19.10.2015 Views

Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

foice e o martelo. Não poderia esperar que o capitão inquisidor soubesse inglês e<br />

se desse ao trabalho de ler. As fogueiras já estavam acesas. Era preciso encontrar<br />

as bruxas para justificá-las. Os militares haviam tomado conta da cidade. Muitas<br />

pessoas presas. Eu seria uma das próximas. Os livros se recusaram a ser<br />

queimados. Um amigo meu, Sílvio Modesto, fazendeiro, fez a sugestão: que eu<br />

ensacasse os livros e ele os jogaria no fundo do rio Grande. Foi o que fiz. Sacos e<br />

mais sacos de livros foram para o fundo do rio Grande. Devem estar lá, acervo da<br />

Biblioteca Submersa <strong>Rubem</strong> <strong>Alves</strong>, frequentada por lambaris, piabas e dourados...<br />

Patativa do Assaré<br />

“Prefiro falá as coisa certa com as palavra errada a falá as coisa errada com as<br />

palavra certa.”<br />

Arte e ideologia<br />

Existe uma inimizade natural entre a ideologia e a arte. Ideologias são gaiolas. O<br />

seu objetivo é prender o pensamento. A arte são pássaros em voo. O seu objetivo<br />

é fazer o pensamento voar livre. Na revolução cultural da China se queimavam<br />

instrumentos musicais do Ocidente em nome de uma ideologia a um tempo<br />

comunista e rural. O comunismo sacralizou o chamado “realismo socialista” – um<br />

horror total, pintura sem sombras. Maiakóvski se suicidou porque o partido<br />

desejava que ele subordinasse a sua poesia à ideologia. A arte moderna foi banida<br />

da Alemanha nazista sob a alegação de que se tratava de arte degenerada. Assim<br />

se irmanam os ideólogos de direita e de esquerda. O que eles desejam é usar a<br />

arte como instrumento de convencimento ideológico. As marchas militares fazem<br />

os corpos marchar e entopem o pensamento.<br />

Mozart<br />

Eu almoçava num restaurante e ouvia-se música: Mozart, Pequena serenata, uma<br />

das peças mais leves, alegres e brincalhonas jamais escritas. Senti-me feliz. Quis<br />

que o dono ou dona do restaurante soubesse da minha alegria. Dirigi-me à moça<br />

do caixa: “Por favor, diga ao dono ou dona do restaurante que a comida estava<br />

ótima e a música melhor que a comida”. A moça me olhou espantada e perguntou:<br />

“O senhor está falando sério ou está me gozando?”. Se eu só tivesse elogiado a<br />

comida ela teria compreendido. Mas que eu tivesse elogiado a música, e música de<br />

Mozart, isso lhe era incompreensível. Só poderia ser gozação... Assim, minha<br />

alegria se quebrou ao me dar conta do fato de que há pessoas, muitas pessoas,

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!