Ilustração de Renato Abreu 68
4 de Maio de 1954 Ao fim de quarenta anos, Eufémia acordou e deparou-se com um desperto Humberto, em ansiedade. Soube depois que era ele. O efémero velho que tinha sentado à beira do leito parecera-lhe o pai do seu amor eterno. Ele olhava-a compungido, como se as batidas dum impetuoso coração o tivessem gasto, por inteiro. Ao longo da actualidade virtual, vivida e à deriva. Em si, assumindo um processo incompleto, irreversível - afeiçoado e sem correspondência, ante a solidão indiferente por parte da noiva em transe. Entre outras emoções, ela havia perdido a demolição de um Portugal dividido entre torcionários e contorcionistas. Alguns foram até ficando malucos, ou monstros híbridos, e espalhariam tal semente maldita aos filhos inocentes. Em país cuja ancestralidade se recortava pela fronteira lendária dos mortos brandos, um milagre de ressurreição como o que assim assumia Eufémia Delgado, naquele momento supremo, consagrava a evidência da realidade. O pior estava, porém, para transfigurar-se. Pois, no próprio instante em que ela adormecera, durante tanto tempo, tinha-a fecundado Humberto Catarino, exacerbando a expectativa de um futuro personificado. E agora? Eufémia sobrepunha o quebranto vegetal, vacilando porém num impasse invertebrado, físico e anímico. Além do breu pretérito. Tocou a mão de Humberto. Pediu-lhe um espelho. - Meu Deus… Ó meu Deus, perdoai-me os defeitos e apreciai as minhas perfeições… - suplicou então muito baixinho, em terror íntimo. Ela, que lastimava as rugas dum destino desperdiçado quanto aos enleios frementes de paixão, desconhecia ainda o que teria a temer sobre os frutos da natureza que em si, inconsciente, havia germinado. A criatura concebida mas privada do carinho maternal. Uma massa de músculos e de humores, que se agitava numa sala contígua, onde tinham interdito que se acercasse àquele quarto onde, momentos antes, se havia registado a extraordinária revitalização. Chamavam-lhe velório. Às escuras. O Tóino Doido é que nunca lá havia entrado, não deixava a madrinha Ti Bernardina, mas conhecia-o por um instinto visceral. Antecâmara inviolável, para seu reino labiríntico de tormentos e de assombrações. Como um cordão umbilical jamais cortado, sem se saber e alucinando aos poucos, quanto ao que poderia estar do outro lado. Quem poderia ser... O temor secreto evoluíra sobre o mistério do tumor filial, pestífero até se converter em um aborto demente, abominável. Que era ele. Em quem os outros nem reparavam, fora de si mesmo. 69