando o tempo torná-lo um ancião e você suspirar pela última vez, como vou
viver sem tê-lo por perto, mesmo que para amá-lo à distância? Não posso
potencializar a voz a urgir dentro do meu coração e permitir que ela oblitere o
discurso decorado e repetitivo de tantos ciclos martelando em minha mente.
Louk ignorou os inúmeros questionamentos aflorando em sua cabeça, deixou de
lado o orgulho, a raiva e o medo. Impelido pela voz da emoção, o guardião
atravessou o quarto e agarrou o rosto de Dhara com veemência. Os dedos
entrelaçaram-se aos cabelos encaracolados. Os lábios de ambos se tocaram de um
jeito desesperado. Pressionavam-se um no outro com o ardor de um casal
apaixonado que não se via há meses, há ciclos, há décadas. Beijavam-se com
saudade. A saudade de um sentimento aflorado em Louk, mas ainda reprimido no
âmago da sacramentadora.
A mão direita de Louk afagou os cabelos da elfo e a esquerda posicionou-se
delicadamente sobre seus quadris. Os beijos tornaram-se intensos. Dhara beijava-o
com pressa e desespero. Correndo as mãos por suas costas desnudas, beijava-o
como se sua vida fosse acabar em breve e este fosse seu último desejo. Mordiscava
seus lábios e colocava a língua, como se aqueles fossem seus derradeiros momentos
de vida e ansiasse por esse beijo.
Livre de decisões arquitetadas movidas pela razão, Dhara desabotoou, num
arroubo selvagem, os botões do longo vestido azul, pressurosa. Louk despiu-a com
violência, deixando os seios desenhados e o abdômen da elfo de fora. Moveu os
lábios direto para o pescoço e dali correu a língua para os ombros e em seguida
para os peitos. Sugava os seios dela com ferocidade. Lambia os bicos dos peitos e
não parava de descer, correndo outra vez a língua quente pela barriga.
Dhara revirava os olhos, com um espasmo de prazer percorrendo seu corpo.
Agarrava os cabelos bagunçados e ruivos de Louk, sentindo a língua ardente do
guardião percorrer seu ventre com um toque molhado e sensual. Jamais havia
sentido aquilo. Nem mesmo quando desembarcara em Purysia para ser uma arcana,
sentira tamanho prazer e felicidade dominar-lhe como naquele momento. A
sensação arrebatando seu espírito e tomando conta de suas faculdades mentais era
indescritível. Uma coisa que, em tantos ciclos e pouco mais de uma era, jamais
desejou ou mesmo teve interesse em saber. Algo considerado execrável,
528
abominável aos olhos de seus mentores, arrebatava sua consciência naquele
instante, lançando-a em um êxtase irracional.
Louk agarrou Dhara pelo colo e jogou-a sobre a cama. Terminando de despi-la,
o guardião enfiou a língua no meio das pernas da elfo e sugou com força, repetidas
vezes. A sacramentadora urrou de prazer. Cravou os dedos sobre o colchão,
sentindo as ondas de uma satisfação descomunal e indescritível percorrendo cada
centímetro de seu corpo. Segurou firme os cabelos de Louk, quase arrancando-os
do lugar e o instigava a prosseguir. Não queria parar. Queria continuar a se deliciar
com tamanho deleite. Cada vez queria mais e mais. Perdera o controle de sua
racionalidade. Ignorava por completo a voz da razão que a levou até ali. Almejava
por muito mais desse sentimento esdrúxulo, mas que a completava de uma forma
inigualável.
O Guardião de Turmis avançou sobre a cama e abriu as pernas da elfo. Ela não
parava de suspirar, arrebatada pelo prazer. Correu os dedos por sua vulva,
demorando-se um pouco mais, sem deixar de observar as expressões dela em
êxtase. Empunhou o próprio pênis e penetrou-a em seguida. A sacramentadora
arregalou os olhos, gemendo ainda mais alto. Os lábios de Louk e Dhara se
encontraram outra vez, em beijos ardentes e indomáveis. Ela arranhava suas costas
e agarrava seus braços com ímpeto, puxando-o para si. Ele conduzia o movimento,
sugando os seios da elfo outra vez.
Dhara arriscou beijar o pescoço do guardião, provocando nele o prazer que ela
tanto sentia. Movendo-se com destreza, Louk virou-a de bruços e correu a língua
por seu pescoço. Os espasmos de satisfação outra vez percorreram seu corpo
quando o guardião moveu os lábios por suas costas, subindo e descendo e subindo
outra vez, mordiscando de leve sua orelha. A pele arrepiava e os cabelos da nuca se
ouriçavam. Puxando-a pelos quadris, ele penetrou-a novamente. Dhara gemeu
outra vez. Repetindo o movimento, não parou até ambos chegarem ao ápice.
529
Capítulo Quarenta e Três
Ressurgido das Cinzas
Lançando olhares assustados por detrás dos ombros e esquadrinhando cada lugar
escuso e grotesco por onde passava, Selena seguia trotando, aos passos largos,
desconfiada de qualquer figura suspeita ao redor. Deslizava por vielas obscuras,
escondendo o rosto atrás de uma echarpe azulada para ninguém a identificar. As
ruas de Cruisand estavam abarrotadas. Pessoas de todos os tipos e trejeitos
perambulavam de um lado a outro. Umas, elegantes e de feições simpáticas, outras
de aspecto hostil e mal-encaradas. A iminência do último evento do Ano da
Elegibilidade fazia cada estrada, rua, viela e beco da grandiosa cidade fervilhar de
gente vagando nos arredores da arena construída pelo Conselho, para poder
garantir seus lugares na competição e fazer valer a sorte, fosse vendendo bugigangas
mágicas ou apostando no melhor dos cinco concorrentes.
Esbarrando em intermináveis filas de transeuntes e comerciantes pelos becos
estreitos e tortuosos da parte mais afastada do centro, a jovem guardiã avançava,
suspeitando de tudo e todos no seu caminho. Uma sensação esquisita teimava em
tentar dominá-la, como se alguém a estivesse seguindo, vigiando cada um dos seus
passos. Tanto em Miliat quanto ali, por onde quer que fosse, era como se um par
de olhos acompanhasse seus movimentos.
O ceticismo era crescente. Não conseguia ainda acreditar que havia conseguido
escapar dos olhares desconfiados de Bernat e perambular por ali, bem longe da
companhia de qualquer um do reino. Nem mesmo os guardas colocados pelo
usurpador do trono e que viviam em seu encalço no palácio a seguiram por ali. Não
colocara muita fé que o pretexto de escolher o enxoval para o casamento nas
tecelagens mais longínquas da cidade iria dar tão certo. O novo herdeiro — e traidor
— do trono não fizera qualquer objeção a sair sozinha, em uma cidade abarrotada
de gente, em busca de belos tecidos para confeccionar o seu vestido de noiva. O
plano não tinha como dar errado, a não ser que alguém a visse, aí poderia custar a
sua vida. Já havia comprado uns tecidos em Paragon e os escondeu no malão,
quando conseguiu entregar a mensagem para a única pessoa que poderia vir em seu
socorro.
530
Obstinada, sabia que era necessário ter marcado em um lugar distante da comitiva
de Miliat e da vista de qualquer guardião. O encontro aconteceria logo, logo numa
velha torre abandonada, próxima às salineiras, no ponto mais afastado possível do
palacete onde Bernat estava hospedado. As instruções tinham sido bastante
objetivas: vá sozinho, não seja seguido, não comunique a ninguém onde você está
indo. A frase que ouvira antes de embarcarem para o primeiro evento em Gradia
ainda martelava em sua cabeça.
A capital de Miliat ainda estava pilhada, com cinzas e rastros de destruição
dominando as ruas da cidade, em razão do intenso ataque surpresa, que culminou
na morte do Rei Bartel, de sua esposa — cujo corpo ainda não havia sido
encontrado, e na fuga de Zakkar. Selena não recebera mais notícias do amigo desde
que o vira escapar pela janela de seu dormitório. Sabia que Bernat era o traidor. O
único irmão de Bartel fora covarde o suficiente para buscar aliados, destronar e
permitir o assassinato do próprio irmão mais velho, que teria entregue sua vida por
ele se fosse preciso. A certeza mais implacável de todas era a de que o novo herdeiro
do trono faria de tudo para continuar com a coroa e não descansaria até encontrar
o corpo do legítimo herdeiro, seu sobrinho. Não caíra na história de que o quarto
dele fora explodido pelos soldados inimigos, estava convicta disso. Bernat era
inteligente e ardiloso. Ele sabia que ela sabia da verdade.
Selena fazia o jogo dele. Anunciando de supetão um casamento arranjado, sem
sequer consultá-la, cortejá-la ou mesmo indagar sua família, ele queria arrancar
informações sobre o verdadeiro paradeiro de Zakkar. Bernat era astuto o suficiente
para conjecturar que a garota sabia sobre o sobrinho, mas não diria uma palavra
sequer. Ele agiria diferente. A torturaria de variadas formas, a começar com este
casamento sem cabimento, para poder ter todos os seus passos vigiados de perto.
Mas ela não o procuraria para questionar nada. Estava convencida de que, em algum
momento, o seu silêncio incomodaria.
Semanas depois de ter anunciado a todo povo o noivado com ela, Bernat
adentrou seu dormitório certa noite. As luzes incandescentes das velas piscavam
com a leve brisa assoprando do lado de fora, pela janela entreaberta. Ela terminava
de pentear os cabelos com a escova, como sempre fazia antes de dormir e tomou
um susto, quando ele abriu a porta devagar e rodou a chave duas vezes.
Atravessando o quarto com seu costumeiro roupão listrado, a mão direita apoiava
a esquerda atrás das costas. A expressão costumeira de sobriedade capciosa ocupava
seu rosto. Selena, contudo, não movia um músculo do rosto. Permaneceu alisando
os cabelos como se nada tivesse acontecido.
— Você está tranquila. Calma demais — sussurrou Bernat, postando-se ao lado
dela, mirando o reflexo da jovem sobre o espelho.
— Haveria motivos para eu não estar?
531
Bernat contemplou o belo rosto da garota. O semblante externava uma expressão
misteriosa.
— Anunciei nosso casamento há alguns dias e a nomeação de Guilloch como o
Guardião de Aladar. Você não se pronunciou sobre nada. Não me procurou sequer
para questionar porque eu comuniquei aos miliatenses de todas as partes que me
casarei contigo, tão logo os eventos de Eurodian se encerrem.
Selena largou a escova sobre a penteadeira e colocou-se de pé. O brilho das velas
iluminava as rugas, a papeira abaixo do pescoço e a pele flácida marcando o esgar
impassível de Bernat. Com uma presunção proposital escancarada em seu rosto, a
jovem guardiã mirou o fundo dos olhos marcados por intensas olheiras do traidor
dos Ayarza.
— Eu sei quem você é, Bernat. Sei o que você fez. A marca em seu pescoço
denunciou sua farsa no dia em que o castelo foi invadido. Sei que você tentou
esconder, mas não escapou de meus olhos desconfiados naquele dia.
Bernat colocou a mão no pescoço, exatamente onde Selena vira a marca dos
invasores. Era o sinal de um pacto de traição, arquitetado para derrubar o legítimo
dono do trono. Ele, por sua vez, limitou-se a exibir um sorriso tímido, como se a
garota tivesse acabado de tecer um elogio que o deixou encabulado.
— Sabia que você tinha mais conhecimento do que aparentava.
— Nunca me casarei contigo. Jamais me amarraria a um homem asqueroso e
repugnante como você. Fui criada nesse palácio e educada por minha mãe e irmãs
a te chamar de tio, pela consideração que os Vycard tinham por sua figura. Mas
você traiu o seu próprio irmão. — Selena levantou o dedo e apontou no meio do
nariz bulboso de Bernat, com todo ódio que a consumia sendo exalado de uma
única vez, sem conseguir se controlar. — Você vendeu a cabeça de tio Bartel, tia
Elma e do Zakkar para poder usurpar o trono! Eles te amavam, eles eram sua
família. Teriam dado suas vidas por você. Que tipo de sádico, sem coração é você?
Bernat agarrou a mão da garota e a apertou.
