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Orion 7

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casa. Olha em volta para as portas dos outros apartamentos,<br />

mas continuam fechadas. Ninguém se quer envolver. Nem<br />

ela própria.<br />

– Ela caiu – adiantou a menina. – Estava no quarto<br />

e caiu. E não se mexe.<br />

Joana suspira de alívio. Um problema normal de<br />

saúde. Poderá ligar para uma linha de apoio. Despachar a<br />

situação. Alguém tem de o fazer, e parece que lhe calhou<br />

na rifa. Não pode deixar a criança no meio do corredor.<br />

Para começar, a choradeira continuará noite dentro. E<br />

depois, algo dentro dela lhe diz que seria errado.<br />

Humanamente errado.<br />

– Tens luvas? Máscara? – os materiais que tem em<br />

casa são demasiado grandes para uma criança e não se<br />

sentiria protegida. – Aquilo que levas à rua?<br />

A menina anui quase automaticamente.<br />

– Vai buscá-las. Sabes onde estão? – a miúda volta<br />

a anuir, e depois levanta-se devagar e entra em casa. Surge<br />

um minuto depois com os artigos nas mãos.<br />

– Não, tens de colocá-las – incita-a. A menina<br />

encara-a com ar perplexo.<br />

– É sempre a mãe que me faz isso…<br />

– Por amor de… – Joana suspira fundo e<br />

mentaliza-se. A bem dizer, o risco é mínimo. Ela está<br />

devidamente protegida, e a menina não apresenta sinais<br />

visíveis da doença. Com as devidas cautelas, não haverá<br />

problemas. – Estica a mão – abrindo a luva, que segura<br />

com a ponta dos dedos, consegue enfiá-la nos dedos da<br />

criança, soltando-a logo que a sente firme. Repete o<br />

processo no outro lado e depois indica-lhe com gestos que<br />

tem de puxá-las para cingi-las nas mãos.<br />

A máscara é mais fácil, pois apenas há que puxar o<br />

atilho elástico e prendê-lo na nuca.<br />

– A senhora vai cuidar da mamã? – pergunta a<br />

miúda com olhos ansiosos detrás da capa pintada que lhe<br />

oculta o rosto inteiro. Representa um pássaro em pleno<br />

voo, asas de cada lado do nariz descendo pelas faces, o bico<br />

subindo pela testa. Joana quase sorri.<br />

– Vou chamar quem cuide dela – diz Joana,<br />

abrindo a porta e desviando-se para a menina passar. Sente<br />

o coração acelerado. Aparte os poucos técnicos que foi<br />

obrigada a chamar ao longo dos anos, mais ninguém entrou<br />

em casa. E de todas as vezes, preparava as visitas de<br />

antemão, resguardando-se devidamente.<br />

Mas agora não será possível, e como agiu sem<br />

refletir, já a miúda entrou na sala, sentando-se no sofá, no<br />

lugar preferido de Joana de há anos.<br />

As mãos tremem-lhe. Terá de trocar de sofá.<br />

– Ligar para a assistência – e corre para a cozinha,<br />

fechando a porta, apoiando-se na bancada para recuperar<br />

o fôlego. Sente-se tonta, o espaço roda à sua volta. Só quer<br />

fugir e abandonar para sempre aquela casa. Por outro lado,<br />

diz a si mesma que a reação é excessiva. Ela está protegida,<br />

a menina está protegida. Não há risco. E será por pouco<br />

tempo, até alguém aparecer. Os bombeiros ou familiares.<br />

Aliás, convém telefonar, o que faz de imediato. A sua casa<br />

é própria de isolamento e portanto há telefones em todas<br />

as divisões. Tem de explicar com cuidado e deixar claro<br />

que não entrou em casa alheia. Não viu a vizinha. Sim,<br />

claro que vigiará a criança até chegarem as autoridades.<br />

Não, não conhece ninguém da família da vizinha. Uma<br />

hora? Não se podem despachar? Por fim, desliga, mais<br />

descansada por ter uma solução.<br />

– Tenho fome – diz uma voz atrás de si.<br />

Joana rodopia sobre si mesma, deparando-se com<br />

uma cara em formato de lua, muito redonda, o nariz ainda<br />

vermelho, mas agora com um ar ansioso. E que estica as<br />

mãos muito alvas na direção das suas calças.<br />

Joana salta atrás, embatendo no pequeno armário.<br />

Tombam os frascos de bolos e especiarias no chão, e<br />

também o cronómetro de cozer. Voam estilhaços de vidro,<br />

especiarias, pedacinhos de planta e mecanismos pelo chão,<br />

escondendo-se debaixo dos eletrodomésticos e da mesa. Ela<br />

nem repara.<br />

– Onde estão os teus resguardos? – quase guincha,<br />

não se lhe podendo chamar grito. É a vez de a menina se<br />

retrair, assustada.<br />

– Em casa não uso…– diz com beicinho.<br />

Joana arfa.<br />

– Na tua casa! A tua mãe não te ensinou a<br />

comportares-te na casa dos outros?!<br />

– Desculpe… – pede a miúda, desconsolada. Joana<br />

desvia-se dela e acorre para a sala. Pega nos resguardos em<br />

cima da mesa e estende-os para a criança.<br />

– Protege-te – e assiste enquanto ela enfia as<br />

carapaças, batendo o pé de nervosismo. Não vê a hora de<br />

se desfazer daquela situação. Terá de limpar a casa várias<br />

vezes. Apanhar todo e qualquer pedacinho de pele solta,<br />

de escamação natural. Capaz de se fundir durante dias.<br />

Apesar de não ser uma ameaça forte, a ideia de ter resíduos<br />

alheios a invadirem-lhe o corpo agonia-a.<br />

Pensa em ligar novamente para a linha de apoio e<br />

incutir pressa. De pouco servirá mas a espera é terrível.<br />

Um lamento desperta-a novamente para a realidade.<br />

É a miúda. Soluça, inconsolada.<br />

Joana só então se compenetra do ponto de vista da<br />

criança. Preocupada com a mãe. Estranha numa casa<br />

estranha, com companhia estranha. Sentindo tão pouca<br />

vontade de se encontrar ali, como ela.<br />

Algo cede dentro de si. Não pode ser tão egoísta.<br />

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