21.12.2021 Views

Orion 7

international sci-fi and fantasy web-zine (novels, comics. illustrations)

international sci-fi and fantasy web-zine (novels, comics. illustrations)

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

4 de Maio de 1954<br />

Ao fim de quarenta anos, Eufémia acordou e deparou-se com um desperto<br />

Humberto, em ansiedade. Soube depois que era ele. O efémero velho que tinha sentado<br />

à beira do leito parecera-lhe o pai do seu amor eterno.<br />

Ele olhava-a compungido, como se as batidas dum impetuoso coração o<br />

tivessem gasto, por inteiro. Ao longo da actualidade virtual, vivida e à deriva. Em si,<br />

assumindo um processo incompleto, irreversível - afeiçoado e sem correspondência,<br />

ante a solidão indiferente por parte da noiva em transe.<br />

Entre outras emoções, ela havia perdido a demolição de um Portugal dividido<br />

entre torcionários e contorcionistas. Alguns foram até ficando malucos, ou monstros<br />

híbridos, e espalhariam tal semente maldita aos filhos inocentes.<br />

Em país cuja ancestralidade se recortava pela fronteira lendária dos mortos<br />

brandos, um milagre de ressurreição como o que assim assumia Eufémia Delgado,<br />

naquele momento supremo, consagrava a evidência da realidade.<br />

O pior estava, porém, para transfigurar-se. Pois, no próprio instante em que ela<br />

adormecera, durante tanto tempo, tinha-a fecundado Humberto Catarino,<br />

exacerbando a expectativa de um futuro personificado.<br />

E agora? Eufémia sobrepunha o quebranto vegetal, vacilando porém num<br />

impasse invertebrado, físico e anímico. Além do breu pretérito.<br />

Tocou a mão de Humberto. Pediu-lhe um espelho.<br />

- Meu Deus… Ó meu Deus, perdoai-me os defeitos e apreciai as minhas<br />

perfeições… - suplicou então muito baixinho, em terror íntimo.<br />

Ela, que lastimava as rugas dum destino desperdiçado quanto aos enleios<br />

frementes de paixão, desconhecia ainda o que teria a temer sobre os frutos da natureza<br />

que em si, inconsciente, havia germinado.<br />

A criatura concebida mas privada do carinho maternal.<br />

Uma massa de músculos e de humores, que se agitava numa sala contígua, onde<br />

tinham interdito que se acercasse àquele quarto onde, momentos antes, se havia<br />

registado a extraordinária revitalização.<br />

Chamavam-lhe velório. Às escuras. O Tóino Doido é que nunca lá havia<br />

entrado, não deixava a madrinha Ti Bernardina, mas conhecia-o por um instinto<br />

visceral. Antecâmara inviolável, para seu reino labiríntico de tormentos e de<br />

assombrações. Como um cordão umbilical jamais cortado, sem se saber e alucinando<br />

aos poucos, quanto ao que poderia estar do outro lado.<br />

Quem poderia ser... O temor secreto evoluíra sobre o mistério do tumor filial,<br />

pestífero até se converter em um aborto demente, abominável. Que era ele. Em quem<br />

os outros nem reparavam, fora de si mesmo.<br />

69

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!