— Sou o tipo de sádico que faria qualquer coisa pelo poder, menina. — As
palavras de Bernat soavam como um mero sussurro, pronunciadas como o veneno
ardiloso de uma serpente traiçoeira. — O tipo de sádico que envolveria o seu nome
e o de sua família em Namit nesta conspiração, caso você ouse fazer a desfeita de
não contrair matrimônio comigo. Quem não acreditará nas palavras do único irmão
do falecido rei? Os Vycard tiveram inveja dos Ayarza pelo poder que jamais
puderam ter. Inconformados com uma pequena cidade portuária, eles se uniram
aos neergurianos, pois ansiavam pelo trono e traíram os herdeiros da coroa,
facilitando a entrada dos invasores pela porta da frente do palácio real. Dissimulada,
você fingiu ajudar-me para poder me matar e assumir a coroa. Quem não acreditaria
em meu discurso?
532
Selena arregalava os olhos. Não tinha nada a dizer. Cética, vislumbrava o olhar
sereno de Bernat e os lábios pronunciarem cada palavra com tamanha tranquilidade
e firmeza como de alguém a relatar um fato histórico real. O irmão de Bartel era
mais astucioso do que ela imaginava. Abaixou a mão da garota e com os dedos,
acariciou a barriga da guardiã. Movida por uma repulsa irrefreável, ela se afastou no
mesmo instante.
— Você é forte, tem coxas grossas e quadris na medida certa. Estou te dando
uma oportunidade única, Selena — sibilou Bernat, encarando a garota com um
olhar lascivo. — A oportunidade de ser a mãe dos meus filhos e viver para me dar
prazer. A única mulher que amei morreu há muitos ciclos e ela não me deu
herdeiros. Você é jovem e tem um ventre saudável. Me dará herdeiros para que eu
possa propagar minha dinastia, meu sangue, puro-guardião, sobre o Trono de Jaspe.
Uma ânsia de vômito tomou Selena de chofre ao ouvir a sentença de Bernat. Os
olhos escancarados, estarrecida, a boca imóvel e a respiração ofegante. Era
inacreditável o que escutava. Vivia um pesadelo sem fim inimaginável. Encontravase
presa em uma corda bamba, entre a cruz e a espada, sem poder clamar por
socorro. Assim como entrou, Bernat girou nos calcanhares e atravessou o quarto
outra vez. Rodou a chave duas vezes e destrancou a porta.
— Ah, — falou Bernat falou, antes de sair — eu não acredito que Elma tenha
morrido e creio que você saiba do paradeiro de minha ex-cunhada. Pode não querer
me revelar o que sabe agora, doce Selena, mas um dia você irá, nem que seja à força.
Saiba também que se ousar tentar contar algo do que foi dito neste recinto a alguém,
eu saberei. Vigio seus passos desde o anúncio do nosso casamento. Contudo, sintase
honrada. Fique feliz por eu ter te escolhido para ser a mãe de meus filhos. E não
tenha medo. Garanto que ainda sei como tratar bem uma dama.
Selena arrebatou um papel de dentro da penteadeira assim que ele saiu e se
inclinou a escrever uma carta. Não poderia contar a ninguém de sua família. A mãe
era muito idosa e as irmãs não moravam mais em Miliat. Não era tão próxima dos
tios e primos de Namit para clamar por socorro sem ser descoberta. Só havia uma
única pessoa que poderia ajudá-la de alguma forma. E esta pessoa estaria em Gradia
para o primeiro evento.
Chegara finalmente ao lugar marcado. A torre abandonada cheirava a cachorro
molhado, mofo e alguma coisa velha difícil de identificar. Estava coberta por
tapumes, embora houvesse vários buracos no reboco, por onde a luz do sol
irradiava para dentro do velho edifício e iluminava os escombros do que antes
parecia ter sido uma tecelagem. Lembrava daquele lugar na única vez em que
estivera em Cruisand, para ajudar a comprar todo o enxoval de sua irmã. Mesmo
contra vontade, seguiu acompanhando as irmãs e sua mãe e ficara admirada com o
formato pitoresco daquela torre específica, quando saiu para passear pela cidade no
533
último dia. Como sempre gostava de explorar lugares incomuns. Descobriu o
prédio por acaso, depois de ter fugido das outras irmãs para se aventurar pelas
salineiras.
— Selena?
— Tio Golmir?
Um pouco mais arrumado do que o habitual, mas sem deixar de lado seus longos
cabelos e barbas em tranças apertadas, carregadas de miçangas e badulaques
semelhante ao estilo dos guerreiros anões, Golmir Ayarza surgiu por uma
passagem. Atarantado e observando com olhos arregalados cada centímetro do
lugar incomum ao redor, o tio-avô de Bernat inspirou profundamente, apoiandose
em uma parede. Exalava um cansaço sobre-humano e suava sem parar,
empapando o colete e a camisa verde de algodão. Enfiou a mão em um bolso
interno e puxou um pedaço de papel.
— Confesso que passei alguns dias tentando decifrar esta mensagem, Selena. Foi
você quem elaborou esse enigma?
— Eu não podia arriscar que descobrissem nossa posição. Alguém te seguiu até
aqui?
— Acredito que não. — Golmir guardou a carta novamente e sorriu. — Bem,
mesmo com idade avançada, ainda sou bom em dissimulação. Se havia alguém me
seguindo, devem estar pensando que entrei aqui para tirar água do joelho. Mas, por
favor, desembucha. Por que tanto mistério? Por que estamos conversando aqui e
não no palácio de Bovir? Ele me convidou para...
— Tio Golmir, há uma conspiração em Miliat.
Golmir arregalou os olhos e balançou a cabeça. O sorriso desapareceu do rosto.
— O quê? Como assim, do que você está falando?
Selena arfava ruidosamente. Sentia-se sufocada naquele lugar. Precisava ser
rápida. Estava há muitos dias precisando compartilhar com alguém tudo o que
estava passando e as preocupações em sua cabeça. A única pessoa que poderia
ajudá-la estava diante dela.
— Nosso reino não foi atacado, muito menos pelo Rei Belbert. Foi Bernat.
Bernat traiu o próprio irmão e conspirou com alguém para que Bartel e sua família
fosse exterminada e ele pudesse assumir o trono.
Golmir levou algum tempo para digerir as palavras ditas por Selena. A revelação
da jovem guardiã acertou-o como um soco na boca do estômago. Ele parecia
estarrecido. Apoiou-se outra vez na parede e o olhar se perdeu alguns instantes em
lugar algum, como se refletisse sobre a denúncia que acabara de ouvir.
— Eu... estava convicto que Belbert não faria isso. Belbert não seria tão
dissimulado e ingênuo para cometer uma insanidade dessa. Há muitos ciclos,
gerações eu diria, selamos uma paz verdadeira entre os dois reinos. Suas palavras
só confirmam minhas convicções. Bernat me procurou assim que a poeira abaixou
534
na capital. Conversamos sobre a situação. Ele chorou amargamente por Bartel, por
Elma e Zakkar, ao ponto de me convencer. Quando ele me disse que era meu velho
amigo o conspirador, meu mundo foi ao chão. Eu não queria acreditar. Não
retornei mais à Neergúria desde então, acreditando na esparrela de meu sobrinho
enganador.
Golmir levou as duas mãos ao rosto, como se tentasse despertar de um terrível
pesadelo ou como se quisesse se derramar em prantos por tamanha desgraça e não
pudesse.
— Eu nunca confiei em Bernat. Aquele jeitinho calmo, sereno e tranquilo dele
sempre foi muito suspeito. Bertúlios e eu tivemos uma longa relação de
cumplicidade, uma parceria só interrompida com a morte de meu irmão. Acreditava
que Bartel e Bernat tivessem a mesma parceria. Nunca iria imaginar que ele seria
capaz de uma coisa abominável dessas.
— Nenhum de nós, tio Golmir. Mas...
— Vamos fazer o seguinte, Selena — falou Golmir, inspecionando o perímetro
novamente. — Irei investigar. Vou tentar descobrir quem mais está por trás dessa
conspiração. Bernat não agiu sozinho. Uma invasão como a narrada por ele teria
de ser arquitetada por pessoas com muita influência. Alguém com interesses
escusos contribuiu para o crápula do meu sobrinho obter êxito nesse genocídio que
ele provocou em nosso amado reino, culminando em sua ascensão ao trono.
— Tio, — Selena sentiu um nó na garganta e uma intensa vontade de chorar —
ele está me obrigando a casar com ele. Bernat quer... herdeiros. Disse que vai
envolver minha família nesta trama se eu não seguir suas ordens.
Golmir contraiu o cenho e levou a mão à boca, movido de compaixão pela garota.
O velho guardião balançava a cabeça, estupefato, como se não acreditasse no
tamanho da crueldade de seu sobrinho. Ele colocou a mão no ombro de Selena e
moveu os lábios sem emitir som algum, como se não soubesse o que deveria dizer
para confortá-la ou ajudá-la a escapar dessa situação.
— Minha filha, neste momento, você terá de ser corajosa. Nós precisamos
desmascarar Bernat. Faça o jogo dele. Finja estar contrariada, mas continue
simulando a resignação de ter de casar-se contra a vontade para que possamos
descobrir tudo o que for possível sobre ele. Investigarei e pedirei apoio a amigos
mais próximos no Conselho, para descobrir quem o ajudou. Não deixe de escrever
para mim e me atualizar. Seus enigmas são complexos, garanto que Bernat não é
inteligente a ponto de desvendar esses códigos facilmente.
Selena balançou a cabeça.
— Tudo bem, tio Golmir. Seguiremos assim.
Golmir deu um beijo na testa da guardiã e partiu pela mesma passagem por onde
entrou.
535
Selena varreu o perímetro outra vez. Não queria ser surpreendida por alguém em
seu encalço, algum enviado secreto de Bernart para vigiá-la. Falara de coisas que
poderiam dar fim a toda sua linhagem e a dos Vycard. Jamais se perdoaria se fosse
descoberta. Embora o medo teimasse em querer assumir o controle, ela manteve a
calma e se esquivou por uma passagem diferente.
Uma mão agarrou o braço de Selena bruscamente. Arrastada para um canto, a
jovem sentiu dedos fortes taparem sua boca com violência. Sentiu o corpo ser
conduzido por algumas vielas e ruas mais abaixo. Atarantada, não conseguia
identificar quem a forçava seguir por aquele caminho. O coração disparava.
Debatia-se e relutava, mas não era tão forte quanto o algoz que a arrebatava pelo
caminho. A soma dos seus medos se tornava uma realidade cruel à medida que se
via percorrendo becos sinuosos e obscuros. Alguém a descobrira. Um espião de
Bernart a vira adentrar a torre abandonada. Os Vycard de Namit, seus tios, tias,
primos, as irmãs, sua mãe: todos seriam mortos por causa da idiotice que acaba de
cometer. Mas estava convicta de que ninguém a seguira até ali. Bernart havia dito e
ela não acreditou. Ele a vigiaria por onde quer que andasse. Não estava segura em
lugar nenhum.
Subitamente, estacou.
O beco era mal iluminado. Alguns lençóis encardidos esvoaçavam em um ponto
lá no alto. Dezenas de janelas quebradas subiam vertiginosamente, nos dois
edifícios ladeando a viela abandonada. Não havia uma alma viva sequer. Caixas e
mais caixas de madeira se empilhavam e se espalhavam ao redor, a maior parte
podre e coberta de musgo. Um cheiro azedo como de peixe estragado invadiu suas
narinas. As mãos fortes que a conduziram até ali soltaram seu ombro e boca e
fizeram-na ficar frente a frente com ele.
Um olhar concentrado, destilando uma cólera mal contida, fixava-se em seu
semblante castigado. O homem estranho a encarava profundamente, como se
pudesse ler o íntimo de sua alma, como se a conhecesse bem. A barba espessa e
malcuidada escondia um rosto queimado de sol e marcado por muitos cortes que
ainda pareciam cicatrizar. Havia algo de familiar naqueles olhos exalando raiva e
cansaço, mas ela não sabia o quê. Os cabelos volumosos esvoaçavam com a brisa
correndo pelo beco em que estavam, agitando também uma capa azulada que cobria
as roupas maltrapilhas utilizadas por ele.
— Zakkar?
O coração de Selena deu cambalhotas no fundo do peito quando finalmente se
deu conta de quem era o rapaz diante dela. Avançou para ele e o envolveu em um
abraço apertado. Fazia muitos meses desde que o vira pela última vez, descendo a
janela de seu quarto, no dia do ataque ao palácio. Lágrimas escorreram dos olhos e
chorou de soluçar, como uma criança distante da mãe, enquanto mantinha os
braços ao redor dele, apertando-o como se sua vida dependesse daquele abraço.
536
— Onde você estava? Por onde andou? Como veio parar aqui?
