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Orion 7

international sci-fi and fantasy web-zine (novels, comics. illustrations)

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– Ouve, a tua mãe deve estar bem. Os médicos<br />

estão quase a vir, vão tratar dela. Em breve voltarás para<br />

casa.<br />

A miúda, obviamente, não se cala. Talvez precise<br />

de soltar toda a tristeza dentro de si, pensou Joana. Até<br />

secar. Algo que a rapariga entende muito bem.<br />

– Vou… estás com fome? Vou trazer comida –<br />

recua para a cozinha. – Fiz um bolo… gosto de bolos –<br />

antes de fechar a porta, avisa: – Não entres, que tenho de<br />

me descalçar – mas por precaução, tranca a porta.<br />

Joana abre a porta quando a brigada de emergência<br />

surge, mas não transpõe a ombreira. Vê os homens<br />

entrarem, completamente fardados, no apartamento da<br />

vizinha e saírem de lá com uma figura envolta em<br />

cobertores, esticada numa manta. Como estas brigadas<br />

trazem sempre equipamento seguro, o facto de a senhora<br />

ser levada com a cabeça tapada é suficientemente revelador.<br />

Inconscientemente, Joana olha para trás mas a criança<br />

continua atenta à televisão, copo de leite esquecido entre<br />

os dedos. A polícia aproxima-se ao máximo da distância<br />

regulamentar para lhe colocar uma série de perguntas.<br />

– Sabe se a senhora tinha família? – pergunta o<br />

homem, escrevendo num bloco.<br />

– Nunca falei com ela, mal nos<br />

cumprimentávamos. Não há informação nos vossos<br />

registos?<br />

– Tem estatuto de isolada.<br />

Joana aquiesce sem espanto. O prédio tem ótimas<br />

condições para isolamento e é natural que grande parte dos<br />

vizinhos o seja. Como ela.<br />

– E o pai dela? – aponta para trás, para a criança<br />

no sofá.<br />

– A miúda chama-se Beatriz. É uma órfã das… –<br />

encolheu os ombros. – Você sabe. Tinha sido adotada pela<br />

sua vizinha.<br />

Joana engole em seco, sente-se fraca. Agarra-se à<br />

ombreira. É como se aqueles anos todos de distância sejam<br />

um mero sonho.<br />

– E agora, o que lhe vai acontecer?<br />

– Se a levarmos connosco, terá de voltar ao orfanato<br />

até encontrarmos alguém da família da mãe… isto, se<br />

encontrarmos. Temos muito trabalho – acrescenta à laia<br />

de desculpa, e ficou à espera.<br />

– «Se» a levarem convosco?… – Joana demora a<br />

entender.<br />

– Bem, ela podia ficar consigo. Durante alguns<br />

dias. Até haver alguma novidade – faz uma pausa. – Não<br />

está doente.<br />

– Ainda – dispara Joana de imediato.<br />

– Também vivi as minhas tragédias. Sei o que sente<br />

– Joana desconfia que ele terá passado os olhos pelo seu<br />

historial. – Mas muito mudou quando tive os meus filhos.<br />

Aprendi a aceitar. Ter medo e ter cautela são dois extremos.<br />

Um deles ajuda-nos a viver. O outro não.<br />

Ela não responde. Sente um nó no estômago, só<br />

lhe apetece enroscar-se a um canto e ficar invisível para o<br />

mundo.<br />

– O orfanato é um lugar terrível – remata ele.<br />

E Joana, sendo quem é, com o seu passado, não<br />

tem outro remédio senão aceitar.<br />

–oOo-<br />

–oOo-<br />

Há muito que não tem aqueles pesadelos. As<br />

chagas ativas são como portas que se reconhecem. Chama-lhes<br />

pesadelos, não por serem histórias de terror mas de<br />

felicidade. Reconhecendo-se, abrem-se ao nível celular.<br />

Nesses momentos, volta a abraçar e a ser abraçada. Sente<br />

o corpo alheio contra o seu. Não há mais diferença entre<br />

genética alheia e própria, porque a doença sobrepõe a sua<br />

própria identidade. Vê os rostos abertos, sente mãos no<br />

rosto, dedos entre os dedos, sente-se erguida no colo e<br />

levantada no ar, rodando entre risos. Há praia e mar e<br />

gente, muita gente, muitos corpos livres, e o mundo,<br />

renascido. Todos estes lugares, agora desertos. Toda esta<br />

beleza, agora por apreciar. Quando as chagas ativas de dois<br />

doentes entram em contacto, inicia-se o processo chamado<br />

fusão. O terror de saber que a felicidade não voltará. Assim<br />

definido pela interpenetração dos tecidos celulares. Joana já<br />

não sabe se são memórias ou desejos, se os rostos<br />

pertencem aos pais quando jovens, ou se representam<br />

meras fantasias de quem está só. Embora se trate de<br />

material estranho, o sistema imunitário não o reconhece como<br />

tal. Sonha com figuras presas em âmbar, dentro de<br />

pequenos mundos translúcidos que pairam no ar. As<br />

figuras mexem-se e dançam e acenam umas às outras,<br />

jamais se encontrando. É extraordinariamente rápida a<br />

fusão das camadas dérmicas, e o processo só abranda ao<br />

alcançar os músculos. Sonha fascinada com este sistema de<br />

mundos que se orbitam sem jamais se encontrarem, e<br />

acorda lavada em lágrimas, abraçando-se com uma ânsia<br />

sem fim, um infinito vazio. Dependendo do ângulo de fusão,<br />

órgãos afetados e intensidade do processo, a separação por<br />

intervenção cirúrgica torna-se um processo arriscado após as<br />

primeiras horas, com elevado grau de fatalidade para os<br />

intervenientes. E quando as chagas estão em plena<br />

potência, impedindo-a de dormir, amansa o seu desejo,<br />

que é também o desejo da doença, no boneco de pele<br />

sintética a seu lado, na escuridão da noite, procurando o<br />

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