Edição Especial - Faap

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27.08.2013 Views

190 Brasil: compreender e superar Carlos Alberto Furtado de Melo* Resumo: Em alguns momentos, as perguntas são mais importantes que as respostas. É preciso perguntar por que somos o que somos. Em nossa formação cultural está a contribuição para pelo menos uma pequena parte da resposta. Retomamos ainda hoje as questões de Sérgio Buarque porque voltamos a passar por momentos que impõem novos padrões de comportamento. A globalização, a integração do planeta, a abertura econômica e o novo padrão da economia mundial exigem mudanças. Nossa capacidade mais uma vez é testada. Nossa cultura miscigenada, o sentimento de que não há pecado e que, portanto, é possível ousar permite afirmar que temos instrumentos mentais e culturais para superação: o espírito adaptativo e a criatividade para inventar o Brasil, como, um dia, sugeriu Darcy Ribeiro. Palavras-chave: Formação cultural brasileira, transformação social, cultura e globalização, economia e cultura. É um grande prazer e um enorme desafio discorrer sobre a formação cultural do meu país. Orgulha-me mais ainda que o faça aqui na Argentina. Tenho profunda admiração por sua literatura, por suas cidades, por seu futebol e mais recentemente por seu cinema. Para mim, nossas diferenças e rivalidades são, antes, as expressões de admiração mútua que nosso personalismo não permite admitir. O historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda demonstrou, com perfeição, como herdamos o personalismo de colonizados ibéricos. Estóicos e inflexíveis em nossa vaidade, temos dificuldades em aceitar que nossas características sejam complementares e que sejamos irmãos numa mesma América. Quero começar meu raciocínio falando um pouco de minhas angústias pessoais e a partir delas chegar ao nosso tema, nesta noite, que é a formação cultural do Brasil. Sou um cientista político e sou também um professor universitário. Como cientista político, procuro compreender e explicar a realidade política; como professor universitário, cabe-me ensinar o método analítico de modo que meus alunos possam por eles mesmos compreender a dinâmica do processo social brasileiro. Na Universidade, tomei a obrigação de ensinar Sociologia e Política para alunos dos cursos de Administração de Empresas e Ciências Econômicas. Esses alunos têm acesso à teoria mais avançada e atualizada do mundo; debruçam-se sobre livros estrangeiros e aprendem o que há de mais moderno e empiricamente estabelecido como correto e eficiente no mundo dos países desenvolvidos. Ora, é muito bom que assim seja, mas creio ser também preciso conhecer o “doente a quem se quer ministrar o remédio”; saber das características de sua saúde, das origens de suas perturbações e das causas da sua * Carlos Alberto Furtado de Melo é Cientista Político, doutor pela PUC-SP, professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.5(edição especial), 2006

doença. Logo, é preciso conhecer o Brasil de modo que se possa nele adaptar os remédios da teoria e se possa perceber a perspectiva da formulação até de uma teoria própria. Por isso, a cada novo semestre pergunto aos meus alunos em tom de desafio: o que é o Brasil? Noto que causo certo desconcerto pois nós, brasileiros, acreditamos conhecer o Brasil. Ele está presente em nós; respiramos seu ar, ardemos sob seu sol, comemos do seu chão. Ora, o que é o Brasil? Todo mundo acredita saber a resposta, sentimentalmente. Mas, na hora de racionalizar a questão, muitos ficam paralisados. Depois de alguns minutos, normalmente os estereótipos afloram: “o Brasil é samba, futebol e mulatas; o Brasil é malícia, jeitinho e muito desacerto e desigualdade social”. Quando ousamos compreender o Brasil autenticamente, nos perdemos. Percebemos que o país é bem mais complexo que os rótulos que o simplificam ao extremo. Como disse Sérgio Buarque, a identidade do Brasil está em devir; ainda não se consolidou. Como podemos explicar algo que ainda não é pleno, que está em transformação? Como admitir que não será exatamente o país que gostaríamos que fosse, mas tão somente aquilo que conseguiremos fazer que seja? Como compreender que vivemos num processo de interações múltiplas, na maioria das vezes desencontradas? Como demonstrar que isto ocorre com todos os povos, mas que a forma como ocorre conosco é mesmo peculiar? O certo é que se trata de um país repleto de paradoxos, de histórias mal- -contadas; explicações que não se fecham e que raramente são consistentes entre si. Vemos que para explicar o Brasil precisamos ter, antes de tudo, o senso de complexidade. O esforço requer que nos dispamos da arrogância e do ufanismo, sem nos deixarmos cair no derrotismo e na mais baixa auto-estima. Não podemos nos furtar a fazer digressões e lançar perguntas para as quais ainda não temos respostas. Neste momento, o melhor é nos preocuparmos mais com as perguntas a fazer do que com as respostas a dar. Elas, as respostas, virão com o tempo, se as perguntas estiverem corretas. O pensamento utilitarista norte-americano, a teoria econômica e a racionalidade do Homo economicus nem sempre se coadunam com o jeito do brasileiro; como todo povo, temos nossos particularismos, nossas manias, nossa idiossincrasia e isso nem sempre é captado por uma teoria geral. Logo, não há respostas prontas porque as perguntas ainda não estão claras. Primeiro, é preciso admitir o incômodo que nos ronda, para depois saber o que nos incomoda. Por isso, na perspectiva de ensinar meus alunos, peço-lhes que tenham dúvidas a respeito do Brasil; rogo-lhes que abandonem certezas, que se dispam de explicações coerentes e politicamente corretas dos livros oficiais de história, que abandonem o sentido da ética burguesa-protestante que deu fundamentos e espírito ao capitalismo, como nos ensinou Max Weber, e com a qual não conseguiremos apreender plenamente o sentido da formação nacional. E assim recorro a escritores, historiadores, sociólogos e antropólogos que, no fim dos anos 1920 e durante as décadas de 1930 e 1940 ousaram compreender e tentaram explicar o Brasil. Refiro-me especialmente a Paulo Prado (Retrato do Brasil), Mário de Andrade (Macunaíma, o herói sem nenhum caráter), Gilberto Freyre (Casa-Grande & Senzala) e Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil: compreender e superar..., Carlos Alberto Furtado de Melo, p. 190-199 191