Eram inúmeras perguntas pipocando em sua mente, mas ela notou que o olhar
frívolo dele permanecia. Não retribuiu o gesto dela, sequer moveu um músculo.
Estático como estava, assim permaneceu. O mesmo Zakkar de antes se apresentava
a sua frente, por trás daquelas roupas esfarrapadas e dos cabelos e barba
desleixados, mas algo nele mudara. A expressão em seu rosto era de indiferença.
Não havia nele a mesma alegria e comoção por vê-la, depois de tanto tempo
separados. Os punhos cerrados e olhar obstinado, fitava a garota como quem
observa uma estranha.
— Eu passei muitos dias me perguntando: como você poderia saber que havia
uma conspiração no castelo? Como que, por obra do destino, teve uma ideia
mirabolante de forjar minha morte para que eu, supostamente, escapasse e caísse
diretamente nos infortúnios da Floresta Demoníaca? — A voz de Zakkar destilava
um ódio crescente enquanto ele avançava na direção de Selena. — Por vários dias
me questionava por que você não veio comigo, por que não fugiu para que
pudéssemos sobreviver. Dias depois de conseguir escapar das desventuras e
ameaças escondidas no coração da floresta, eu descubro que você ficou noiva do
único Ayarza no castelo a sobreviver ao ataque surpresa. Seria realmente muita
coincidência, não é mesmo?
Selena se afastava, pé ante pé. Os olhos estavam marejados. Agarrava-se à echarpe
com uma violência descomunal. O coração palpitava. Um aperto na garganta
impelia a guardiã a querer desabar em lágrimas, a debulhar-se em soluços audíveis
naquele beco abandonado.
— Não, Zakkar...
— Por que você não deixa de cinismo e admite? — Zakkar agarrou as mãos da
garota, vociferando em sua direção. — Você queria o poder, Selena. Queria que eu
fugisse para a morte certa, queria me ver escapar do castelo para ser emboscado no
único lugar que mais temi em toda minha vida.
Selena se derramou em lágrimas e soluços intermináveis. As palavras do guardião
não tinham qualquer fundamento. Jamais faria isso com ele pelo amor e carinho
que nutria por Zakkar. Não conseguia explicar porque chorava tanto, não conseguia
contestá-lo e dizer-lhe que estava errado, que estava sendo injusto com ela. Uma
angústia se abatia sobre ela por tudo o que o filho de Bartel achava a seu respeito.
— Zakkar, não...
— Você traiu a minha família, traiu meu pai, minha mãe. Você me traiu, Selena!
— Não, não. — Selena não conseguia se controlar — Depois de tudo o que eu
fiz por você, você não pode pensar isso de mim...
— EU TE AMEI, SELENA E VOCÊ VAI CASAR COM MEU TIO! —
berrava, ensandecido. — VOCÊ ME TRAIU!
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Desviando-se das mãos dela, Zakkar foi surpreendido por uma investida
inesperada da guardiã. Movida por um desespero irracional, a garota se lançou sobre
o colo dele e o beijou intensamente. O jovem relutou contra o ardente desejo de se
entregar à doçura dos lábios da garota. Ele tentava fugir, mas quanto mais se
esforçava, mais ela o trazia para perto, mais ela o fazia querer possui-la ali mesmo.
Esvaziando-se da cólera dominando sua razão, Zakkar finalmente se rendeu à
antiga paixão desenfreada por Selena. Enlevados pelo êxtase, misturando amor e
ódio, os dois fizeram amor às escondidas, longe dos olhares de qualquer viva alma,
naquele beco abandonado de Cruisand.
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Capítulo Quarenta e Quatro
Fúria Implacável
Uma névoa densa se agarrava às vidraças do salão. A noite ia aos poucos se
convertendo em madrugada e o frio do lado de fora pressionava os suntuosos
janelões daquele lugar incomum e isolado do restante do palácio. Diferente do dia
acalorado, cuja manhã teve picos de temperaturas bastante elevadas, o cair da noite
trouxe uma frente fria implacável e inesperada. Uma leve brisa assoprava pelas ruas
ao entardecer, convertendo-se em verdadeiras ventanias de sacudir janelas e portas
em um estralar de dedos, trazendo carregadas nuvens cinza-chumbo e, com elas, a
cerração quase palpável do lado de fora.
O ruído dos ventos assobiando pelos corredores e salões dos andares acima
invadia os ouvidos de Rudi. Calafrios esquisitos subiam por sua espinha a cada novo
barulho diferente. O jovem guardião de Elstoen se esforçava em manter a
concentração durante o treino. Não queria perturbar ninguém com seu treinamento
e preferiu buscar um ambiente afastado de tudo e todos. Encontrou um local do
outro lado do castelo. Era um grande salão que parecia um dia ter sido um solário.
Enormes vidraças ornamentadas cobriam o teto alto e as paredes eram de pedra
fria, com grandes janelões. Alguém um dia se arrependeu do solário e quis
transformar o lugar em uma espécie de estufa — e por fim, desistiu, pois nem
plantas havia por ali, só um bocado de vasos empilhados a um canto.
As lembranças da última prova do Ano da Elegibilidade não permitiam que ele
focasse no treino solitário, enfurnado no aposento mais distante do palacete do
governador de Cruisand. Depois de ter visto seu nome figurar entre os favoritos a
ganhador dos eventos, após terminar em segundo lugar na primeira prova, viveu
um inferno astral quando o segundo evento em Paragon chegou ao fim. Ogros e
Gigantes de terra. Malditos monstros elementais. Quase o trucidaram na arena. Não
era um ou dois, eram hordas, legiões de monstros se assomando sem parar. E que
vexame teve de passar, diante de uma multidão de espectadores. As energias se
esgotavam conforme mais e mais criaturas das trevas avançavam em sua direção.
Pôs-se a correr pelo gramado, em dado momento, para não ser atingido pelas clavas
enormes dos gigantes. Ainda bem que conseguiu reunir o pouco de força que lhe
restava para vencer os oponentes. Ficara em terceiro lugar no ranking geral. Mas o
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espanto absoluto ainda o abraçava quando recordava de Petr Bravior, o Guardião
de Anlevor, e sua incrível força. O garoto de treze anos não só desbaratou um
exército de gnolls de gelo em poucos segundos, com uma habilidade e destreza
assombrosa, como também aniquilou uma Hidra monstruosa, fazendo uma magia
que nem ele mesmo sabia ser possível. Ivyna fora a segunda colocada, mas ainda
assim, com muito tempo de diferença entre ela e Petr e suando bastante para
derrotar uma matilha infernal de cérberos de fogo.
Rudi comprimiu os olhos na direção do alvo. Um soldado de madeira o encarava
com olhares desenhados à tinta no lado oposto do salão inóspito. Agitando os
dedos em movimentos circulares, ele fez uma esfera elemental surgir. Continuou
sua técnica até a esfera se avolumar e triplicar seu tamanho. Movendo os braços
rapidamente, a bola mágica desprendeu-se de suas mãos e voou em direção ao alvo.
O boneco de madeira foi atingido em cheio na cabeça, explodindo com o impacto
do poder.
— Preciso ser mais rápido — sibilou Rudi, remontando o soldado de madeira
com seu poder.
Um plic-plic e ploc-ploc reverberou pelo interior do salão. Rudi não deu muita bola.
Com a densa cerração dominando os céus do lado de fora e os ventos impetuosos
sacudindo as vidraças, era de se esperar que logo, logo uma chuva torrencial
desabasse. O dia fora muito quente e o vapor das ruas iria naturalmente retornar a
elas em forma de gotas pesadas. Ao menos os ruídos fantasmagóricos nos andares
superiores seriam abafados pela chuva forte. Arqueando as pernas e agitando outra
vez os braços, sob o barulho ensurdecedor no teto, ele se preparou para um golpe
que tinha de ser mais forte e mais rápido.
O estardalhaço de uma janela estilhaçada fez Rudi imediatamente se sobressaltar.
A chuva pelo jeito estava mais forte do que imaginara. Seria granizo caindo do céu?
O calor do dia fora realmente exorbitante e pelo visto a chuva se convertia em
geada. Outra janela quebrou e na sequência mais uma e logo outra. Correndo para
poder se abrigar de pedaços de vidro ou pedras de gelo, ele levantou a cabeça para
contemplar quais vidraças tinham se partido.
Arregalando os olhos, Rudi percebeu que não estava chovendo. Não era gelo ou
água caindo do teto de vidro em sua direção. Centenas de envelopes pardos
desabavam do alto e se espalhavam pelo piso. Papéis amarelados e mágicos
eclodiam dos janelões ao redor, explodindo as vidraças, como uma cascata
poderosa a jorrar. Milhares de envelopes misteriosos inundavam o lugar,
empilhando-se e cobrindo cada centímetro do salão.
Caminhando desconfiado, o guardião esticou a mão e arrebatou uma das cartas
do chão. Abriu a aba cumprida e puxou de dentro um pedaço de papel
esbranquiçado com uma instrução categórica escrita em uma tinta espessa e
escarlate. Lançando envelope para longe, agarrou outra carta e repetiu o gesto,
540
puxando o papel de dentro para averiguar. A mesma mensagem se exibia com a
mesma tinta e da mesma cor. Tornou a abrir outra carta e depois mais uma.
As palavras se repetiam em todas elas. Escritas de forma pressurosa e desleixada,
como se pintadas a dedo naqueles pedaços de papel, elas emitiam uma ordem
expressa:
Saia do Salão imediatamente.
Siga até o corredor ao lado.
Aguarde.
Ofegando descompassadamente, o jovem Wullith amassou a carta com a mão,
desconfiado e temeroso. Sob torrentes de envelopes incessantes invadindo o salão,
ele seguiu passo a passo, caminhando em direção ao vão lateral, a única passagem
até ali.
O corredor estava vazio e as chamas das lamparinas ao longo de sua extensão o
tornavam mais lúgubre e funesto do que ele era. Os olhos comprimidos naquela
direção e o coração acelerado, dando cambalhotas no fundo do peito, Rudi não
parava de amassar o envelope entre os dedos, aguardando uma surpresa inoportuna
a qualquer momento.
Em meio às sombras posteriores ao último archote do corredor, um olhar frívolo
surgiu. Rudi vira inúmeras vezes aquele par de olhos, mas nunca com tanta cólera
e fúria impressa neles. A fraca luz emanando no final do corredor revelava uma
silhueta misteriosa e empertigada, de alguém que ele conhecia muito bem. A visão
o fez estremecer no mesmo instante. Não poderia ser realidade. Não podia estar
vendo o que estava vendo. Vegor, o irmão mais velho e fugitivo de Candorn, a
quem não via há meses, se apresentava envolto pela escuridão avassaladora do lado
oposto ao que estava.
Apertou o papel entre os dedos até a carta se esfarelar completamente. Rudi
mantinha os olhos pregados na figura oculta do próprio irmão, estacado do lado
do vão, envolto pelas trevas da alta madrugada. Caminhou lentamente, ouvindo os
pés reverberarem os sapatos pelo piso de chão áspero. Vegor permanecia imóvel,
mas os olhos diabólicos, destilando um veneno mortal continuavam vidrados nele.
— Vegor?
A voz de Rudi ecoou pelo interior do corredor. No silêncio da madrugada,
interrompido pelo barulho ensurdecedor das cartas a proliferar no salão contíguo,
o timbre do jovem soou lúgubre, mas temerário. Avançando vagarosamente em
direção ao irmão que ainda o encarava, os passos do guardião foram interrompidos
de súbito e ele se sobressaltou outra vez.
Um corpo pendeu do teto e caiu de borco bem na frente de Rudi. Enrolado em
um pano de saco, apresentava grandes marcas escarlates pelo tórax que ele
541
reconheceu de imediato como sendo sangue da vítima. Correndo para acudir o
homem, ele virou-o de barriga para cima e tomou um susto. Conhecia aquele
indivíduo, amarrado por grossas tiras de um tecido áspero e marcado por sangue.
Atarracado, de rosto macilento e pálido, sem o brilho característico de seus olhos
azuis, cuja vida fora arrancada sem misericórdia, aquele era o rei de Anvor-Elíada,
Lorde Hagar-Evon.
Rudi ergueu a cabeça, atarantado. Entre as sombras do corredor, a figura de seu
irmão havia desaparecido na calada da noite. Contemplando o corpo moribundo
de Lorde Hagar-Evon, ele percebeu um novo envelope, preso na altura do peito
do homem morto. Puxou-o depressa e abriu-o. A ficha então caiu e ele foi tomado
por um terror sem precedentes. As cartas invadindo o salão onde treinava e o
bilhete preso no peito do rei de Anvor-Elíada não estavam escritas com tinta
vermelha. Era sangue da vítima. Foram escritas de forma pressurosa para atingir
com impacto exacerbado o principal alvo de Vegor. Movido pela inveja, o irmão
mais velho ultrapassara todos os limites da loucura, tomado por um desejo
irracional de vingança particular por não ter sido escolhido como Guardião de
Elstoen.
