19.10.2015 Views

Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Ritmo binário<br />

Dizem que a razão por que se embalam as criancinhas em ritmo binário é porque<br />

durante nove meses ouvimos a pulsação binária do coração da mãe. O ritmo<br />

binário do coração da mãe se inscreve no corpo da criancinha como uma memória<br />

tranquilizadora.<br />

Sou bonito<br />

Não é meu costume ouvir música enquanto escrevo. Fico possuído pela música,<br />

numa espécie de êxtase, e isso faz parar meus pensamentos. Contrariando o meu<br />

hábito, coloquei no micro um cd de uma peça que nunca ouvira, a sonata para<br />

violino e piano de César Franck. Minutos depois eu estava chorando. Aí interrompi o<br />

choro e fiz um exercício filosófico. Perguntei-me: “Por que é que você está<br />

chorando?”. A resposta veio fácil: “Choro por causa da beleza...”. Continuei: “Mas o<br />

que é a experiência da beleza?”. Sem uma resposta pronta, veio-me algo que<br />

aprendi com Platão. Platão, quando não conseguia dar respostas racionais,<br />

inventava mitos. Ele contou que, antes de nascer, a alma contempla todas as<br />

coisas belas do universo. Essa experiência é tão forte que todas as infinitas formas<br />

de beleza do universo ficam eternamente gravadas em nós. Ao nascer, esquecemonos<br />

delas. Mas não as perdemos. A beleza fica em nós adormecida como um feto.<br />

Assim, todos nós estamos grávidos de beleza, beleza que quer nascer para o<br />

mundo qual uma criança. Quando a beleza nasce, reencontramo-nos com nós<br />

mesmos e experimentamos a alegria. Agora vem a minha contribuição. Continuo o<br />

mito. Há seres privilegiados – eles bem que poderiam ser chamados de anjos – aos<br />

quais é dado acesso a esse mundo espiritual de beleza. Eles veem e ouvem aquilo<br />

que nós nem vemos nem ouvimos. Aí eles transformam o que viram e ouviram em<br />

objetos belos que os homens normais podem ver e ouvir. É assim que nasce a arte.<br />

Ao ouvir uma música que me comove por sua beleza, eu me re-encontro com a<br />

mesma beleza que estava adormecida dentro de mim.<br />

O lugar onde mora a beleza<br />

“Quando te vi amei-te já muito antes. Tornei a encontrar-te quando te achei.” Essa<br />

é a mais bela declaração de amor que conheço, escrita pelo anjo Fernando Pessoa.<br />

Você já morava dentro de mim antes que nos encontrássemos. Nosso encontro não<br />

foi encontro; foi re-encontro... Isso que o poeta diz para um homem ou uma mulher<br />

pode ser dito também para uma música: “Quando te ouvi, ouvi-te já muito antes.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!