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Brasil: compreender e superar<br />

Carlos Alberto Furtado de Melo*<br />

Resumo: Em alguns momentos, as perguntas são mais importantes<br />

que as respostas. É preciso perguntar por que somos o que somos.<br />

Em nossa formação cultural está a contribuição para pelo menos<br />

uma pequena parte da resposta. Retomamos ainda hoje as questões<br />

de Sérgio Buarque porque voltamos a passar por momentos que<br />

impõem novos padrões de comportamento. A globalização, a<br />

integração do planeta, a abertura econômica e o novo padrão da<br />

economia mundial exigem mudanças. Nossa capacidade mais uma<br />

vez é testada. Nossa cultura miscigenada, o sentimento de que não<br />

há pecado e que, portanto, é possível ousar permite afirmar que<br />

temos instrumentos mentais e culturais para superação: o espírito<br />

adaptativo e a criatividade para inventar o Brasil, como, um dia,<br />

sugeriu Darcy Ribeiro.<br />

Palavras-chave: Formação cultural brasileira, transformação social,<br />

cultura e globalização, economia e cultura.<br />

É um grande prazer e um enorme desafio discorrer sobre a formação cultural<br />

do meu país. Orgulha-me mais ainda que o faça aqui na Argentina. Tenho<br />

profunda admiração por sua literatura, por suas cidades, por seu futebol e mais<br />

recentemente por seu cinema. Para mim, nossas diferenças e rivalidades são, antes,<br />

as expressões de admiração mútua que nosso personalismo não permite admitir. O<br />

historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda demonstrou, com perfeição,<br />

como herdamos o personalismo de colonizados ibéricos. Estóicos e inflexíveis em<br />

nossa vaidade, temos dificuldades em aceitar que nossas características sejam<br />

complementares e que sejamos irmãos numa mesma América.<br />

Quero começar meu raciocínio falando um pouco de minhas angústias<br />

pessoais e a partir delas chegar ao nosso tema, nesta noite, que é a formação<br />

cultural do Brasil. Sou um cientista político e sou também um professor<br />

universitário. Como cientista político, procuro compreender e explicar a<br />

realidade política; como professor universitário, cabe-me ensinar o método<br />

analítico de modo que meus alunos possam por eles mesmos compreender a<br />

dinâmica do processo social brasileiro.<br />

Na Universidade, tomei a obrigação de ensinar Sociologia e Política para<br />

alunos dos cursos de Administração de Empresas e Ciências Econômicas. Esses<br />

alunos têm acesso à teoria mais avançada e atualizada do mundo; debruçam-se<br />

sobre livros estrangeiros e aprendem o que há de mais moderno e<br />

empiricamente estabelecido como correto e eficiente no mundo dos países<br />

desenvolvidos. Ora, é muito bom que assim seja, mas creio ser também preciso<br />

conhecer o “doente a quem se quer ministrar o remédio”; saber das<br />

características de sua saúde, das origens de suas perturbações e das causas da sua<br />

* Carlos Alberto Furtado de Melo é Cientista Político, doutor pela PUC-SP, professor de Sociologia e<br />

Política do Ibmec São Paulo.<br />

Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.5(edição especial), 2006

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