Assombrado com aquela visão, Rudi pregou os olhos na mensagem soturna da
carta. Com letras marcadas por sangue ainda fresco, o pedaço de papel era
categórico, com uma assinatura confirmando seus maiores temores quanto ao
responsável por tal crime hediondo:
A paz e a harmonia em Elstoen estão ameaçadas.
A partir de agora, você saberá o que é ter medo.
Provará do veneno destilado por mim.
Minha fúria não se aplacará.
Vegor.
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Capítulo Quarenta e Cinco
Liderança
Cruinsand pulsava.
Nunca antes, na história recente de Eirin, um evento moveu tantas pessoas, tantas
nações e tantas raças distintas como o Ano da Elegibilidade. Centenas de milhares
de pessoas tomavam as ruas da cidade-mágica e se acotovelavam por todo canto,
para conseguirem, de qualquer forma, acompanhar aquele que seria o último teste
dos novos Guardiões. Cambistas com os ingressos remanescentes nas mãos eram
atacados por uma aglomeração de homens, anões, duendes e elfos numa tentativa
de garantir algum lugar disponível na grandiosa arena montada nos arredores do
centro da cidade, bem ao lado do palácio do governador. Apostadores faturavam
uma boa quantidade de ouro e sofriam com o câmbio de turistas que tentavam
trocar suas moedas para fazer uma fé no oponente favorito. Bonecos costurados à
mão de leões, fênix, cavalos alados, harpias e grifos desfilavam pelas barracas
montadas e as cores das nações-guardiãs pintavam as vestes dos torcedores
amontoados sobre as arquibancadas. Feitiços e magias enfeitavam os céus, exibindo
ao lado dos fogos de artifício o rosto e silhueta dos concorrentes do último evento.
Alquimestres convertiam labaredas de fogo nos animais dos reinos e os faziam
correr e saltar pelos ares, por toda extensão da arena. O frenesi tomara conta de
todos, no derradeiro desafio que finalmente definiria o grande campeão do Ano da
Elegibilidade e o líder do Círculo dos Cinco.
Moronov era todo sorrisos sobre o pináculo da tribuna mais requintada e
destacada da arena. Nunca vira tanta gente assim, em harmonia, extasiada com um
evento do Conselho dos Guardiões. Os cinco continentes se mobilizaram para
acompanhar os três desafios. Os portos das principais cidades-mágicas e até de
reinos próximos de Eurodian não comportavam mais tantos navios e embarcações
espremidas uma do lado da outra e pagavam altas quantias para garantir a vaga no
píer em que estavam. Todos faturavam de alguma forma. Aguardando para
anunciar o início do último desafio, o Chanceler dos Guardiões sentia as maçãs do
rosto doerem, de tanto exibir os dentes. Notou os humores diferentes de
Zanotchka e Stanhorne. Jamais vira Salazar sorrindo como o fazia desde a primeira
prova, em Gradia. Haviam, afinal, conquistado a harmonia das nações, a paz entre
543
todos os reinos que tanto almejavam. Mas algo ainda perturbava sua paz interior,
embora Moronov fizesse questão de fingir que tudo estava muito bem, obrigado.
A comitiva de sacramentadores que partira de Zavir, escoltada pela Confraria de
alquimestres, não havia retornado. Deveriam ter regressado, pelas suas contas,
antes do segundo evento e, conforme combinado, se encontrariam em Paragon
para acertar os pagamentos e decidir os próximos passos em Purysia. Nenhuma
notícia desde então. Embora se esforçasse para disfarçar, a preocupação com este
tema lançava sobre ele uma sombra de desespero. Combinara havia alguns meses,
ainda em Gradia, com Salazar e Hamm que cada um deveria resolver três assuntos
pendentes. A questão de Purysia era uma missão particular sua. Não poderia — e
tampouco gostaria — de deixar este tema sem uma resposta concreta. Ao término
do Ano da Elegibilidade, ele sabia, Stanhorne o confrontaria. E Salazar, apesar de
sereno, era implacável. Se considerasse um assunto não encerrado como ele queria,
tomava as rédeas da situação sem titubear. Decidido, não iria esperar o líder do
Conselho interrogá-lo, tomaria as medidas cabíveis tão logo a última prova
acabasse, antes que fosse questionado sobre o assunto e pego sem as devidas
respostas.
A poucos metros de distância da tribuna de honra do Conselho, Heidlich
esfregava as mãos uma na outra com intensidade. O nervosismo teimava em tentar
se apossar de seu corpo. Inclinado sobre a cadeira, colocara a coroa real em cima
do parapeito da tribuna. Alternava os olhares com redobrada atenção no brilho
coruscante de sua própria coroa e também para o portão de acesso por onde Ivyna
logo sairia para encarar o derradeiro desafio. Vez ou outra, lançava olhares de
esguelha para sua mãe, à direita. Ela não falava com ele desde o Torneio da
Academia. A decisão de última hora em permitir Ivyna desafiar o campeão a deixara
furiosa. Não era isto que haviam combinado, mas ele achou por bem deixar a irmã
seguir com seus sonhos. Saíra da arena em Badorian no mesmo instante e desde
então o ignorava. Atravessaram Eurodian até Gradia sem que ela lhe dirigisse a
palavra. Havia uma única questão intrigante que perturbava sua paz, contudo, desde
seu regresso à Suntuosa Badorian e à intimação a assentar sobre o Trono Branco
que um dia fora de seu pai. Uma questão tirava seu sono e o fazia passar noites em
claro, contemplando as terras serenas do reino, caminhando pelos corredores do
castelo e pelas ameias, vislumbrando o extenso horizonte, as matas e cadeias de
montanhas: haveria um propósito em sua vida? Nos últimos dias, desde a revelação
estarrecedora que abalou as estruturas do relacionamento com a mãe, passou a
pensar ainda mais no assunto. Jamais se conectou à própria família, jamais quis
sentar sobre o trono e governar uma nação. Nunca foi uma unanimidade como
realeza. Era o Guardião de Eurodian e foi assim por vinte ciclos. Não viu a irmã
crescer, embora o relacionamento entre ambos tenha florescido de um jeito
magnífico. Não se assentou à mesa com o pai para tomar um café em um fim de
544
tarde. Nunca brincou com os primos mais novos. A vida que aprendeu a amar era
aquela em que sua própria pele estava em risco a todo instante. A vida que amava
de verdade era a de enfrentar krakens, matar monstros e bestiais nas florestas
escusas dos lugares mais remotos do continente. Era aficionado em investigar e
perseguir mercenários, anarquistas e ladinos. A paixão que o fazia sentir-se vivo
estava em bons duelos e lutas com homens sanguinários e cruéis, ameaçando vidas
inocentes. Assentar sobre o trono e governar uma nação estava sendo a mais difícil
das tarefas de sua carreira. Ao longo de toda a sua jornada, sempre buscou um
propósito na vida. Sabia que, mesmo nas maiores enrascadas, havia um porquê,
havia um objetivo altruísta o impelindo a continuar, mesmo quando a esperança
parecia ter se esgotado. Mas, naquele momento, tendo de conviver com a revelação
execrável de uma traição de sua mãe, despedaçando a imagem de admiração que
sentia por ela e ainda precisando ocultar esse segredo de todos, governando um
reino em que não se sentia parte, pertencendo a uma corte onde se sentia excluído,
encarava um inimigo sem braços ou pernas, sem armas ou armaduras que o
derrotava dia após dia. A cada novo amanhecer, a pergunta era sempre a mesma:
qual é o propósito disso tudo?
Uma trombeta retumbou. Sonora e audível, o barulho ensurdecedor do
instrumento reboou pelos ares das arquibancadas e forçou as multidões de
espectadores a se calarem. Fogos de artifício, buzinas, chocalhos e o vozerio do
povo ao longo da arena emudeceu de imediato. Terminando de enfaixar as mãos,
Rudi aguardava solitário em sua cabine. Quando o silêncio invadiu seus ouvidos
abruptamente, ele se colocou de pé. Atônito, aguardava o pronunciamento de
Lorde Moronov, convocando os cinco para o derradeiro evento do Ano da
Elegibilidade. Dali, finalmente, sairia o grande vencedor e o mais novo líder dos
cinco protetores do mundo. Não tinha muita esperança de conquistar este último
desafio, mas faria o que fosse possível para demonstrar seu poder e ficar pelo
menos entre os três primeiros colocados. Era o evento de Liderança e ele ainda não
tinha muita certeza de como seria essa prova. Os acontecimentos de dois dias antes
ainda o atormentavam. Os olhos frívolos de Vegor, encarando-o em meio à
escuridão, lhe causavam calafrios. Avançando para a entrada da arena, notou que a
porta continuava trancada. Estendida sobre uma parede, a flâmula da Virtuosa
Candorn, com os tons verde e prata e o majestoso Corcel Alado o encarava.
Respirou fundo e apertou os dedos, fechando o punho. Seria oficialmente o
protetor de seu continente depois deste dia. Uma autoridade máxima com a missão
de defender a honra, a paz e a harmonia de todos os oito reinos de Elstoen. E se
Vegor acreditava que poderia ameaçá-lo ou a qualquer outro de seu continente,
então ele teria de enfrentá-lo. Se era guerra o que seu irmão queria, era guerra que
ele teria. A pequena e estreita porta se abriu de repente e dela saiu um rapaz
esgalgado com roupas elegantes e a insígnia do Conselho cravada no peito.
545
— Lorde Rudi Wullith?
— Sim? — inquiriu Rudi.
— Siga-me, por favor — continuou o rapaz, controlando o nervosismo —
Preciso que se reúna à sua equipe.
— Equipe?
À primeira vista, Ivyna parecia não acreditar muito no que acabara de ouvir. A
moça designada pelo Conselho abriu uma porta e a conduzia por um corredor. A
guardiã não ouvia mais os ruídos tresloucados das multidões, mas, ao longe, podia
escutar um zumbido que lembrava muito a voz de Moronov falando. Se ele estava
passando instruções, ela não acompanhava. Continuava seguindo a jovem de preto,
avançando lentamente por um corredor escuro. A última prova, pelo que sabia, era
de Liderança e passou muitos dias se perguntando como esse evento seria. Teria de
liderar uma equipe, aparentemente. Mas contra o quê? O que o Conselho estaria
preparando desta vez? A prova de Força fora dificílima e vira Petr ganhá-la
disparado, com tamanha facilidade e uma demonstração de poder impressionante.
Sendo filho de quem era, não fora tanta surpresa vê-lo sair vencedor daquele
desafio.
— Petr?
— Ivyna?
As portas da sala oval foram se abrindo. Os integrantes da equipe surgiam aos
poucos, guiados por representantes do Conselho, que tão logo entravam por uma
porta, saíam por outra. Revelando uma expressão embasbacada, cada novo
membro do time fitava as caretas surpresas uns dos outros.
— Rudi?
— Louk?
— Guilloch?
— Então — Ivyna não escondia a surpresa no rosto — vocês são... a equipe? Ou
estão esperando a equipe de vocês?
— Acho que é bem óbvio, não? — crocitou Louk, tão estupefato quanto os
demais, observando as portas por onde vieram todas fechadas. — Se os homens de
preto aí falaram que íamos conhecer a equipe. E, bem, não estou vendo mais
ninguém além de nós mesmos.
— Mas... este não é um teste de Liderança? — inquiriu Rudi, olhando de Louk
para Ivyna. — Se somos uma equipe, quem irá... bem... liderar?
— Também não é óbvio? — questionou Louk, como se fosse realmente óbvio.
A expressão confusa no rosto dos outros quatro guardiões denotava que não era
tão evidente assim quanto ele achava.
— Não, não é óbvio — grunhiu Guilloch, bufando — Quem vai ser o líder,
cabelo-de-fogo?
— Cabelo-de-fogo é a múmia da tua mãe!
546
— Tua mãe que é a...
— Não põe a mãe no meio, que eu ponho no meio da tua!
— Você começou, seu ani...
— Meninos, por favor!
— Ok. — Louk se recompôs, lançando um olhar de desprezo para Guilloch. —
Não é óbvio que o mais velho sempre lidera? E quem é o mais velho de todos aqui?
