Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

19.10.2015 Views

trêmulo, esperando as perguntas terríveis sobre a bibliografia, eu lhe pedia: “Por favor, fale-nos sobre aquilo que você gostaria de falar...”. Pensei que isso seria uma felicidade: falar sobre aquilo que pensavam! Foi não. Foi um choque. De tanto ler o que os outros pensavam, eles se haviam esquecido daquilo que eles mesmos pensavam. Uma jovem entrou em surto, achando que se tratava de um truque. Poucos tiveram ideias sobre o que falar. O que nos levou a pensar que talvez seja isso que acontece: de tanto ler as ideias de outros, os alunos se esquecem de que eles também podem pensar e que o seu pensamento é importante. Excesso de leitura pode fazer mal à inteligência. Com o que concorda Schopenhauer: “É o caso de muitos eruditos: leram até ficar estúpidos. Porque a leitura contínua, retomada a todo instante, paralisa o espírito...”. E, em oposição àqueles que ensinam leitura dinâmica, Schopenhauer afirma que a leitura só é boa quando é bovina, quando leva à ruminação. Discurso de paraninfo Lembrei-me de um artista goiano que não tirou diploma mas ficou artista e foi convidado por uma turma para ser paraninfo. Ficou apavorado, porque fazer arte ele sabia, mas não sabia fazer discursos, especialmente discurso segundo as etiquetas da academia. Procurou o auxílio de um amigo, reitor da universidade, e implorou que ele lhe escrevesse o tal discurso. Negado o seu pedido, o artista resolveu fazer uma pesquisa: entrevistou várias pessoas já formadas para saber o que, no discurso do seu paraninfo, mais o impressionara. O resultado da sua pesquisa foi surpreendente: nenhum dos entrevistados tinha a menor ideia do que o paraninfo havia falado. Assim, munido desse saber, no dia da formatura ele se levantou perante o público ilustrado de professores, pais e formandos, e no seu jeito de quem não sabia falar a língua própria, contou dos resultados da sua pesquisa. E concluiu: “Como vocês não vão se lembrar mesmo do que vou falar, quero só dizer que não vou falar nada. Só quero que vocês sejam muito felizes”. Falou três minutos e foi delirantemente aplaudido. Do seu discurso ninguém se esqueceu. Currículos Se eu pudesse mexer nos currículos de educação dedicaria metade do tempo à literatura. Tais como estão, eles se orientam no sentido de formar “cientistas” da educação. Mas as ciências, todas elas, moram na “caixa das ferramentas”. E os educadores moram na “caixa dos brinquedos”... As ciências da educação nos dão conhecimento sobre as crianças. Mas não é o conhecimento que faz educadores. É

preciso amar e respeitar as crianças. E isso a ciência não consegue ensinar. A literatura, sem dar conhecimento científico, nos ensina a amar as crianças. Não seria fantástico que os professores lessem a literatura infantil? Acho que podíamos mesmo fazer um congresso só para a leitura de estórias... Dona Clotilde Tive uma surpresa jamais sonhada, surpresa feliz. Faz uns tempos, escrevi um artigo cujo assunto era a forma como as relações de aprendizagem e ensino se dão através das pontes poéticas que o amor constrói. Uma dessas pontes tem o nome de “metáfora”, que faz ligações entre coisas parecidas. No filme O carteiro e o poeta, o carteiro diz que se sentia como um “barco batido pelas ondas”. Essa metáfora ligou a sua alma a um barco. Eles se pareciam. “Metonímia” é quando uma imagem nos conduz a relações de proximidade. Tenho um peso de papel sem valor que o meu pai me deu. É claro que ele não se parece com o meu pai. Não é metáfora. Mas foi objeto do meu pai. Ficava na sua mesa de trabalho. Por isso, porque o peso de papel e o meu pai estiveram juntos, o peso de papel me faz lembrar o meu pai. No dito artigo, que se chamou “Aprendo porque amo”, o assunto era a metonímia. Contei então uma experiência infantil, quando eu estava no primeiro ano do Grupo Escolar Brasil, na cidade de Varginha. Minha professora era a dona Clotilde, uma jovem senhora de respeito. Pois ela fazia o seguinte: assentava-se numa cadeira bem no meio da sala, num lugar onde todos os alunos a veriam, e ia desabotoando a blusa até o estômago, ante nossos olhares assustados. Ela não se dava conta do nosso susto porque aquilo que ela estava fazendo era-lhe perfeitamente natural. Aí ela enfiava a mão dentro da blusa e puxava para fora um seio lindo, liso, branco... E nós, meninos, de boca aberta... Mas o encantamento não durava mais que cinco segundos porque ela logo pegava o seu nenezinho e o punha para mamar. Toda mãe fazia assim. Mas nós, meninos, ficávamos sentindo coisas estranhas que não entendíamos. Somente o corpo sabia. Terminada a aula, os meninos faziam fila junto à dona Clotilde, pedindo para carregar a pasta. Quem recebia a pasta era um felizardo, invejado. Aquela pasta não era pasta. Era uma metonímia do objeto desejado, proibido, o seio da dona Clotilde... Aí inventei um ditado que ninguém entende: “Quem não tem seio carrega pasta...”. Essa estória, aplicada à pedagogia, serve para mostrar que, frequentemente, os alunos aprendem as coisas mais difíceis (carregam a pasta) em virtude de sua relação amorosa com o professor, relação de respeito e admiração. Pois a surpresa foi esta, acontecida na cidade de Cambuquira, bem pequena, cheia de matas, de águas minerais... Fui lá fazer uma fala. Contei o caso da metonímia da dona Clotilde. Todo mundo riu. Ao final veio a surpresa. Disseram-me que a

