Edição Especial - Faap
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gentes: a sua ganância, a sua esperteza, a vontade de gozar a vida, a alegria e ao<br />
mesmo tempo a tristeza.<br />
É engraçado, por paradoxal, mas nosso contrato social deixou de levar em<br />
conta a existência do outro. O Contrato parece ter sido o trato de e para uma<br />
única parte, que entrou em litígio consigo própria. Um país que unificou<br />
culturas, mas que essencialmente não uniu os homens. É claro que esse tipo de<br />
abordagem não se revela como “a” explicação, mas parece-me importante<br />
elemento voltado à tentativa de constituir uma plausível explicação do país. O<br />
país é isso e muito mais.<br />
Há também certa ternura e uma vontade de se deixar estar no paraíso, de não<br />
se preocupar com as mesquinharias do cotidiano e, antes, subverter o cotidiano a<br />
um eterno carnaval onde todos são irmãos, independente da cor de suas peles,<br />
independente das suas posses, de seus credos. Onde todos são uma única torcida<br />
de um time de futebol que, hipotética e ilusoriamente, sempre vence.<br />
E assim, quero, finalmente, passar à questão. Para isto, volto ao passado<br />
longínquo dos nossos colonizadores e levanto quatro pontos preliminares:<br />
1) Nós, no Brasil, gostamos de dizer que somos um povo miscigenado.<br />
Mas, miscigenados, antes de nós, já eram os portugueses: lusitanos, galegos e<br />
célticos; fenícios; gregos e cartagineses e depois romanos povoaram a península;<br />
mais tarde ocorreram as invasões bárbaras de suevos e visigodos, depois<br />
vândalos e alanos. Os maometanos vindos de África, designados “mouros”,<br />
ocuparam a cena por mais de 500 anos até que cristãos reconquistassem o<br />
território. Isto mostra o enorme caldeamento de raças e culturas já nos<br />
portugueses. A nossa mistura, no Brasil, não foi, portanto, uma novidade para<br />
o povo português. Sérgio Buarque e Gilberto Freyre, entre outros, enfatizaram<br />
isto, apontando que a ausência de “orgulho de raça” na gente lusitana<br />
contribuiu para que o nosso colonizador aqui se envolvesse com índias e depois<br />
negras, fazendo filhos, adaptando-se à adversidade, povoando o país. O<br />
caldeamento anterior contribuiu para que não houvesse a aversão ao outro,<br />
ainda que o colonizador continuasse a ser o dominador e, inegavelmente, o<br />
feitor e algoz de seus escravos, de sua prole, de seus agregados e até de sua<br />
família branca. Todavia, embora houvesse a dominação, nosso colonizador se<br />
diferenciou, pois se permitiu aprender com nativos da terra e também com a<br />
sabedoria do povo africano que veio dar sua força (e suas vidas) para a<br />
exploração dos ciclos econômicos pelos quais passamos. Foi povo negro que<br />
realmente trabalhou e construiu o país-continente.<br />
Gilberto Freyre demonstrou que essa mistura não se deu apenas ao nível da<br />
raça, no âmbito do fenótipo. A ausência de orgulho racial permitiu que tupis,<br />
portugueses e negros também caldeassem culturas, formas de vida, o contato com<br />
a natureza e com os deuses; os conhecimentos, o corpo, a alma e os espíritos.<br />
2) Outro ponto que chama a atenção, além dessa ausência de orgulho<br />
racial no português, foi o tipo de seu catolicismo. O Infante D. Henrique, o<br />
grande incentivador da navegação portuguesa, era um sujeito que acalentava<br />
uma utopia que, parece, estava presente também no sentimento religioso do<br />
povo português e que veio a dar no sentimento do mundo de nós, brasileiros.<br />
Brasil: compreender e superar..., Carlos Alberto Furtado de Melo, p. 190-199<br />
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