— E onde está escrito que o mais velho lidera? — interrogou Rudi, cruzando os
braços. — Não recebi nenhum manual dizendo isto...
— Ora, pois — falou Louk, enfezado. — Não precisa de manual para saber isso.
É de conhecimento tácito que o mais velho sempre lidera. Veja no próprio
Conselho. Quem é o mais velho?
— Moronov.
— É?
— Sério? Lorde Zanotchka parece muito mais velho...
— É porque vocês não conhecem tio Golmir, esse sim é velho.
— Gente, por favor, foco aqui.
Um pigarro repentino interrompeu a discussão sem pé nem cabeça dos cinco
guardiões na sala oval. Ninguém reparara, mas Salazar Stanhorne adentrara o
recinto e, com sua cara insípida de sempre, andando devagar, aguardava
pacientemente o término da discussão. Era a primeira vez que Petr não o via de
preto e nem com a mesma roupa. Trajava vestes douradas elegantes e transmitia a
autoridade de sempre.
— Boa tarde, senhores e senhorita — cumprimentou Stanhorne, com sua voz
grave e firme de sempre e arriscou um sorriso. — Este é o último desafio do Ano
da Elegibilidade. Até o momento, vocês desempenharam muito bem ao longo dos
dois primeiros eventos, em Gradia e Paragon, respectivamente. Eu os parabenizo
pela brilhante atuação até aqui.
Guilloch puxou uma salva de palmas, seguido pelos demais. Ivyna tinha lá suas
dúvidas se o Guardião de Aladar era digno de congratulações. Fracassara nos dois
primeiros testes e era o último colocado, com uma atuação pífia. Lorde Salazar
devia estar querendo fazer média com todos, independentemente de suas posições
no ranking.
— Lorde Salazar, — Rudi se adiantou, erguendo uma mão — bem, nós
queríamos saber quem será o líder, já que é um teste de liderança. Isto não está
muito claro para nós.
— Claro, Sr. Rudi. Chegaremos ao cerne desta questão. Como vocês sabem, este
é o teste de Liderança — continuou Salazar, segurando as mãos à frente do corpo.
— Solicitamos que nossos cooperadores os trouxessem até aqui para que pudessem
se unir. Vocês enfrentarão um desafio ímpar, visando colocar à prova não somente
o espírito de liderança de vocês, mas algo muito acima disto. Não dá para ser um
547
líder se você não tiver liderados. Não é possível ser líder, sem que antes haja um
time. Vocês conhecem a diferença entre grupo e time?
Guilloch balançou efusivamente a cabeça, como se a resposta fosse notória. Petr,
Rudi e Louk lançaram olhares de desdém para ele. Ivyna não tirava os olhos de
Salazar — muito mais pela ansiedade do que por interesse em suas palavras. Queria
logo uma explicação sobre o que iriam enfrentar e autorizasse a entrada na arena.
— Por que não responde, marrentinho? — perguntou Louk, virando-se para
Guilloch.
O protetor de Aladar fez um muxoxo e fuzilou o Guardião de Amistelar com os
olhos.
— Um grupo é um monte de pessoas aleatórias e um time, bem... é um grupo...
unido?
Salazar esboçou o que pareceu aos cinco um sorriso. Embora Petr não tivesse
tanta certeza se fora um sorriso ou uma careta insatisfeita.
— Um time se completa — proferiu Stanhorne. — Um time luta junto.
Começam e terminam juntos. Um time dá a vida se for preciso. Antes que queiram
ser líderes, sejam um time. Pois, se adentrarem esta arena querendo ser o mais
importante, querendo liderar sem antes serem um time, vocês certamente irão
fracassar.
Um ruído contínuo como de uma trombeta ribombou dentro da sala oval. Uma
das portas se abriu lentamente e a brisa da tarde invadiu as narinas dos cinco
guardiões. Salazar sorriu uma última vez e desejou um tímido “boa sorte”, antes de
desaparecer em uma nuvem misteriosa.
As multidões enlouquecidas voltaram a berrar sobre as arquibancadas e o clima
de festa invadiu os ares externos da poderosa arena. A música animada de uma
banda marcial tocou em um canto, unindo-se aos silvos agudos dos fogos de
artifício explodindo pelo céu azul sem nuvens. Petr, Rudi, Guilloch, Louk e Ivyna
deram alguns passos para trás até que esbarraram uns nos outros, engolfados pela
atmosfera eletrizante dominando o lugar. A guardiã nunca vira nada assim. Nem
em Gradia e tampouco em Paragon, pessoas de todos os tipos e raças se
aglomeravam de forma assustadora. Havia anões formando pirâmides de gente.
Elfos e duendes se espremiam ao lado de humanos e anões para conseguir
contemplar o cerne do espetáculo. Embevecida com a grandiosidade do último
evento, ela foi a primeira a notar o que se espalhava pela arena.
— Senhoras e senhores, homens, mulheres, elfos, anões, duendes, centauros,
mágicos e não-mágicos, cidadãos dos quatro cantos de Eirin, eu lhes anuncio o
Círculo dos Cinco!
Uma saraivada de fogos de artifício explodiu com vigor sobre os céus em uma
miscelânea de variadas cores. Palmas expansivas encheram os ares acalorados do
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começo da tarde, unindo-se às sonoras melodias incessantes da orquestra.
Aplaudindo acima da própria cabeça, Moronov escancarava um largo sorriso na
tribuna principal. O carão vermelho se abria em inúmeras rugas, ao lado de um
sorridente, porém um tanto tímido, Salazar Stanhorne, que rapidamente se unira à
trindade principal do Conselho. Zanotchka era o único a não mostrar os dentes,
mas aplaudia com bastante intensidade.
— Afinal, Salazar falou, falou e não disse nada — berrava Louk e cutucava Ivyna,
tentando fazer a jovem ouvi-lo. — Quem é que vai liderar esse grupo?
— Grupo, não. Time! — crocitou Rudi, alertando Louk que ouvira sua pergunta.
— Ah, vai se ferrar, moleque — respondeu Louk. — Vem com essa baboseira
de time. Ainda acho que eu devia tomar as rédeas da situação.
— Eu te quebro aqui mesmo, seu metido! — exclamou Rudi, furioso — Tá
achando que porque estamos na arena, que eu não te meto a mão?
— Gente, será que podemos parar de brigar só por um minuto? — questionou
Petr, dando um coice nos dois.
— Vocês já repararam no que tem ao redor da arena?
Ivyna estava absorta esse tempo todo e não era à toa. Enxergara algo que nenhum
dos outros quatro aparentemente vira, diante da admiração com as arquibancadas
apinhadas de gente. Cinco bandeiras foram hasteadas e se espalhavam por toda a
extensão da arena. Elas reluziam nas cores dos cinco reinos-guardiões e eram
protegidas por uma espécie de cortina vermelha. Estavam afixadas em pontos
distintos, com uma boa distância entre elas.
— Bandeiras?
— O que isso tem a ver com liderança?
— Estimados espectadores, — A voz de Moronov se sobrepôs às músicas,
palmas, fogos e ao vozerio generalizado e todos pararam para prestar atenção à sua
fala — o derradeiro teste se iniciará. Cinco flâmulas contendo o Leão, a Harpia, o
Grifo, a Fênix e o Corcel estão espalhadas estrategicamente. O mais novo Círculo
dos Cinco, presente sobre o gramado, terá de provar não apenas a liderança em
uma situação de perigo, mas a unidade de um verdadeiro time. Como uma equipe
unida, pronta para encarar o verdadeiro desafio, os cinco guardiões terão de
capturar o máximo de bandeiras até que o tempo limite seja atingido.
— Mas que raios de teste de liderança é esse? — sibilou Louk, confuso.
— Capturar a bandeira? — questionou Petr — Vai ser moleza.
— Contudo, não se enganem — prosseguiu Moronov, com os milhares de pares
de olhos e ouvidos atentos às suas palavras. — Haverá obstáculos para que o
Círculo dos Cinco consiga conquistar os territórios e capture cada flâmula.
— Acho que falei cedo demais... — murmurou Petr.
Uma a uma, desbaratando o clima de mistério, as cortinas foram se abrindo. Ao
redor de cada mastro, figuras hostis se apresentavam. Como legiões de soldados,
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empunhavam lanças, espadas, arcos e flechas, escudos, porretes, machados.
Chamas elementais, pequenos ciclones e chicotes de terra também surgiam. Não
iam encarar criaturas elementais desta vez. Eram guerreiros de carne e osso,
dispostos a enfrentá-los na disputa por território. Posicionavam-se em defesa de
seus estandartes, prontos para lutarem, até às últimas consequências.
— Os melhores guerreiros foram trazidos de cada um dos continentes para
defenderem suas posições — falava Moronov, a animação incontida em cada
palavra proferida. — Diretamente de Eurodian, a Liga das Lâminas resistirá até o
fim para proteger a flâmula da Suntuosa Badorian. As magníficas terras de
Mondrária enviaram a Antiga Aliança Maestral, com os mais poderosos mestres
mágicos de Elstoen. Eles defenderão o território que compreende a bandeira da
Virtuosa Candorn. Altruístas e ávidos guerreiros, as Águias Chispantes vão proteger
a Fênix Indomável da Intrépida Miliat. A Ordem Ancestral dos Impávidos
Alquimestres de Aamiz vai encarar o desafio de proteger o território com a flâmula
da Harpia Voraz, pela honra da Serena Snartria. Por fim e não menos importante,
o Concílio de Frandar atendeu ao desafio e protegerá a bandeira do Leão Indômito,
da Austera Amistelar.
— Ok — balbuciou Louk após as palavras de Moronov. — Um pique-bandeira,
mas... o que isso tem a ver com liderança?
— Olha, Louk — proferiu Ivyna, impaciente. — Se você quer tanto liderar, então
lidera. Isso vai te deixar feliz? Então, fa...
Um silvo longo e estrondoso apitou, interrompendo as palavras da jovem ruiva.
Uivando contra os céus, uma parte dos guerreiros da Liga das Lâminas, da Aliança
Maestral, das Águias Chispantes, da Ordem Ancestral e do Concílio de Frandar
avançou até onde os cinco permaneciam estatelados. A outra parte continuava em
seus postos, guarnecendo os territórios. Vislumbrando os soldados correndo pela
arena precipitadamente, Moronov atirou uma magia contra os céus, dando início,
enfim, ao desafio.
— Que comece o último evento!
A voz com uma leve pontada de rouquidão de Lorde Moronov desapareceu em
meio aos gritos ensandecidos da plateia pululante. O chão vibrava com a força das
multidões saltitando sobre as arquibancadas, balançando bandeiras e gritando sem
parar. Assim como estavam, os cinco guardiões permaneceram. Comprimidos uns
nos outros, fitavam os guerreiros diminuindo a distância entre os pontos com as
bandeiras e eles, na iminência de golpeá-los com suas armas e magias.
— Vamos, líder — proferiu Rudi, debochado — Lidere!
Louk estremeceu onde estava. Não conseguia mover um músculo na dianteira do
grupo. A consciência avassaladora pesava em seu interior de que não era tão bom
assim quando tinha de trabalhar sob pressão. Contemplava os rostos carregados de
ódio e obstinação, avançando pela arena, com espadas, lanças e machados prontos
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para acertá-lo e fazer dele picadinho. Lá no fundo de sua alma, se questionava o
que essa prova tinha de ligação com o tema liderança. Parecia mais uma brincadeira
de criança convertida em um assassinato sádico e exibicionista para agradar uma
multidão tresloucada, sedenta por sangue e diversão. Que tipo de evento louco era
esse do Conselho, colocando guerreiros profissionais, com muitos ciclos de
vivência em combate, contra um bando de jovens guardiões inexperientes. O
arrependimento por ter voltado à casa dos pais e aceitado essa missão pulsava e
gritava em seu âmago.
— ESCUDO DE GELO, AGORA!
O grito de Ivyna ribombou na arena. Sem titubear, Rudi, Petr e Ivyna conjuraram
uma barreira de gelo no mesmo instante. Uma saraivada de flechas flamejantes
descreveu uma parábola no ar e cravou sobre o escudo mágico com estrépito.
Como uma chuva de granizo pesada, os vetores incandescentes se agarravam à
abóbada congelada protegendo os cinco.
— Parabéns, líder — falou Rudi, exasperado. — Tá liderando para caramba,
hein?
— Rudi, agora não é o momento — falou Petr, aumentando o revestimento de
gelo sobre o escudo. — Lembra do que o Cara de Co... o Salazar falou. Somos um
time!
