Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
lugar mais fundo, está cheia de música. E, sem precisar me desculpar pelo meu<br />
gosto, digo que amo música erudita. Música erudita é aquela que nos faz comungar<br />
com a eternidade. Sobre isso escrevi o livro para grandes pequenos O Barbazul.<br />
Os limites da palavra<br />
Muito tarde aprendi os limites da palavra. Alguns pensam que os seus argumentos,<br />
por sua clareza e lógica, são capazes de convencer. Levou tempo para que eu<br />
compreendesse que o que convence não é a “letra” do que falamos; é a “música”<br />
que se ouve nos interstícios de nossa fala. A razão só entende a letra. Mas a alma<br />
só ouve a música. O segredo da comunicação é a poesia. Porque poesia é<br />
precisamente isso: o uso das palavras para produzir música. Pianista usa piano,<br />
violeiro usa viola, flautista usa flauta – o poeta usa a palavra.<br />
Fernando Pessoa<br />
Ele confessou, no Livro do desassossego, que a sua alma era uma orquestra. E<br />
escreveu esse poema: “Cessa o teu canto! Dessa, que, enquanto o ouvi, ouvia uma<br />
outra voz como que vindo nos interstícios do brando encanto com que o teu canto<br />
vinha até nós. Ouvi-te e ouvi-a no mesmo tempo e diferente juntas a cantar. E a<br />
melodia que não havia, se agora lembro, faz-me chorar...”.<br />
Velho<br />
O senhor Américo era um homem humilde, nascido na roça, religioso, que só tinha<br />
ouvidos para pachorrentos hinos de igreja. Pois, não sei como, aos oitenta anos,<br />
quando já estava meio surdo, os seus ouvidos começaram a ouvir música clássica.<br />
Não é que ele nunca tivesse ouvido. Ouvira com o corpo, não ouvira com a alma.<br />
Mas, de repente, a alma começou a ouvir e a vida do sr. Américo se transformou.<br />
Ficou assombrado, inundado de alegria, e passou o resto da sua vida, até sua<br />
morte aos 92 anos, colecionando e ouvindo discos de música clássica.<br />
A viola<br />
... só existe para fazer música. Sem o tocador a viola fica muda. A viola, para ser<br />
boa, tem de fazer a música que está na alma do tocador. Pois o corpo é assim<br />
mesmo: como uma viola... Há muita gente, viola boa, saúde 100%, que é como<br />
viola desafinada, sem tocador. Não faz música. Ninguém é amado por ter saúde<br />
boa. Há pessoas de boa saúde cuja companhia ninguém deseja. E, ao contrário, há