Situação Ideal de Combate

No Carnaval do Rio de Janeiro, tudo pode acontecer. No Carnaval do Rio de Janeiro, tudo pode acontecer.


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Hedjan C.S.

Abril de 2018

Produção Artesanal

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Nota:

1 - O texto deste volume foi originalmente publicado na Revista Avessa nº 13

(março/abril de 2017) disponível em

http://revistavessa.com/2017/03/revista-avessa-no-13/

2 - Ilustração de capa: Revista Mammoth Detective, Fevereiro de 1947.

Disponível em

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/34/Mammoth_detective_194

702.jpg

Atribuição-Não Comercial

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Comercial CCBY-NC.

Você pode adaptar, reproduzir e reescrever tendo como base o presente

trabalho para fins não comerciais, desde que o autor da obra original seja

citado.

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Texto legal disponível em

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Situação Ideal de Combate

Hedjan C.S.

Um grupo de foliões usando abadás verdes

atravessou animadamente a avenida, cujo trânsito

tinha sido bloqueado para veículos. Vendedores

ambulantes carregando isopores, grupos de

meninas com fantasias idênticas de anjos, alguns

casais e várias crianças ajudavam a compor a fauna

daquele espaço. Uma viatura da polícia militar

estava estacionada com as quatro rodas sobre a

calçada, o giroflex lançando luzes vermelhas na

parede do prédio ao fundo. O rádio chiava com uma

fala ininteligível enquanto os dois policiais, do lado

de fora do carro, conversavam, alternando o olhar

entre as pessoas que circulavam de um lado a outro

da avenida.

Dois rapazes atravessaram pela frente do carro,

evitando cruzar olhares com os dois policiais.

Continuaram andando até alcançar uma rua

transversal. Diminuíram o passo, mas só Barata, que

usava um colar havaiano feito com flores plásticas,

olhou para trás.

— Te falei que ia estar cheio de polícia aqui! Era

melhor ter ficado nas ruas lá de trás… Ou longe da

avenida pelo menos.

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O outro, Ribeiro, não respondeu. Indicou um

botequim de quinta categoria espremido entre dois

prédios com fachadas velhas. O único freguês, um

velho barbudo com uma camiseta de time de futebol,

estava sentado em um dos tamboretes encarando

tristemente um copo de caipirinha.

Ribeiro foi pedir uma garrafa de cerveja e dois copos

de vidro. Sentaram nas cadeiras de alumínio que

avançavam sobre a calçada cheia de buracos.

— Não vai dar pra fazer nada aqui! — insistiu

Barata. Falou muito alto e o olhar de Ribeiro fez com

que ele continuasse em voz — Melhor darmos o fora

pra evitar problema. Já temos um trocado e um

celular maneiro… Se ficarmos dando mole aqui…

Ribeiro não respondeu. Bebeu sua cerveja com

calma e olhou em volta. Barata costumava se irritar

com essa atitude do amigo. Por mais que isso

ficasse claro na sua cara, sempre evitava comentar.

Uma adolescente fantasiada de zumbi entrou no

botequim e comprou uma garrafa de água. Suas

amigas esperavam do lado de fora. Quando ela

passou por eles, Ribeiro se inclinou pra frente.

Barata o imitou. Era o sinal que ia começar a

explicação do que tinha na cabeça.

— “A água não tem forma constante”. Sacou? Não

podemos ficar na mesma o dia todo… Arranjamos

um qualquer e um celular legal… Show de bola…

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Mas ‘to achando que podemos descolar coisa

melhor por aqui. Parada grande!

— Parada grande — repetiu Barata. Ribeiro não

costumava se enganar.

Os dois eram vizinhos de rua. Viviam de “bicos”,

pequenos trabalhos rápidos com pagamento

imediato. Ribeiro costumava ajudar em uma oficina

mecânica e “Barata” entregava quentinhas.

Extraoficialmente, entretanto, a dupla já tinha rodado

boa parte da cidade. Shoppings, grandes eventos ao

ar livre, transportes públicos, o Centro da Cidade.

Geralmente cometiam furtos. Um distraía, o outro

fazia o serviço. Quando o alvo percebia que tinha

perdido o celular ou a carteira, eles já estavam

longe. Quando a situação era mais favorável,

pequenos roubos e até assaltos entravam na lista.

Não era tanto pelo dinheiro, mas pela farra.

Começaram em lojinhas pequenas de bairros

afastados de suas casas. Com o tempo, a área de

ação mudou.

