impossibilia-8-octubre-2014
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esfriado durante mais de três semanas, e com uma tose seca de que não se conseguiu curar-se senãobebendo muito (Rabelais, 2010: 404).Os nomes das personagens também fazem alusão à arte da boa mesa. Marinho batiza seu pupilo comtrês denominações: Gordo, Bolacha e Bolachão. A primeira nomenclatura, relacionada ao corpo físico doadolescente, remete às dimensões exageradas dos gigantes; as outras, analogicamente, à glutonaria. Rabelaisutiliza a descrição como elemento esencial de seu texto; a imagem dos gigantes é facilmente construída.Entretanto, João Carlos Marinho não se prende às características do corpo físico do menino, permitindo aimaginação e construção de cada leitor. Em ambos os textos, as personagens fazem uso de atitudesinusitadas para combater os inimigos:De repente Pantagruel teve vontade de mijar, por causa das drogas que lhe havia dado Panurge, e mijoupelo meio do campo, tão bem e tão copiosamente que os afogou a todos; e houve dilúvio especial em dezléguas à volta. Os inimigos, ao acordarem, vendo de um lado o fogo no seu campo, a inundação e dilúviourinal, não sabiam que dizer nem pensar. Alguns diziam que era o im do mundo e o juízo inal, que deveser consumido pelo fogo: os outros, que os deuses marinhos Netuno, Proteu, Tritão e outros, que osperseguiam, e que, de fato, era água marinha e salgada (Rabelais, 2010: 268).O gordo tirou o tênis do pé direito e colocou na cabeça. Ninguém queira saber o que é chulé de pé degordo, entranhado num tênis que levou suor de pé de gordo durante 27 dias, na loresta mais quente domundo. [.] dois gambás desmaiaram, uma jaguatirica teve um troço. Para o coitado do satélite cheirador,de centros olfativos supra-sensíveis, foi um fuá: a catinga do chulé do pé do gordo queimou os transistores,o satélite começou a fungar, a tosir, a sair fumacinha –o satélite explodiu.[.] Ship O’ Connors mexiaalitamente nos botões do receptor dos sinais do satélite; as transmisões tinham parado (Marinho, 2006:118).Embora em contextos distantes, ambos textos recorem a um repertório mítico e fantástico. EmMarinho não mais encontramos seres mitológicas, mas uma aproximação a esa realidade –o heroísmo doGordo se faz por expedientes semelhantes ao de Pantagruel, porém, o personagem infantil é motivado pelasituação de perigo, o que signica não abandonar completamente um aspecto edicante na narativa paracrianças. Em Rabelais, temos Prosérpina; em Marinho, deparamo-nos com Fedra:Que disparate! Ela poderia ser tão feia quanto Prosérpina que ela aranjaria, por Deus, um galope, pois hámonges por perto, e um bom artíice põe indiretamente todas as peças à obra. Que a síilis me apanhe, senão as encontrardes prenhas na volta, pois até mesmo a sombra do campanário de uma abadia é fecunda(Rabelais, 2010: 132).Arlindo, Caroline y Alves Valente, Tiago. “François Rabelais e João Carlos Marinho: um gordo, dois gordos”.Imposibilia Nº8, Págs. 29-45 (Octubre 2014) Artículo recibido el 31/07/2014 – Aceptado el 11/09/2014 – Publicado el 30/10/2014.42
Bakhtin concebe Prosérpina como a mãe dos diabos, personagem das diabruras medievais (1987:271). Fedra, na mitologia grega, foi acometida por amor ao seu enteado, cometendo suicídio de remorsopela morte do rapaz, que jaz a seus pés. (Uavnizak, 2010: 4). Metaforicamente, as duas personagensmitológicas representam o desejo carnal, o medo e o desespero: “A sucuri desesperada, estava como a Fedra,do amor com todos os furores, aumentou a força do apertão para o máximo, a velocidade do gira-giracresceu para quinhentos por hora, o vento levantava loucamente a folharada do chão” (Marinho, 2006: 94).O sistema educacional em que Pantagruel e o Gordo foram inseridos é semelhante. Quanto aoprimeiro, nos moldes da nobreza europeia, acreditava que: “a educação soista transforma o gigante em umtolo, simplório, sempre pensativo e distraído” (Rabelais, 2010: 80). O Gordo, ilho único de uma famíliarica paulistana, desacredita da educação formal: “O Hugo Ciência perguntou ao Gordo: Meu QI é 250.Qual é o seu? O gordo, que tinha a boca cheia de pão com geleia falou –Quem é ese pateta?” (Marinho,2006: 47).Quando chegamos à conclusão de que ocore um diálogo entre a criação do Gordo e Gargântua ePantagruel, somos conduzidos a airmar que o Gordo não precisa de