12
Epidermia by Luis Filipe Silva (ilustração de José Cromagnon) Epidermia A pele é o órgão mais extenso do corpo humano, e a epiderme o seu escudo protetor. Tradicionalmente composta por células unidas entre si sem substâncias intracelulares, a epiderme apresenta uma barreira eficiente à penetração por microorganismos e substâncias estranhas. Enquanto camada que contacta com o exterior, repleta de células mortas, seria de esperar inatividade. Mas esta doença impõe a sua vontade, cria vida e desejo onde estes não existem. «Doença de Hipógenes», in Indice Nacional Terapêutico,2030 Joana encontra-se novamente em fase de escamação e terá de perder preciosos minutos a esfregar o creme nas lesões. Estão em chama viva, as chagas de Hipógenes, incitando-a a uma fome que não pode satisfazer, conspurcando os braços, as pernas, o tronco e barriga até à púbis. O creme demora a fazer efeito, mas Joana não pode esperar mais. Cobre as zonas afetadas com adesivos, não obstante o risco que será desfazer-se deles nas casas de banho do escritório, assombrado por outros doentes. Puxar para cima a camisola que agora veste, abrir a camisa interior hermética, tirar as luvas, expor a pele ao ar. Estremece só de pensar. Não será a primeira vez, mas representa sempre um risco. Depois estender a toalha sobre a bacia, despir a roupa, arrancar os adesivos, voltar a vestir-se. Trancará a casa de banho para maior segurança e grande arrelia das colegas. Já teve chatices, mas restam-lhe poucas alternativas. Não pode usar a desculpa das chagas para justificar o atraso. Ninguém lhes é imune, e entradas tardias são penalizadas. Viaja nos transportes apinhados com uma disciplina férrea que a faz suar. Respira compassadamente. Não pode ceder um milímetro ao ardor. Não pode coçarse nem ajustar a roupa, nem contorcer o tronco como fazem as crianças. Perderá o controlo. Denunciando ali, em público, o seu estado, e receber como resposta a censura inclemente dos estranhos. Os ataques intensos despoletam a mesma situação em corpos alheios. Partilha de feromonas, dizem os cientistas, ainda que ela prefira a explicação popular, que a doença comunica entre si. Quantos daqueles passageiros terão de mergulhar em banhos de sais ao cair a noite por sua causa? Há que reforçar a posologia – o ciclo anda errático. A pomada começa a surtir efeito finalmente após o virar da hora, e respira com mais calma. Precisa de marcar consulta com a terapeuta. Os pensamentos esvaem-se aos poucos. As fantasias abandonam-na. Leu imenso sobre o assunto, troca experiências anónimas com terceiros. A vontade de correr para os braços alheios. De esfregar lesões contra lesões e deixar-se ir. Mergulhar num doce mar de carne, como melaço sobre geleia. O que jamais fará, impedida pela sensatez e pelo medo das consequências. Mas a doença é também maldita neste sentido. Apodera-se das fragilidades. Corrói a determinação. Abafa a perseverança. Cansa, manter-se sempre vigilante, dia após dia, todas as horas, minuto após minuto. Oxalá ficasse em casa, na redoma, mas não pode. Não lhe permitem. E ela não lutou durante tanto tempo para desistir assim. Mas novamente se interroga: é a pele que me faz querer, ou reflete apenas o meu grande desejo? –oOo- A menina chora, sentada no soalho do corredor, junto à porta aberta do apartamento contíguo. Joana reconhece de imediato a filha da vizinha, com os seus oito ou dez anos, da qual por vezes se tem de desviar ou esperar que passe, não obstante os intervalos combinados pelo condomínio. Seguindo de mão dada com a mãe, nos seus devidos e óbvios resguardos, e lhe acenava por vezes, exibindo com orgulho a máscara animada. Desta vez, sozinha, sem mãe, e a pele exposta. Joana fita os braços alvos, a pele brilhante do pescoço, as canelas desnudas sob os calções, e estremece de pavor. Olha para a sua porta, tranquila e expectante do outro lado daquela barreira de carne exposta. Encosta-se à parede, esticando a cabeça para espreitar para dentro do apartamento. Não há movimento. A mãe dela não se encontra visível. Que irresponsabilidade, pensa. A menina apercebe-se da sua presença e vira a cara para cima. Joana não consegue evitar: perante tanta pele assim à mostra, dá um passo atrás, não obstante encontrarse protegida da cabeça aos pés. – Senhora Joana? – pergunta a miúda com voz sumida. Tinha os olhos inchados do choro, nariz e boca ranhosos, uma visão lamentável. Mas a pele muito branca e limpa. Sem qualquer mancha rosácea nem amarela da doença. – Porque choras? – Senhora Joana, é a minha mãe – solta ela arduamente entre fortes soluços, apontando para trás. Joana estremece. Teria a mulher… derretido? O pensamento enregela-lhe o sangue. Deseja enfiar-se em 13