Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves
inesquecíveis. Aconteceu de verdade? Quando eu lhe contava estórias antes de dormir, minha filha sempre me perguntava: “Essa estória que você está contando aconteceu de verdade?”. E eu não podia dar a resposta certa. Seria difícil para a sua compreensão. A resposta certa seria: “Essa estória não aconteceu nunca para que aconteça sempre...”. Esse é o poder das coisas que vivem no mundo da fantasia. Elas nunca aconteceram. Mas todas as vezes que as ouvimos recontadas, ou como poema, ou como estória, ou como música, elas acontecem de novo: encarnam-se no corpo. Coisas que as crianças dizem As crianças dizem coisas deliciosas. O menininho viajava de avião pela primeira vez. O voo partira à noite e ele nada viu. Logo dormiu. Quando acordou pela manhã, olhou para fora, o céu absolutamente azul para cima e, lá embaixo, nuvens brancas navegantes... Assustado, disse ao pai: “Papai, o céu caiu lá embaixo...”. A avó, que morava num sítio, estava recebendo a primeira visita da netinha que morava num apartamento. Levou-a à horta, coisa que a menina nunca vira. Agachou-se diante de um canteiro, retirou a terra fofa e arrancou algumas cenouras. Comentário da menininha: “Você guarda suas cenouras num lugar esquisito. Em casa nós as guardamos na geladeira...”. A menina, baseada em sólidos argumentos linguísticos, discordava: “Não, o nome não pode ser canteiro. Canteiro é um lugar de canto. Um lugar onde crescem as plantas deve se chamar planteiro...”. Hora do jantar, o menininho de cinco anos tomava sopa. Fez então, ao pai, uma pergunta teológica: “Papai, onde está Deus?”. O pai respondeu segundo o catecismo: “Está em todos os lugares, meu filho”. Rápido, o menino concluiu: “Está então nesta colher de sopa que estou tomando?”. O menino visitava a fazenda pela primeira vez. De manhã, todos ao lugar onde se fazia a ordenha das vacas, o leite jorrando espumante das exuberantes tetas do manso animal. Todos bebiam do leite quente. Chegada a vez do menino, ele recusou o copo de leite e se pôs a chorar: “Não quero tomar leite de bicho. Quero tomar leite de saquinho...”. Pergunta metafísica de uma menininha: “Para onde vão os dias que passam?”. Sim, eu me pergunto: para onde foram os dias que vivi? Outras perguntas Por que o céu é azul? O que faz a Terra girar? Por que a chuva cai em gotas e não
toda de uma vez? Quem inventou as palavras? Cavalo poderia se chamar “sabiá” e sabiá se chamar “cavalo”? Por que os bons morrem cedo? Existe o Inferno? Quem o criou? Voltar a ser criança O místico Jacob Boehme disse que a única coisa que Deus faz é brincar. Os homens perderam o Paraíso quando deixaram de ser crianças brincantes e se tornaram adultos trabalhantes... As escolas existem para transformar as crianças que brincam em adultos que trabalham. Eternas As crianças que moram em nós são eternas. Não envelhecem. Tal como acontece nos gibis. Os sobrinhos do Pato Donald até hoje são pirralhos. E também o Calvin... Alberto Caeiro era da mesma opinião. Ele fala da eterna criança que o acompanhava sempre e que lhe fazia cócegas, brincando com as suas orelhas. Assim, a gente vai ficando velho por fora, as linhas do rosto marcando a verticalidade. Mas é só a criança acordar para que o rosto velho se ponha a brincar... Mexericas Por razões que só Freud explica, quando eu era menino adorava descascar mexericas e enfiar meu indicador no buraco que há no meio dos gomos. Ficava com a mexerica espetada, mostrando para todo mundo. De vez em quando, nas minhas falas, conto esta experiência infantil e o auditório morre de dar risada. Porque todos fizeram a mesma coisa. Não é estranho isso, que todas as crianças tenham a mesma ideia e o mesmo prazer? Crianças diferentes Tenho dó das crianças diferentes. Eu fui uma criança diferente. Caipira de Minas em meio aos meninos da riqueza carioca. Roupas diferentes, sotaque ridículo. Fui motivo de chacota. Nunca tive um único amigo na escola. Foi assim que aprendi a solidão. Há as crianças que aprendem mais devagar, que correm também mais devagar por serem gordas, que não são bonitas, que não são atléticas, que têm alguma limitação, síndrome de Down, gagueira, estrabismo, deficiência visual. As crianças ainda são discriminadas pela cor. Muitas estórias infantis se escreveram
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Aconteceu de verdade?<br />
Quando eu lhe contava estórias antes de dormir, minha filha sempre me<br />
perguntava: “Essa estória que você está contando aconteceu de verdade?”. E eu<br />
não podia dar a resposta certa. Seria difícil para a sua compreensão. A resposta<br />
certa seria: “Essa estória não aconteceu nunca para que aconteça sempre...”. Esse<br />
é o poder das coisas que vivem no mundo da fantasia. Elas nunca aconteceram.<br />
Mas todas as vezes que as ouvimos recontadas, ou como poema, ou como estória,<br />
ou como música, elas acontecem de novo: encarnam-se no corpo.<br />
Coisas que as crianças dizem<br />
As crianças dizem coisas deliciosas. O menininho viajava de avião pela primeira<br />
vez. O voo partira à noite e ele nada viu. Logo dormiu. Quando acordou pela<br />
manhã, olhou para fora, o céu absolutamente azul para cima e, lá embaixo, nuvens<br />
brancas navegantes... Assustado, disse ao pai: “Papai, o céu caiu lá embaixo...”. A<br />
avó, que morava num sítio, estava recebendo a primeira visita da netinha que<br />
morava num apartamento. Levou-a à horta, coisa que a menina nunca vira.<br />
Agachou-se diante de um canteiro, retirou a terra fofa e arrancou algumas<br />
cenouras. Comentário da menininha: “Você guarda suas cenouras num lugar<br />
esquisito. Em casa nós as guardamos na geladeira...”. A menina, baseada em<br />
sólidos argumentos linguísticos, discordava: “Não, o nome não pode ser canteiro.<br />
Canteiro é um lugar de canto. Um lugar onde crescem as plantas deve se chamar<br />
planteiro...”. Hora do jantar, o menininho de cinco anos tomava sopa. Fez então,<br />
ao pai, uma pergunta teológica: “Papai, onde está Deus?”. O pai respondeu<br />
segundo o catecismo: “Está em todos os lugares, meu filho”. Rápido, o menino<br />
concluiu: “Está então nesta colher de sopa que estou tomando?”. O menino visitava<br />
a fazenda pela primeira vez. De manhã, todos ao lugar onde se fazia a ordenha das<br />
vacas, o leite jorrando espumante das exuberantes tetas do manso animal. Todos<br />
bebiam do leite quente. Chegada a vez do menino, ele recusou o copo de leite e se<br />
pôs a chorar: “Não quero tomar leite de bicho. Quero tomar leite de saquinho...”.<br />
Pergunta metafísica de uma menininha: “Para onde vão os dias que passam?”. Sim,<br />
eu me pergunto: para onde foram os dias que vivi?<br />
Outras perguntas<br />
Por que o céu é azul? O que faz a Terra girar? Por que a chuva cai em gotas e não