Louk voltou à realidade, interrompida pelos devaneios provocados pelos próprios
medos. Imaginava que liderar um bando de garotos mais jovens do que ele seria
moleza. Mas, na prática, a situação era bem diferente. Ivyna, Rudi e Petr resistiam
às muitas flechas incessantes, pipocando sobre o escudo. Guilloch se esforçava para
conjurar uma estalactite de gelo, mas somente fagulhas esbranquiçadas emanavam
das pontas de seus dedos. Era difícil acreditar que a famosa Miliat houvesse mesmo
escolhido esse cara.
— Confesso que não entendo o que está acontecendo — proferiu Guilloch,
olhando os próprios dedos, vermelho como um pimentão maduro.
— Eu sei o que está acontecendo — falou Ivyna, perdendo a paciência. — Você
precisa treinar mais!
— Como que é, fedelha?
— É isso mesmo que você ouviu. Você é o Guardião de Aladar. Tem noção do
peso de sua responsabilidade? Desde que o Ano da Elegibilidade começou, você
figura na última posição. Nunca conseguiu ficar sequer entre os três primeiros.
— Isso é verdade — inferiu Petr.
— E ainda saiu desmaiado lá de Paragon — acrescentou Rudi. — Eu até achei
que você ia morrer, de verdade.
— Vocês só podem estar...
— Cara, vai por mim — falou Louk, colocando a mão no ombro de Guilloch —
a ruivinha aí tem razão: você é ridículo.
551
— Ei!
— Não era isso que eu queria dizer, Guilloch — falou Ivyna, lançando um olhar
irritado para Louk. — Você talvez tenha potencial, mas tem que treinar. Não
adianta achar que por ter o título de Guardião, vai ter todo o poder mágico e não
precisa praticar.
— Pessoal, será que dá para gente parar com essa sessão de autoajuda e voltar
para o que realmente importa? — questionou Rudi — Não dá para ficar o resto do
dia aqui, tomando flechada.
— Concordo — falou Petr. — O que a gente faz, Ivyna?
— Eu? — perguntou Ivyna, sentindo-se um tanto nervosa — O Louk não era o
líder?
— Não, Senhorita Espertinha — proferiu Louk, ajudando a revestir o escudo
com mais gelo. — Talvez seja melhor você dizer o que devemos fazer. Afinal, você
pensou rápido nesse escudo protetor. Se você falhar e não morrermos, obviamente,
a gente alterna o cargo de líder. Acho que deve ser isso o que eles tanto querem
nesse teste imbecil.
Quatro pares de olhos miraram em Ivyna e ela se sentiu desconfortável. Nunca
teve a oportunidade de liderar nada. Nem nas brincadeiras de ciranda, pique ou de
corda com as primas e amigas no palácio a deixavam ser a líder. Jamais tivera essa
pretensão também. Sequer almejou ser rainha um dia. Não tinha essa aspiração.
Gostava das coisas como eram, sem ter o fardo de governar algo sobre as costas.
Mas, naquele instante, era a primeira vez que alguém lhe dava o bastão do poder e
em uma circunstância bastante urgente. Quatro guardiões de outras partes do
mundo contemplavam-na, bem no fundo dos olhos, ansiando pelos próximos
passos que deveriam dar.
— As flechas estão vindo sem parar das Águias Chispantes, à nossa extremadireita.
À esquerda, a Liga das Lâminas protege a bandeira de Eurodian. Eu os
conheço. Eles não são mágicos, mas tem muita habilidade com espadas e outras
lâminas distintas. Petr, você acha que consegue segurar esse escudo, enquanto Rudi,
Louk e eu avançamos até a Liga?
Petr assentiu.
— Mas e quanto a mim? — questionou Guilloch, irritadiço.
— Você fica quietinho e segue os adultos, tá bem, bebê?
— Não, Louk. Para. Isso não é hora para piadas.
— Desculpa, é mais forte do que eu.
— Certo, Guilloch. Me escuta. — Ivyna até tentava encontrar uma função para
Guilloch, mas, diante da situação, não conseguia pensar em nada. — Venha
conosco e... atire bolas de fogo em qualquer coisa que tente nos acertar.
O escudo de gelo explodiu em uma onda eletrizante, fazendo as flechas
elementais se esfarelarem. Petr agitou os braços com destreza e um paredão de gelo
552
translúcido surgiu sobre a arena, bloqueando as outras flechas e lanças voando a
esmo em sua direção. Avançando pela tangente, Louk, Rudi e Ivyna assumiam a
dianteira, correndo para o território onde a Liga das Lâminas estava. Os
espadachins e lanceiros de lá deixaram suas posições e prosseguiram para encarar
os três guardiões que disparavam magias de todos os tipos. Balançando suas lâminas
mágicas com sagacidade, desviavam e cortavam feitiços como quem fatia uma
salada de frutas e não paravam de arremessar pequenas adagas na direção deles.
— Eu achei que eles não tinham poderes mágicos! — exclamou Louk para Ivyna,
disparando esferas incandescentes que eram partidas ao meio pelos integrantes da
Liga.
— Eles não têm — respondeu Ivyna, lançando rajadas de gelo que se espatifavam
nas adagas e caíam sobre o chão. — Mas as lâminas, pelo jeito, sim.
— Genial a sua ideia de encará-los primeiro, hein? — crocitou Louk, em tom de
deboche — Brilhante mesmo. Parabéns. Acho até que...
— Ah, cala essa boca, Louk — falou Rudi, exasperado — Ivyna, o que faremos?
Uma ideia ocorreu a Ivyna de súbito. Disparando torpedos congelados sem
cessar, deu por si que essa não era a melhor estratégia. As lâminas podiam estar
somente protegidas, revestidas com feitiços e runas antigas para poder se blindar
de magias mais poderosas. Mas será que elas resistiriam a um fogo elemental
conjugado? Torcendo para sua tática dar certo, Ivyna parou a alguns metros de ser
acertada pelos guerreiros da Liga.
— Rápido, conjurem fogo máximo vermelho.
Rudi e Louk derraparam pela arena, absorvendo as palavras de Ivyna.
— O quê? — inquiriu Rudi, mas uma luz parecia ter acendido em sua cabeça. —
Claro, ótima ideia!
Louk correu até a jovem ruiva e colou as palmas de suas mãos abertas nas de
Ivyna.
— Sabe que se as lâminas deles forem de aço élfico, nós estamos f...
Uma labareda vermelha acendeu na extremidade esquerda da arena. Ela emanou
das mãos de Ivyna, Louk e Rudi e serpeou pelos ares até atingir as espadas e
machados dos soldados avançando até eles. No mesmo instante em que aço e fogo
elemental se encontraram, o metal não resistiu e caiu sobre o gramado como água
fervente. O vapor do metal líquido consumindo a terra misturou-se rapidamente
aos ares cálidos da arena.
— Genial!
— Como é que você sabia que...
— A Liga não usa metais élficos. Eles têm orgulho próprio e forjam suas armas.
— Ei, cadê o Guilloch?
Ivyna estacou. Atarantada, a jovem Heinhardt balançou a cabeça. Petr avançava
sozinho com seu escudo enregelante, desbaratando exércitos inteiros que tentavam,
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inutilmente, romper seu paredão congelado. Ele, por sua vez, seguia inabalável,
avançando pelo centro da arena em direção à guilda da Aliança Maestral. Se seguisse
firme como estava, logo teria a bandeira de Candorn em suas mãos. Mas Guilloch
não os acompanhara. Ivyna, no calor da batalha, não percebera que o Guardião de
Aladar ficara para trás.
Correndo os olhos pela arena, protegida pelas magias de Rudi e Louk e ouvindo
as muitas vozes de espectadores animados e legiões de guerreiros ávidos por
derrotá-los, o desespero começava a querer dominá-la quando finalmente o avistou,
caído no chão, inerte.
— Guilloch está ferido! — exclamou Ivyna, sobressaltada. — Precisamos voltar
lá e ajudá-lo.
— Você ficou maluca? — questionou Louk, derretendo mais adagas que voavam
em sua direção. — Ele já era. Esquece. Temos que avançar. Há cinco bandeiras
para conquistarmos. Ninguém vai lá matá-lo... eu acho.
— Ivyna, odeio ter que dizer isso, mas o Louk tem razão. Guilloch está ferido.
Ele bom já dá trabalho, machucado então vai ser muito complic...
— Somos um time. Uma equipe. Nós somos o Círculo dos Cinco — proferiu
Ivyna, visualizando o estado acabrunhado de Guilloch. — Sendo bons ou ruins,
nós temos que conquistar isso como um só. Conjurem espadas de fogo vermelho
e enfrentem os dois grandões ao redor do estandarte. O restante já está derrotado
mesmo. Assim que conquistarem a bandeira, sigam até o Petr e o ajudem a obliterar
a Aliança Maestral. Ele fez a maior parte do trabalho sozinho. Esse garoto me
assusta.
— E você? — inquiriu Rudi, olhando embasbacado para a jovem guardiã.
— Eu vou socorrer Guilloch.
— Você enlouqueceu? Olha só para e...
— Lembrem-se das palavras de Salazar — proferiu Ivyna. — Somos um time.
— Tá, tá — crocitou Louk, fazendo uma espada de fogo surgir. — Vem,
moleque. Vamos derreter metal.
— Louk, — disse Ivyna, antes que seguissem adiante — acho que agora você é
o líder novamente.
— Dispenso — falou Louk, franzindo os lábios. — Não tenho tino para isso.
Vai, Rudi, você agora é quem manda nessa bagaça.
Titubeando, não muito convicta se tinha ou não tomado a atitude correta, Ivyna
correu na direção oposta de Rudi, Louk e Petr. Ouvindo o zunido de adagas
cortando o ar, bem como de flechas sendo disparadas e de rajadas de magia
explodindo a esmo e que se misturavam ao vozerio da plateia, ela retrocedia para
socorrer o amigo guardião caído e gemendo sobre o gramado. Louk não estava de
todo errado. Guilloch era uma pedra no sapato, um cara bastante tapado,
presunçoso e idiota que não sabia sequer conjurar uma magia simples. Mas as
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palavras de Stanhorne foram categóricas e ela tinha noção de que seu recado
inesperado não fora em vão. Se havia um guardião prodígio e infinitamente
poderoso como Petr ou um grandalhão abobalhado que muito mal conseguia
colaborar com seu próprio poder, ainda assim, eram uma equipe. Teria de conviver
com essas diferenças. Heidlich por várias vezes encarou intensas missões ao lado
de Elliotr e Saldivar e ela recordava bem de vê-los algumas vezes em Badorian.
Embora os três fossem fantásticos, ela sabia da existência de outros integrantes que
não eram lá essas coisas. Todavia, não deixavam de ser aquele Círculo dos Cinco.
A coisa mudava de figura naquele momento. Eram a equipe da vez, com a missão
de zelar pela ordem mundial, defender os mais fracos, preservar a vida e fazer as
Leis Primazes serem cumpridas. Não conseguiria ficar em paz tendo conquistado
cinco bandeiras, com um dos Guardiões caído, deixado para trás, ferido sobre a
arena.
Alcançou Guilloch estirado no chão, gemendo de dor. Uma adaga estava
encravada sobre o ombro esquerdo. Lágrimas escorriam de seus olhos e, embora
ela achasse que ele mais parecia um bebezão choramingando com uma pequena
faquinha, Ivyna decidiu por cuidar do ferimento. Respirou fundo, pressionou
próximo do corte e puxou a lâmina de uma única vez. O brutamontes combalido
encolheu-se e soltou um berro de dor.
— Se acalma, homem. Era só uma faquinha de nada.
— Mas doeu — falou Guilloch, choramingando. — E acho que na queda,
machuquei a minha perna também. O joelho não para de doer.
— Venha, se apoie em mim. — Ivyna ajudou o guardião a ficar de pé e meteu a
cabeça por debaixo de seu braço esquerdo, servindo de apoio para ele continuar.
— Sério... — falou Guilloch, encabulado. — Por que você voltou? Olha meu
estado...
— Será que só eu prestei atenção nas palavras de Stanhorne? Isso é um jogo. Ele
não disse aquilo à toa.
— Ah, aquela baboseira de time? — questionou Guilloch, fazendo uma careta —
Achei que era só um discursinho motivador e...
— Basta — falou Ivyna, puxando o guardião pelo braço. — Ainda temos... duas
bandeiras para conquistar?
