Edição Especial - Faap

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27.08.2013 Views

dado relativa autonomia ao Banco Central e, por conta disto, temos tornado mais claras as regras do jogo econômico. A história é processo e o processo flui e é importante que continue a fluir. Ao escrever Raízes do Brasil, em 1936, e depois ao reescrevê-lo, em 1948, Sérgio Buarque previa um processo de enormes transformações e de superações de nossas heranças culturais. O Brasil se urbanizava e a atmosfera das cidades imporia o padrão impessoal e democrático. Setenta anos depois, estamos revivendo dilemas muito parecidos. Mas isso não significa que Buarque de Holanda estivesse errado. O Brasil progrediu, sim. Num processo tortuoso e cheio de retrocessos e avanços, é verdade. Mas evoluiu. Nossos problemas se tornam mais agudos, justamente por conta dessa evolução. Retomamos ainda hoje as questões de Buarque porque voltamos a passar por momentos que impõem novos padrões de comportamento. A globalização, a integração do planeta por meio das telecomunicações, da informática e da eletrônica, a abertura econômica e o novo padrão da economia mundial exigem novas mudanças. Vivemos, novamente, novos tempos e nossa criatividade mais uma vez é testada. Nossa cultura miscigenada, o sentimento de que não há pecado e que, portanto, é possível ousar (como aventureiros que somos) nos permite pôr à prova a nossa capacidade de adaptação. Temos instrumentos mentais e culturais para isto. Precisamos apenas superar o passado, desamarrar as correntes que, às vezes, como fantasmas, arrastamos. Portugal e Espanha, que são os donos originais dos nossos defeitos e manias, diante do desafio da integração européia, souberam desatar as cordas que os prendiam ao passado. Superaram ditaduras, superaram os personalismos, superaram as idiossincrasias da cultura e caminham para a consolidação de sociedades democráticas, modernas e, dentro do possível, justas. Também podemos caminhar nesse sentido. Para isto, precisamos, antes, compreender a origem de nossos problemas. Otimista incorrigível, Darcy Ribeiro acreditava estarmos forjando uma nova civilização; algo novo e inédito, mas comparável a Roma. Sua perspectiva, além de pretensiosa, era de superação dos nossos entraves. Nossos ancestrais problemas não podem nos obstruir o caminho; nossas fragilidades são passíveis de correção, pois nossas qualidades seriam ainda maiores. É preciso reconhecer o que houve de bom: forjamos uma democracia racial, como disse Gilberto Freyre (até hoje pouco compreendido), desenvolvemos relações de afeto; brindamos a criatividade e o nosso “jeitinho” às vezes é mesmo a mais adequada solução para problemas até então insolúveis. Não importa que a gambiarra seja instituição nacional, importa que ela funcione e melhore a vida de todos. Temos um imenso caminho pela frente e para isto é preciso olhar para a frente. O espelho retrovisor é apenas um instrumento do condutor, mas não pode ser o guia. Como disse Darcy Ribeiro, somos um povo novo, aberto para o futuro; nascemos sob o signo da utopia da terra sem males e da morada de Deus – aliás, acreditamos que Deus é brasileiro (depois, megalomaníacos são os argentinos!). Macunaíma, personagem de Mário de Andrade, ficou conhecido como o herói sem nenhum caráter não porque “o herói da nossa gente” seja 198 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.5(edição especial), 2006

mau, mas, assim como o país, porque seu caráter ainda não se formou. Podemos progredir, podemos superar o passado que ainda nos prende. Há um trecho de um poema de Fernando Pessoa que diz: “Deus quer; o homem sonha; a obra nasce”. O sonho a que o poeta se refere é menos a atitude contemplativa e passiva e mais a idéia do construtor de desejos. Podemos, sim, inventar o Brasil, como queria Darcy Ribeiro, assim como creio que a Argentina possa fazer o mesmo. É com essas palavras de orgulhosa nacionalidade que humildemente espero ter colaborado para este fórum tão importante para os nossos países. Obrigado. Referências bibliográficas ANDRADE, M. Macunaíma – o Herói sem Nenhum Caráter. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974. DA MATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. HOLANDA, S.B. Raízes do Brasil. 21 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. HOLANDA, S.B. Visão do Paraíso: os motivos edênicos do descobrimento e colonização do Brasil. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. FAORO, R. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1958. FREYRE, G. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 28 ed. Rio de Janeiro: Record, 1992. PRADO, P. Retrato do Brasil: Ensaio sobre a tristeza brasileira. 9 ed. São Paulo: Cia das Letras, 1998. RIBEIRO, D. O povo brasileiro; a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais, 1989. Brasil: compreender e superar..., Carlos Alberto Furtado de Melo, p. 190-199 199

mau, mas, assim como o país, porque seu caráter ainda não se formou. Podemos<br />

progredir, podemos superar o passado que ainda nos prende. Há um trecho de um<br />

poema de Fernando Pessoa que diz: “Deus quer; o homem sonha; a obra nasce”.<br />

O sonho a que o poeta se refere é menos a atitude contemplativa e passiva e mais<br />

a idéia do construtor de desejos. Podemos, sim, inventar o Brasil, como queria<br />

Darcy Ribeiro, assim como creio que a Argentina possa fazer o mesmo.<br />

É com essas palavras de orgulhosa nacionalidade que humildemente espero<br />

ter colaborado para este fórum tão importante para os nossos países. Obrigado.<br />

Referências bibliográficas<br />

ANDRADE, M. Macunaíma – o Herói sem Nenhum Caráter. São Paulo: Livraria<br />

Martins Editora, 1974.<br />

DA MATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema<br />

brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.<br />

HOLANDA, S.B. Raízes do Brasil. 21 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.<br />

HOLANDA, S.B. Visão do Paraíso: os motivos edênicos do descobrimento e colonização do<br />

Brasil. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.<br />

FAORO, R. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre:<br />

Globo, 1958.<br />

FREYRE, G. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da<br />

economia patriarcal. 28 ed. Rio de Janeiro: Record, 1992.<br />

PRADO, P. Retrato do Brasil: Ensaio sobre a tristeza brasileira. 9 ed. São Paulo: Cia das<br />

Letras, 1998.<br />

RIBEIRO, D. O povo brasileiro; a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia<br />

das Letras, 1995.<br />

WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Biblioteca<br />

Pioneira de Ciências Sociais, 1989.<br />

Brasil: compreender e superar..., Carlos Alberto Furtado de Melo, p. 190-199<br />

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