Foi ideia do Ribeiro, sempre o homem das ideias,

aproveitarem a época do carnaval para “engordar o

orçamento”. Barata admirava a inteligência e a

segurança do amigo. Nunca gaguejava, nunca

titubeava. Sempre explicava suas ações usando

jargões militares, frases de estrategistas e outras

coisas que o empolgavam. Barata sempre quis ser

militar e aquilo era como ser parte de um comando

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em missões arriscadas. Mesmo assim, de vez em

quando, Barata duvidava que o amigo tivesse lido

todos os livros que citava. Às vezes achava que ele

só inventava mesmo.

— Cara, só ‘to falando que já temos o suficiente pra

ir pra casa, cara… Só esse celular aqui dá um

dinheiro bom pra cada um… Vamos acabar

arranjando uma ideia…

— Tu ‘tá de bobeira mesmo, maluco. Já está

escurecendo.

— Pois é. Menos gente na rua, né?

— Menos testemunhas, maluco. E a mesma

quantidade de polícia. E parados no mesmo lugar de

papo.

Com um movimento de cabeça, Ribeiro indicou uma

rua estreita.

— ‘Tá vendo essa rua? Ela vai dar na única estação

do metrô aberta por aqui hoje. Todas as outras da

área estão fechadas. Tá cheio de gente da Zona Sul,

gente cheia de grana, indo e voltando por aqui. Têm

uns dois clubes nesse bairro com festas a fantasia

hoje. Clube de gente com dinheiro, ‘tá ligado? As

oportunidades estão esperando para serem

agarradas… Isso tudo é da Arte da Guerra! ‘To te

falando, é garantido...

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Terminaram a cerveja. Barata sentiu a cabeça rodar

um pouco. Preferia ter tomado uma cachaça, pra

sentir o calor queimando a garganta e o peito, dando

coragem, mas era melhor não abusar. Ribeiro

costumava ser violento quando sentia que a vítima

escolhida estava escondendo o jogo. Sabia que se

Ribeiro começasse a bater em alguém que se

recusasse a entregar o que tinha, ele também

bateria se estivesse bêbado. E pelo menos um tinha

que manter a cabeça fria.

Andaram pela rua de prédios antigos. Viram quatro

amigos, um deles fantasiado de bailarina, indo pelo

outro lado da calçada na direção oposta. Andavam

rápido, provavelmente com medo de se atrasarem

para algum baile noturno, pensou Barata. Outras

pessoas andavam pra lá e pra cá, algumas

fantasiadas, outras não. Barata sabia que aquele

não era o melhor local. Ainda era muito

movimentado. Sua suspeita se concretizou quando

viu o colega apontar uma travessa estreita e cheia

de lixo que levava a uma rua paralela.

Pararam numa esquina, enquanto Ribeiro ascendia

um cigarro, aproveitando pra olhar o entorno. Barata

fez o mesmo. Quando voltou a encarar Ribeiro,

percebeu que os olhos do amigo estavam pousados

nele.

— O que estamos procurando agora é uma situação

ideal de combate. — disse Ribeiro soprando a

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fumaça pelo nariz enquanto falava — Alguém

sozinho ou com alguém vulnerável. Um homem com

a mulher grávida, um casal de namorados, dois

velhinhos, e por aí vai…

Barata olhava para o outro fascinado. Vendo Ribeiro

falando daquela maneira polida nem dava pra

imaginá-lo gritando com a senhora de idade que

demorou pra passar a bolsa ou dando socos no

rapaz que se atrapalhou ao entregar o celular. Era

como se ele pudesse ser duas pessoas diferentes.

Os olhos de Barata se iluminaram. Ribeiro

acompanhou o olhar. Bem distante, quase no fim da

rua, um homem e uma criança se afastavam.

Andavam apressados e pelos cantos. Os dois

usavam fantasias esquisitas.

— Olha ali! Pai e filho de Batman! – disse Barata

sem apontar.

Ribeiro apertou os olhos:

— Pra mim parecem mais fantasias de Madame

Satã… Vamos nessa.

Andaram apressados na direção dos dois. Conforme

se aproximavam, Barata achou que deviam ser avô

e neto. O homem andava com dificuldade, como se

tivesse algum problema nas pernas. Ou talvez fosse

pela fantasia, que parecia bem pesada. A capa, ou

asas de uma cor marrom acinzentada, se arrastava

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pelo chão. O garotinho dava passos curtos e

vacilantes.

— Será que são de alguma escola de samba? — a

pergunta de Barata ficou sem resposta.