Contemplou o cenário sem conseguir acreditar. Louk e Rudi carregavam um
mastro com a bandeira de Badorian sobre os ombros, cada um empunhando uma
espada elemental diferente, prosseguindo em direção ao território do Concílio de
Frandar. Serpentes de gelo cercavam o estandarte, com alguns alquimestres
produzindo mais feras elementais, prontas para o embate. Petr continuava
implacável. Não só vencera sozinho a Aliança Maestral, como obliterara a Ordem
Ancestral dos Impávidos Alquimestres de Aamiz e carregava as bandeiras da
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Virtuosa Candorn e da Serena Snartria sobre os ombros. Isso tudo sem esboçar um
pingo de cansaço.
— Esse garoto não existe — sibilou Ivyna, apalermada.
— As Águias Chispantes — falou Guilloch, comprimindo os olhos. — Acho que
sei como derrotá-los.
— Sabe? — indagou Ivyna, avançando a passos de tartaruga, tentando suportar
o peso do guardião. — Como?
— Está vendo os dois grandalhões em cada lado da bandeira? — perguntou
Guilloch, arrastando a perna machucada, apontando para dois brutamontes
conjurando uma infinidade de flechas que coruscavam pelos céus e se espatifavam
no escudo de gelo de Petr. — Eles são os alquimestres mais fortes do grupo. O
restante é aprendiz. Se abater aqueles dois, a bandeira é nossa.
Ivyna encarou Guilloch sem acreditar. Pela primeira vez, o brucutu dera uma
informação que, finalmente, poderia ajudar o grupo. Uma ideia arriscada brotou na
cabeça de Ivyna e ela interrompeu sua caminhada ao lado do Guardião de Aladar,
desvencilhando-se de seu braço.
— PETR, AO MEU SINAL, FAÇA A BARREIRA DE GELO SUMIR!
— QUÊ?
— CONFIE EM MIM!
Petr meneou a cabeça, contrariado. Ivyna balançou o rosto e arregalou os olhos
como se externasse, sem pronunciar uma única palavra, que o garoto precisava
confiar nela. A contragosto, o menino estalou os dedos e a barreira congelada
desapareceu. Os protetores do estandarte sorriram de canto a canto da orelha.
Novas flechas emanaram de seus arcos elementais e eles as tensionaram sobre as
cordas, na iminência de fazê-las voarem pelos céus mais uma vez. A jovem ruiva
girou as duas mãos em sentido horário e grossas raízes eclodiram da terra e, como
serpentes voadoras, avançaram na direção dos dois maiores guerreiros das Águias
Chispantes.
As flechas se precipitaram dos arcos no mesmo momento em que a magia de
Ivyna atingiu os dois alquimestres grandões. Ambos desabaram no chão,
desmaiados com o impacto do golpe repentino. Os demais alquimestres ficaram
atarantados, como formigas tontas, perdidas de sua fileira. Atoleimados, atiravam
rajadas de vento, água e gelo para todos os lados, com o único propósito de se
defenderem de um ataque iminente.
— Petr, agora!
A sintonia entre Ivyna e Petr era tão grande que, no exato instante em que a
jovem Heinhardt dera a ordem, o garoto deslizou em direção ao território das
Águias Chispantes. Disparando como bala de canhão, ele nocauteou cada
alquimestre aprendiz pelo caminho até colocar as duas mãos na flâmula com a Fênix
556
Indomável. Com uma expressão triunfante no rosto, o Guardião de Anlevor
sustentava três estandartes sobre os ombros.
Ivyna não continha a felicidade, apoiando Guilloch com sua perna machucada.
Petr voltava para ela, exibindo as três bandeiras, quando silvos dos fogos de
artifícios, gritos histéricos e música agitada ressoou pelos quatro cantos da arena.
Virando-se para enxergar, a jovem percebeu que Rudi e Louk obliteraram as cobras
de gelo e conquistavam a última flâmula em cima do Concílio de Frandar e, assim
como Petr, caminhavam, cada um com uma bandeira sobre o ombro, para onde ela
apoiava Guilloch.
As palmas se uniram ao coro de vozes frenéticas e às melodias da banda marcial.
Milhares de espectadores aplaudiam de pé o feito do novo Círculo dos Cinco. Até
mesmo os alquimestres, espadachins, arqueiros e outros guerreiros derrotados
reconheciam a intrepidez dos guardiões. Ivyna sorria de felicidade. Jamais vira algo
tão grandioso e estupendo como a deste maravilhoso cenário. Fazia parte de tudo
isso. Como um verdadeiro time, conquistaram as flâmulas e venceram o derradeiro
desafio. Os cinco estavam de pé. A sensação era indescritível. Se pudesse parar o
tempo para guardar esse momento na memória, o faria. Os aplausos não pararam
um minuto sequer e ela recobrou sobre o teste. Pela quantidade de bandeiras
arrebatadas e a atuação impecável, Petr era mais do que merecedor dessa última
conquista. Sozinho, conquistara três das cinco flâmulas.
— Senhoras e senhores, — anunciou Moronov, lágrimas escorriam de seus olhos,
sem que cessasse de aplaudir — numa demonstração de lealdade, espirituosidade,
empatia, estratégia, humildade e, acima de tudo, liderança, o Conselho dos
Guardiões avaliou a atuação de cada um dos novos cinco e deliberou sobre quem
conquista a última prova, a de Liderança. Acima do ideal que parece, à primeira
vista, este não era um teste de lógica ou de força; não era uma mera provação lúdica
de capturar bandeiras e encarar experientes guerreiros. Nas condições de pressão,
rápidas decisões e nos reveses vislumbrados aqui, nos apercebemos das qualidades
essenciais para um verdadeiro líder. Assim sendo, mediante a incrível atuação vista
por todos nós, sem mais alongar-me, declaramos Ivyna Heinhardt como a campeã
do último desafio do Ano da Elegibilidade.
Mais aplausos reboaram pela arena. Petr, Rudi e Guilloch, de igual modo,
aplaudiam e a observavam, com sorrisos nos rostos. Ivyna se viu derramando
lágrimas sem parar. Louk não parecia muito satisfeito com o resultado, mas deu o
braço a torcer, em aplausos mais tímidos. Inacreditável era a única palavra
ribombando no fundo de sua mente. Era indescritível o sentimento que se
apoderava dela. Não conseguia crer que tudo aquilo estava acontecendo. Vivia um
sonho deslumbrante e nem nos seus maiores devaneios, um dia ousou acreditar que
poderia tornar-se realidade. Mas aquilo não acontecia em sua mente. Era Cruisand,
era real.
557
— Pelas minhas contas, depois de vencer o primeiro evento, em Gradia, de
Lógica; ficar em segundo lugar para Petr Bravior no teste de Força, em Paragon e
conquistar o terceiro evento com uma Liderança extraordinária, — falava
Moronov, caminhando para perto de onde Ivyna estava e segurando sua mão —
declaro Ivyna Heinhardt, a Guardiã de Eurodian, a grande vencedora do Ano da
Elegibilidade e a líder do novo Círculo dos Cinco. Pela segunda vez em nossa
história, após Hanna Zanotchka desempenhar esta função, uma mulher será a líder
deste honrado grupo em que o próprio filho de Hanna e Elliotr, intrépidos
Guardiões, também ocupa um lugar de destaque. Inaugurando uma nova era de
prosperidade e segurança global, viva os novos Cinco, viva a paz e a união de todos
os povos!
Novas palmas e uivos de um êxtase interminável tomaram conta das
arquibancadas, da arena e das tribunas. A música tornou a ressoar alta outra vez e
os fogos mágicos no céu do início da noite em Cruisand refletiram o Leão, a Harpia,
a Fênix, o Grifo e o Corcel Alado, que se entrelaçavam, formando um único
símbolo cheio de cores vivas e reluzentes.
558
Capítulo Quarenta e Seis
Chamas da Vingança
Os céus escuros do movimentado centro de Cruisand se iluminaram como um
dilúculo de verão, inesperado e repentino. Mesmo os dorminhocos estirados nas
inúmeras redes se entrecruzando na torre abandonada, coberta de tapumes, cortinas
e permeada por uma sinfonia execrável de roncos dissonantes, teriam despertado
com o clarão que invadiu a abóbada celeste e ofuscou o brilho das estrelas de uma
das principais cidades mágicas de Eurodian.
Sozinho na torre de vigilância do governador, Zakkar viu o fulgor dos fogos de
artifício e magias reluzentes abraçar o negrume e a melancolia de seu turno
extraordinário. Junto à claridade ofuscante, gritos e brados histéricos pipocaram de
todos os lados. As principais ruas, estradas e até mesmo becos e vielas escusos
foram tomados de assalto por uma vibração avassaladora. Centenas de pessoas
inundavam cada centímetro do centro da cidade, bebendo, pulando e
comemorando em uma aglomeração infindável, o término do principal evento que
movimentou os cinco continentes e arrastou multidões para uma arena opulenta
montada nos limites da capital.
Tentara de variadas formas não ter de assistir a esse festejo desenfreado,
transformando a noite em dia, em uma grande folia esplendorosa. Pedira para
cobrar os impostos nas salineiras, tentou trocar de turno com três pessoas distintas
e até se ofereceu para fazer limpar os conveses de alguns navios para pagar alguém
que fosse em seu lugar. Infelizmente, para sua decepção, não conseguiu. O próprio
Príncipe negara e o impedira de acumular milhares de trabalhos e funções,
mandando-o descansar, pois o turno da noite no palácio do governador o esperava,
do início da noite até o amanhecer. Embora de sua parte não compartilhasse tal
sentimento, o Príncipe dos Ladrões parecia saber.
Ele o fizera de propósito. Designara para essa função, trocara seu turno por outro
com a desculpa de que o governador em pessoa exigira o melhor de seus ladrões
para fazer guarda na torre aquele dia. Justo no último dia do Ano da Elegibilidade.
O Príncipe não sabia o porquê, mas começava a perceber como o evento mexia
com Zakkar. Esforçou-se para suprimir as emoções, mas era impossível controlar
559
as caretas. O desejo por vingança contra o Conselho era latente. Externara o ódio
pelo Conselho dos Guardiões nas inúmeras conversas e treinamentos pelas ruas de
Cruisand. Seu mentor explorava esse sentimento nele de propósito e nada tirava
isso de sua cabeça. Restava saber se por um sadismo esdrúxulo em fazê-lo sofrer
ou para ensiná-lo alguma coisa. Autocontrole, talvez?
O brilho das explosões refletia nos olhos de Zakkar. Os luzeiros dos fogos se
estendiam e, quanto mais o tempo passava, mais intensos ficavam seus estrondos
nos céus, unindo-se ao coro das multidões perambulando pelas ruas, como bandos
de formigas ensandecidas e sem rumo. Agarrado às ameias da torreta, os dedos da
mão direita estavam dormentes e notou os dentes rilhando com força.
Encarou a mão esquerda. Entre os dedos firmes, os olhos astutos de uma fênix
encaravam seu olhar deprimido. Uma bandeira vermelha e branca, suja e
maltrapilha, com o indomável animal-símbolo da Intrépida Miliat, quase se fundia
à palma de sua mão. Encontrara a flâmula dias antes, largada em um canto escuso
qualquer, abandonada por alguém que não entendia o valor daquela insígnia para
ele. Não compreendia o que ela representava. Enrolou a bandeira na mão e no
braço e cerrou os punhos.
Uma lágrima escorreu sem que pudesse evitar. O cérebro estava embaralhado.
Uma confusão de sentimentos o dominava. Sem querer, se viu acabrunhado,
chorando de soluçar. O encontro com Selena perturbava sua mente cansada e o
colocava em xeque. Peregrinou por meses, como um fugitivo, vagando pela
Floresta Demoníaca para escapar da morte até descobrir uma traição sem
precedentes, de pessoas que deveriam amá-lo e protegê-lo. Passou dias acreditando
que Selena era uma traidora, merecedora de seu desprezo e de sua sede por
vingança. Ao encontrá-la em Cruisand e ouvir suas palavras, vislumbrar o choro
desesperador, ao tê-la novamente em seus braços, poder se perder outra vez em
seus beijos e possuí-la, mesmo em um lugar execrável, retornava a um ponto
indefinido. Uma sombra de dúvida pairava sobre as decisões implacáveis tomadas
na escuridão atemorizante da floresta.
Novos fogos de artifício explodiram e refletiram seu brilho nos olhos marejados
de Zakkar. Com a bandeira enrolada na palma da mão, ele abaixou-se e arrebatou
um punhado de terra do chão da torre, trazido pelos ventos fortes e pelas botas e
solas de pés descalços dos outros guardas, acumulado ali com o passar dos ciclos e
que ninguém nunca se importou em limpar. Empertigou-se e encarou a arena
iluminada e em festa. Uma chama brilhou em sua mão e consumiu a fênix da
flâmula lentamente.