deinições, posuindo ligação clara comseus antecesores em vários aspectos: “O corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está prontonem acabado: está sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo constrói outro corpo, esecorpo absorve o mundo e é absorvido por ele” (Bakhtin, 1987: 277).Como um velho conhecido em suas formas e atitudes, Marinho metaforicamente desenvolve umgigante, capaz de enfrentar qualquer desaio. Por meio do princípio do riso, de iguras e elementospopulares, com uma linguagem ousada, Rabelais e Marinho compõem personagens que realizam umintrigante diálogo entre os séculos XVI e XX.Segundo Bakhtin: “A tarefa esencial de Rabelais consistia em destruir o quadro oicial da época e dosseus acontecimentos, em lançar um olhar novo sobre eles, em iluminar a tragédia ou a comédia da época doponto de vista do coro popular rindo na praça pública” (1987: 386).João Carlos Marinho, por sua vez, busca um diálogo intenso e inteligente com o leitor infantil,destituindo verdades adultas e chamando a criança ao centro da conversa, o que, em última instância,equivale a um proceso de ruptura do senso comum e à aceitação da posibilidade de diálogo entre pesoasoriundas de diferentes condições sociais e/ou étnicas.Arlindo, Caroline y Alves Valente, Tiago. “François Rabelais e João Carlos Marinho: um gordo, dois gordos”.Imposibilia Nº8, Págs. 29-45 (Octubre 2014) Artículo recibido el 31/07/2014 – Aceptado el 11/09/2014 – Publicado el 30/10/2014.43
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Bakhtin concebe Prosérpina como a mãe dos diabos, personagem das diabruras medievais (1987:271). Fedra, na mitologia grega, foi acometida por amor ao seu enteado, cometendo suicídio de remorsopela morte do rapaz, que jaz a seus pés. (Uavnizak, 2010: 4). Metaforicamente, as duas personagensmitológicas representam o desejo carnal, o medo e o desespero: “A sucuri desesperada, estava como a Fedra,do amor com todos os furores, aumentou a força do apertão para o máximo, a velocidade do gira-giracresceu para quinhentos por hora, o vento levantava loucamente a folharada do chão” (Marinho, 2006: 94).O sistema educacional em que Pantagruel e o Gordo foram inseridos é semelhante. Quanto aoprimeiro, nos moldes da nobreza europeia, acreditava que: “a educação soista transforma o gigante em umtolo, simplório, sempre pensativo e distraído” (Rabelais, 2010: 80). O Gordo, ilho único de uma famíliarica paulistana, desacredita da educação formal: “O Hugo Ciência perguntou ao Gordo: Meu QI é 250.Qual é o seu? O gordo, que tinha a boca cheia de pão com geleia falou –Quem é ese pateta?” (Marinho,2006: 47).Quando chegamos à conclusão de que ocore um diálogo entre a criação do Gordo e Gargântua ePantagruel, somos conduzidos a airmar que o Gordo não precisa de deinições, posuindo ligação clara comseus antecesores em vários aspectos: “O corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está prontonem acabado: está sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo constrói outro corpo, esecorpo absorve o mundo e é absorvido por ele” (Bakhtin, 1987: 277).Como um velho conhecido em suas formas e atitudes, Marinho metaforicamente desenvolve umgigante, capaz de enfrentar qualquer desaio. Por meio do princípio do riso, de iguras e elementospopulares, com uma linguagem ousada, Rabelais e Marinho compõem personagens que realizam umintrigante diálogo entre os séculos XVI e XX.Segundo Bakhtin: “A tarefa esencial de Rabelais consistia em destruir o quadro oicial da época e dosseus acontecimentos, em lançar um olhar novo sobre eles, em iluminar a tragédia ou a comédia da época doponto de vista do coro popular rindo na praça pública” (1987: 386).João Carlos Marinho, por sua vez, busca um diálogo intenso e inteligente com o leitor infantil,destituindo verdades adultas e chamando a criança ao centro da conversa, o que, em última instância,equivale a um proceso de ruptura do senso comum e à aceitação da posibilidade de diálogo entre pesoasoriundas de diferentes condições sociais e/ou étnicas.Arlindo, Caroline y Alves Valente, Tiago. “François Rabelais e João Carlos Marinho: um gordo, dois gordos”.Imposibilia Nº8, Págs. 29-45 (Octubre <strong>2014</strong>) Artículo recibido el 31/07/<strong>2014</strong> – Aceptado el 11/09/<strong>2014</strong> – Publicado el 30/10/<strong>2014</strong>.43