Barata notou que estavam chegando a uma parte do

bairro que ele não conhecia. Casas velhas e de

janelas quebradas dividiam o espaço com sobrados

com portas e janelas lacradas por tábuas de

madeira. Não viu luz em nenhuma janela. Aqui e ali

um carro depenado estava ao lado de outros

cobertos de poeira. As árvores pareciam ser as

únicas coisas com vida por ali.

— Quando eles chegarem perto daquelas árvores, a

gente chega junto. Ali tá cheio de poste queimado, tá

vendo? — Ribeiro deu um piparote no cigarro, que

sumiu num bueiro. — Já sabe: pegar e sair batido.

Qualquer coisa me espera naquele botequim que

paramos.

— O velhote deve ter bastante dinheiro. A fantasia

parece cara…

— Pior pra ele.

Caminhando pelo outro lado da rua, emparelharam

com os dois fantasiados. Barata sabia o que fazer.

Quando Ribeiro avançasse pela frente, barrando o

caminho dos dois, ele chegaria por trás, bloqueando

a possível fuga. Se um dos dois começasse a gritar,

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aí era hora de engrossar. Sentia o coração batendo

rápido. Lembrou do amigo dizendo que esse era a

adrenalina que precedia a batalha.

Funcionaram como um relógio. Barata chegou por

trás das vítimas no momento em que Ribeiro barrava

o caminho e dizia:

— Perdeu, coroa! Passa tudo ou seu netinho…

Mas não terminou de falar. Barata ouviu um som que

ele nunca pensou que escutaria. Ribeiro estava

gaguejando. Ouviu o amigo fazer um barulho

engasgado ao tentar respirar fundo.

Para Barata, tudo aconteceu em câmera lenta. De

personagem, ele virou um simples observador. Nada

daquilo estava no roteiro. O velho avançou para

frente, com os braços abertos, como se fosse um

familiar muito próximo pedindo um abraço na noite

de Ano Novo. Barata ouviu um som estranho vindo

de algum lugar, como ar escapando de um pneu

furado. A capa, que antes se arrastava no chão,

pareceu dobrar de tamanho e acompanhar o

movimento dos braços magros e compridos do

velho. Viu a parte de trás da cabeça dele se inclinar

e se aninhar no pescoço do amigo com um tranco.

Em seguida os dois caíram no chão.

Barata deu um passo vacilante para frente e viu, no

meio da penumbra, o velho mover a cabeça

violentamente para lá e para cá. Parecia um

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cachorro que tinha acabado de abocanhar uma

ratazana. Estava deitado sobre o corpo de Ribeiro,

que sumiu sob a capa. Só conseguia vislumbrar as

pernas do amigo, escoiceando o ar. Ouviu o som de

coisas estalando e se rasgando.

Escutou outro som. O mesmo chiado de ar que

ouvira antes, mas um pouco mais baixo. Só então

percebeu que o “netinho” estava parado do seu lado

e o encarava. Agora era ele que fazia o som. Não

era uma fantasia de Batman e muito menos de

morcego que o pequeno estava usando. Não era

nem uma fantasia. Olhos leitosos anormalmente

afastados do centro e uma boca irregular repleta de

dentes finos e amarelados foram às últimas coisas

que viu antes de sentir o impacto da pequena

abominação contra seu corpo.

Enquanto sentia suas costas coladas ao chão, o

peso da pequena criatura sobre sua barriga e seu

corpo ser sacudido, uma dormência tomou conta dos

braços e se alastrou pelo corpo. Algo estalou longe e

ele achou que podia ser a tela do celular roubado

em seu bolso traseiro.

Barata ainda teve tempo de pensar que algumas

coisas só podiam mesmo acontecer no Carnaval do

Rio de Janeiro.

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Sobre o autor

Hedjan C.S.

Escritor de terror e suspense urbano e suburbano. Autor de Crianças nas

Sombras (Kitembo, 2021), Preâmbulo Gótico (Amazon, 2020), Gótico

Suburbano (Luva Editora, 2019). Roteirista na coletânea de quadrinhos VHS -

Vídeo Horror Show e no projeto de webcomics Subúrbio Zero. Membro do

coletivo literário Aleatórios (Nova Iguaçu, RJ). Premiado no II Concurso

Literário de São João Marcos (2017), Prêmio Strix (2018), II Prêmio Nacional

de Literatura de Belford Roxo (2019), II Concurso Literário Contos Sombrios de

Paquetá (2019). Host da série Sexta do Horror na Kitembo, disponível no

YouTube.

Contatos do autor:

hedjancs@gmail.com

Hedjan Costa

Hedjan_c.s.

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