— Suja, abandonada e lançada ao pó, você vai se erguer — sibilou Zakkar, a voz
trêmula assumia um tom firme a cada palavra proferida. — Juro pela minha vida,
pelo sangue alquimestre de minha mãe e o sangue guardião de meu pai, que farei o
possível para obliterar o Conselho dos Guardiões. Mesmo que perca minha vida,
560
não morrerei sem antes fazê-los sofrer o tanto que sofri. Como uma fênix
indomável, hei de ressurgir das cinzas em que fui lançado e consumirei meus
inimigos, com as chamas da minha vingança.
561
Capítulo Quarenta e Sete
A Era do Caos
O corsário atracou sobre o pequeno píer tão logo o sol tocou as densas Águas de
Argúrius, lançando sobre a calmaria das ondas e vagas o brilho alaranjado do ocaso
que logo sobreviria. As luzes dos postes ao longo do porto e do extenso caminho
conduzindo até os grandes portais de entrada do castelo estavam todas acesas,
aguardando o cair da noite e as densas trevas que cobririam a ilha muito em breve.
Adryan respirou fundo, assim que os dois pés pisaram na madeira molhada pela
água do mar. Havia muito tempo não sentia aquele cheiro que por tantos ciclos lhe
foi familiar. Era o odor de água salgada misturado a um cheiro de peixe podre, dos
cardumes lançados pela violência das ondas sobre os corais ao derredor ou que
sofriam o infortúnio de ficarem presos nas madeiras do píer. A sensação era
reconfortante. Era como se voltasse a um tempo muito distante, recheado de tantas
lembranças boas como também de memórias causticantes e que preferia nunca
terem existido. Um tempo em que fora a maior autoridade em Purysia, tratando de
assuntos tão importantes e de outros de menor relevância. Nos ciclos exilado nas
Terras Distantes, deu-se conta de que a maior saudade sentida era dos momentos
mais simples, daqueles em que se sentava no ponto mais alto do Oráculo para
conversar com alguns arcanos. Das conversas descontraídas com velhos amigos,
dos dias assentado com os pés sobre a areia molhada apenas para aproveitar o doce
ruído das ondas rechaçando sobre a praia e contemplar o sol se pôr no horizonte.
Esses tempos, ele sabia, infelizmente jamais voltariam.
Muitos pares de olhos o encaravam com ardente surpresa ou profundo espanto.
A maioria dos rostos era desconhecido. Uns e outros ainda recordava, boa parte
como sacramentadores bastante jovens à época de sua condenação. Muitos arcanos
aglomerados interrompiam suas atividades de semeadura e colheita, poda e limpeza
dos jardins no entorno da sinuosa estrada de lajotas que conduzia ao palácio para
contemplar a cena a se desenrolar naquele fim de tarde que poderia ter sido só mais
um, como tantos outros fins de tarde na ilha. Caminhando obstinado, Adryan
seguia muito à frente dos outros integrantes do grupo que fora às Terras Distantes
clamar por sua ajuda. Os outros oito avançavam em bando, carregando no rosto
uma expressão temerosa, seguindo em seu encalço. Lembrou-se dos dias de arcano
562
na ilha e recordou-se de seu antigo maedor, Albemus, um sacramentador
diferenciado, amante da religião pura como jamais existiu na Ordem. Por muitos
ciclos, foi convocado a aceitar o desafio de liderar um dos Octaedros — sempre
oferecido a ele o mais destacado de todos, o de Hegemonia. Rejeitou a todos os
convites. Dizia sempre viver em uma luta contra as próprias concupiscências,
contra os desejos ardentes de seu âmago que poderiam levá-lo a agir como um
humano comum. Possuía um temor crônico de que a religião dos elfos fosse
corrompida por ensejos nada altruístas. Perdera a conta de quantas vezes ambos
viraram noites em agradáveis prosas, conversando sobre a sacramentação do
tempo, a importância da pureza no trato, no agir, nas relações em sociedade e,
principalmente, na magia do tempo. Ele lhe ensinou coisas valiosíssimas que
carregava desde então consigo. Quando morreu, no alto dos seus quinhentos e treze
ciclos, fora como se tivesse perdido o próprio pai. Um vazio muito grande o
acometeu por vários dias. Com o passar do tempo, sentia que os preciosos
ensinamentos de Albemus iam se perdendo conforme embarcava nas entranhas das
responsabilidades dentro da Ordem. Como Octaedro, descobriu coisas terríveis na
vida em sociedade que as muitas virtudes ensinadas por seu maedor eram rechaçadas
e substituídas por vícios execráveis. Ainda nos dias atuais, sentia-se em dívida com
seu velho professor, como se deixasse vencer pelos pecados tão combatidos por
ele. Sempre que vislumbrava o próprio reflexo, não tinha vergonha do
sacramentador que um dia se tornara, pois, há muito abandonara a pureza da
religião ao qual tanto lutou para que entendesse. Sentia vergonha do elfo que dizia
ser e de como permitiu ser engolfado pela escuridão.
Escancarou os grandiosos portais de entrada do Oráculo do Tempo. Não
lembrava de serem tão leves assim quando fora expulso da ilha. Uma multidão de
elfos, sacramentadores e arcanos, bem como alguns dos protetores da parte externa
da fortaleza seguiam-no de longe, caminhando com uma expressão curiosa e
confusa estampada no rosto. Muitos se lembravam dele e espreitavam
boquiabertos, como se sua presença fosse o maior dos sacrilégios. Contudo, a maior
parte seguia de olhos bem abertos, sem entender o que estava acontecendo. Lá
dentro, o salão principal seguia exatamente como se lembrava. O teto alto coberto
de vitrais multicoloridos com inscrições em runas antigas das principais vibrações
e oscilações da malha do tempo, todas as descobertas e conhecidas desde que o
elfos realizaram seu êxodo das florestas e seguiram para um pedaço de terra
completamente isolado do mundo, no coração de Argúrius. O piso muito bem
lustrado ainda continha os mesmos desenhos do fim da Era das Trevas, com
pinturas fantásticas exaltando o poder dos alquimestres, a força dos mestres, a
coragem dos Guardiões e a destreza dos sacramentadores — este último em maior
destaque bem no meio do salão por motivos óbvios. A única diferença, contudo,
era a presença de um enorme trono dourado, engastado com uma variedade
563
infindável de joias preciosas sobre os apoios dos braços. Não sabia de quem teria
sido esta ideia infundada de expor um objeto carregado com um luxo exacerbado,
se a sacramentação exigia exatamente o oposto: humildade no lugar da jactância,
abnegação em vez de requinte, sobriedade no lugar da extravagância. Esperava
encontrar assentado sobre ele a figura soberba de Arturo Menfesis, seu antigo
desafeto. Não imaginava que ele chegaria a tal ponto dentro da Ordem, mas pelos
relatos de Sisno Sannfrye e dos outros sacramentadores, a loucura de seu velho
algoz havia extrapolado os limites da sanidade. Inserir um trono, um objeto de
tamanha ostentação, em um local onde as maiores virtudes deveriam reinar, era
uma afronta à toda história e à ética e moral inerentes à religião. Contrariando suas
expectativas, vislumbrou a figura de um jovem sacramentador. Magricela e de
aspecto presunçoso, portava uma longa capa de veludo vermelho pregada sobre os
ombros e uma suntuosa coroa afixada acima dos cabelos loiros escorridos.
Levantou-se do assento real no mesmo instante em que seus olhos encontraram os
de Adryan. Havia um grupo de arcanos ao redor dele, sustentando enormes cachos
de uvas e com um esgar curioso e aterrorizado no rosto. Mais absurdo do que
parecia, o “rei dos sacramentadores” havia tornado aqueles jovens elfos, seus
“servos reais”.
— O que está acontecendo aqui? — pronunciou Klaus Trishnann, a voz exalando
toda sua arrogância.
Outros sacramentadores do palácio se aglutinaram pelo salão, curiosos com a
cena que se desenrolava. Lançavam olhares para o elfo irritadiço com a capa e a
coroa e dele para o segundo elfo de longos cabelos prateados, com um grupo de
conhecidos ex-Octaedros atrás dele.
Adryan não abriu a boca. Não moveu os lábios para dizer uma única palavra,
sequer para questionar onde Menfesis estava. Sabia que Arturo já tinha pleno
conhecimento sobre ele e fez o que imaginara que faria. Fora deveras tolo em
acreditar que confrontaria Menfesis em Purysia. Da mesma forma como um dia
conheceu a entidade, Arturo também a conhecia. O medo naquele momento era o
que ela o mandara fazer. Infelizmente, sua própria vingança ainda demoraria um
pouco até acontecer.
Avançando sem titubear, Adryan cruzou o salão calmamente. Com um espanto
e temor latente, Klaus exalava uma surpresa exacerbada com a ousadia do elfo de
longos cabelos em não responder sua questão. Nenhum dos protetores no entorno
ousou se mover. Assim como os arcanos e sacramentadores, todos contemplavam
a cena à distância.
— Guardas, eu exijo que...
Trishnann não conseguiu terminar sua frase. Desembainhando a espada trazida
nas costas, Adryan moveu a lâmina com destreza e encravou-a no peito do elfo
com a coroa e a capa escarlate, até a ponta da arma atingir o estofado do trono.
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Grunhidos atarantados ecoaram pelo teto alto do salão. Sacramentadores e arcanos
levaram a mão à boca, embasbacados. Arregalando os olhos para a espada afiada
atravessada em seu coração, Klaus vomitou sangue sobre o trono, até sua cabeça
pender para o lado. O brilho dos olhos sumiu de repente e o movimento contínuo
de sua respiração fora interrompido. O jovem elfo morrera.
Recolhendo a espada com violência e guardando-a de novo na bainha atrás das
costas, Adryan arrancou o corpo inerte de Klaus Trishnann do trono e jogou-o no
meio do salão. As expressões aterrorizadas não desapareciam dos rostos dos elfos
ao redor, contemplando a cena ainda aturdidos e céticos com o que acabara de se
suceder. Assentando sobre o trono dourado manchado de sangue, Varnor
arrebatou uma uva de um arcano e comeu-a com vontade.
— A Ordem dos Sacramentadores tem um novo líder, a partir de hoje — falou,
displicente, admirando as expressões aparvalhadas, encarando-o.
Maihin e Sicária, as duas elfos-negro que acompanharam Adryan por toda viagem
de regresso, correram até ele e cada uma repousou em um braço do trono,
acariciando o rosto do elfo de longos cabelos.
Um tremor repentino sacudiu a ilha, fazendo as paredes do Oráculo do Tempo
reverberarem com estrépito. Arcanos e sacramentadores se lançaram ao chão,
quando parte das vidraças das janelas e do teto abobadado estourou, precipitandose
contra o piso. Três longos badalos ressoaram e abalaram as estruturas do palácio.
Ninguém ousou falar uma única palavra, mas era notório dos mais experientes o
que aquilo queria dizer. A Bússola do Caos movera seus ponteiros uma última vez.
O arco derradeiro em direção ao ponto mais temido por todos os elfos
sacramentadores havia sido descrito, atingindo o marco zero. Estava consumado.
A Era do Caos começara.
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SEJA BEM-VINDO à Eirin, um mundo completamente novo e
fantástico, onde a magia flui entre humanos e elfos.
O Círculo dos Cinco é o primeiro volume da trilogia de As
Crônicas Lendárias. Seis tramas concorrentes se desenrolam e se
alternam ao longo do livro, explorando tramas políticas, guerras,
conspirações, histórias de traição, revelações e mistérios em
mundo habitado por inúmeras criaturas mitológicas.
A obra é complexa, densa e aborda assuntos essenciais da
atualidade no cerne da trama. Livros como O Hobbit, As Crônicas
de Nárnia, O Senhor dos Anéis e a série Harry Potter são grandes
inspirações para o mundo criado e a trama desenvolvida.
P. P. Rodd é a mente por trás de O Círculo dos Cinco,
o primeiro livro da trilogia As Crônicas Lendárias.
Baterista e desenhista nas horas vagas, é fã de
carteirinha de Harry Potter, Dan Brown, O Hobbit e
Watchmen.
Em 2017, publicou seu primeiro livro de forma
independente, um thriller policial intitulado “Os Contos
de New Locked City”.
Idealizou e escreveu esse universo fantástico por cinco
anos, que hoje chegou até você.
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