trêmulo, esperando as perguntas terríveis sobre a bibliografia, eu lhe pedia: “Por<br />

favor, fale-nos sobre aquilo que você gostaria de falar...”. Pensei que isso seria<br />

uma felicidade: falar sobre aquilo que pensavam! Foi não. Foi um choque. De tanto<br />

ler o que os outros pensavam, eles se haviam esquecido daquilo que eles mesmos<br />

pensavam. Uma jovem entrou em surto, achando que se tratava de um truque.<br />

Poucos tiveram ideias sobre o que falar. O que nos levou a pensar que talvez seja<br />

isso que acontece: de tanto ler as ideias de outros, os alunos se esquecem de que<br />

eles também podem pensar e que o seu pensamento é importante. Excesso de<br />

leitura pode fazer mal à inteligência. Com o que concorda Schopenhauer: “É o caso<br />

de muitos eruditos: leram até ficar estúpidos. Porque a leitura contínua, retomada<br />

a todo instante, paralisa o espírito...”. E, em oposição àqueles que ensinam leitura<br />

dinâmica, Schopenhauer afirma que a leitura só é boa quando é bovina, quando<br />

leva à ruminação.<br />

Discurso de paraninfo<br />

Lembrei-me de um artista goiano que não tirou diploma mas ficou artista e foi<br />

convidado por uma turma para ser paraninfo. Ficou apavorado, porque fazer arte<br />

ele sabia, mas não sabia fazer discursos, especialmente discurso segundo as<br />

etiquetas da academia. Procurou o auxílio de um amigo, reitor da universidade, e<br />

implorou que ele lhe escrevesse o tal discurso. Negado o seu pedido, o artista<br />

resolveu fazer uma pesquisa: entrevistou várias pessoas já formadas para saber o<br />

que, no discurso do seu paraninfo, mais o impressionara. O resultado da sua<br />

pesquisa foi surpreendente: nenhum dos entrevistados tinha a menor ideia do que<br />

o paraninfo havia falado. Assim, munido desse saber, no dia da formatura ele se<br />

levantou perante o público ilustrado de professores, pais e formandos, e no seu<br />

jeito de quem não sabia falar a língua própria, contou dos resultados da sua<br />

pesquisa. E concluiu: “Como vocês não vão se lembrar mesmo do que vou falar,<br />

quero só dizer que não vou falar nada. Só quero que vocês sejam muito felizes”.<br />

Falou três minutos e foi delirantemente aplaudido. Do seu discurso ninguém se<br />

esqueceu.<br />

Currículos<br />

Se eu pudesse mexer nos currículos de educação dedicaria metade do tempo à<br />

literatura. Tais como estão, eles se orientam no sentido de formar “cientistas” da<br />

educação. Mas as ciências, todas elas, moram na “caixa das ferramentas”. E os<br />

educadores moram na “caixa dos brinquedos”... As ciências da educação nos dão<br />

conhecimento sobre as crianças. Mas não é o conhecimento que faz educadores. É

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